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DE ESPECTADORA A CRIADORA: IMAGINAÇÃO, FAZ DE CONTA E MÍDIA TELEVISIVA NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

DE ESPECTADORA A CREADORA: IMAGINACIÓN, JUEGO Y MEDIO TELEVISIVO EN EL DESARROLLO INFANTIL

FROM SPECTATOR TO CREATOR: IMAGINATION, PRETEND PLAY AND TELEVISION MEDIA ON CHILD DEVELOPMENT

Resumo

Este artigo objetiva analisar, à luz da perspectiva histórico-cultural, os sentidos produzidos pelas crianças sobre a mídia televisiva em contexto de faz de conta. Para tanto, foi realizado um estudo empírico em uma escola pública do Distrito Federal, em uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental com 26 alunos (entre cinco e sete anos). O desenho metodológico estruturou-se em duas etapas: observação de situações lúdicas espontâneas das crianças e oficinas lúdicas com temas referentes ao universo midiático-televisivo. Ambos os momentos foram registrados em diário de campo e em videogravações; e as informações construídas foram transcritas e submetidas a uma análise microgenética, por meio da qual foi possível a construção de categorias de análise referentes aos diferentes modos que as crianças expressam, em suas atividades criadoras, os sentidos que possuem sobre a mídia televisiva. Para além do lugar de espectadoras, elas atuam como protagonistas em seus processos de desenvolvimento.

Palavras-chave:
Meios de telecomunicação; Infância; Imaginação; Brincar de faz-de-conta

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar, a la luz de la perspectiva histórico-cultural, los significados producidos por las/os niñas/os sobre el medio televisivo durante episodios de juego. Para ello, se realizó un estudio empírico en una escuela pública del Distrito Federal, en una clase del primer año de primaria con 26 alumnos (entre cinco y siete años). El diseño metodológico de la investigación se estructuró en dos etapas: observación de situaciones lúdicas espontáneas de niños y talleres lúdicos con temas relacionados con el universo de los medios. Ambos momentos fueron registrados en el diario de campo y en grabaciones de video; y los datos construidos fueron transcritos y sometidos a un análisis microgenético, a través del cual fue posible construir categorías de análisis que se refirieron a las diferentes formas en que los niños expresan, en sus actividades creativas, los significados sobre el medio televisivo. Además de ser espectadores, las/los niñas/os actúan como protagonistas en sus procesos de desarrollo.

Palabras clave:
Medios de telecomunicación; Infancia; Imaginación; Juego

Abstract

Grounded on the cultural-historical perspective, this article aims to analyze the meanings produced by children about television media during the context of pretend play. For this purpose, an empirical study was carried out in a public school in the Federal District, in a class of elementary school’s first year with 26 students (from five to seven years old). The research’s methodological design was structured in two phases: observation of the children’s spontaneous playful situations and ludic workshops with themes related to the television media universe. Both moments were recorded in a field journal as well as in video format. The constructed data was transcribed and subjected to a micro genetic analysis. The analysis led to the construction of analytic categories regarding the various ways that children express the meanings they produce about television media in their creative activities. More than being spectators, children act as protagonists in their development processes.

Keywords:
Telecommunication media; Childhood; Imagination; Pretend play

Introdução: mídia televisiva, infância e processos criadores

A cultura midiática vem ganhando espaço cada vez mais significativo, estabelecendo novos valores e modos de ser e estar no mundo, de maneira a se configurar como elemento protagonista na formação do corpo e da subjetividade do indivíduo (Pereira, 2002Pereira, R. M. R. (2002). Infância, televisão e Publicidade: uma metodologia de pesquisa em construção. Cadernos de Pesquisa, 116, 81-105.; Sibilia, 2016Sibilia, P. (2016). O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.). No que concerne à relação das crianças com a mídia, muito se argumenta sobre o caráter alienador da televisão e como este aparelho tem invadido o espaço da brincadeira, substituindo o brinquedo, colocando-o em segundo plano ou até mesmo corrompendo os modos de brincar, incitando práticas de violência (Erwin & Morton, 2008Erwin, E. & Morton, N. (2008). Exposure to media violence and young children with and without disabilities: Powerful opportunities for family-professional partnerships. Early Childhood Education Journal, 36(2), 105-112.; Martínzes, Sendra, & Coromina, 2010Martínzes, A., Sendra, J., & Coromina, A. (2010). Violencia en televisión: análisis de la programación en horario infantil Violence in TV: Analysis of Children´s Programming. Comunicar, XVIII(35), 105-112.), além de incentivar um consumismo excessivo e impensado (Hill, 2011Hill, J. (2011). Endangered childhoods: how consumerism is impacting child and youth identity. Media, Culture, & Society, 33(3), 347-362.).

Outros estudos deslocam o foco para a problematização das interações que a criança estabelece com a linguagem midiática a partir de suas produções criadoraslugar social da criança em meio à cultura (Chacón & Morales, 2014Chacón, P. & Morales, X. (2014). Infancia y medios de comunicación: El uso del método semiótico cultural como acercamiento a la cultura visual infantil. Ensayos: Revista de la Facultad de Educación de Albacete, 29(2), 1-17.; Fernández & López, 2010Fernández, A. & López, M. (2010). El imaginario sonoro de la población infantil andaluza: análisis musical de La Banda. Comunicar, XVIII(35), 193-200.; Pereira, 2002Pereira, R. M. R. (2002). Infância, televisão e Publicidade: uma metodologia de pesquisa em construção. Cadernos de Pesquisa, 116, 81-105., 2009Pereira, R. M. R. (2009). Infância e publicidade: uma pesquisa-intervenção no contexto escolar. Cadernos de Educação, 34, 265-288., 2013Pereira, R. M. R. (2013). O (en)canto e o silêncio das sereias: sobre o (não)lugar da criança na (ciber)cultura. Childhood & Philosophy, 9(18), 319-343.; Pereira, Jobim e Souza, & Salgado, 2005Pereira, R. M. R., Jobim e Souza, S., & Salgado, R. G. (2005). Pela tela, pela janela: questões teóricas e práticas sobre infância e televisão. Cadernos CEDES , 25(65), 9-24.; Pereira, Salgado, & Jobim e Souza, 2006Pereira, R. M. R. , Salgado, R. G. , & Jobim e Souza, S. (2006). Da recepção à produção midiática: as crianças, a cultura midiática e a educação. Alceu, 7, 165-181.; Salgado, 2012Salgado, R. (2012). Da menina meiga à heroína superpoderosa: infância, gênero e poder nas cenas da ficção e da vida. Cadernos CEDES , 32(86), 117-136.). A partir de uma visão crítica e reflexiva acerca da produção midiática e seu complexo diálogo com a criança, esses estudos buscam repensar o lugar social da criança em meio à cultura do consumo. Para tanto, elegem como principal eixo teórico as contribuições de Bakhtin (2003Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes., 2010Bakhtin, M. (2010). Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec.), resgatando, sobretudo, os conceitos de dialogismo e alteridade. Pereira (2002Pereira, R. M. R. (2002). Infância, televisão e Publicidade: uma metodologia de pesquisa em construção. Cadernos de Pesquisa, 116, 81-105.), por exemplo, vale-se da concepção bakhtiniana sobre comunicação estética entre criador e contemplador da arte para buscar compreender a relação dialógica entre o discurso midiático e o universo lúdico infantil. Ao partir dessa perspectiva, a autora (Pereira, 2002Pereira, R. M. R. (2002). Infância, televisão e Publicidade: uma metodologia de pesquisa em construção. Cadernos de Pesquisa, 116, 81-105.) chega à conclusão de que a criança, então receptora das imagens midiáticas, torna-se também cocriadora dessas produções, à medida que lança mão dos conteúdos veiculados por diversos dispositivos para compor seus desenhos, suas narrativas e brincadeiras.

Dessa forma, a produção midiática dirigida ao público infantil - desenhos animados, filmes, telenovelas, anúncios publicitários, entre outros - não se constitui como elemento limitador da brincadeira (Munarim, 2007Munarim, I. (2007). Brincando na escola: o imaginário midiático na cultura de movimento das crianças. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.). Pelo contrário, a apropriação pelas crianças dos movimentos dos personagens que habitam o universo televisivo é ressignificada a partir da criação de novos gestos e ações desdobrados no brincar. No brincar, a criança, a partir de referências de desenhos animados, descobre novos gestos, criando e recriando movimentos com o corpo, de acordo com as mais diversas situações que vão surgindo durante a brincadeira e oportunizando a produção de novas imagens corporais (Siqueira, Wiggers, & Souza, 2012Siqueira, I., Wiggers, I., & Souza, V. (2012). O brincar na escola: a relação entre o lúdico e a mídia no universo infantil. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 34(2), 313-326.).

Com base na perspectiva histórico-cultural, o presente estudo foi ancorado nas seguintes questões: quais os sentidos produzidos pelas crianças acerca de sua relação com a mídia televisiva a partir da focalização de contextos lúdicos? Quais elementos midiático-televisivos compõem o faz de conta? E teve como objetivo geral analisar os sentidos produzidos pelas crianças sobre a mídia televisiva a partir de observações de episódios de faz de conta ocorridos em contexto de oficinas lúdicas.

Aspectos metodológicos

A investigação relatada no presente artigo ancorou-se em pressupostos qualitativos, tendo como base a compreensão do sujeito a partir de uma concepção holística e complexa e da noção de que o psiquismo se constitui num processo histórico a partir da complexa relação entre o homem e a sociedade (Zanella, Reis, Titon, Urnau, & Dassoler, 2007Zanella, A. V., Reis, A. C dos, Titon, A. P., Urnau, L. C., & Dassoler, T. R. (2007). Questões de método em textos de Vygotski.: contribuições à pesquisa em psicologia. Psicologia & Sociedade, 19(20), 25-33.). Dessa forma, nesta pesquisa, a criança foi compreendida como sujeito ativo, criativo e histórico e, por isso, nossa metodologia pressupôs um espaço para a construção de diferentes opiniões, reflexões e posicionamentos críticos das crianças sobre o mundo midiático que as cerca, a partir da orientação e mediação da pesquisadora.

Contexto da pesquisa e participantes

O interesse desta pesquisa surgiu da necessidade de aprofundamento de uma pesquisa anterior que teve por objetivo investigar a maneira como as experiências da criança com a mídia, sobretudo relacionadas à propaganda televisiva, compõem as cenas de faz de conta. Assim, o presente trabalho se constituiu como um espaço para o aprofundamento e o avanço dessas questões, principalmente o que se refere à problematização da relação entre a atividade criadora infantil e a mídia televisiva em geral.

Para tanto, foi realizado um estudo de campo em uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal. Apesar de a escola se localizar no centro de Brasília, a maioria dos alunos tem sua moradia nas cidades periféricas do Distrito Federal. A escolha pelo ambiente escolar justifica-se pelo fato de se tratar de um lugar com grande quantidade de crianças em interação com outras crianças, sendo, portanto, mais oportuno para a observação dos processos criadores infantis, bem como a realização de oficinas com grupos grandes de crianças. Foram selecionadas como participantes da pesquisa 26 crianças - entre cinco e sete anos - que compunham uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental. Optou-se pela escolha dessa faixa-etária em razão de, nessa fase, a brincadeira se apresentar como uma atividade bastante presente nas experiências da criança, inclusive no ambiente escolar.

A escolha por essa escola foi motivada sobretudo pelo fato de essa instituição valorizar e participar de projetos externos, como os de pesquisa, além de possuir uma rotina voltada à realização de dinâmicas lúdicas (foco deste estudo). A pesquisadora não possui qualquer vínculo com a escola. Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (CAAE: 71807417.3.0000.5540)1 1 O cumprimento de todas as etapas da pesquisa de campo foi embasado e orientado por princípios éticos que regem a pesquisa realizada com seres humanos, a fim de respeitar as leis de proteção à criança em sua rotina escolar. , a pesquisadora entrou em contato com a escola, para combinar os dias e horários das observações das aulas e atividades extraclasse das crianças, bem como a programação das oficinas. A partir dessa negociação e da assinatura dos termos de consentimento, foi possível dar início à pesquisa de campo.

O desenho metodológico

O desenho metodológico dividiu-se em duas etapas, a saber: observação de situações lúdicas espontâneas das crianças e oficinas lúdicas com temas referentes ao universo midiático-televisivo. Ambos os momentos foram registrados em diário de campo e em videogravações. Cumpre ressaltar que o uso da câmera na pesquisa de campo foi fundamental para que as informações construídas pudessem ser posteriormente analisadas de forma minuciosa, sem o risco de perder detalhes de todo o campo semiótico envolvido nas situações em que os processos criadores infantis ocorreram. Para evitar qualquer ansiedade ou curiosidade em demasia por parte das crianças, a pesquisadora permitiu que elas, antecipadamente, observassem e tocassem com cuidado a câmera. Após essa medida, iniciaram-se videogravações de todos os momentos das etapas acima mencionadas, sem que houvesse estranhamento da câmera por parte das crianças durante a pesquisa.

Primeira etapa: observação das cenas espontâneas de faz de conta

A primeira etapa da pesquisa de campo correspondeu à videogravação das situações lúdicas infantis durante todo o período da pesquisadora na escola, com a finalidade de verificar se emergiam, nesses contextos espontâneos, elementos simbólicos referentes ao universo da mídia televisiva (desenhos animados, filmes, telenovelas etc.). As aulas continuaram sendo ministradas normalmente pela professora-regente, enquanto a pesquisadora videogravava as dinâmicas lúdicas das crianças em sala de aula, bem como nos momentos extraclasse, como o recreio e/ou pátio da escola. Durante esse período, a pesquisadora teve o cuidado de não intervir diretamente nas atividades lúdicas das crianças, optando apenas pela observação e registro das atividades.

Segunda etapa: as oficinas

A segunda etapa, por sua vez, compreendeu a participação direta da pesquisadora por meio da realização, com as crianças, de duas oficinas lúdicas com temas que faziam alusão ao universo midiático-televisivo. As oficinas consistiram em atividades que tiveram por objetivo promover espaços para a vivência de diferentes situações lúdicas (com foco na emergência do pensamento simbólico e da assunção de papéis, o faz de conta), bem como para diálogos, entre as crianças e a pesquisadora, que problematizassem a relação das crianças com a mídia televisiva. Não foi adotada a perspectiva de pesquisa-intervenção, pois as oficinas tiveram por objetivo somente propiciar um ambiente para gerar informações importantes para a pesquisa. Com base nisso, as duas oficinas foram delineadas conforme as Tabelas 1 e 2:

Tabela 1:
Caracterização da Oficina 1: Dando vida aos personagens favoritos da TV.

Tabela 2:
Caracterização da Oficina 2: Luz, câmera, (inter)ação.

Procedimento de análise das informações

Para a análise das informações construídas, optou-se pela análise microgenética das relações entre criança-criança e criança-adulto em contexto de brincadeira e de roda de diálogo. A análise microgenética se configura como uma análise de microeventos que, aplicada à matriz histórico-cultural, pretende articular o estudo das interações sociais em nível microgenético ao funcionamento dialógico-discursivo de forma a permitir o vínculo de episódios específicos a condições macrossociais (Góes, 2000Góes, M. C. R. (2000). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos CEDES, 20(50), 47-70.).

Segundo Góes, esse tipo de análise “requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos” (2000, p. 9Góes, M. C. R. (2000). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos CEDES, 20(50), 47-70.). Tal modelo de estudo pressupõe, portanto, uma análise que atente para a observação minuciosa das ações e enunciados dos sujeitos de pesquisa.

Análise e discussão dos resultados

A partir da análise das informações construídas ao longo das duas oficinas lúdicas, foram elaboradas cinco categorias de análise relacionadas aos episódios de faz de conta ocorridos ao longo da pesquisa. Esses resultados foram organizados conforme a Figura 1.

Figura 1
Organização de resultados da pesquisa de acordo com a oficina, categoria de análise e episódios.

Oficina 1 - Dando vida aos personagens favoritos da TV

Na primeira oficina, o uso das máscaras pelas crianças teve por objetivo instigar a realização de situações de faz de conta que aludissem ao universo televisivo, por meio da assunção de papéis que representavam personagens da TV. A partir da utilização da máscara desenvolveram-se diferentes enredos lúdicos. Essa oficina dividiu-se em duas etapas: a produção de máscaras de personagens de TV pelas crianças e o espaço para a livre interação lúdica com o objeto confeccionado, com o intuito de analisar os sentidos que elas constroem acerca da mídia televisiva em momentos espontâneos. Com base na análise das informações, foi possível definir duas categorias temáticas: (a) o corpo em movimento como forma de poder; e (b) a máscara extensora do corpo e mediadora da imaginação.

a) O corpo em movimento como forma de poder

Episódio 1: Os poderes da Mulher Maravilha

As crianças estão reunidas no centro da sala de aula, usando máscaras que produziram na primeira oficina com ajuda da pesquisadora. Cada rosto estampa um personagem da televisão: João de Goku, Caio de Robin Hood, Diana de Mulher-Maravilha, Helena de Mulan, Lucas de Ninjago, Flora de Betina Valentin. Com sua máscara de Mulher-Maravilha e de mãos fechadas, Diana suspende os braços em forma de “x” na altura do peito; em seguida, estica-os para baixo, um para cada lado. Os colegas, no entanto, não prestam atenção em sua performance.

- Vocês sabem, né, que quando a Mulher-Maravilha faz assim - repete o gesto supracitado - tem muita força - diz Diana ao grupo.

- É por causa do... - tenta explicar João, apontando para o braço.

- É por causa do negócio de ferro dela - completa Diana, referindo-se ao bracelete da heroína - Mas quando eu fiz assim - reproduzindo mais uma vez o movimento - você não foi para trás.

No papel de Goku, João se dirige ao outro lado da sala, e Diana o segue. Ele vira de costas e, ao encontrá-la, realiza um gesto típico ao do personagem de Dragon Ball: alonga horizontalmente os braços (um em cima e outro embaixo), abrindo as mãos, como se estivesse lançando poder contra sua parceira do faz de conta.

- Aaaaaa... - grita, como forma de indicar força para projetar o poder.

Para se defender do ataque, Diana cruza novamente os braços, mantendo-os nessa posição enquanto João direciona o poder a ela.

Ao assumir o papel de Mulher-Maravilha, por meio da realização de gestos que indicam ora ataque ora defesa, Diana traz para o faz de conta referências simbólicas de ferramentas poderosas utilizadas pela heroína: os braceletes. De acordo com a perspectiva histórico-cultural, a partir do jogo de papéis, a criança é capaz de produzir, em sua consciência, imagens de objetos que não se fazem presentes na experiência material (Luria, 1991Luria, A. R. (1991). A atividade consciente do homem e suas raízes histórico-sociais. In Curso de psicologia geral (pp. 71-84). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Silva 2012Silva, D. N. H. (2012). Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus.). Para diferentes situações, Diana emprega, de forma também diferenciada, o bracelete. A partir de gestos diferentes com o corpo, Diana amplia a possibilidade do poder representado pelo bracelete da heroína, que, no faz de conta, deixa de servir somente como um mecanismo de ataque, para se transformar em um instrumento de defesa (Munarim, 2007Munarim, I. (2007). Brincando na escola: o imaginário midiático na cultura de movimento das crianças. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.; Siqueira, Wiggers, & Souza, 2012Siqueira, I., Wiggers, I., & Souza, V. (2012). O brincar na escola: a relação entre o lúdico e a mídia no universo infantil. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 34(2), 313-326.). Diana, por conseguinte, transforma a função do objeto utilizado pela personagem da Mulher-Maravilha, de modo a atender às demandas específicas que surgem no desenrolar da brincadeira.

Há, nesse episódio, uma reconfiguração da função do objeto pela criança, em razão de ele ser compreendido como nova possibilidade de brinquedo na composição do faz de conta, ou seja, o objeto se adéqua à brincadeira. Cabe ressaltar que, ao imitarem ações típicas dos personagens os quais representam no faz de conta, Diana e João não desempenham mera função mimética, pois a brincadeira consiste em uma atividade criadora, ou seja, nela produz-se algo novo, decorrente da recombinação e reelaboração de elementos abstraídos do real (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática.; Mozzer & Borges, 2008Mozzer, G., & Borges, F. T. (2008). A criatividade infantil na perspectiva de Lev Vigotski. Inter-ação, 33, 1-14.).

Embora a máscara tenha sido utilizada como um recurso simbólico importante para dar início às diversas cenas de faz de conta no decorrer da primeira oficina, o corpo em movimento aparece como elemento mediador principal na relação entre a criança e aquilo que ela assiste na TV. Pelo corpo, concretizam-se formas da criança se relacionar com o personagem televisivo; cada movimento corporal reveste-se de significação. O corpo é lugar da expressão e da representação de papéis. Conforme estudado por Souza e Silva (2010Souza F. & Silva D. (2010). O corpo que brinca: recursos simbólicos na brincadeira de crianças surdas. Psicologia em Estudo, 4(15), 705-712.), no jogo simbólico, a assunção de papéis envolve a utilização da palavra e do corpo, por meio dos quais são revelados os sentidos que a criança, na relação com o outro, produz acerca de suas experiências cotidianas, como aquelas travadas com a mídia televisiva.

Nesse sentido, o corpo em movimento compõe a significação principal das cenas de faz de conta que se desenvolveram ao longo da primeira oficina. A partir de novos gestos que surgem nas situações lúdicas, as crianças ampliam as ações típicas de seus personagens favoritos da televisão, revelando, assim, as concepções que possuem deles.

b) A máscara extensora do corpo e mediadora da imaginação

Episódio 2: Mulan x Goku

O sinal do fim do turno havia tocado, todos os alunos já tinham ido embora, com exceção de Helena e João, que, já sem usarem máscaras, iniciaram uma nova cena de faz de conta.

No meio da sala, Helena volta-se para seu colega, chamando-o para a brincadeira:

- Estou representando a cultura chinesa... Sou a Mulan! Iiiiá... - anuncia, no papel de Mulan, fazendo gesto com o braço que remete a golpes de karatê.

- E eu sou o Goku - diz João, tentando se defender de Helena, colocando os braços em frente ao rosto.

Após o ataque de Helena, João recompõe a postura, gira e movimenta os braços em direção a ela:

- Iááá!

O faz de conta se inicia pela fala de Helena apresentando-se a João. Além de se identificar como Mulan, Helena justifica seu propósito para participar da luta contra seu colega: “Estou representando a cultura chinesa... Sou a Mulan!”. Assim, ela traz para a brincadeira mais do que suas percepções acerca das características físicas que qualificam o papel da heroína - as quais são expressas em suas ações; por meio de sua fala, Helena revela também traços da personalidade de Mulan, demarcando o lugar de onde essa personagem fala.

Pela máscara a criança assume a personalidade do personagem que ele representa, conforme se verifica o uso do objeto pelo ator, no teatro ou no cinema. Esse uso leva à identificação do sujeito com seu personagem de tal maneira que ele já não consegue mais se desfazer dela, transformando-se na imagem representada (Chevalier & Gheerbrant, 2005Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (2005). Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio.). A identidade do personagem materializa-se na máscara, propiciando que as crianças atuem no campo simbólico, onde manifestam, pelo corpo e pela fala, suas percepções acerca da representação das diferentes características que constituem tal personagem. Em outras palavras, assumir papéis por meio da máscara configura-se como um recurso visual que, articulado aos movimentos corporais, traz elementos da realidade para a composição da atividade lúdica (Silva, 2006Silva, D. N. H. (2006). Imaginação, criança e escola: processos criativos na sala de aula. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP., 2012Silva, D. N. H. (2012). Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus.). Nesse sentido, o artefato constitui-se como um recurso simbólico mediador entre a imaginação e a realidade.

A partir dos dois primeiros episódios, observa-se como a relação entre criança e mídia se delineia no universo lúdico. Esse diálogo pode ser mediado de diversas maneiras; máscaras de personagens de desenhos, por exemplo, são instrumentos motivadores para novos episódios de faz de conta. Além dos objetos concretos, os elementos midiático-televisivos em geral - personagens, enredos, peripécias, cenários - são utilizados pela criança como referência simbólica na composição de seu repertório imaginativo.

Oficina 2: Luz, câmera, (inter)ação: a produção de um telejornal

A segunda oficina, por sua vez, teve como objetivo o desenvolvimento de um programa de TV, como forma de analisar aspectos referentes aos modos como as crianças constroem, por meio de situações discursivas, reflexões acerca de suas experiências com a mídia televisiva. Para tanto, como forma de preparação para a atividade lúdica, estabeleceu-se uma roda de diálogo, em que a pesquisadora buscou problematizar com as crianças meios pelos quais nós, espectadores, podemos nos comunicar com a mídia televisiva.

Identificamos três categorias emergentes nessa oficina: (a) a percepção de si como comunicador midiático; (b) o conhecimento das crianças sobre a produção de um telejornal; e (c) a transformação dos significados do jornal: das catástrofes ao Natal.

a) A percepção de si como comunicador midiático

Episódio 3: A gente se comunica com a TV fazendo vídeos

As crianças estão sentadas em suas carteiras, organizadas de forma agrupada, para o início da segunda oficina. Depois de retomar os acontecimentos da oficina anterior, a pesquisadora questiona a turma:

- A TV se comunica com a gente, e como podemos nos comunicar com a TV?

- A gente pode se comunicar com a TV fazendo vídeos - responde João.

- Fazendo vídeos para mandar pra televisão, igual tem no jornal. As pessoas fazem vídeos no celular e mandam pro jornal - complementa Flora.

- Vídeos de quê? - questiona a pesquisadora.

- Vídeo que mostra chuva... quando tá chovendo muito e destrói algum lugar - responde Beto.

O episódio 3 tem como partida o questionamento da pesquisadora sobre o modo como nós, telespectadores, podemos nos comunicar com a TV. Tal problematização ancora-se na perspectiva teórica de Mikhail Bakhtin (1895-1975), que parte da premissa de que toda e qualquer produção estética faz-se numa relação entre produtor, obra e espectador (Pereira, 2009Pereira, R. M. R. (2009). Infância e publicidade: uma pesquisa-intervenção no contexto escolar. Cadernos de Educação, 34, 265-288.). Dentro da perspectiva bakhtiniana, as produções humanas pressupõem, portanto, um processo dialógico (Bakhtin, 2003Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes., 2010Bakhtin, M. (2010). Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec.).

Para além de espectadores e receptores de imagens midiáticas, as crianças apresentam a compreensão que possuem acerca da possibilidade de sua participação no universo televisivo como produtores de vídeos que podem ser exibidos na TV. Essa possibilidade considerada pelas crianças de se colocar no papel de produtores de imagens revela a consciência que elas têm de poder transitar e ocupar outros lugares na sociedade, a exemplo, como possível comunicadora no espaço midiático. A ação de produzir vídeos cotidianos e enviá-los para televisão, mais especificamente ao telejornal, é vista pela criança como uma forma de estabelecer uma comunicação com a mídia televisiva.

b) O conhecimento das crianças sobre a produção de um telejornal

Episódio 4: Construindo um programa: o que tem no telejornal?

Diante das sugestões dadas pelas crianças sobre os possíveis programas televisivos que poderiam produzir - conforme um dos objetivos da segunda oficina - a pesquisadora propôs fazer uma votação, e a maioria optou pelo telejornal. A partir desse resultado, a pesquisadora solicita às crianças:

- Eu quero que agora todo mundo pense o que que a gente precisa para fazer um jornal.

- Uma câmera e aquele negócio lá que eles colocam pra ouvir, tipo um negócio assim - diz João, fingindo de conta que o lápis é o microfone, levantando-o para cima como se fosse um microfone suspenso.

- Ah, um microfone! - entende a pesquisadora.

- Duas mesas... pra gente sentar - complementa Diana, portando-se de forma ereta em sua cadeira.

- Isso aí - concorda a pesquisadora - E quem fica atrás da mesa? - pergunta a pesquisadora.

- Os jornalistas - responde Diana.

- Uma menina e um menino - completa Bianca.

- E o microfone que os repórteres usam. - diz Diogo.

- E aquele microfone que tem um suportezinho e aí faz assim - Beto descreve o microfone de mesa por meio de gestos: faz a forma de um triângulo com as duas mãos em cima da mesa, representando o suporte; em seguida, unindo os dedos, levanta uma das mãos verticalmente, curvando-a depois até que se aproxime de sua boca - e tem aquele negocinho mini - fazendo um círculo com o dedo para indicar a ponta arredondada do microfone.

- É... Tem esse microfone também. Microfone é importante! - afirma a pesquisadora.

- Microfone, uma mesa e a música do SBT2 2 Sistema Brasileiro de Televisão - rede de televisão comercial aberta brasileira. - responde Carolina.

- Muito bem, Carolina! Tem mesmo uma música. Quando o jornal começa tem aquela musiquinha... E como é a música do SBT? - pergunta a pesquisadora.

Carolina diz ter esquecido, e outros alunos cantarolam, de diferentes formas, o que seria a vinheta de abertura de um telejornal.

Para a concretização da proposta de criar um telejornal, a pesquisadora primeiramente instiga a discussão com base em perguntas direcionadas à estrutura material e ao conteúdo que caracterizam o programa televisivo escolhido pela turma: o telejornal. Tal questão tem por eixo a perspectiva marxista de que o conhecimento dos modos de produção possibilita um posicionamento crítico sobre eles (Marx, 1983Marx, K. (1867/1983). “A mercadoria” In O Capital (Cap. I, pp. 165-208). São Paulo: Abril Cultural. Original publicado em 1867.). Em outras palavras, conhecer os processos envolvidos na produção midiática implica assumir um papel para além de espectador.

Ao tratar dos aspectos envolvidos no funcionamento do programa televisivo, deslocamo-lo de seu lugar habitual, de modo a estabelecer uma nova forma de relação com esse objeto. Convidadas, pela pesquisadora, a olhar de outro ângulo, ou seja, para o processo de organização do telejornal (seus instrumentos e conteúdos), as crianças aproximam-se da realidade midiática, dando a ela outros sentidos, alterando-a. Esse exercício permite que a mídia televisiva seja compreendida em sua dialogia, como produto que pressupõe um acabamento estético com o qual as crianças, como espectadoras, se relacionam. (Bakhtin, 2003Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes., 2010Bakhtin, M. (2010). Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec.; Pereira, 2009Pereira, R. M. R. (2009). Infância e publicidade: uma pesquisa-intervenção no contexto escolar. Cadernos de Educação, 34, 265-288.).

Assim, no que tange ao conhecimento dos elementos que compõem a estrutura material de um telejornal, as crianças citam diversos equipamentos necessários ao funcionamento do programa. Embora tenham se esquecido ou não saibam o nome, utilizam-se de gestos para explicar à pesquisadora e aos colegas o objeto ao qual se reportam (Leontiev, 2014Leontiev, A. N. (2014). Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In L. S Vigotskii, A. R. Luria, & A.N. Leontiev (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (pp. 119-142). São Paulo: Ícone.; Silva, 1998Silva, D. N. H. (1998). O brincar e a linguagem: um estudo do jogo do “faz de conta” em crianças surdas. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP., 2002Silva, D. N. H. (2002). Como brincam as crianças surdas. São Paulo: Plexus., 2012Silva, D. N. H. (2012). Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus.; Vigotski, 2007Vigotski, L. S. (2007). A formação social da mente. São Paulo: Martins Editora.). Dessa forma, as crianças se referem a objetos que configuram o cenário de um telejornal como: microfones, a câmera, a mesa, cuja imagem está, para elas, associada à presença de dois jornalistas - um homem e uma mulher - e a vinheta de abertura.

Por meio do diálogo com as crianças, a pesquisadora avança na discussão sobre telejornal, buscando ampliar e problematizar a relação delas com os elementos midiáticos. Para tanto, além dos aspectos técnicos, com intuito de saber como as crianças se relacionam com o conteúdo do programa escolhido, a pesquisadora lança a pergunta:

- E o que que passa no jornal?

- Reportagens! - responde João.

- Notícias! - diz Diogo.

- Notícias sobre o quê? - indaga a pesquisadora.

- Passa chuva, que a chuva destrói as casas... Também passa as pessoas que morrem - menciona Carolina.

- Clima de tempo - diz Beto.

- Assalto! - complementa Diogo.

- Sumiço de pessoas - responde Bianca.

- Sumiço de pessoas e pessoas que morrem a gente entrevista as mães, a família - completa Diana.

- Tem uma vizinha minha na minha vizinhança que ela já foi assaltada - começa a contar Carolina - O telefone dela tava aqui - aponta para a cintura - e quando o ladrão abriu a bolsa não tinha (o telefone). Com a minha mãe aconteceu a mesma coisa: só tinha o documento lá dentro da bolsa; aí o homem que roubou a minha mãe, lá em cima, jogou a bolsa dela no mato. E meu pai foi lá e pegou pra minha mãe. E também apareceu no jornal uma vizinha minha, mas ela mora perto de um mercado.

- E o que aconteceu? - indaga a pesquisadora.

- Um homem tava disfarçado de namorado dela, mas não era namorado dela.

- E isso você viu onde?

- No SBT. - responde Carolina.

- Aí ela foi morta... Jogou o corpo dela no mato. Achou o corpo dela no mato. E aí as formigas já tinham comido o corpo dela, ficou só o osso.

- E o que mais que passa no jornal? - pergunta a pesquisadora.

- Violência na escola... contra a professora - lembra Beto.

As primeiras respostas das crianças ao questionamento sobre o conteúdo do telejornal são mais diretas: chuvas que destroem casas, assalto e sumiço de pessoas. No decorrer da conversa, a violência vai se delineando como tema principal, contribuindo para a compreensão de que, para as crianças, a imagem do telejornal está ligada à ação de divulgar ao público-espectador notícias relacionadas a episódios violentos e a desastres.

Como um campo de disputa simbólica, “a mídia televisiva tanto cria quanto é produto das representações e imaginários sociais da e sobre a violência, apresentando-se como um elemento essencial na construção de identidades sociais da atualidade” (Morales & Aquino, 2013, p. 7Morales, L. & Aquino, J. (2013). Narrativas do real: a construção social da violência urbana na mídia brasileira. In XXIX Congresso Latino Americano de Sociologia, Anais... Santiago: Congresso Brasileiro de Sociologia. Recuperado de http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/21561/1/2013_eve_lpmorales.pdf
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/...
). De fato, a circulação cada vez mais intensa de imagens e discursos sobre violência, pelos telejornais, reflete nas experiências cotidianas das crianças, marcando significativamente a formação da sua subjetividade. Nesse sentido, observa-se no episódio 4 uma longa lista de exemplos de notícias trágicas. Como sujeitos que se relacionam de maneira ativa com as produções midiáticas, os enunciados das crianças refletem tais conteúdos alimentados (ou não) e propagados (ou não), em forma de notícias diárias, pelos telejornais.

Cabe ressaltar que suas falas sobre os assuntos tratados em um telejornal não se constroem apenas com base naquilo que viram e ouviram diretamente na televisão. Seja em casa, no parque, na escola ou em outros espaços que fazem parte de seu cotidiano, a criança, por meio de sua relação com o outro, interage de maneira também indireta com os mais variados discursos e imagens difundidos pela mídia televisiva.

Além das respostas sobre o conteúdo dos telejornais, ao exemplificar algum tipo de notícia, observa-se, no episódio 4, a construção de narrativas pelas crianças. A partir do exercício de narrar acontecimentos noticiados, as crianças vão revelando suas percepções sobre os temas que veem em telejornais.

Assim como a brincadeira, a narrativa se configura como uma importante atividade criadora no desenvolvimento infantil (Girardello, 2011Girardello, G. (2011). Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posições, 22(2), 72-92.). Ao narrar uma história, a criança revela modos singulares de perceber o mundo por meio da palavra atrelada à expressão corporal. Orientada pela imaginação, além de aspectos memorizados da realidade, a narrativa se dá pelas novas combinações desses elementos do real, onde germinam novas criações.

Dessa maneira, ao narrar sobre uma reportagem que disse ter visto no canal do SBT, Carolina parte de acontecimentos comumente noticiados em telejornais: assalto e assassinato. Para narrar o acontecimento, Carolina toma como referência simbólica as cenas fortes que permeiam seu imaginário sobre notícias de cunho violento, como forma de garantir verossimilhança ao que, para ela, faz parte do conteúdo de um telejornal. No plano da imaginação, tais imagens configuram-se como elementos essenciais para a atribuição de sentido à narrativa, ou seja, elas servem como recurso que ressaltam a violência.

Por meio de sua experiência com imagens e textos midiáticos, elas (re)contam histórias inéditas sobre temas amplamente divulgados em telejornais. A partir desses diálogos travados entre a pesquisadora e as crianças, em que estão em pauta reflexões sobre os elementos e os conteúdos que compõem o universo da televisão, as crianças expandem sua relação com esse aparelho midiático, indo além de sua posição como espectadoras.

c) A transformação dos significados do jornal: das catástrofes ao Natal

Episódio 5: Jornal Natal

No episódio 5, observamos a criação de um faz de conta de telejornal. O objetivo de desenvolver tal atividade reitera a ideia discutida no subtópico anterior de atuarmos em um lugar diferente daquele ocupado pelo telespectador, assumindo o papel de produtor de um programa de TV.

Na roda de diálogo que antecedeu a criação lúdica, as crianças propuseram nomes para o programa de notícias, decidindo a maioria por Jornal Natal. Cumpre ressaltar que a sugestão e a escolha do nome podem ser explicadas pelo intenso envolvimento das crianças em programações natalinas na escola, à época da realização da pesquisa de campo. A escolha do título do telejornal - e consequentemente de seu tema - chamou a atenção por se tratar de um programa cujo desenvolvimento se daria por meio de notícias alegres, em contraste com o que se verificou no episódio anterior. Nesse sentido, a criação lúdica de um telejornal voltado para notícias natalinas surge como uma contraproposta àquele telejornal que as crianças relataram como espectadoras.

As crianças desenvolveram diversas cenas lúdicas em torno da temática de Natal. De início, ao serem lembrados pela pesquisadora acerca da presença de uma vinheta de abertura no telejornal - conforme mencionado por Carolina na roda de diálogo -, as crianças trazem, para o momento lúdico, uma música que ensaiavam para apresentação de final de ano na escola. Suas experiências cotidianas estão, de fato, estreitamente ligadas aos processos criadores que emergem durante a atividade lúdica (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática.; Silva, 2012Silva, D. N. H. (2012). Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus.). Após essa abertura, a pesquisadora direciona a câmera a João e Yuri, que atuam como âncoras do jornal:

- Bom dia! Aqui é o Jornal Natal, sejam bem-vindos! Aqui quem fala é o João e hoje eu trouxe o jornalista Yuri. E o que a gente vai falar hoje... Entrevista de Natal - anuncia João, com os braços em cima da carteira e os dedos entrecruzados.

- Vamos falar de notícias de Natal, com muita felicidade. Vou chamar agora os jornalistas pras entrevistas - completa Yuri com sorriso no rosto.

- Bem, e cadê nossos jornalistas e as pessoas que serão entrevistadas? - indaga a pesquisadora para o resto da turma, que está em frente à TV de papelão.

As crianças se organizam para decidirem quem irá assumir o papel de repórter e de entrevistado. Como a maioria quer entrevistar, a pesquisadora sugere revezamento entre ambos os papéis. Depois de negociarem, Diana e Bianca começam a entrevista para o jornal:

- A gente está no clima de Natal, como o João e o Yuri falaram. Eu vou entrevistar a Bianca, que vai falar um pouquinho sobre a árvore de Natal do Park Shopping. - inicia Diana, no papel de repórter.

- É porque a árvore de Natal do Park Shopping ela é grande, mas não é de verdade, porque ela é toda branca e, quando a noite chega, ela acende... E tem duas hienas que ficam iluminadas de amarelo.

- Legal! Essa foi a reportagem sobre a árvore de Natal do Park Shopping com a repórter Diana - comunica Diana, encerrando a entrevista.

Ao anunciarem o início do programa, chama a atenção a fala e expressão de Yuri. Diferente do que as crianças relataram estar habituadas a ver em telejornais - cujas manchetes anunciam majoritariamente enchentes, assalto, assassinato etc. -, Yuri revela que o tema das notícias será inteiramente voltado ao Natal. Além de enfatizar que informa com muita felicidade o assunto do jornal, sua expressão facial demonstra contentamento, divergindo do tom de seriedade característico do universo jornalístico. Nesse clima de alegria, as demais crianças criam as reportagens para o jornal por meio de entrevistas.

De acordo com a perspectiva histórico-cultural, o faz de conta se constitui como espaço para a criança sentir, pensar e vivenciar novas realidades, diferentes daquelas que a cerca. Nesse sentido, a escolha das crianças por uma temática que valoriza informações alegres, em detrimento do que estão habituadas a ver em telejornais, parece nos mostrar uma tentativa de fuga de uma realidade marcada pela banalidade da tragédia. No faz de conta, a criança atua de maneira diferente do seu habitual. A imaginação possibilita um desprendimento do campo perceptivo-concreto; é o lugar de flexibilização de significados. No episódio narrado, vemos uma contraproposta performada pelas crianças dos significados que cercam seu imaginário sobre o conteúdo característico de um telejornal.

De tal forma, observa-se no telejornal lúdico a transformação pelas crianças dos significados do programa de notícias. Por meio da imaginação, o corpo e a palavra recriam novos conceitos, retirando o telejornal de seu lugar-comum à medida que constroem um programa constituído apenas por notícias boas, em contraposição ao que elas costumam ver na TV. Ao fingirem de conta que são jornalistas anunciando e desenvolvendo reportagens sobre o Natal, as crianças compreendem o telejornal como um espaço também propício à transmissão de informações positivas.

Considerações finais

Como se dão as relações entre a produção midiática televisiva e as atividades criadoras infantis? O que as crianças dizem a respeito dos programas aos quais assistem na TV? Orientada por essas indagações, a presente pesquisa propôs analisar, à luz dos aportes teóricos da perspectiva histórico-cultural, os sentidos produzidos pela criança sobre a mídia televisiva a partir do contexto do faz de conta. Por meio de um estudo empírico em uma escola pública com uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental em que foram feitas observações de situações lúdicas espontâneas das crianças e oficinas lúdicas com temas referentes ao universo midiático-televisivo, foi possível a construção de categorias de análise referentes aos diferentes modos que as crianças expressam, em suas atividades criadoras, os sentidos que possuem sobre a mídia televisiva.

As informações construídas junto às crianças nas oficinas lúdicas propostas pela pesquisadora revelaram o protagonismo das crianças na produção de sentidos sobre universo midiático-televisivo. O uso de máscaras de personagens de TV levou as crianças à criação de cenas lúdicas de ação e aventura, onde o corpo - por meio da reinvenção de gestos característicos desses heróis e heroínas do universo midiático - mostrou-se protagonista nas situações de embate entre os participantes da brincadeira. Ao utilizarem diferentes movimentos como forma de representar os poderes dos personagens televisivos que assumem, as crianças ampliam suas possibilidades de ação no faz de conta. De fato, no jogo de papéis, suas ações não estão restritas à mera reprodução das cenas de desenhos e filmes que viram na televisão.

Emergiu também, nas falas das crianças, a complexa concepção que elas possuem sobre sua relação dialógica com a mídia: de acordo com elas, ao produzirmos e enviarmos vídeos para programas de TV, estabelecemos uma comunicação com o universo televisivo. As crianças demonstraram, portanto, a possibilidade de transitar por diferentes lugares sociais: além de espectadoras, as crianças consideram a possibilidade de serem comunicadoras, produtoras de vídeos e de cenas de faz de conta construídas a partir de suas experiências cotidianas com as imagens e discursos midiáticos.

Diante dessa reflexão, a criação lúdica de um telejornal surgiu como uma proposta de sairmos da posição de telespectador para assumirmos o papel de produtor de um programa de televisão. Além de demonstrarem conhecer os instrumentos necessários para a concretização do telejornal, ao exporem os conteúdos comumente abordados por esse tipo de programa, as crianças revelaram a concepção que possuem desse gênero de programa. Com base em suas falas, a violência e os desastres naturais são notícias que constituem o âmago do telejornal. Em contrapartida, a ideia de elaborarmos um programa baseado em notícias natalinas emergiu como uma contraproposta ao conteúdo que as crianças estão habituadas a assistir. As crianças ressignificam, em suas falas e em seus gestos, a ideia do telejornal: em vez de informar notícias negativas, o programa é espaço para o compartilhamento de reportagens alegres.

A investigação das informações, construídas à luz da perspectiva histórico-cultural, revelou que a relação entre criança e mídia se delineia no universo lúdico. Por meio de suas atividades criadoras, bem como de suas reflexões acerca da estrutura e do conteúdo de programas transmitidos pela TV, a criança estabelece uma relação dialógica com a mídia, deixando de ser mera consumidora, espectadora e receptora passiva de uma relação unilateral. Assim, ela atua como autora de suas atividades lúdicas e, em sentido mais amplo, intervém como coautora nas construções sociais. Nesse sentido, apontamos para a necessidade de pesquisas que se proponham pensar novos métodos de ensino que ampliem os espaços para os diálogos das crianças com a mídia, não apenas televisiva.

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Notas

  • 1
    O cumprimento de todas as etapas da pesquisa de campo foi embasado e orientado por princípios éticos que regem a pesquisa realizada com seres humanos, a fim de respeitar as leis de proteção à criança em sua rotina escolar.
  • 2
    Sistema Brasileiro de Televisão - rede de televisão comercial aberta brasileira.
  • Consentimento de uso de imagem: Foi obtido o consentimento escrito dos participantes e de seus responsáveis por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
  • Aprovação, ética e consentimento: O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (CAAE: 71807417.3.0000.5540).
  • Financiamento: Bolsa de mestrado CAPES/DS.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2018
  • Revisado
    22 Fev 2020
  • Aceito
    20 Abr 2020
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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