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Primavera urbana: a ilha deserta interroga as multidões

Urban spring: the deserted island interrogates the multitude

Primavera urbana: la isla deserta interroga las muchedumbres

Resumos

Este artigo faz uma apreciação da imbricação da qual emergem a modernidade científica, o liberalismo e a racionalidade política clássica e suas relações com o modo de produção capitalista. Toma-se como ponto de partida a narrativa da vida numa ilha deserta apresentada pelo romance Robinson Crusoé, seja na sua versão original em Defoe ou na sua recontagem por Michel Tournier, com o objetivo de debater as implicações ético-políticas do fazer científico no campo das humanidades, mais especificamente na psicologia, frente às formas contemporâneas de resistência ao capitalismo, com destaque às possíveis conexões entre uma estética da existência, tal como proposta por Michel Foucault, e os movimentos coletivos que se vêm espalhando pelo mundo desde 2012.

capitalismo; multidão; práticas sociais; psicologia


This paper approaches the entanglement in whic raises the scientific modernity, the liberalism and the classical political rationality. It is taken as a starting point the narrative of a life in a deserted island, as it is presented by the novel Robinson Crusoe, both in the original Defoe version and in Michel Tournier's recounting, aiming to discuss the ethical political implications of scientific work in the humanities more specifically in psychology, in the face of contemporary forms of resistance to capitalism, highlighting the possible rapports between the aesthetics of existence, as it was proposed by Michel Foucault, and the collective movements that are spreading around the world since 2012.

capitalism; multitude; social practices; psychology


Este artigo aborda el carácter imbricado en el cual surgen la modernidad científica, el liberalismo y la racionalidad política clásica en sus relaciones con el modo de producción capitalista. Toma-se como punto de arranque la narrativa de la vida en una isla deserta presentada por la novela Robinson Crusoé, sea en su versión original en Defoe o en la versión de Michel Tournier, con el objetivo de problematizar las implicaciones ético-políticas de la práctica científica en el campo de las humanidades, más bien en la psicología, frente sus formas contemporáneas de resistir al capitalismo, destacando las conexiones posibles entre una estética de la existencia, como aquella presentada por Michel Foucault, y los movimientos colectivos que se espalman por el mundo a partir de 2012.

capitalismo; muchedumbre; prácticas sociales; psicología


PRÊMIO ABRAPSO

Urban spring: the deserted island interrogates the multitude

Rodrigo Lages e SilvaI; Luis Antonio dos Santos BaptistaII

IFaculdade Cenecista de Osório, Osório/RS, Brasil

IIUniversidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil

RESUMO

Este artigo faz uma apreciação da imbricação da qual emergem a modernidade científica, o liberalismo e a racionalidade política clássica e suas relações com o modo de produção capitalista. Toma-se como ponto de partida a narrativa da vida numa ilha deserta apresentada pelo romance Robinson Crusoé, seja na sua versão original em Defoe ou na sua recontagem por Michel Tournier, com o objetivo de debater as implicações ético-políticas do fazer científico no campo das humanidades, mais especificamente na psicologia, frente às formas contemporâneas de resistência ao capitalismo, com destaque às possíveis conexões entre uma estética da existência, tal como proposta por Michel Foucault, e os movimentos coletivos que se vêm espalhando pelo mundo desde 2012.

Palavras-chave: capitalismo; multidão; práticas sociais; psicologia.

RESUMEN

Este artigo aborda el carácter imbricado en el cual surgen la modernidad científica, el liberalismo y la racionalidad política clásica en sus relaciones con el modo de producción capitalista. Toma-se como punto de arranque la narrativa de la vida en una isla deserta presentada por la novela Robinson Crusoé, sea en su versión original en Defoe o en la versión de Michel Tournier, con el objetivo de problematizar las implicaciones ético-políticas de la práctica científica en el campo de las humanidades, más bien en la psicología, frente sus formas contemporáneas de resistir al capitalismo, destacando las conexiones posibles entre una estética de la existencia, como aquella presentada por Michel Foucault, y los movimientos colectivos que se espalman por el mundo a partir de 2012.

Palabras clave: capitalismo; muchedumbre; prácticas sociales; psicología.

ABSTRACT

This paper approaches the entanglement in whic raises the scientific modernity, the liberalism and the classical political rationality. It is taken as a starting point the narrative of a life in a deserted island, as it is presented by the novel Robinson Crusoe, both in the original Defoe version and in Michel Tournier's recounting, aiming to discuss the ethical political implications of scientific work in the humanities more specifically in psychology, in the face of contemporary forms of resistance to capitalism, highlighting the possible rapports between the aesthetics of existence, as it was proposed by Michel Foucault, and the collective movements that are spreading around the world since 2012.

Keywords: capitalism; multitude; social practices; psychology.

Introdução

A cidade está acossada por duas grandes forças no contemporâneo. De um lado a máquina capitalista que produz e indexa valor sobre o espaço urbano: valoriza terrenos, desloca contingentes populacionais de um bairro a outro, altera regras de edificação, inventa regiões de luxo e riqueza e também de miséria e vulnerabilidade. De outro lado, e em total coextensividade a essa força financeira, uma "governamentalidade" (Foucault, 1979) impõe prescrições e proscrições, promove os fluxos de deslocamento automotivo, normatiza certos modos de viver em detrimento de outros, sequestra a violência para administrá-la em doses calculadas e contínuas, quase sempre dentro da lei, mesmo quando precisa alterar a lei para realizá-la - como no caso das internações compulsórias de usuários de crack. Tudo em nome da segurança urbana.

Essa redução da cidade a um objeto e espaço de consumo, articulada com a sua tomada como problema de vigilância e gerenciamento, fala também de um modo de pensar e de existir no contemporâneo que tem nas recentes manifestações que se espalharam pelo Brasil em junho de 2013 um forte elemento de resistência.

Tomando este conceito em sua acepção tal como pensada por Foucault (1995 e 2001), a resistência não seria um levantar-se contra algo. Ontologicamente primeira, a resistência nos ajuda a formular a pergunta nos seus devidos termos. Não se trata de perguntar: por que as pessoas saíram à rua em multidão? A partir de Foucault, podemos perguntar, dado que a resistência seria o exercício da liberdade como a qualidade primeira da nossa existência: por que não estamos sempre em multidão? O que nos tira da rua e nos interioriza em certos espaços disciplinares? Ou ainda, o que não precisa nos tirar da rua para nos interiorizar?

Esse artigo propõe retomar os principais pontos levantados na tese de doutorado, Vidas Belas sobre cidades vivas: uma leitura para o confinamento do presente, escrita entre 2008 e 2012, antes, portanto, das manifestações de rua no Brasil em 2013, mas durante os movimentos 15-M na Espanha e Occupy em Nova Iorque e em outros lugares do mundo, além dos levantes populares na Grécia e da chamada Primavera Árabe, em que eclodiram revoltas contra governos autoritários em boa parte do norte da África (Tunísia, Egito, Argélia, Síria, Líbia, Mauritânia, entre outros).

Na ocasião, partimos de uma inspiração na narrativa literária de Robinson Crusoé (Defoe, 1994), principalmente na sua recontagem por Michel Tournier (1985) em Sexta-feira ou os limbos do pacífico, para problematizar as atuais políticas urbanas em sua coação aos modos de vida induzidos pelo capitalismo e que têm como consequência a produção de vidas fracas (Nietzsche, 1995), vidas doentes, vidas em decadência, cujos objetivos estão bem resumidos nas palavras do pai de Crusoé: "a mediocridade: o ponto alto de uma vida baixa1 1 Tradução dos autores. " (Defoe, 1994, p. 9).

A ilha deserta

A ficção da ilha deserta parece ser um elemento central da constituição da modernidade. Ela está situada tanto na emergência do realismo na literatura, como no fundamento das teses liberais (Smith, 1776 e Ricardo, 1817, citados por Marx, 1999) que justificaram o surgimento do capitalismo. A ficção da ilha deserta, de uma evolução natural de um homem ideal sobre uma terra ideal, parece ter sido importante para fazer continuar funcionando uma transcendência tanto no nível do pensamento, como no da organização social, mesmo quando as transcendências teológicas e absolutistas foram abaladas pelo Iluminismo. O mundo moderno, que fez emergir uma racionalidade política através do Estado de direito como intermediador das liberdades, surgiu em coextensividade com a ciência clássica. A modernidade conciliou ciência e política por meio de uma noção transcendente de natureza. Através do conceito de natureza a modernidade pretendeu superar o problema da criação e do ordenamento social das criaturas, substituindo um Deus transcendente pela transcendência das leis naturais. Elas organizavam e regiam a vida desde seu aspecto biológico até sua expressão sociocultural.

A ilha deserta, situada como origem, afirma que o estado atual das coisas é meramente um desdobramento das consequências lógicas da relação entre os homens e dos homens com a terra.

Neste artigo, propomos desnaturalizar a ideia da ilha deserta como um elemento constituinte tanto do sujeito, como dos modos de produção e de organização política. Por isso, lançamos mão da personagem Robinson Crusoé tal como apresentada por Tournier (1985), já que na sua narrativa vemos um Robinson que encontra a ilha como campo de multiplicidades e, portanto, impossível de ser considerada uma ilha deserta. Em Tournier (1985), Robinson realiza a ultrapassagem da condição de um sujeito em luta para não perder a civilidade que naufragou consigo, para uma situação de radical imanência com a ilha.

O que esse livro nos apresenta são as tentativas que o Robinson recém-naufragado realiza no sentido de fazer a ilha responder a sua racionalidade, até que ele se desloca, muito em função do contato com o índio araucano Sexta-feira, para uma posição de experimentador da ilha como possibilidade de diferença.

Ao abdicar de tentar interpretar a ilha, de fazê-la caber nos instrumentos intelectuais, linguísticos, legais, religiosos, com os quais tentou abordá-la, Crusoé vai progressivamente caminhando na direção de um modo de conhecer que não coloca o conhecimento em oposição à ação. Conhecer a ilha, na medida em que esse Robinson vai entrando em um processo de superação da sua humanidade - em contraposição a sua inicial tentativa maníaca de conservá-la - é também experimentar a ilha, ensaiar com ela suas possibilidades: agrárias, artesanais, sensuais.

Desta forma, essa narrativa nos apresenta caminhos potentes para pensar as práticas e as pesquisas em psicologia, especialmente no que tange às conexões e ao encontro com essas forças políticas multitudinais do contemporâneo. O Crusoé de Tournier (1985), ao final do livro, é um sujeito em multidão, ou seja, atravessado por multiplicidades inumanas que borram as suas fronteiras com a ilha. Este Crusoé, diferentemente do de Defoe (1994), não está na condição de náufrago, pois só naufraga quem tem um lugar de origem com o qual sonha retornar, e esse Robinson tornou-se, pouco a pouco, tal como o Zaratustra quando desceu da sua caverna na montanha (Nietzsche, 1999), um sujeito que se sente em casa no seu devir.

Robinson Crusoé

Em 1703, um marinheiro escocês, por força de um desentendimento com o capitão do navio Cinque Ports, arrastado por seu temperamento impulsivo, desembarcou solitário na ilha de Más a Tierra, arquipélago de Juan Fernandez, costa chilena, onde seu navio ancorara para se abastecer de água. Conforme relatado por Anners (1841, p. 167), Alexander Selkirk permaneceu na ilha sozinho por quatro anos e quatro meses até ser resgatado pelo navio britânico Duke, fazendo-o por livre e espontânea vontade. Preferiu viver uma vida isolada a manter-se submisso às ordens de um capitão com o qual se incompatibilizara. Essa ilha desabitada na amplidão do pacífico não significou para ele um entreato em meio a um naufrágio e um resgate. Alexander escolheu pela ilha e, ainda que impulsivamente, ainda que provisoriamente, viu nela um lugar para habitar.

Esse episódio teria sido a grande inspiração para que Defoe (1994) escrevesse o seu livro. Não obstante mantivesse a ideia do naufrágio, seu romance, ao contrário das narrativas da época, centradas nos traços de caráter da personagem, em suas fantasias e afetações, ou nos percalços fabulosos através dos quais ela demonstrava todo seu heroísmo, relatou a vida prática e cotidiana de um homem solitário numa ilha. Marcando o alvorecer do realismo na literatura, o romance Robinson Crusoé é uma narrativa que se ocupou do "entre", para a qual tanto o momento do naufrágio quanto o do resgate são meros detalhes. Foram os vinte e oito anos vividos pelo inglês na ilha que interessaram. Foi o seu encontro com o "selvagem" a que ele chamou de Sexta-feira o que mereceu ser narrado pelo autor, e não as inclinações de seu caráter. Por isso, essa narrativa romanesca realista marcou uma diferença tanto em relação às fantásticas histórias de naufrágios, como em relação aos romances barrocos que o precederam.

Nesse sentido, pode-se dizer, por um lado, que a ficção da ilha deserta foi inaugurada com Robinson Crusoé para instituir um espaço de liberdade em relação à experiência do sujeito no tempo. A narrativa da aventura humana não se encontra mais resumida pelas epígones acidente, resgate, vitória, derrota, glória, fracasso - características da epopeia e do romance barroco. Surge uma valorização do cotidiano. Uma valorização do sujeito em sua experiência ordinária. De outra parte, logo em seguida, essa valorização do sujeito como produto das suas mínimas liberdades, isto é, de dormir, de acordar, de se alimentar, de se abrigar das intempéries, enfim, da sua sobrevivência, é tomada como objeto de uma racionalidade liberal que vai pensar uma organização social que sobrevaloriza e totemiza a indevassabilidade da sobrevida individual pelas contingências da coletividade. Uma liberalidade que busca garantir o exercício da vida individual, mesmo que para isso precise desqualificar as possibilidades da existência ou subtrair o vívido da vida: reduzi-la a dormir, comer, abrigar-se, etc. É nesse sentido que nos arriscamos a dizer que o experimento literário ilha deserta está intimamente conectado com a invenção do capitalismo. Essa observação já se encontra em Marx (1999), no seu texto Para a crítica da economia política:

O caçador e o pescador, individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem às pobres ficções das robinsonadas do século XVIII. Estas não expressam de modo algum ... uma simples reação contra os excessos de requinte, um retorno mal compreendido a uma vida natural. Trata-se, ao contrário, de uma antecipação da "sociedade", que se preparava desde o século XVI, e no século XVIII deu larguíssimos passos em direção a sua maturidade. Nessa sociedade da livre-concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século XVIII - produto, por um lado, da decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se desenvolvem a partir do século XVI - como um ideal, que teria existido no passado. (pp. 25-26)

O que Marx buscou surpreender no pensamento dos liberalistas clássicos, Smith e Ricardo, é que para funcionar como experiência física de alienação do trabalho e produção da mais-valia, o capitalismo faz funcionar toda uma axiomática que tem um pé no passado, vestido de mitologia: a terra ideal habitada pelo indivíduo completamente livre; e outro pé no futuro, vestido de utopia: a recondução da terra para seu estado ideal a partir da intervenção do homem.

O capitalismo sustenta-se como experiência de liberação porque faz supor que é o desenvolvimento lógico e ideal de "um" homem e "uma" terra. Porque precisa, aliás, da ficção de que viemos de "uma" terra e de "um" homem, e não da babel, não do confisco, não da dominação de um povo sobre outro e, no seu decurso, da imposição de um Estado sobre territórios e povos. Precisa que acreditemos que é o modo "natural" de produção e não um fato artificial marcado pela imposição de uma acumulação sobre o trabalho alienado e, por fim, nessa fase contemporânea do capitalismo, imposição de um juízo de valor sobre a vida, ato último de dominação que qualifica e organiza o tempo e o espaço vivido, a "experiência" (Benjamin, 1994).

Junto com o capitalismo vem-se desenvolvendo uma razão econômica, uma maneira de pensar escorreitamente, de pensar com precisão, uma maneira de olhar à distância para o curso das coisas e de julgar as possibilidades a partir de um suposto bem comum. Essa razão não se desenvolve apenas paralelamente ao capitalismo, mas numa relação coextensiva com ele, em que ambos alimentam-se reciprocamente. Trata-se de uma racionalidade que sustentou por muito tempo a noção de que o capitalismo é o modo de produção mais imediato e eficiente para gerar riquezas e distribuir recursos em condições que igualem os seres humanos em possibilidades. Seria tudo uma questão de tempo. No final, ela promete que todo homem poderá ter uma relação igualmente matinal e livre com a natureza. Ou seja, cada ser humano poderá ser um Robinson com a sua ilha, poderá construir seu futuro sem a interferência ou os constrangimentos de outros seres humanos mais privilegiados ou com maiores posses. Vê-se aí o paradoxo: o capitalismo seria natural (ou seja, não inventado ou imposto arbitrariamente), posto que constituiria o desenvolvimento lógico da relação do homem livre com a terra, segundo os teóricos do liberalismo citados por Marx; e o capitalismo seria também um instrumento de libertação dos homens dos constrangimentos das leis do mais forte, dos instintos primitivos de realização violenta dos desejos, da sua ligação irracional com a natureza. Seria a invenção que permitiria ao homem sobrepujar o caráter colérico e confuso da natureza e ao mesmo tempo aquilo que nos permitiria uma vida acima das imposições e das limitações que a vida coletiva aporta.

Tais premissas não deixam de estar relacionadas com as observações de Foucault (2002b), no curso Em defesa da sociedade, nas quais nos recorda que o tema da soberania na Europa medieval sempre esteve associado ao tema do "filho legítimo da terra", isto é, do debate em torno do qual o povo tem o direito legítimo de ocupar cada porção de terra. Os "filhos legítimos da terra" seriam aqueles que ali estavam por direito pleno, que nunca tiveram de conquistá-la ou tomá-la de outro, mas que estavam ali desde o princípio. Esse mote impedia recordar que as relações territoriais de disputa estão na base da nossa sociedade, impedia recordar que nunca houve um acordo sob a forma de contrato entre o Estado e os cidadãos, e que o mesmo é apenas um desdobramento das formas antigas de dominação ou de manutenção de privilégios de alguns grupos sociais sobre outros.

A questão das possibilidades que esse experimento "um homem em uma ilha" apresentam, portanto, está imediatamente ligada a outra, que é a das relações entre a civilização e a barbárie, relação entre Robinson e Sexta-feira, entre um modo e outro de relacionar-se com a ilha. Ou, em termos contemporâneos, a relação entra vida média, dita pequeno-burguesa, conformada com o status quo, crente na meritocracia, numa vida urbana interiorizada em condomínios fechados e shopping centers, e os movimentos de multidão, desorganizados, sem liderança, sem pauta unificada, sem partido.

Sem a pretensão de "interpretar" com exatidão os acontecimentos multitudinais que se vêm espalhando ao redor do mundo, consideramos possível afirmar que, se há uma potência política interessante ligada a essas revoltas, é que elas embaralham e complexificam o campo das relações sociais e da convivência urbana ou planetária, arrancando-a da triste previsibilidade que a arquipelógica liberal da ilha deserta pressupõe.

Veneno-remédio

O Robinson de Tournier (1985) é um colonizador, um aventureiro em busca das riquezas do Novo Mundo, naufragado em uma ilha e, posteriormente, colocado numa relação forçada com um selvagem (o índio araucano Sexta-feira), a qual modificou suas perspectivas do que é o viver, do que é o estar no mundo. No prólogo do livro, ainda no navio Virgile, Robinson está refugiado na cabine do holandês de personalidade "cínica" e "epicurista" que era também o capitão da nau, quando este resolve abrir-lhe um tarô, o qual antecipa as desventuras por que irá passar em seu naufrágio. O capitão Van Deyssel diz-lhe logo de saída: "Você é piedoso, avarento e puro. O reino de que seria soberano assemelhar-se-ia àqueles armários domésticos onde as mulheres da nossa terra arrumam pilhas de lençóis e toalhas imaculadas e perfumadas com saquinhos de lavanda" (Tournier, 1985, p. 6). À sua maneira, parece-nos que Tournier buscou com seu Robinson atualizar a crítica a um compromisso já explicitado por Max Weber (2000) entre a ética protestante e o capitalismo, isto é, que a violência da exploração do trabalho humano pelo capitalismo não se sustenta sobre um insensível e imoral desprezo pelo outro, mas justamente em uma prática moralizante e humanizadora, a qual pretende que aquele que sofre mais, que se esforça mais, que se dedica mais, que acumula mais, em contraposição aos que vivem de ócios e dispêndios, de prazeres efêmeros e sem regras, é o que traz consigo mais riqueza e, por isso, está do lado dos escolhidos por Deus.

O protestantismo investiu as práticas humanas de uma positividade, assegurou-lhes a possibilidade de constituírem não uma garantia, mas um indício da salvação. Não seriam a renúncia às atividades do homem e a dedicação espiritual os únicos caminhos para o encontro do divino, mas justamente a boa execução dos negócios humanos. A vocação para o trabalho surge como virtude essencial, capaz de agregar virtudes acessórias.

Com seu "epicurismo", Van Deyssel busca, justamente, provocar essa estreiteza de visão levada pelo jovem Crusoé na sua jornada de colonizador, assentada na ideia de que a construção de um entorno ordenado, rigoroso, funcional, é o reflexo de uma alma pura, de uma alma destinada a partilhar das bênçãos do criador. Em uma passagem o capitão do Virgile recomenda a Robinson: "ouça bem: livre-se da pureza. É o vitríolo da alma" (Tournier, 1985, p. 11).

Nesse sentido, seria interessante pensar os dois tipos de envenenamento que são trazidos pelo romance de Tournier. O primeiro deles é esse envenenamento que se dá lenta e gradualmente pelo "ressentimento" (Nietzsche,1998). O envenenamento por vitríolo.

O vitríolo é o nome dado a uma substância que os médicos antigos supunham existir e que acreditavam ser a responsável pelo amargor que vem à boca das pessoas em situação de medo, ou rancor, ou tristeza extrema. O acúmulo de vitríolo no organismo com o passar dos anos, fruto de uma vida ressentida, de uma vida mal vivida, funcionaria ao modo de um envenenamento, e seria o responsável pelo fato de que aqueles que vivem mal, que desprezam as alegrias da vida, tem-na abreviada pela fraqueza, pela feiura e pela doença.

De outra parte, temos e envenenamento da mandrágora. A mandrágora é uma planta cuja raiz tem a forma quase perfeita de um homem. Ela simula o corpo de um homem do pescoço para baixo, sua raiz tem a forma de um tronco com braços e pernas abertos e proporcionais quase ao modo do homem vitruviano de Da Vinci. O chá feito da raiz da mandrágora tem a fama de ser, ao mesmo tempo, afrodisíaco e alucinógeno.

Num livro da farmacopeia antiga intitulado Exercícios Sabáticos, de Fridericus & Willebergus (1728)2 2 Pode ser integralmente acessado digitalmente em: http://digitale.bibliothek.uni-halle.de/vd18/content/pageview/2991278 , em uma seção chamada de abortionis et amatorio poculo, há a descrição de um chá que parece bem ser o da mandrágora: seus efeitos, para além dos venéreos ou afrodisíacos, são ditos serem capazes de "perturbar a vontade de um homem" e de induzir à "loucura e a morte", além de ser utilizado como intercessor em "pactos com o diabo"3 3 Tradução dos autores. (p. 167). A forma da mandrágora, seu caráter híbrido, em que se misturam os reinos animal e vegetal, parece ter ensejado inúmeras lendas que tentam explicar a razão da sua constituição humanoide. Uma delas diz que a planta assim teria nascido a partir do derramamento ao chão do sêmen de um homem enforcado.

A literatura já tomou por diversas vezes a mandrágora por objeto. Nicolau Maquiavel escreveu em 1518 uma peça chamada A Madrágora4 4 Disponível digitalmente em 14/07/2013 no site: http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wp-content/uploads/2010/10/Nicolau-Maquiavel-A-MANDR%C3%81GORA1.pdf , que trata do embuste orquestrado por um jovem apaixonado por uma mulher casada e que tem como dispositivo uma poção mágica para restaurar a fertilidade, feita dessa planta. Da mandrágora teria sido feito o veneno que adormeceu a Julieta de Romeu.

No romance de Tournier, porém, a mandrágora não aparece na sua forma de chá, mas como o efeito da relação sensual entre Robinson e a ilha. No seu isolamento na ilha, Robinson encontrou um lugar especial na geografia de Speranza (o nome com que rebatizou a ilha) que o enchia de sensualidade, uma campina banhada pelo sol e de vegetação rala, macia e rósea, que ele chamou, por isso, de Combo Rosa. Ali, Robinson tinha o hábito de satisfazer amiúde seus desejos sensuais, copulando com a terra. Depois de um tempo, começaram a nascer mandrágoras por todo o Combo Rosa, as quais ele compreendeu como fruto de seu relacionamento com a ilha. Eis que ao observá-lo em tais práticas, Sexta-feira, às escondidas, também passa a frequentar o Combo Rosa, de modo que em pouco tempo surgiram aqui e ali pela campina mandrágoras mestiças, com rajas em suas folhas.

Estendeu-se num sulco um tanto arenoso, mas envolvente, e fruiu o torpor voluptuoso que, subindo do solo, lhe chegava aos rins. Comprimia de encontro aos lábios as mucosas mornas e almiscaradas de uma flor de mandrágora. Estas flores, conhecia-as bem por lhes ter classificado os cálices azuis, violetas, brancos ou purpurinos. Mas o que é isto? A flor que ele tem sob os olhos é raiada. Branca listrada de castanho Sacode-se do torpor. Não compreende. Este pé de mandrágora não existia dois dias antes. Havia sol, e ele teria notado esta nova variedade. ... está de antemão convencido de que nunca se deitara no sítio onde floriu a mandrágora listrada. (Tournier, 1985, p. 147)

São, portanto, duas formas de envenenamento completamente distintas que se nos apresentam a partir de Tournier. Uma é a da mandrágora, o veneno que é também uma poção do amor. É sensual e alucinógena. Envenena de prazer. Nela a cura ou a morte é decidida numa questão de limiares, de fronteiras flutuantes que não podem ser delimitadas de forma estanque, mas exploradas ao preço de um risco de vida - mesmo que seja o de morte. O outro envenenamento é o da acumulação, o da repetição, que é lentamente, que é pouco a pouco, que é o da identidade, dos humores que se repetem, das emoções que não se podem evitar, das insistências da personalidade, o envenenamento por vitríolo.

Essa convergência entre sensualidade e morte que a mandrágora exemplifica parece apontar um caráter dionisíaco (Nietzsche, 1992) para um enfrentamento possível do capitalismo no contemporâneo. Ela desorienta o sujeito psicológico, faz viajar para além das fronteiras do eu, e, ao mesmo tempo, e talvez pelo mesmo mecanismo, intensifica as trocas com o mundo, realça as sensações, inspira a sensualidade, borra os limites entre os sentidos. Uma experiência do comum, isto é, da potência impessoal, não identitária, dissolvente, desviante, dos encontros urbanos também pode funcionar sob um princípio mandragórico e nos resgatar do adoecimento por vitríolo. A multidão intensifica o caráter dinâmico e rizomático (Deleuze & Guattari, 2009) da vida, a despeito da objetividade e da estabilidade (mandrake - mandrágora em inglês) do corpo.

O valor em jogo: uma aposta ético-estética

O capitalismo contemporâneo realiza o paradoxo de conjugar dois sentidos para a expressão "jogo", que a princípio não se conciliam. De um lado, o jogo como competição, como recompensa ao mais forte. A vitória por merecimento. A meritocracia dos executivos que ordena o mundo do trabalho. De outro lado, o jogo como aposta, como jogo de azar. Princípio dos ganhos estocásticos da bolsa de valores que ordenam o mundo financeiro.

Essa dupla cooptação, essa captura esquizofrenizante, é a marca de um capitalismo que consegue abrir mão da ética protestante, da ideia de que há uma ascese espiritual a partir de uma vida regrada pelo trabalho e coincide com uma desobjetivação da "alma" como objeto de uma construção progressiva, ou de uma condução. A "alma", agora travestida de psiquismo, passa a prestar-se a outros tipos de intervenções de abordagem mais psicopatológicas: as síndromes, os transtornos, as fobias, os déficits, etc. O fracasso está individualizado. São as condições psicológicas, as habilidades e as competências que definem se alguém tem ou não condições de sucesso no competitivo mercado de trabalho. Não se trata das contingências históricas. Tampouco se as renega. Se há diferenças, se há aqueles que nascem com menos recursos ou com desvantagens físicas, cabe a eles superarem-nas. As diferenças e as desvantagens apenas realçam o sucesso alcançado.

É nesse sentido que criticar o capitalismo torna-se problematizar não apenas a questão moral envolvida na infraestrutura de exploração que ele faz funcionar. Criticar o capitalismo tem a ver com trazer para um exame mais próximo a questão do que é que de fato qualifica a vida, o que é que faz a vida valer a pena, o que dá valor à existência.

Foucault, em As palavras e as coisas (2000), a partir de uma análise das duas teorias econômicas de formação do valor, a dos fisiocratas e a dos utilitaristas, observa que ambas são complementares, isto é, que nem as coisas têm em si um valor intrínseco que antecede à troca, como pensado pelos fisiocratas, nem a troca é por si só capaz de produzir valor, como pretendido pelos utilitaristas. Aquilo que diferencia um bem de uma riqueza constitui-se na troca, mas com a condição de que no momento da troca ambos os aspectos, o necessário e o supérfluo, da coisa compareçam.

Não há valor, pois, que não possa ser trocável, mas com a condição de que essa troca envolva tanto uma necessidade, quanto uma extravagância, uma desnecessidade. É preciso haver uma produção excedente, isto é, a produção de um bem em quantidades maiores do que o necessário, uma acumulação, portanto. Mas é também preciso que essa acumulação não seja relacionada apenas à necessidade ou à utilidade a que se presta esse bem. É imprescindível que esse estoque acumulado estabeleça laços com um plano de extravagância ou de inutilidade, ou seja, com o fato de que alguém pode vir a desejar um diamante por seu brilho, ou uma flor por seu cheiro, afinal de contas, aspectos supérfluos e que, acrescenta-se, são também estéticos, sensoriais, perceptivos.

Não é suficiente para gerar valor, pois, que haja uma troca baseada na relação entre um sujeito ou uma comunidade que acumula mais do que necessita e outro que tem menos do que o mínimo para sobreviver. Se assim fosse, o estoque acumulado não teria valor algum e seria imediatamente compartilhado ou abandonado, cedido sem contrapartidas. Não seria constituída uma troca, mas uma partilha, um mutualismo. Esse estoque só ganha valor na troca, quando passa a ser conversível em objetos inúteis ou desnecessários, objetos que a rigor têm uma sedução estética, têm uma sensorialidade, têm uma imprecisão. A moeda não é artificial porque perdeu sua conversibilidade universal pelo ouro, senão porque o ouro é pesado demais para a vida - que as alegrias da vida são leves, sutis e transitórias: comida, bebida, arte, sexo, etc. - e o ouro é pesado, denso e perene.

Nesse contexto, a terra figura, inicialmente, como a grande indexadora do valor porque ela opera o excesso. A terra é por excelência a artesã da multiplicação. Uma semente plantada torna-se uma centena de sementes na espiga. Desejar a terra é, nesse sentido, desejar o seu excesso, os seus excedentes, desejar o que ela provê para além das necessidades de sobrevivência, desejar a eventual conversibilidade da sua produção excedente em objetos desnecessários. O ciclo da agricultura é o milagre repetido a cada vez e também a condição para que exista a possibilidade de desejar o inútil. O homem vincula-se e liberta-se da terra simultaneamente através da agricultura. Vincula-se pelo trabalho agrícola, liberta-se pelo esforço a seu favor que ela realiza sozinha.

É que na verdade, há um produtor invisível que não precisa de nenhuma retribuição; é a ele que o agricultor se acha associado sem o saber; e, no momento em que o lavrador consome tanto quanto trabalha, esse mesmo trabalho, por virtude de seu co-Autor, produz todos os bens dos quais será subtraída a formação dos valores. (Foucault, 2000, pp. 269-270)

Sem esse milagre da multiplicação, o homem nunca teria deixado de ser um coletor, um ente que detém tudo o que a terra oferece, e, ao mesmo tempo, não é capaz de transformar nada disso em riqueza. Não é capaz de produzir valor sobre o que possui. O excedente agrícola cria as condições para o desnecessário, para o inútil, para o estético. É preciso a produção agrícola e o consórcio do trabalho humano com o trabalho da natureza para valorizar aquilo que a terra oferece de graça. Só há valor no metal extraído, no animal caçado, no peixe pescado, no fruto colhido, porque há essa supercompensação energética que o trabalho agrícola produz.

Num mundo em que tudo decai, em que a passagem do tempo é um fluxo de perda - fator entropia - a terra realiza a cada estação de safra o excesso, mostra seu caráter perdulário. Só pode haver estética, portanto, porque há excesso. O mundo econômico, mundo da contabilidade da perda, é inestético. É funcional ao extremo. E o extremo da funcionalidade é a homogeneidade, é a estase, é a morte. O sentido do valor conjuga, pois, esse paradoxo. As coisas se valorizam na medida em que ficam mais raras, na medida em que são limitadas e podem faltar. Mas o mecanismo de formação de valor também só é possível porque há excedentes - a agricultura é o melhor exemplo disso - , porque que a natureza realiza um trabalho que excede em recompensa o esforço do trabalhador.

É esse caráter impreciso do valor justamente o que permite a sua representação na forma da moeda. Se o valor fosse seguramente localizável em uma medida transcendente, se as satisfações estéticas fossem integralmente quantificáveis, não poderia haver moeda. As quantidades de bens úteis seriam imediatamente trocáveis pelos objetos inúteis ou estéticos. A moeda representa o valor na medida em que não o quantifica com exatidão, isto é, que as quantidades de moeda que podem comprar os objetos são variáveis, tão variáveis quanto aquilo que ela tenta comprar. As satisfações estéticas, o supérfluo, não se quantificam ou se deixam identificar por uma medida externa, mas variam, posto que variáveis são os gostos; que nem todo mundo gosta da mesma flor, da mesma cor, do mesmo som, etc.; que o prazer está no aspecto apolíneo da coisa, mas também no dionisíaco, isto é, na sua forma, na sua beleza, mas também na sua envolvência, na sua sensorialidade, na sua imprecisão. Não há medida transcendente e precisa de valor. É por isso que o capitalismo é possível e aí está o paradoxo: o mesmo mecanismo que permite a emergência desse sistema de produção de valor que acaba por nos prender na armadilha de desvalorizar as satisfações possíveis de serem realizadas é o mecanismo que nos constitui como sujeitos, ou seja, que nos permite viver uma vida para além das necessidades de sobrevivência.

Apostar numa "estética da existência" (Foucault, 2002a), portanto, na tomada para si de uma atitude, de um ethos, em relação à própria vida, significa ir ao encontro dessa imprecisão do valor, do aspecto maquínico, relacional e contínuo com o qual o sujeito produz e produz-se "no" e "com" o mundo. A atenção sobre si objetivada pela estética da existência busca sabotar o jogo do capitalismo que faz circular um fluxo monetário incapaz de comprar efetivamente qualquer satisfação, um jogo, pois, no qual de antemão somos perdedores. Interrogar o valor do tempo gasto, dos objetos comprados, das experiências vividas pode ser uma estratégia de forçar esse jogo de um to play (jogo de competição no qual somos playboys) para um to joke (jogo como brincadeira no qual somos jokerman ou coringa). Trata-se de exercer a crítica ao mesmo tempo em que se inventa mundos possíveis. A estética da existência deve ser pensada, nesse sentido, no âmbito das composições, dos vínculos, das relações desindexadas que estabelecemos e que, portanto, não distinguem o perceptivo e sensorial do crítico e do cognitivo.

Não se trata, pois, de meramente lutar por uma distribuição de capitais, posto que a armadilha do capitalismo não é simplesmente a de privar-nos do capital, mas a de fazer-nos insatisfeitos mesmo quando de posse de capitais. Lutar contra o capitalismo na perspectiva de uma estética da existência é ir ao encontro do que Nietzsche (1995) em seu Ecce Homo chamou de "tresvaloração dos valores", ou seja, uma prática que busca ao mesmo tempo experimentar, criticar e reinventar a noção de valor.

Necessito dizer, após isso tudo, que sou experimentado em questões de décadence? Conheço-a de trás para frente. Inclusive aquela arte de filigrana do prender e aprender, aqueles dedos para nuances, aquela psicologia do "ver além do ângulo", e o que mais me seja próprio, tudo foi aprendido, é a verdadeira dádiva daquele tempo em que tudo em mim se refinava, tanto a observação mesma como os órgãos de observação. Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos e, inversamente, da plenitude e da certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence - este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante pare deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez somente para mim seja possível uma "tresvaloração dos valores". (Nietzsche, 1995, pp. 24-21)

Nessa passagem, Nietzsche nos deixa pistas importantes do que está envolvido nesse processo. Ter "dedos para nuances", isto é, a tresvaloração dos valores faz-se através de uma manipulação, de modo, portanto, artesanal, mas, sobretudo, com um apurado sentido de tato, com a capacidade de sentir detalhes ínfimos, filigranas. Depreende-se disso que não sejam apenas o sentido da visão e a observação que estejam envolvidos nesse processo, ainda que deles não se abra mão. A experiência de observar deve ser também um processo de refinamento dos "órgãos de observação". Trata-se de uma atitude que não tem apenas um fim ou um resultado, mas que age sobre o próprio sujeito, sobre os processos que estão envolvidos na produção do resultado. E esse resultado, a observação, o exame da questão do valor, é, necessariamente imprevisível, "além do ângulo". Aí fica bem caracterizado o significado do prefixo "tres" da tresvaloração, valorar de modo desviante, de modo inesperado, sob outra perspectiva. Além disso, trata-se de realizar uma experiência a contrapelo, na contramão: ver o sadio na ótica do doente e o decadente na ótica da riqueza.

Realizar, pois, uma tresvaloração dos valores como prática de uma estética da existência não significa estar isento de uma vida medíocre, uma vida decadente. Não é apelar para um ideal de liberdade ou estar infenso às seduções do capitalismo. Nietzsche é bastante claro: só é capaz de realizar uma tresvaloração dos valores porque é mestre, é experimentado na décadence. A ética, a atitude para a qual ele aponta é de uma não resignação, de uma agonística, de um não contentamento com o dado, de compreensão da vida como passagem, como travessia. Experiência, pois, de contrafluxo.

Não se deve, absolutamente, confundir a resignação trágica (Nietzsche, 1992) em relação à impossibilidade de controlar as forças dissolventes, dionisíacas, caóticas que agem sobre o mundo, com uma resignação ao nível dos mecanismos de poder. Tal como o universo que morre entropicamente a cada segundo e mesmo assim não cessa de explodir galáxias, ou como os entes biológicos que não deixam de se reproduzir mesmo que a extinção seja inevitável, o jogo da vida é de derrota, mas também de diversão, de divergência e de invenção.

Por isso a luta contra o capitalismo não se resolve no plano do sujeito normal. O capitalismo leva a termo um projeto de humano que para ser realizado corretamente, isto é, que na sua expressão normal, na sua normalidade, acaba sendo realizado ao preço de uma desqualificação do tempo vivido ou, em outros termos, da perda do vívido da vida.

Por isso, um pensamento ético-estético no contemporâneo opõe-se ao capitalismo não simplesmente a partir do problema da produção, distribuição e consumo de riquezas. Não se trata de intervir apenas no problema do estoque e dos fluxos. É na produção do valor que há uma política anticapitalista com a qual as ciências humanas, a psicologia em particular, podem se consorciar: nas produções coletivas de espaços-tempo, de práticas experimentais, de ocupações nas quais o sentido da utilidade ou do pragmatismo não se coloquem acima da experiência sensorial, estética ou artística. A rigor, um espaço não pode ser "ocupado", ele é sempre conquistado. Inventa-se sobre ele uma soberania, mesmo que transitória. Aí está uma lição que os occupy ao redor do mundo podem aprender: que eles ali sempre estiveram; que a Plaza Cataluña (Barcelona), o Zucotti Park (Nova Iorque) ou a Cinelândia (Rio de Janeiro) nunca estiveram baldios ou desocupados. Seus bancos vazios, suas fontes secas, seus gramados onde não pisar, sua amplidão claustrofóbica estão repletos de uma triste humanidade a qual os occupy devem igualmente se insurgir para o bem de levar a luta anticapitalista até as suas últimas consequências. É preciso problematizar os bancos de Wall Street e também os bancos das praças, isto é, os fluxos financeiros e os fluxos urbanos, o capital e as capitais, e deve-se fazê-lo para além do homem, para além das sociabilidades regradas e para além da noção de uma cidade higienizada ou funcional.

A contribuição que as ciências humanas podem dar, nesse contexto, é a de permitir que estas experimentações coletivas ganhem duração em seu caráter impreciso, que não se tenha que decidir logo "para quê elas servem?", ou seja, garantir aos coletivos um espaço que não é utópico, posto que não almeja um ideal impossível de ser alcançado, mas que é ficcional no sentido de que não se contenta com o dado, com o status quo, ficcional no sentido em que se alia com as possibilidades inextintas do real, com as forças que não foram totalmente aplacadas pelo aspecto utilitário do mundo. Não contentamento que se traduz em encontros, em "ocupações", as quais são políticas num sentido elevado do termo. Assim veremos que não há contradição nenhuma no fato de que um dos aspectos mais destacados nestas manifestações seja o festivo.

Mikhail Bakhtin (1987) dedicou uma vasta obra à análise da produção literária do bardo da literatura francesa: François Rabelais. Nela, ocupa um lugar central a interpretação do significado da festa popular na Idade Média. Para Bakhtin, a festa não é secundária em relação ao fenômeno coletivo, ela não existe prioritariamente para celebrar o ócio em contraposição ao trabalho ou para afrouxar a carga de opressão que incide sobre as camadas populares. "A festa é a categoria primeira e indestrutível da civilização humana" (p. 240).

Segundo Bakhtin (1987), a feira, os jogos, os folguedos, os charlatões, os discursos, o carnaval e, sobretudo, a festa estavam mesclados em sua gênese, não havia uma separação evidente entre o que eram as compras e as vendas de objetos, as exibições públicas de habilidades físicas, as disputas cômicas, os jogos, a dança e a música. A ocupação festiva do espaço público é o modo de estar em público por excelência e a sua restrição ou especialização em atividades, datas ou ocasiões é um efeito secundário, fruto dos modos de produção social e do exercício do poder. É o Estado e as suas instituições que se apropriam da festa para seus próprios fins e não o contrário.

A experiência festiva da urbe tem pois a qualidade do envenenamento mandragórico. Ela potencializa desejos, sensações, devires e, ao mesmo tempo, é desmedida, intensa, perigosa. Nesses movimentos occupy, bem como em outros momentos históricos similares, o maio de 68, por exemplo, manifestam-se ocasiões de entusiasmo e de prazer coletivos em que o sujeito psicológico, as nacionalidades, o dinheiro e a propriedade privada têm menos valor. São grandes forças de horizontalização, de pulverização das estruturas verticalizantes.

A tresvaloração dos valores, da maneira como proposta por Nietzsche (1995), contudo, é um exercício singular, de um cuidado pessoal, que parte de um exercício de si e da tomada da própria condição de sujeito como objeto. O paradoxo que se estabelece e que convoca a ser habitado é, pois, o de fazer entrar em composição, sem se aniquilarem, essa atenção consigo mesmo e as potências impessoais, os arrebatamentos coletivos com os quais essa atenção pode tanto ser potencializada como dissolvida.

Nesse sentido é que é importante manter-se um cuidado estratégico para que essas experiências coletivas em que os valores entram em xeque não venham a culminar em um acirramento do aspecto carcerário do mundo, que essa suspensão dos valores não seja apenas o entreato da sua recondução para patamares ainda mais opressivos. Não se deve perder, pois, nessas seduções de multidão, o aprendizado da filigrana, da relação artesanal e cuidadosa, de aprendizagem, no exame e na reinvenção dos valores. Daí talvez uma tarefa que possa ser acolhida pela psicologia: a de subsidiar uma atenção com a própria vida que não se incompatibilize com o caráter dissolvente e arrebatador das forças coletivas, mas que também não despreze o aprendizado progressivo e sutil de uma atenção para consigo.

Para des-fechar

Readequar, portanto, os objetivos das ciências humanas num mundo em que estamos despejados do conforto e da segurança da modernidade científica para um período de incertezas e precariedades significa manter o longo aprendizado dos anos pós-Iluminismo, ou seja, a capacidade de lançarmos um olhar crítico para o nosso tempo, de problematizar as estruturas de poder que nos circundam e os mecanismos de subjetivação que nos habitam, sem fazer, contudo, um apelo a um ideal perdido ou a uma redenção futura.

Essa crítica, a qual podemos chamar de imanente, deve ser realizada no terreno da ontologia. O que isso significa? Que doravante comentar o estado atual das coisas não está separado da ação de produzir novos sentidos possíveis para elas, sentidos antes impensáveis, de tal maneira que é preciso tornar-se outro para pensá-los. Conhecer deixa de ser uma questão de mera percepção passiva do que está dado para aproximar-se da narrativa. Contar a história do mundo em transformação significa tomar parte na sua usinagem. Isso quer dizer que ao cientista não cabe apenas conhecer o mundo, mas transformá-lo, ou inventá-lo, num processo que não o deixará incólume, tal como Robinson na sua relação com a ilha, num primeiro momento, e com Sexta-feira, logo em seguida.

Trata-se, pois, de evitar a dualidade ação versus interpretação do mundo, na qual temos uma ação que supõe superar o idealismo porque estaria engajada nas coisas práticas, nas lutas objetivas; e uma interpretação que supõe uma distância dos acontecimentos como pré-condição para um conhecimento puro e universalmente válido. Estamos ilhados na imanência do mundo, mas isso não quer dizer que tenhamos de ser náufragos sonhando com o resgate.

A narrativa como prática científica coloca o sujeito em meio ao processo, de modo que o seu devir é ao mesmo tempo ação e interpretação no/do mundo. Ele produz um ato de linguagem que não está descolado dos eventos do qual toma parte. Fazer ciência torna-se fazer a síntese do experimento com a experiência. Um processo no qual a criação do artifício passa a ser também a criação de si. Como bem observou Nietzsche (1992): "O sortilégio dessas lutas é que quem as olha também tem que lutá-las!" (p. 96).

Notas

Agradecimento

À CAPES, pelo apoio e financiamento. Processo no. 5000-10-6.

Submissão em: 25/10/2013

Revisão em: 30/03/2014

Aceite em: 20/04/2014

Rodrigo Lages e Silva é Professor do quadro do curso de Psicologia da Faculdade Cenecista de Osório e Professor Substituto no departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço: Rua dos Andradas, 245/102, Porto Alegre/RS, Brasil. CEP 90020-000. E-mail: lagesesilva@gmail.com

Luis Antonio dos Santos Baptista é Professor Titular do Departamento de Psicologia da UFF e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF. Pesquisador do CNPQ. E-mail: baptista509@gmail.com

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  • Primavera urbana: a ilha deserta interroga as multidões

    Primavera urbana: la isla deserta interroga las muchedumbres
  • 1
    Tradução dos autores.
  • 2
    Pode ser integralmente acessado digitalmente em:
  • 3
    Tradução dos autores.
  • 4
    Disponível digitalmente em 14/07/2013 no site:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Recebido
      25 Out 2013
    • Aceito
      20 Abr 2014
    • Revisado
      30 Mar 2014
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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