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Resenha: a questão dos paradigmas na psicologia

Resenha: a questão dos paradigmas na psicologia1 1 Esta resenha foi construída após leituras cuidadosas do livro em análise- "A Psicologia tem paradigmas?" e de uma entrevista com a Profª Drª Iray Carone. O livro "A Psicologia tem paradigmas?" foi editado pela Casa do Psicólogo em convênio com a FAPESP, São Paulo, no ano de 2003.

Ângela Maria Pires Caniato

Universidade Estadual de Maringá

Tarefa difícil a de analisar um estudo complexo e polêmico da epistemologia da Psicologia numa época em que o modismo da procura de uma diversidade de paradigmas anima a ânsia de cientificidade de muitos pesquisadores nessa área do conhecimento .Mais complicado ainda quando se tem de contrariar a muitos negando a existência desse parâmetro de cientificidade – a Psicologia não se enquadra nas ciências paradigmáticas. Porém alentador quando para tal nos respaldamos nos estudos de Iray Carone que há muitos anos vem debruçando seu olhar de filósofa nas teorias psicológicas, aprofundado pela sua perspicácia epistemológica e com o pleno domínio da Teoria Crítica de Theodor Adorno e dos estudos da Estrutura das Objetivações Sociais de Agnes Heller.Nessa tarefa muitos de nós seus orientandos/ psicólogos nos beneficiamos de sua sagacidade intelectual para, pelo menos,desenvolver um pouco mais de humildade-crítica nas nossas produções científicas.A Profª Drª Iray Carone é, atualmente, pesquisadora da UNIP e professora aposentada do IPUSP/SP.

No que se refere à proposta de seu livro "A Psicologia tem paradigmas?", Iray Carone vem estudando essa questão há muitos anos. Fez pesquisa sobre a bibliografia psicológica nacional e internacional dos anos 60 em diante,verificando como tem sido tratado o conceito de paradigma por uma série de autores da Psicologia.Ressalte-se que procurou conhecer os trabalhos que mencionavam Thomas Kuhn ao se referirem a paradigmas na Psicologia.

Ao mesmo tempo, foi tentando verificar os vários sentidos que historicamente foram atribuídos à palavra "paradigma", que apareceu primeiramente na obra de Platão como um dos recursos de sua dialética no movimento ascendente ao conceito ou à essência de uma coisa. Assim, por exemplo, ele usava uma série de imagens correntes de seu tempo para explicitar o conceito de "sofista" ou de "político", ou de "alma", etc. Por exemplo, a imagem de um piloto de navio era por ele considerada uma imagem paradigmática que permitiria entender a função do político na condução da sociedade ou polis: ele era um condutor muito semelhante ao piloto que a todo momento corrige a rota da viagem, de acordo com a contingência inesperada de ventos, tempestades, calmarias, correntes marítimas, etc. Um político trabalha com as várias contingências sociais e deve ter a sabedoria de um piloto para não permitir que crises e calamidades ocorram e ponham em risco a segurança e a paz na cidade.A imagem do piloto serviu nesse caso como um paradigma para ascender à idéia de político como condutor dos negócios públicos.

Além disso, na língua inglesa, a palavra "paradigma" é usada como exemplo-padrão da conjugação de verbos regulares. Como é que aprendemos a conjugar o presente do indicativo de um verbo regular terminado em "ar", em "er", em "ir", em português? Se tomarmos o presente indicativo de "amar", estamos aprendendo também a conjugar todos os verbos regulares terminados em "ar". A dimensão paradigmática dos verbos aponta para a conjugação de verbos que seguem o mesmo padrão e permite identificar os verbos irregulares que não o seguem, embora com a mesma terminação. Exemplo, o verbo "ver" não serve de paradigma para os verbos terminados em "er". Os verbos auxiliares, que apresentam enorme variação na sua conjugação, são em geral verbos "anômalos", que não servem para exemplificar formas paradigmáticas de conjugação. Verbo paradigmático é, pois o verbo regular e, o seu contrário, é o anômalo ou irregular.

Thomas Kuhn descobriu que aprender uma ciência é aprender a resolução de seus problemas por meio de exemplos paradigmáticos. Assim, o ensino da Física ou Matemática, se faz não apenas com o conhecimento das teorias, mas por meio da construção de "exemplos de resolução"- de problemas- que nos servem para a resolução de um conjunto de problemas semelhantes. O professor faz uso freqüente de "modelos de resolução" de problemas supondo que eles servirão para a resolução de problemas mais ou menos semelhantes - esses modelos são "paradigmáticos". Mas há problemas que parecem não se "encaixarem" no modelo de resolução, porque são anômalos ou seguem outro modelo. Aí verificamos que os modelos de resolução são paradigmas não só para resolução mas também para "unificar" uma série de exemplos de problemas e, ao mesmo tempo, identificar os que não seguem o modelo.

Ora, parece que a ciência, ao se desenvolver, vai criando uma espécie de forma de colocar e resolver problemas, unificando e transmitindo esse o saber nos manuais científicos. Parece que atrás dos manuais de aprendizagem científica, existe um saber científico já unificado e também altamente padronizado pelas comunidades científicas que entraram em acordo ou consenso.Tomemos por exemplo, os manuais de Física do ensino elementar: não há muita diferença entre os manuais a respeito das teorias da cinemática, da eletricidade, do magnetismo, do calor, do átomo e das micropartículas, etc. Parece que não há debate ou divisão entre os cientistas sobre esses assuntos, como se a Física tivesse conquistado o conhecimento "verdadeiro" sobre cada um desses objetos e com isso, a unanimidade da comunidade dos cientistas sobre as questões tratadas. O mesmo parece acontecer com as Matemáticas, a Química, a Biologia, as ciências naturais, ou seja, como se houvesse um corpo único de ciência para cada uma delas. Somente a história das ciências poderá explicar porque elas atingiram um determinado grau de desenvolvimento, por meio do qual foi possível alcançar unicidade de saber, modos paradigmáticos de colocação de problemas e de resolução de problemas.

No entanto, a história das ciências nos revela que houve grandes períodos nos quais a comunidade científica esteve muito dividida entre teorias absolutamente incongruentes sobre o mesmo fenômeno em estudo. Um exemplo notável é o fenômeno da luz, estudado pelos físicos: fenômeno meramente ondulatório sem corpo ou movimento de partículas, corpuscular? Durante muito tempo, a comunidade dos químicos também foi caracterizada por uma grande divisão entre aqueles que julgavam que a combustão dos materiais, enquanto fenômeno de transformação de substâncias pelo calor, se devia a uma matéria chamada flogisto; outros duvidavam da existência de uma substância tão misteriosa; outros supunham que fosse o hidrogênio, como Cavendish. Entre todos esses, a teoria vencedora foi a de Lavoisier que conseguiu provar que a combustão se dava pela presença do oxigênio. Desde então a Química se tornou a de Lavoisier e a teoria do flogisto passou a constar apenas como um capítulo da história da Química e não é transmitida pelos manuais dessa ciência. Na Astronomia, durante séculos, prevaleceu a teoria de Ptolomeu - os vários fenômenos que não se encaixavam nessa teoria, os anômalos, permitiram que finalmente a teoria de Copérnico saísse vencedora e com isso, fosse feita uma nova unificação da Astronomia. Séculos de teoria criacionista sobre a origem das espécies na Terra foram derrubados pela teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, e embora ainda hoje perdurem os adeptos da primeira, ela só é sustentada por motivos religiosos de uma certa interpretação do livro do Gênesis.

Vejam bem: esses episódios de grande alteração da Astronomia, da Química, da Física são denominados correntemente como de "grandes revoluções científicas". Mas Thomas Kuhn percebeu que o desenvolvimento científico se dá sempre por meio de pequenos ou grandes episódios revolucionários - ou seja, que episódios revolucionários são um traço regular ou estrutural do desenvolvimento científico. Não há dúvida que um episódio revolucionário pode ocorrer de modo lento (Astronomia) ou rápido.Além disso, ele sempre tem condições de ocorrer depois que a ciência passou a ter alguma teoria como paradigmática, ou seja, quando houve enorme consenso entre os cientistas em torno de uma teoria sobre um determinado conjunto de fenômenos e unicidade sobre o modo de colocar e resolver problemas. Mas uma vez ocorrido o episódio revolucionário, a teoria paradigmática anterior é substituída pela outra que a derrubou. Não há possibilidade de se manter a química do flogisto depois que a química do oxigênio a derrubou:- isso se reflete na ausência da primeira nos manuais científicos de hoje. Podem ocorrer novas revoluções sem previsão e isso depende dos casos "anômalos" que forem aparecendo e venham a derrubar a teoria paradigmática vigente que mantém a comunidade científica unificada.

Há várias observações importantes sobre a teoria dos paradigmas e das revoluções científicas de Thomas Kuhn:

1. essa teoria foi levantada a partir dos seus estudos historiográficos e de outros historiadores da ciência a partir de fontes primárias, ou seja, a partir dos dados das sociedades científicas e dos debates intensos que as atravessaram;

2. os dados levantados disseram respeito ao desenvolvimento das ciências naturais: Astronomia, Física, Biologia e Química;

3. Kuhn não realizou nenhum estudo historiográfico a respeito das ciências sociais e da Psicologia - ele as julgou pré-paradigmáticas ou ainda sem nenhum consenso paradigmático. Logo, do seu ponto de vista, não há sentido algum em falar de paradigmas ou multiplicidade de paradigmas na Psicologia e tampouco de "revoluções científicas" na Psicologia, que só podem ocorrer quando há casos anômalos em relação ao paradigma vigente;

4. no campo da Psicologia nenhuma teoria saiu ainda vencedora, entre teorias rivais sobre o mesmo grupo de fenômenos e, desse modo, nenhuma é paradigmática. Há isto sim, tradições conflitantes que se mantém paralelamente ao longo do tempo e isso não quer dizer que haja uma multiplicidade de paradigmas na Psicologia, assim como múltiplas revoluções científicas no seu desenvolvimento. .A partir desta perspectiva é inadequado falar-se em paradigmas na Psicologia. A "febre" de procura de sustentação paradigmática na Psicologia pode representar uma ânsia de respaldo de cientificidade que acaba por assimilar à diversidade de abordagens da Psicologia na camisa de forca dos parâmetros das ciências que historicamente já constituíram seus paradigmas (como as ciências naturais), mantendo uma forma enganosa de lidar com o seu objeto de estudo;

5. por esse motivo, os psicólogos que dizem estar usando a teoria dos paradigmas de Kuhn, estão modificando de fato os seus conceitos, ou então, simplesmente não compreenderam direito a teoria tal como foi formulada nos anos 60(sessenta).Nesse caso, estão usando a teoria dos paradigmas de modo retórico para a defesa da cientificidade da Psicologia.

6. a teoria de Kuhn mudou bastante nos anos 90, a tal ponto que ele abandonou pelo menos parcialmente o conceito original de "paradigma", preferindo a expressão "léxico taxonômico" a falar de "revoluções científicas" a partir de mudanças lingüísticas numa parte fundamental desse léxico. Diríamos que houve um "linguistic turn" em sua teoria, ou seja, uma ênfase no aspecto lingüístico das mudanças numa ciência. Assim, por exemplo, a Bioquímica é uma mudança do léxico taxonômico tanto da Biologia como da Química, por causa de uma nova ordem de fenômenos não-classificáveis tanto por uma quanto pela outra. É um novo broto da árvore evolucionária das ciências, o filho que nasceu da Biologia e da Química e que não se identifica mais com ambas. Isso se reflete na formação de uma nova comunidade científica e também de novos departamentos científicos nas universidades, nas revistas especializadas, nas sociedades científicas, etc. Assim, um biólogo pode não entender fenômenos bioquímicos com os seus instrumentos lexicais assim como um químico entender, por exemplo, a cadeia de fenômenos fisiológicos que ocorrem no corpo após a ingestão de um composto químico.

Esse foi o assunto que Iray Carone discutiu no seu livro "A Psicologia tem paradigmas?"

Recebido: 14/06/2005

1ª revisão: 27/10/2005

Aceite final: 06/01/2006

Ângela Maria Pires Caniato é Psicóloga Clínica e Profª Drª do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Endereço: Rua Joaquim Nabuco, 1496, 87 014-100, Maringá, PR. E-mail: ampicani@onda.com.br

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    Esta resenha foi construída após leituras cuidadosas do livro em análise- "A Psicologia tem paradigmas?" e de uma entrevista com a Profª Drª Iray Carone.
    O livro "A Psicologia tem paradigmas?" foi editado pela Casa do Psicólogo em convênio com a FAPESP, São Paulo, no ano de 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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