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VULNERABILIDADES DE GÊNERO, PRÁTICAS CULTURAIS E INFECÇÃO PELO HIV EM MAPUTO

VULNERABILIDADES DE GÉNERO, PRÁCTICAS CULTURALES Y INFECCIÓN POR EL VIH EN MAPUTO

GENDER VULNERABILITY, CULTURAL PRACTICES AND HIV INFECTION IN MAPUTO

RESUMO

A construção social do gênero feminino em Moçambique está baseada na submissão ao homem, influenciando a vulnerabilidade de gênero à infecção pelo HIV. Objetivou-se analisar a percepção de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) e de profissionais de saúde (PS), da cidade de Maputo, em relação à vulnerabilidade de gênero e infecção pelo HIV. Participaram 33 PVHA e 15 PS, selecionados por conveniência, mediante a realização de grupos focais e de entrevistas semiestruturadas. Dois eixos temáticos nortearam a análise: vulnerabilidade de gênero e práticas culturais tradicionais. A análise de conteúdo dos relatos verbais permitiu concluir que a vulnerabilidade feminina é maior, segundo a quase totalidade dos participantes, delineando categorias como submissão da mulher, dificuldade para negociar o uso do preservativo e influência das práticas culturais. O estudo possibilitou compreender melhor o contexto de vulnerabilidades que afetam cidadãos de Maputo, em especial as mulheres, em um país de prevalência elevada da epidemia.

Palavras-chave:
HIV/AIDS ; vulnerabilidade; gênero

RESUMEN

La construcción social del género femenino en Mozambique se basa en la sumisión al hombre, que influyen en la vulnerabilidad de género para la infección por VIH. Este estudio tuvo como objetivo analizar la percepción de las personas que viven con el VIH/ SIDA (PVVS) y profesionales de la salud (PS), de la ciudad de Maputo, en relación con la vulnerabilidad de género y la infección por VIH. Participaron 33 PVVS y 15 PS, seleccionados por conveniencia, mediante la realización de grupos focales y entrevistas semi-estructuradas. Dos temas principales guiaron el análisis: la vulnerabilidad de género y las prácticas culturales tradicionales. El análisis de contenido de los informes verbales concluyó que la vulnerabilidad de las mujeres es mayor, según la mayoría de los participantes, destacando categorías como la sumisión de las mujeres, dificultad para negociar el uso del condón y la influencia de las prácticas culturales. El estudio ha permitido comprender mejor el contexto de las vulnerabilidades que afectan a los ciudadanos de Maputo, especialmente las mujeres, en un país con alta prevalencia de la epidemia.

Palabras clave:
VIH/SIDA; vulnerabilidad; género

ABSTRACT

The social construction of female gender based on submission to men has an effect in gender vulnerability to HIV infection. The study aimed to analyze the perception of people living with HIV / AIDS (PLWHA) and health professionals (HP) in Maputo, regarding to gender vulnerability to HIV infection. 33 PLWHA and 15 HP were randomly selected to participate in focus groups and interviews. Two main topics guided the analysis: gender vulnerability to HIV infection and traditional cultural practices. Qualitative analyses of verbal reports concluded that women vulnerability is greater according to almost all participants, due to women submission, lack of power to negotiate condom use, as well as the weight of cultural practices. The study enabled us to better understand the context of vulnerabilities affecting citizens of Maputo, especially women, in a country with a high prevalence of the epidemic.

Keywords:
HIV/AIDS; vulnerability; gender

A África Subsaariana é o epicentro da pandemia do HIV/aids desde a sua eclosão na década de 1980. Moçambique ( país dessa região da África ( apresenta uma das taxas mais altas do continente, onde pessoas adultas de 15-49 anos somam 11,5% de prevalência, sendo superior nas mulheres (13,1%), comparativamente aos homens (9,2%). No que tange à faixa etária de 15-24 anos, há um maior predomínio das mulheres (11,l%), em comparação com os homens, que é de 3,7%. A prevalência é também mais elevada nas áreas urbanas (15,9%) em relação às áreas rurais (9,2%) (Instituto Nacional de Saúde - INS, 2009Instituto Nacional de Saúde - INS. (2009). INSIDA - Inquérito nacional de prevalência, riscos comportamentais e infeção sobre HIV e SIDA em Moçambique. Relatório final.. Maputo: Autor ).

Um dado curioso na realidade moçambicana é que a prevalência do HIV/aids cresce com o aumento da escolaridade: entre as mulheres de 15-49 anos, 9,8% das que não possuem qualquer nível de escolaridade estão infectadas pelo HIV, comparativamente a 14,4% das que têm nível primário e 15% das que têm nível secundário e superior. O mesmo padrão se observa nos homens, nos quais a prevalência cresce de 7,2% entre os que não possuem qualquer nível de escolaridade, para 10,1% entre os que possuem nível secundário e superior. Tal fato parece decorrer do maior acesso que pessoas com melhor condição socioeconômica têm à testagem sorológica para o HIV.

Apesar do aumento do conhecimento sobre a infecção pelo HIV e as medidas preventivas como o uso do preservativo, há ainda desinformação a respeito dos aspectos importantes da transmissão do HIV: pouco mais da metade (52%) de mulheres entrevistadas sabiam que o HIV pode ser transmitido ao bebê pela amamentação (INS, 2009). Estudos conduzidos no país para avaliar o nível de conhecimento de medidas preventivas e como jovens de 15 a 24 anos percebiam os programas de prevenção de HIV/aids na cidade de Maputo (Estavela, 2007Estavela, A. J. (2007). How do young people aged 14-24 perceive prevention programs related to HIV/AIDS in Maputo City. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, Universidade de Copenhage, Copenhage. ) identificaram que grande parte de jovens moçambicanos conhecia as categorias de transmissão do vírus, mas ainda havia muitas dificuldades para o uso das medidas preventivas. Isso pode ser ilustrado pelo relato de uma entrevistada desse estudo: "O meu namorado não sabe que sou soropositiva. Depois de seis meses namorando, não usamos o preservativo. Ele me confia e tenho medo de revelar o meu resultado, visto que ele me prometeu casamento" (Estavela, 2007, p. 21Estavela, A. J. (2007). How do young people aged 14-24 perceive prevention programs related to HIV/AIDS in Maputo City. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, Universidade de Copenhage, Copenhage. ).

Segundo Grezoski (2005Grezoski, A. C. (2005). Mito da tutela penal no combate à violência de gênero ocorrida no âmbito doméstico e familiar. Monografia de Graduação em Direito, Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis.), o termo gênero tem sido usado em vários contextos tomando conotações bem distintas. No âmbito de correntes feministas, a definição do termo enfatiza a noção de cultura, ressaltando diferentemente do conceito de sexo, que se situa no plano biológico, um caráter intrinsecamente relacional do feminino e do masculino.

Por ser a definição desse termo muito complexa, Scott, citado por Silva e Vargens (2009Silva, C. M. & Vargens, O. M. C. (2009). Percepção de mulheres quanto à vulnerabilidade feminina para contrair DTS/HIV, Revista da Escola de Enfermagem da USP 43(2), 401- 406.), adverte que:

Há uma complexidade ao definir a palavra gênero, pois se relaciona com o social e o subjetivo e exerce influências em diversas situações. Gênero é a forma de apontar as construções sociais, na ideia de papéis diferentes para homens e mulheres. É uma maneira de se referir às origens sociais das identidades exclusivas de homens e mulheres. (p. 402)

Todo processo de organização social é determinado por assimetrias de gênero, como argumenta Fonseca (2005Fonseca, R. G. S. (2005). Equidade de gênero e saúde das mulheres Revista da Escola de Enfermagem da USP 39(4), 450-459.), ao afirmar que cada sociedade e, nela cada grupo social, criam padrões de dominação, manifestos por meio de condições como "riscos de contrair doenças e práticas socioculturais negativas somente para serem aceitos como membros da mesma sociedade" (p. 453). É neste entendimento que Silva, citado por Grezoski (2005Grezoski, A. C. (2005). Mito da tutela penal no combate à violência de gênero ocorrida no âmbito doméstico e familiar. Monografia de Graduação em Direito, Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis.), salienta:

As representações acerca da mulher, seja na relação familiar ou na sociedade, passam pelas concepções de fragilidade, dependência e submissão, que dão ao homem o direito de tutela sobre ela. Essa situação é frequentemente posta como se fosse uma questão inerente à natureza da mulher, e não fruto de uma ideologia que tende a reproduzir uma ordem social única, baseada em relações de poder contraditórias. (p. 14)

Ao lado das assimetrias de gênero, acredita-se que imperativos socioculturais como sexo transgeracional, poligamia, onipotência masculina, práticas culturais como pitakufa/kudjinga, entre outros, constituem barreiras para a apropriação de medidas preventivas em relação ao HIV/aids na sociedade moçambicana.

As mulheres em geral, e as africanas em particular, sentem o peso da dependência econômica, sociocultural, e às vezes política, no seu processo de luta pela sobrevivência. Percebendo tal vulnerabilidade do gênero feminino, Fonseca (2005Fonseca, R. G. S. (2005). Equidade de gênero e saúde das mulheres Revista da Escola de Enfermagem da USP 39(4), 450-459.) e Zimba e Castiano (2005Zimba, B. & Castiano, J. P. (2005). As ciências sociais na luta contra a pobreza em Moçambique. Maputo: Filsom.) admitem que, na pós-modernidade, têm sido detectados vários processos destrutivos da vida das mulheres. Um deles se refere ao aumento na proporção de pessoas do sexo feminino chefes de agregado familiar sem capacidade econômica para sustentar os seus dependentes. Para tentar superar essa condição, elas recorrem, muitas vezes, a práticas de risco na atuação como profissional de sexo ou comerciante ambulante informal nas grandes avenidas de Maputo.

Bastos (2000Bastos, F. I. A. (2000). Feminização da Aids no Brasil: determinantes estruturais e alternativas de enfrentamento. Saúde Sexual e Reprodutiva, 3, 210-230.), Marques, Silva, Gutierrez e Lacerda (2006Marques, H. S., Silva, N. G., Gutierrez, P. L., & Lacerda, R., (2006). A revelação do diagnóstico na perspectiva dos adolescentes vivendo com HIV/Aids e seus pais educadores. Cadernos de Saúde Pública 22(3), 619-629. ) e Patrão (2009Patrão, M. N. (2009). UNESCO and the principle of respect for human vulnerability. Geneva: UNESCO.) destacam como ponto central da questão da feminização da epidemia de HIV/aids, em diferentes contextos, a questão de gênero. O tratamento desigual dado aos gêneros, em termos políticos, culturais e socioeconômicos, tem uma dimensão macro e microssocial, compreendendo a não observância dos direitos fundamentais, relações desiguais de poder e acesso diferenciado a bens materiais. Frequentemente essas desigualdades se superpõem, gerando efeitos sinérgicos, que multiplicam os riscos a que estão submetidas as mulheres em geral, e com maior agravo para as africanas, por excelência subestimadas pela historiografia do continente.

A complexidade do conceito de gênero fez emergir a necessidade de contextualizar aspectos da realidade de países mais pobres e endêmicos quanto à aids, nos quais se inclui Moçambique. Especificamente no norte do país, as mulheres são submetidas a rituais socioculturais após a menarca, onde são instruídas à submissão total ao parceiro masculino, à obediência e cumprimento das vontades sexuais do homem. Outra situação de natureza sociocultural também acontece no centro e sul do país, onde a viúva deve aceitar fazer sexo sem proteção com um cunhado para sua purificação, prática denominada pitakufa/kudjinga. Trata-se de prática tradicional moçambicana: quando o marido morre, a viúva deve fazer sexo não protegido com o cunhado para purificá-la. Se o ato for recusado pela viúva, ela pode perder os bens da família, retirados pelos familiares do falecido.Esse fenômeno social reveste-se de muitos riscos em contextos de disseminação de HIV/aids e das infecções de transmissão sexual. O trecho abaixo ilustra tal exposição ao risco de contrair HIV e ITS: "A vida de homens e mulheres é permeada de imensos tabus que colocam a vida de ambos em risco, e em particular a mulher" (Ministério da Saúde da República de Moçambique - MISAU, 2008, p. 17Ministério da Saúde da República de Moçambique - MISAU. (2008). Impacto do HIV/SIDA em Moçambique: atualização da ronda de vigilância epidemiológica de 2007. Maputo: Autor ).

No caso concreto de relações sociais de gênero, a consolidação de elementos estruturantes, como o lobolo, pode levar à ocultação dos sinais formais da desigualdade, sem que essa, contudo, seja posta em causa. O lobolo é o pagamento simbólico efetuado no casamento aos pais da noiva, prática comum no sul de Moçambique, podendo ser pago em dinheiro, gado ou outro bem material que a família da noiva determine. No caso da separação do casal, o marido fica desobrigado de apoios financeiros, pois já teria arcado com despesas do lobolo antes do casamento. Isso revela que, embora do ponto de vista político e da Constituição moçambicana tenha sido possível dar ênfase à igualdade de gênero por meio da convocação da mulher à participação política, o papel social feminino permanece limitado pelo modelo androcrático, no qual a dominação masculina ainda prevalece.

Ademais, a mulher perde o poder de decidir sobre a sua saúde sexual e reprodutiva, de usufruir de direitos e deveres consagrados em vários instrumentos internacionais e nacionais. O mais complicado no caso de Moçambique é que muitas vezes o marido é quem decide se a esposa deve ir ou não ao hospital caso ela esteja doente. Em contextos de gravidez, é a sogra e a cunhada que têm o poder de decidir se a nora deve ter o parto no hospital ou em casa, por exemplo.

No processo de enfrentamento de patologias crônicas e condições adversas no processo saúde-doença, emerge o conceito de vulnerabilidade. Autores como Buchalla e Paiva (2002Buchalla, C. M. & Paiva, V. (2002). Da compreensão da vulnerabilidade social ao enfoque multidisciplinar. Revista de Saúde Pública, 36(Supl. 4), 117-119.), Silva e Vargens (2009Silva, C. M. & Vargens, O. M. C. (2009). Percepção de mulheres quanto à vulnerabilidade feminina para contrair DTS/HIV, Revista da Escola de Enfermagem da USP 43(2), 401- 406.), Scott (2006Scott, P. (2006). Re-assentamento, saúde e insegurança em Itaparica: um modelo de vulnerabilidade em projetos de desenvolvimento. Saúde e Sociedade 15(3), 74-89.) e Patrão (2009Patrão, M. N. (2009). UNESCO and the principle of respect for human vulnerability. Geneva: UNESCO.) trazem concepções sobre a vulnerabilidade em diferentes dimensões do processo saúde-doença. De acordo com Ayres (1996Ayres, J. R. C. M.(1996). HIV/aids, DST e abuso de drogas entre adolescentes. Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas. São Paulo: Casa de Edição.), o termo vulnerabilidade se origina da advocacia internacional pelos direitos universais do homem, que significa o conjunto de fatores de natureza biológica, epidemiológica, social e cultural cuja interação amplia ou reduz o risco ou a proteção de uma determinada enfermidade, condição ou dano. Focaliza, originalmente, grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania.

Desde o surgimento da epidemia de HIV, esse conceito considera, além dos fatores epidemiológicos, outros como os de natureza individual, social e político-institucionais ou programáticos que determinam as diferentes chances de uma pessoa se expor ao HIV. A proposta é reforçar as medidas preventivas aos grupos mais vulneráveis dependendo do contexto. A afirmativa de Buchalla (2002Buchalla, C. M. & Paiva, V. (2002). Da compreensão da vulnerabilidade social ao enfoque multidisciplinar. Revista de Saúde Pública, 36(Supl. 4), 117-119.) ilustra o referido conceito: "A vulnerabilidade de um grupo à infecção pelo HIV e ao adoecimento é resultado de um conjunto de características dos contextos político, econômico e sociocultural que ampliam ou diluem o risco individual" (p. 108). Na perspectiva de Ayres (1996Ayres, J. R. C. M.(1996). HIV/aids, DST e abuso de drogas entre adolescentes. Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas. São Paulo: Casa de Edição.), portanto, essa conceituação avalia as chances de infecção pelo HIV em três planos analíticos: individual, social e programático.

Estudo realizado em Botswana, Malawi e Moçambique categorizou os fatores de vulnerabilidade em três dimensões: fatores culturais de submissão ao homem, como a obrigatoriedade quanto à aceitabilidade das demandas do homem; fatores sociais, como a existência de lugares seguros e não seguros na comunidade; fatores econômicos, como a pobreza e a prostituição. Os participantes ( jovens de ambos os sexos ( mencionaram que a pobreza ou a falta de dinheiro para comprar produtos de primeira necessidade lhes levava a fazer sexo com muitos clientes em troca de dinheiro (Underwood, Skinner, Osman, & Schwandt, 2011Underwood, C., Skinner, J., Osman, N., & Schwandt, H. (2011). Structural determinants of adolescent girls' vulnerability to HIV: Views from community members in Botswana, Malawi, and Mozambique. Social science & medicine 73(2), 343-350. ). Os mercados e ruas também foram considerados locais não seguros para adolescentes no estudo de Jewkes, Levin e Penn-Kekana (2003Jewkes, R., Levin, J., & Penn-Kekana, L. (2003). Gender inequalities, intimate partner violence and HIV preventive practices: findings of a South African cross-sectional study. Social Science & Medicine, 56(1), 125-134.) na África do Sul, onde os resultados mostraram que "30% das raparigas participantes do estudo tiveram o seu primeiro ato sexual forçado; 71% já tiveram, pelo menos uma vez, ato sexual sem consentimento; e 11% tiveram ato sexual por força de raptores" (p. 3).

Esses cenários configuram a realidade moçambicana influenciando, assim, o processo de disseminação da infecção pelo HIV junto a pessoas do sexo feminino, visto que as desigualdades presentes em vários contextos da vida social deixam as mulheres com menos condições de se prevenir do HIV. O presente estudo teve como objetivo analisar a percepção de pessoas vivendo com HIV/aids e de profissionais de saúde, residentes em Maputo, sobre vulnerabilidade de gênero e infecção pelo HIV.

Método

Pesquisa descritiva com abordagem qualitativa desenvolvida em Maputo, Moçambique.

Participantes

Trinta e três PVHA, sendo 28 delas em três grupos focais (GF), dois compostos de educadores de par e um apenas por mulheres. Educadores de par são pacientes voluntários que promovem atividades de acolhimento e atenção a PVHA com problemas de adesão aos cuidados e tratamento, sensibilizando-as para mudanças de comportamento, aceitabilidade do diagnóstico e adoção de estratégias de prevenção positiva. Participaram ainda cinco PVHA, não educadores de par, e 15 profissionais de saúde que foram entrevistados.

O primeiro GF, com 14 participantes educadores de par, foi integrado por seis pessoas do sexo masculino e oito do feminino. A média de idade foi igual a 34 anos, variando de 24 a 47 anos. A escolaridade foi diversificada: desde três anos de estudo até nível superior. Quanto à religião, cinco eram católicos, dois maziones, dois adventistas, um presbiteriano, dois evangélicos, um muçulmano e um participante se declarou sem religião. Quanto ao ano de diagnóstico de HIV, o mais recente foi feito em 2011 e o mais antigo, em 2005. A terapia antirretroviral (TARV) foi iniciada no período entre 2007 e 2012.

O segundo GF foi composto de 11 PVHA educadores de par, sendo oito do sexo feminino. O nível de escolaridade também foi variado: de dois anos de estudo até nível superior. A média da idade entre os participantes foi de 36,5 anos, com variação entre 24 e 41 anos. Três professavam a religião mazione, quatro eram católicos, um presbiteriano, um adventista e dois se declararam muçulmanos. Quanto ao ano de diagnóstico, o mais recente foi feito em 2007 e o mais antigo foi em 2004. Todos iniciaram a TARV entre 2006 e 2008.

O terceiro GF foi composto por oito mulheres vivendo com HIV/aids, cuja média de idade foi de 33,8 anos, com variação entre 27 e 51 anos. Quanto à escolaridade, houve maior homogeneidade, variando de seis a 12 anos de estudo. Das oito participantes, três se declararam católicas, duas adventistas, duas maziones e uma muçulmana. Quando ao ano de diagnóstico de HIV, o mais recente foi feito em 2007 e o mais antigo, em 2003. Todas iniciaram TARV entre 2003 e 2008.

Dos cinco entrevistados PVHA, três eram do sexo feminino e dois do masculino. A média de idade foi de 30,4 anos, com variação de 20 a 37 anos. No que tange à escolaridade, uma pessoa era analfabeta, e as demais variaram entre dois e dez anos de estudo. O tempo médio de diagnóstico de HIV foi de quatro anos, sendo que o diagnóstico mais recente foi feito em 2012 e o mais antigo, em 2005. Dois deles não estavam em TARV e os três restantes estavam em terapia antirretrovial, desde 2006, 2008 e 2011, respectivamente.

O segmento de profissionais de saúde foi composto de 15 profissionais de diversas categorias: uma enfermeira geral, quatro técnicos de medicina geral, uma médica internista, seis médicos generalistas e três psicólogos. A escolaridade variou de formação técnica profissional, equivalente a nível médio, até nível superior. Cinco eram do sexo masculino e dez do feminino, sendo que a média de idade foi de 36,1 anos, variando de 21 a 57 anos. O tempo médio de atuação profissional foi de 8,1 anos, variando de um a trinta anos, ao passo que o tempo médio de atuação em serviço específico de HIV/aids foi igual a 4,6 anos, variando de um a dez anos.

Instrumento de coleta de dados

Com as PVHA, valeu-se de um roteiro para a realização dos GF e de um roteiro de entrevista semiestruturada. Para as entrevistas com os PS, foi usado um roteiro de entrevista semiestruturada. Os três instrumentos tiveram a mesma sequência de perguntas, dado que o objetivo foi investigar as percepções de segmentos sociais distintos sobre os temas de interesse.

Os instrumentos foram constituídos de duas partes: a primeira delas com enfoque em dados sociodemográficos, com questões específicas para PVHA (ano do diagnóstico e do início do tratamento antirretroviral) e para profissionais de saúde (local de trabalho, tempo de atuação profissional e tempo de atuação no serviço específico). A segunda parte continha questões abertas, versando sobre: vulnerabilidade e contextos de risco de infecção pelo HIV de mulheres e homens; práticas culturais tradicionais e vulnerabilidade de infecção pelo HIV.

Procedimentos de coleta de dados

A pesquisa iniciou após aprovação e autorização da Direção de Saúde da Cidade de Maputo e do Comitê Nacional de Bioética para Saúde.

O estudo teve lugar em quatro unidades sanitárias de nível primário da rede de atenção em HIV/aids de Maputo, a saber: os Centros de Saúde de Mavalane, Polana Caniço do José Macamo, de Bagamoio e de Zimpeto.

Todos os participantes, selecionados por conveniência, foram informados dos objetivos da pesquisa, bem como dos procedimentos adotados. Apenas aqueles que aceitaram participar e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram incluídos no estudo.

O uso de duas estratégias de coleta de dados ( GF e entrevista individual ( deveu-se a aspectos de ordem operacional, praticidade e facilitação de acesso aos dois segmentos de participantes.

Após os convites aos PVHA, foi feito o agendamento da data, horário e local de encontro para os três grupos focais (GF). Os GF tiveram lugar em salas previamente identificadas dentro das unidades sanitárias, sendo que houve a gravação da reunião, após prévia autorização dos participantes, e o material foi guardado de forma sigilosa. Os GF tiveram duração média de 80 minutos e foram conduzidos pelo pesquisador principal com a participação de um auxiliar de pesquisa devidamente treinado.

Foram feitas entrevistas com PVHA, em acompanhamento nas unidades de saúde mencionadas, e que aceitaram participar do estudo. Os pacientes foram convidados em salas de espera e as entrevistas duraram, em média, trinta minutos. Com os profissionais de saúde, foram agendadas a data e a hora das entrevistas, segundo a sua disponibilidade, sendo estas efetuadas nas salas de consulta onde os profissionais prestavam atendimento. A duração média dessas entrevistas foi de 45 minutos. Todas as entrevistas, conduzidas pelo pesquisador principal, foram gravadas, garantidas a confidencialidade e a privacidade aos participantes.

Análise de dados

Quanto à análise de dados, inicialmente as entrevistas e os relatos dos grupos focais foram transcritos na íntegra, permitindo a leitura flutuante do corpus. Em um segundo momento, os dados foram organizados conforme os eixos temáticos de interesse. Em seguida, procedeu-se à leitura horizontal das questões e respostas dos participantes, de forma a identificar categorias para cada eixo.

Como os roteiros dos grupos focais e de entrevista tiveram questões iguais, visando investigar as percepções de segmentos sociais distintos sobre os eixos temáticos do estudo, a análise integrou os dados obtidos dos diferentes participantes, sem separá-los devido à sua inserção como PVHA ou profissional de saúde, tal como previsto nos objetivos da pesquisa.

Os relatos verbais referentes aos eixos temáticos foram categorizados a partir de seu conteúdo (Bardin, 2009Bardin, L. (2009). Análise de Conteúdo. Lisboa: LDA.), por dois pesquisadores que tomaram por base a concordância de suas análises para a identificação e nomeação das categorias. Efetuou-se, ainda, a seleção de trechos de relatos dos participantes como ilustração das categorias identificadas.

Resultados

Segundo os roteiros dos GF e das entrevistas, e na análise dos relatos verbais dos dois segmentos de participantes, foi possível identificar os eixos temáticos da pesquisa e as categorias correspondentes. Para ilustrá-las, foram destacados trechos de relatos dos participantes. Vale esclarecer que as contribuições dos participantes dos GF e das entrevistas ilustraram as categorias de forma distinta. No primeiro caso, dado que os relatos foram obtidos em contexto de atividade coletiva, estes foram identificados pelo grupo focal (GF1, GF2 ou GF3) onde a pessoa estava inserida, sem menção quanto ao sexo, idade ou qualquer informação específica. No caso dos conteúdos obtidos via entrevista, os relatos foram identificados como P1 a P5 para as pessoas vivendo com HIV/aids, e PS1 a PS15 para os profissionais de saúde, sendos indicados o gênero e a idade de tais participantes.

Vulnerabilidade de gênero e infecção pelo HIV

Esse eixo temático focalizou percepções dos participantes acerca de eventuais diferenças quanto à vulnerabilidade de infecção pelo HIV entre homens e mulheres residentes na cidade de Maputo. Verificou-se que a grande maioria dos participantes argumentou que a vulnerabilidade da mulher é maior, se comparada à de homens. Essa quase unanimidade foi observada tanto nos relatos dos GF, quanto nas entrevistas individuais feitas com PVHA e com PS. Uma participante afirmou, diferentemente, que a vulnerabilidade do homem é maior justificando que: "Talvez o homem, porque o homem não se controla. As mulheres se controlam mais. Homem anda fora mesmo tendo mulher em casa, então quando volta para casa traz doenças" (P2, 28 anos, feminino, PVHA). Dois outros participantes referiram que a vulnerabilidade é igual para homens e mulheres, sendo que o relato de P3 (32 anos, masculino, PVHA) ilustra essa posição:

Todos têm o mesmo risco, tanto homem como mulher. Digo isso porque há jovens masculinos menores ... que acabam se envolvendo com senhoras idosas viúvas, somente para satisfazer as madames em troca de dinheiro. Mas não sabe quais são as fases que a senhora passou até ser viúva ou divorciada. Assim, todos temos a mesma probabilidade de risco.

Os argumentos para respaldar as afirmativas de que pessoas do sexo feminino são mais vulneráveis à infecção pelo HIV compuseram cinco categorias: dependência e submissão da mulher; mulher não consegue negociar o uso do preservativo; mulher é mais vulnerável devido às práticas culturais; prostituição; homens se recusam a fazer o teste e/ou não revelam o status sorológico às parceirasA categoria dependência e submissão da mulher se constituiu de relatos sobre a situação atual da mulher, que mencionaram contextos diversos nos quais estas são dependentes e subjugadas à vontade de seus parceiros. Uma fala exemplifica essa categoria:

como mulher, somos sempre cumpridoras das ordens dos homens. O homem tem seu dia, sexta-feira é o dia do homem ,onde sai do serviço, vai beber, prostituir, visitar as Mbuias e chegar em casa quando quer e como quiser, a mulher só deve calar... Eu nunca mais abri minha boca. Hoje me trouxe SIDA em casa. (GF 1)

Mulher não consegue negociar o uso do preservativo concerne à segunda categoria desse eixo temático, que versa sobre a vulnerabilidade decorrente das dificuldades enfrentadas diante da recusa de seus parceiros quanto ao uso da camisinha e suas incapacidades de negociação de práticas sexuais seguras. Os relatos de duas participantes, ambas do GF3, ilustram tal categoria, cujos conteúdos tiveram apoio das demais mulheres desse grupo focal: "Os nossos maridos ou namorados negam usar o preservativo porque dizem que eles não sentem nada. Não sentem o sabor e querem carne a carne";

Nós mulheres, quando sugerimos ao marido para usar o preservativo, eles dizem que, quando eu vim te casar, não vim usar plástico. Outros não querem usar o preservativo porque dizem que o preservativo é que traz o HIV. Eles dizem que põem na água e saem vírus. Meu marido diz isso sempre e nós usamos preservativo só as vezes.

Na fala de profissionais de saúde, essa categoria tem como exemplo o seguinte trecho:

Como nós sabemos, na nossa sociedade, mais de 60% das mulheres são analfabetas, com baixa escolaridade. As poucas que sabem e querem usar o preservativo não têm capacidade de negociar o sexo seguro ... Eu digo mais, a falta de negociação é mais forte, visto que o acesso ao preservativo feminino é limitado, não é acessível. (PS7, feminino, 37 anos)

Outra categoria identificada tange à vulnerabilidade feminina devido às práticas culturais, tradicionais e fortemente arraigadas na sociedade moçambicana. O depoimento de uma mulher soropositiva, obtido via entrevista, exemplifica esta situação:

No meu caso, sei onde apanhei esta doença. Quando faleceu meu marido em 2005, o meu cunhado, irmão dele, fez a cerimônia de tirar luto (kudjinga) e não fizemos o teste de HIV, e tínhamos que dormir sem preservativo. Em 2006, dormi com meu cunhado sem preservativo. Meu marido não faleceu da doença nem de HIV, foi acidente de carro ... Agora estou a ouvir que ele (o cunhado) está muito mal lá em Chicualacuala por causa de SIDA. Mas desde que faleceu meu marido, não faço sexo sem preservativo. Só foi nessa cerimônia. (P1, 37 anos, feminino)

A fala de uma profissional de saúde a respeito de tal tema (PS2, feminino, 49 anos) também contribuiu com essa categoria:

Até neste século continuamos a ver a venda de pessoas, mesmo que seja pagamento simbólico de cabeça de boi ou 100 meticais, mas o que fica na cabeça do marido é que 'comprei um objeto para usar em casa'. Essas práticas deixam a mulher cada vez mais sem poder de negociar nada. Vou dar exemplo: um casal com filhos e que aceitou comunhão de bens. Quando há divórcio, o homem tem o belo prazer de escolher os bens que julga necessários e deixar a mulher sem nada. Como não bastasse, vai aos sogros solicitar o reembolso do valor que pagou na hora de lobolo. Isso acontece num olhar dos líderes e ninguém diz nada ... Isso deve ter fim. E não falo do pitakufa, poligamia e mais. Ser mulher moçambicana e pobre é quase declarar uma morte precoce sem nenhum dia ter vivido a felicidade que uma mulher deveria ter.

A prática da prostituição, também presente em relatos dos dois segmentos, constituiu outra categoria acerca da vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV. Um integrante do GF1 e uma profissional de saúde (PS11, feminino, 21 anos) ilustraram essa categoria ao afirmarem, respectivamente, que "um fator de risco é que as pobres e chefes de família sempre mostram tendência a prostituir ou fazer 'piscados' para alimentar a família, às vezes até pagar a renda de casa"; "as mulheres se expõem ... por relações sexuais extraconjugais e outras querem imitar as outras que se vestem bem e acabam vendendo o sexo para ganhar dinheiro".

Uma última categoria identificada nesse eixo temático recebeu a denominação homens se recusam a fazer o teste e/ou não revelam o status sorológicosendo representada por falas de duas participantes, uma do GF1 e outra do GF 2, que deram depoimentos a partir de experiências da vida pessoal:

Eu sei que apanhei HIV com meu marido, ele estava a trabalhar nas minas da África do Sul e lá tinha esposas e amigas, sempre ele ficava doente e nunca me dizia. Na África do Sul já tinham lhe dito que tinha SIDA. Eu nunca lhe obriguei preservativo, mas quando ficou grave, os amigos lhe trouxeram para Maputo com um saco de medicamentos. Eu não sabia que tipo de medicamento eram, agora que estou a tomar TARV é que estou a ver que aqueles comprimidos são o mesmos de TARV.

Fiquei grávida e descobriram na consulta pré-natal que eu era positiva, comecei a fazer tratamento, quando eu disse ao meu marido para também fazer o teste, ele negou. Fomos até a polícia porque ele me batia, sempre queria fazer sexo sem preservativo e ele acabou por me abandonar e a criança morreu. Mas ele era positivo há muito tempo e nunca me falou.

Práticas culturais e infecção pelo HIV

A análise dos relatos verbais revelou forte concordância dos participantes no sentido de que as práticas, calcadas na tradição, ampliam contextos de risco de infecção e a vulnerabilidade de pessoas submetidas às mesmas. As seguintes categorias foram identificadas nesse eixo temático: práticas culturais usam instrumentos que aumentam risco de infecção pelo HIV; práticas culturais perpetuam a submissão da mulher; práticas culturais proíbem uso do preservativo.

A categoria práticas culturais usam instrumentos que aumentam risco de infecção pelo HIV incluiu falas que descreveram duas práticas comuns e enraizadas na cultura do país, ambas citadas de forma frequente: a tatuagem tradicional feita pelas mulheres e a circuncisão tradicional feita em crianças e jovens do sexo masculino. A prática da circuncisão foi mencionada, sendo descrita por participantes do GF1 e do GF2:

Outra prática é de ritos de iniciação masculino onde as crianças de 5 a 10 anos fazem circuncisão tradicional com facas tradicionais. Isso é um risco e é comum, e não temos como negar. Essa cerimônia acontece todos os anos no período de férias escolares; os hospitais poucos fazem circuncisão. Fica na lista de espera por muito tempo ... Quando a criança não faz circuncisão tradicional, não tem amigos, é criança e logo os pais são obrigados a levar. Quando for adulto não circuncidado, as mulheres dizem 'não posso comer banana não descascada e suja'.

A segunda categoria desse eixo temático ( práticas culturais perpetuam a submissão da mulher ( se constituiu a partir de relatos que as descreveram como condições aceitas pela sociedade moçambicana que reduzem a autonomia da mulher, subjugando-a à vontade dos homens e de seus familiares, podendo, assim, ampliar a vulnerabilidade de infecção pelo HIV, pois muitas dessas práticas levam à exposição ao vírus. Uma participante do GF3, grupo focal composto por mulheres, deu um depoimento que enfatiza essa realidade:

Kudjinga/pitakufa é prática de risco e isso é que nos mata. Sinceramente falando como soropositiva, mulher e viúva, apanhei SIDA com meu cunhado na cerimônia de kudjinga. Não vejo outro motivo. Nunca fui internada no hospital, nunca gostei de curandeiros e nunca recebi sangue transfundido.

PS9 (46 anos, feminino) mencionou essas práticas reiterando a associação das mesmas com o aumento de vulnerabilidade devido à exposição ao HIV:

Moçambique deve ter leis fortes para proteger os adolescentes e proibir os velhos com posse econômica a comprar as adolescentes. As cerimônias tradicionais, os rituais e até tendências culturais aceitas na comunidade considero como fatores de risco ... Sabe por quê? Muitos homens trabalham na África do Sul nas minas e quando chegam, com o pouco dinheiro que têm, compram adolescentes. São regiões onde o lobolo, poligamia, prostituição e até a venda da filha ao poderoso acontece, e toda a estrutura política tradicional assiste com belo prazer as circuncisões tradicionais, pitakufa, catorzinhas.

A categoria práticas culturais proíbem uso do preservativo pode ser ilustrada pelo relato de participantes do GF1 e do GF3 que afirmaram: "Os curandeiros tradicionais obrigam a fazer sexo sem preservativo. Ainda há mulheres que perdem suas casas porque não aceitaram fazer pitakufa. Afinal, onde estamos mesmo? É triste e acho que deveria parar";

Depois de 6 meses de luto (do marido), tive que fazer kudjinga e meu cunhado, como mais velho e chefe da família, disse que seria ele a purificar a cerimônia, porque o falecido foi irmão dele. Ele dormiu comigo e, segundo a tradição kudjinga, não se repete, é só uma vez que se faz o sexo, mas naquela noite ele me obrigou a fazer três vezes. Meses depois morreu uma das suas esposas, e no mesmo ano ele morreu. As duas esposas que ficaram todas têm SIDA e eu também. Foi ele que me deu SIDA e morreu. Peço a Deus que lhe dê o troco que merece com aquilo que fez aqui na terra. Isso me dói bastante, dói mesmo.

Discussão

Os dois segmentos de participantes foram unânimes em reconhecer que a mulher, no contexto de Maputo e do país, enfrenta maior vulnerabilidade ao HIV/aids. As vulnerabilidades ( expressas nas categorias identificadas ( são aquelas que estudos consideraram como determinantes da feminização da aids no país. Nessa perspectiva, Passador (2009Passador, L. H. (2009). "Tradição", pessoa, gênero e DST/HIV/AIDS no Sul de Moçambique. Cadernos de Saúde Pública, 25(3), 687-693.) assinala que aspectos socioculturais são os catalizadores da disseminação de HIV/aids em Moçambique. No presente estudo, notadamente as categorias sobre a dependência e submissão da mulher e a que se refere às práticas culturais se inserem na vulnerabilidade social, conforme a abordagem de Ayres (1996Ayres, J. R. C. M.(1996). HIV/aids, DST e abuso de drogas entre adolescentes. Vulnerabilidade e avaliação de ações preventivas. São Paulo: Casa de Edição.).

Corroborando essa posição, Monteiro (2009Monteiro, S. (2009). Fórum: desafios da prevenção das DST/AIDS em países africanos de língua oficial portuguesa: contribuições da pesquisa social e do recorte de gênero., Cadernos de Saúde Pública 25(3), 677-679.) reforça que o papel subjugado da mulher no continente africano a fragiliza no processo de adoção de medidas preventivas e profiláticas, prejudicando sua capacidade de se proteger contra as DST e o HIV, como se observou em depoimentos de mulheres participantes da pesquisa ao revelarem que se infectaram em cerimônias de pitakufa, prática cultural tida como "purificação das viúvas", ainda em vigência, mesmo na capital do país. De fato, a mulher moçambicana desde a menarca é ensinada a obedecer às vontades e demandas do parceiro e, segundo as estatísticas nacionais (Instituto Nacional de Estatística - INE, 2007Instituto Nacional de Estatística - INE (2007). Indicadores demográficos. Maputo: Autor.), o fato de as mulheres serem maioria entre as pessoas analfabetas e pobres amplia sua vulnerabilidade.

Os PS e a maioria dos PVHA consideraram ainda que a pobreza aumenta os níveis de vulnerabilidade para a infecção pelo HIV, enquanto que a aids parece ser um fator de vulnerabilidade para a pobreza, fazendo uma espécie de círculo vicioso. Vale ressaltar ainda que vários participantes disseram que práticas de prostituição adotadas por pessoas pobres para melhorar sua renda, muitas vezes banalizando o uso de insumos de prevenção, são fatores de risco para a infecção pelo HIV. Nessa direção, Underwood et al. (2011Underwood, C., Skinner, J., Osman, N., & Schwandt, H. (2011). Structural determinants of adolescent girls' vulnerability to HIV: Views from community members in Botswana, Malawi, and Mozambique. Social science & medicine 73(2), 343-350. ) destacaram que a falta de condições financeiras para acesso a bens de primeira necessidade leva pessoas em idade sexualmente ativas a optarem pela venda de sexo e sexo transgeracional em troca de dinheiro para a sobrevivência. Tal tipo de vulnerabilidade também foi citada por Villela e Madden (2009Villela, W.V. & Barber-Madden, R. (2009). Abordagem de gênero em projetos comunitários de combate à AIDS em Moçambique: convergências e desencontros entre governo e sociedade civil., Cadernos de Saúde Pública 25(3), 694-699.) ao afirmarem que alguns jovens moçambicanos fazem sexo comercial em troca de dinheiro ou bens, e que não consideram essa prática como prostituição, pois se inclui em uma espécie de modus vivendi aceito pela sociedade, sendo que até os pais dos referidos jovens observam essa realidade de forma tolerante e indulgente.

Os participantes, de modo geral, consideraram que as práticas socioculturais aumentam o risco de infecção pelo HIV. Passador (2009Passador, L. H. (2009). "Tradição", pessoa, gênero e DST/HIV/AIDS no Sul de Moçambique. Cadernos de Saúde Pública, 25(3), 687-693.), no seu estudo a respeito de "Tradição, pessoa, gênero e DST/HIV/aids no sul de Moçambique", ensina que, para melhor compreender como as práticas tradicionais exercem influência sobre a vulnerabilidade às DST e ao HIV, é necessário reconhecer a relevância que as comunidades dão a tais práticas culturais, uma vez que carregam valores simbólicos da sociedade, significando troca de objetos, hábitos, costumes, rituais, ganhando legitimidade no seio de seus adeptos.

Bastos, citado por Saldanha (2003Saldanha, A. A.W. (2003). Vulnerabilidade e construções de enfrentamento da soropositividade ao HIV por mulheres infectadas e em relacionamento estável. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), argumenta que práticas como a pitakufa ampliam a vulnerabilidade feminina à infecção de DST/HIV, já que, além de suas características essenciais, há a obrigação de fazer sexo com um parente do falecido sem preservativo, o que aumenta fortemente a possibilidade de exposição ao HIV em uma sociedade com índices elevados de prevalência. Araújo (2005Araújo, M. F. (2005). Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicologia Clínica17(2), 42-51.) e Bastos (2000)Bastos, F. I. A. (2000). Feminização da Aids no Brasil: determinantes estruturais e alternativas de enfrentamento. Saúde Sexual e Reprodutiva, 3, 210-230. alertam para esses fatores de risco de propagação da epidemia de aids no contexto do país. No estudo desenvolvido por Bandali (2012Bandali, S. (2012). HIV risk assessment and risk reduction strategies in the context of prevailing gender norms in rural areas of Cabo Delgado, Mozambique. Journal of the International Association of Providers of AIDS Care 12(1) 50-54.), para avaliação de risco e estratégias de redução de risco em Cabo Delgado, constatou-se que grande parte das jovens não usava o preservativo com regularidade e tinha diferentes parceiros sexuais.

Passador (2009Passador, L. H. (2009). "Tradição", pessoa, gênero e DST/HIV/AIDS no Sul de Moçambique. Cadernos de Saúde Pública, 25(3), 687-693.) explica que o papel das lideranças no desenho de estratégias de prevenção e de autocuidado é importante para que a população as aceite e as reconheça como intervenção de saúde pública. Participantes do estudo falaram nessa direção, apontando que as lideranças deveriam servir de exemplo em contextos diversos como situações de testagem sorológica e de autocuidado no caso de pessoas soropositivas, atuando em intervenções de naturezas distintas. Autores (Butler, 2000Butler, C. (2000). HIV and AIDS, poverty and causationLancet Publishing, 356, 1445-1446.; Fenton, 2004Fenton, L. (2004). Preventing HIV/AIDS through poverty reduction: The only sustainable solution?, Lancet Publishing 364, 1186-1187.) reconhecem que as condições sociopolíticas e econômicas dos países africanos condicionam as estratégias de luta contra a doença do século. Nesta perspectiva, a elaboração de leis ou normas para banir as práticas de risco de infecção pelo HIV, ao lado da realização de ações e programas preventivos abrangentes para a sociedade moçambicana, pode ser uma das alternativas para mitigar a epidemia.

Em Moçambique, a definição de políticas públicas articuladas na luta contra o HIV/aids teve início apenas na segunda metade da década de 1990, com a implementação de uma articulação institucional, traduzida na criação de um órgão coordenador, de acordo com Osório (2007Osório, C. (2007). Algumas reflexões sobre o funcionamento dos gabinetes de atendimento da mulher e criança 2000-2003. In M. J. Arthur (Eds.), Memórias do activismo pelos direitos humanos das mulheres. Recolha de textos publicados no boletim outras vozes, 2002-2006 (pp. 135-140). Maputo: WLSA.). Nesse sentido, as informações obtidas no presente estudo podem auxiliar no desenvolvimento de programas de prevenção da vulnerabilidade de gênero e infecção pelo HIV/aids em Moçambique.

É possível afirmar que, até os dias de hoje, a relação entre homens e mulheres na sociedade moçambicana se baseia na demarcação de papéis distintos, de certa forma favorecendo o homem, permitindo-lhe oportunidades de modo desigual em relação à mulher, ampliando suas vulnerabilidades diante do HIV/aids. Desde muito tempo a construção social do gênero feminino está baseada na submissão ao homem, na inferioridade e na incapacidade de garantir direitos iguais para ambos os sexos. Modificar essa realidade não é tarefa fácil e parece exigir a formulação de políticas e ações de diferentes atores sociais de forma integrada.

Um ponto que merece destaque é o modo como o preservativo é percebido por parcela da sociedade. Os relatos expressaram que há mitos e desinformação sobre esse insumo de prevenção, adotado mundialmente na prevenção da transmissão sexual do HIV. Os resultados que emergiram neste estudo indicam a necessidade de redirecionar e qualificar as ações educativas voltadas para o sexo seguro, em especial o uso da camisinha nas relações sexuais.

Práticas culturais bem focalizadas no presente estudo, principalmente pelas PVHA, foram as tatuagens e a circuncisão masculina tradicionais, pois em ambas se usa objetos cortantes como lâminas e facas. No contexto da epidemia de aids, o uso e o compartilhamento de objetos pérfuro-cortantes são considerados práticas de alto risco, devido à transmissão sanguínea do HIV.

Diante da escassez de pesquisas que investigaram a relação entre gênero e HIV/aids e outras dimensões da vulnerabilidade na realidade de Maputo, este estudo representou uma contribuição importante ao analisar a percepção de dois segmentos de participantes envolvidos diretamente no tema: PVHA e profissionais de saúde que atuam em HIV/aids. No entanto, é relevante considerar as limitações do estudo. Uma limitação se referiu ao caráter de conveniência na seleção dos participantes. O número reduzido de entrevistas individuais dos PVHA deveu-se ao critério de saturação, considerando que o conteúdo oriundo dos grupos focais foi rico e atendeu aos objetivos.

Por fim, os resultados do estudo apontam para a necessidade de definir que práticas culturais a sociedade deve aceitar como elo de educação de geração para geração, que políticas e estratégias o país deve ter para reduzir as vulnerabilidades de gênero e que mecanismos multissetoriais deverão ser acionados para combater efetivamente a epidemia de HIV/aids.

Agradecimento

Fomento Edital PEC-PG CNPq Brasil-Moçambique, Processo 190102/2010-1.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2014
  • Revisado
    07 Nov 2014
  • Aceito
    24 Nov 2014
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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