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POLÍTICAS DE IDENTIDADE NO CONTEXTO DA DISCUSSÃO RACIAL: A ACADEMIA NEGRA NO BRASIL

POLÍTICAS DE IDENTIDAD EN EL CONTEXTO DE LA DISCUSSION RACIAL: LA ACADEMIA NEGRA EN BRAZIL

IDENTITY POLICIES IN THE CONTEXT OF RACIAL DISCUSSION: THE BLACK ACADEMY IN BRAZIL

Resumo

O artigo busca a construção de um quadro teórico de análises acerca da situação dos negros no espaço acadêmico brasileiro, questionando o sentido de produção do processo identitário desses sujeitos, tendo em vista sua configuração em meio a uma comunidade hegemônica de valores etnocêntricos. Tendo a Teoria da Identidade como pressuposto fundamental, defendemos a tese da impossibilidade da discussão da carência de negros no sistema docente brasileiro quando unicamente guiada pelos pressupostos do mérito e qualificação pessoais, tendo em vista as evidências dos efeitos da transmissão intergeracional da pobreza aliados à discriminação racial e de uma lógica guiada pela sustentação dos privilégios a determinados grupos hegemônicos. Finalmente, corroboramos a necessidade da realização - de fato, e não só de direito - da proposta de ações afirmativas implementada pela Lei 12.990, levando-se em consideração a carência de concursos realizados nessa perspectiva.

Palavras-chave:
identidade; professores universitários; relações étnico-raciais; teoria crítica

Resumen

El artículo intenta construir un resumen teórico del análisis de la situación de los negros en el espacio académico brasileño, cuestionando el sentido de la producción del proceso de identidad de estos sujetos, basado en el entorno de los valores etnocéntricos de la comunidad hegemónica. Teniendo la teoría de la Identidad como un presupuesto fundamental, defendemos la tesis de la imposibilidad de discusión de la falta de negros en el sistema de enseñanza brasileño cuando sólo guiados por presupuestos personales de méritos y calificación dada la evidencia de los efectos de la transmisión de la pobreza junto a la discriminación racial y la lógica guiada por la defensa de sus privilegios a ciertos grupos hegemónicos. Por último, se evidencia la necesidad de la realización (y no sólo los derechos) de la propuesta de acción afirmativa implementadas por la Ley 12.990, teniendo en cuenta la falta de competencia que se celebra en esta perspectiva.

Palabras clave:
identidad; académicos; relaciones étnico-raciales; teoría crítica

Abstract

The article seeks to build a theoretical framework for analysis of the situation of blacks in Brazilian academic space, questioning the sense of production of the identity process of these subjects in view of their setting amid a hegemonic community of ethnocentric values. Taking the Theory of Identity as a fundamental assumption, we defend the thesis of the impossibility to discuss the shortage of blacks in Brazilian teaching system guided only by personal assumptions of merit and qualification, given the evidence of the effects of intergenerational transmission of poverty coupled with racial discrimination, a scenario that privileges certain hegemonic groups. Finally, it corroborates the need to apply the proposed affirmative action implemented by Law 12,990, considering the lack of public tenders in this perspective.

Keywords:
identity; academics; ethnic-racial relations; critical theory

Introdução: pressupostos teóricos fundamentais

Pretendemos, neste texto, realizar a discussão complexa e multifacetada das identidades no contexto das trajetórias de negros e acadêmicos negros brasileiros, a partir de reflexões e resultados concretizados durante uma pesquisa de doutoramento, sem que o ato de nos interrogarmos sobre a atualidade dos conceitos e as articulações teóricas aqui tecidas nos exijam um “aprisionamento aos sectarismos dogmáticos” em relação aos autores revisitados, fazendo alusão às discussões implementadas por Carone (2007) e Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.).

Acreditamos que as reflexões de Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.) e Carone (2007) possam convergir nesse sentido. O primeiro autor afirma com vigor seu posicionamento epistemológico na elaboração de um conceito de identidade profundamente inovador em sua Tese de Doutoramento (Ciampa, 1987), que aponta a histórica transformação teórico-metodológica da Psicologia Social brasileira disparada a partir da década de 70. As reflexões por ele utilizadas em sua construção conceitual originam-se de diferentes autores, sem que elas exijam “uma filiação, no sentido de uma obediência obrigatória; [a relação estabelecida pelo autor] é uma atração que não exige fidelidade [e] (por isso não deve ser cobrada)” (Ciampa, 1987, p. 150). Na mesma linha de pensamento, Carone (2007) utiliza-se da expressão “aprisionamento aos sectarismos dogmáticos”, defendendo a diversidade das contribuições teóricas na conformação de uma Psicologia Social Crítica a partir da década de 70, sem que a utilização dos conceitos exija necessariamente uma adesão incondicional ao pensamento dos autores, pois o que se buscava no momento da construção de uma Psicologia Social renovada em solo brasileiro era uma emancipação em termos teóricos e metodológicos, ou seja, um pensar próprio.

Partindo desse posicionamento, o que se busca neste material é desenvolver o exercício da crítica a partir de um interesse emancipatório, exercício elaborado, sobretudo, através do desenvolvimento e das implicações do conceito de razão - bem como da desrazão - no contexto de uma Teoria Crítica da Sociedade. Isso significa buscar a construção de um quadro teórico de análises que contemple tanto as estruturas sociais de dominação quanto os processos de superação dessa mesma realidade (Saavedra, 2007Saavedra, G. A. (2007). A teoria crítica de Axel Honneth. In J. Souza & P. Mattos (Orgs.), Teoria crítica no século XXI (pp. 95-112). São Paulo: Annablume.), ou seja, a sociedade, os limites e possibilidades à condição emancipatória.

Identidade como metamorfose e a construção de um sintagma

Em sua tese de doutorado, intitulada A estória do Severino e a história da Severina, Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.) desenvolveu uma concepção de identidade que rompeu com toda uma tradição teórica essencialista da psicologia, a qual se reduzia a uma compreensão estática e substantiva da questão. Realizando uma crítica às teorias mais conservadoras, o autor defende a tese da identidade enquanto metamorfose, processo que encerra um caráter de construção permanente, no qual o indivíduo é simultaneamente produto e produtor da realidade na qual está inserido.

Aplicando o raciocínio de Ciampa (1984Ciampa, A. C. (1984) Identidade. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia Social: o homem em movimento. (pp. 58-75). São Paulo: Brasiliense . ) à questão identitária, pensamos a identidade como um processo dialético, contínuo e dinâmico, sobre o qual indivíduo organiza suas ações em torno de construções articuladas sobre si mesmo e sobre suas referências de mundo, uma infindável transformação (Ciampa, 1987). Acreditamos que o indivíduo é mediado pelas relações sociais e que suas ações (como singularidade) podem refletir a concretização de um todo (a sociedade), num processo fundamentalmente contraditório que aponta para um direcionamento de influências mútuas entre ambos os fatores (Ciampa, 1984). E como “as interações sociais são processos constitutivos das identidades” (Ferreira, 2002Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade , 14(1), 69-86., p. 19), no caso dos sujeitos negros, as vivências coletivas são essenciais ao desenvolvimento de valores positivos ou negativos em relação às próprias especificidades raciais.

Dessa maneira, tentar compreender os sujeitos através desses pressupostos implica acompanharmos as constantes mudanças, as diferentes representações que podem conformar tanto a expressão do movimento de alterização quanto a impressão do mesmo. Além de demarcarmos a centralidade da discussão identitária neste artigo, assim como Lima (2009Lima, A. F. (2009). Sofrimento de indeterminação e reconhecimento perverso: um estudo da construção da personagem doente mental a partir do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo., p. 112) “acreditamos que Ciampa conseguiu propor uma Teoria de identidade”; por isso mesmo buscamos pensar com o autor, e não analisar o seu trabalho à luz de paradigmas prontos (Carone; s/d, grifos nossos)1 1 Carone, I. (s/d). Análise epistemológica da Tese de Doutoramento de Antônio da Costa Ciampa. Mimeo. .

Para Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 184), a alterização no processo identitário diz respeito a “uma mudança significativa - um salto qualitativo - que resulta de um acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais”. A mesmice ou impressão do mesmo no processo identitário ocorre quando a metamorfose se cristaliza em seu aspecto representacional: é má-infinidade do processo, no sentido de não superação das contradições. Situação que se conforma numa “vida-que-nem-sempre-é-vivida” (Ciampa, 1987, p. 127), através da representação de uma determinada personagem que, assimilada e re-posta, torna-se um produto e aparece como dado.

Podemos perceber em algumas das várias facetas do processo identitário do negro brasileiro a possibilidade de sujeitos que repõem uma identidade pressuposta, sujeitos presos a um personagem que “frequentemente se torna um fetiche controlando o ator” (Ciampa, 1987Ciampa, A. C. (1987). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 158); personagem que reproduz o social e aparece como dado.

Esses aspectos são de extrema importância para que possamos refletir sobre a natureza das identidades, pois essas se constituem a partir de referenciais edificados nas relações do indivíduo com o outro, e vice-versa. Nesse processo de articulações constantes, questionamos o sentido (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP.) de produção do processo identitário de negros, tendo em vista sua configuração em meio a uma comunidade hegemônica de valores predominantemente etnocêntricos.

De acordo com o autor, a simples descrição da configuração da identidade social como processo de metamorfose humana já não é suficiente para realizarmos análises dos acontecimentos (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP.). Acreditamos que, ao descrevermos as formas assumidas pela mesmice e a condição de metamorfose/transformação no processo identitário, podemos também mergulhar na leitura das diferentes condições de existência, dadas a partir das expectativas sociais, das aspirações individuais e dos projetos assumidos ou não perante a realidade histórica vivida. Por isso, torna-se necessário compreendermos também o sentido ético e a natureza política desse processo.

Por conseguinte, a conformação da identidade como transformação é mantida; todavia, os questionamentos passam a ser centrados no sentido dessas mudanças, que podem ter um caráter emancipatório ou não. De forma que o sintagma identidade-metamorfose-emancipação (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP.) configura o aporte dos questionamentos a partir de então. O sentido da metamorfose, captado de maneira compreensiva, nos permite analisar o processo identitário como uma luta pela dignidade da vida humana, uma incansável busca pela emancipação que nos humanize. Esse projeto, que dá o sentido ético às identidades, só poderá ser concretizado através de ações políticas.

De modo que a oposição ou resistência aos modos de vida potencialmente desumanizantes são os principais indicadores desse processo, que tem como característica uma utopia emancipatória como meta a ser alcançada (Ciampa,1999), um projeto de luta pela dignidade da vida humana, que dá o sentido ético às identidades. Entretanto, quando a realização desses projetos políticos é obstada de forma coercitiva, impositiva e violenta, a metamorfose é invertida como desumanização (Ciampa, 2003). De forma que o pano de fundo desse complexo são as formas unilaterais e patológicas de existência, pois, na medida em que as estruturas sistêmicas se sobrepõem ao mundo da vida, mais e mais as ações de caráter instrumental dominam as esferas comunicacionais espontâneas. A consequência prática desse processo é a inversão de valores pelo cerceamento dos espaços de autonomia, provocando crises de sentido, a supressão sistemática das ações voltadas ao entendimento e o “esmigalhamento” das formas de solidariedade (Habermas, 2005Habermas, J. A. (2005, 24 de abril). O cisma do século XXI. Folha de São Paulo (Caderno Mais, pp. 4-6).). Em outras palavras, emerge uma tendência de despolitização dos cidadãos, que pode ser exemplificada pela lógica de mercado (ou lógica neoliberal) invadindo diferentes setores da vida de modo crescente (Habermas, 2005Habermas, J. A. (2002). Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.).

Nesse caso, o ambiente acadêmico pode ser assinalado como um dos espaços fagocitados pela lógica do mercado e da burocracia, provocando a inversão dos valores outrora idealizados pelas forças instituintes, fundadoras da ideia de universidade (Habermas, 1993Habermas, J. A. (1993). A idéia de universidade: processos de aprendizagem. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 74(176), 111-130.). Quer seja através das mudanças no modelo de pesquisa e, consequentemente, na ideia fundadora de universidade, como campo de produção e democratização dos saberes, pelas forças do instituído; quer seja na conformação da educação como privilégio através das irrupções do sistema neoliberal - em oposição à concepção da educação como direito - ou pela emergência do mercado da produtividade científica, é factual o imperativo do individualismo nos tempos atuais. Como sintoma direto desse individualismo e amostra da tendência de despolitização dos cidadãos, o silenciamento acerca das manifestações do preconceito e a postura de sujeição (Miranda, 2011aMiranda, S. F. (2011a). Identidades de Afro-descendentes: resistência e preconceito como motores de um processo em produção. Recife: ABRAPSO.) de alguns negros em relação à própria condição étnico-racial podem ser vistos como formas de existência patológicas, mediante os dissensos causados pela inversão de valores nas sociedades modernas.

Diante desse quadro, faz-se essencial o trabalho analítico desses espaços em contato com a Teoria proposta, considerando-se o diagnóstico do sistema de ideias que, ao mesmo tempo, ampara uma conjuntura de contradições e autentica o contexto de desigualdades vigente no contexto acadêmico e racial brasileiro.

As Estatísticas e Políticas de identidade: discutindo a questão racial no contexto acadêmico

Acreditamos na necessidade de explanarmos a condição racial estatística no contexto acadêmico antes de discutirmos as políticas de identidade, por apresentarem dados que corroboram a situação de desigualdade no âmbito acadêmico, para, enfim, pensarmos suas consequências. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2010). Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: Autor. ), 50,74% dos brasileiros são negros. Nesse ínterim, apenas 1,77% da População negra Economicamente Ativa em 2014 possuía ensino superior completo, percebendo renda média sempre inferior à dos brancos: R$ 1.428,79 contra R$ 2.510,44, respectivamente (IBGE, 2014Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2014). Pesquisa Mensal de Emprego. Rio de Janeiro: Autor. ). De forma que apenas 14,51% dos que frequentavam o ensino superior em 2013 eram negros (INEP, 2013), em geral concentrados nas áreas de formação de menor status profissional. Afunilando, somavam somente 0,07% dos mestrandos e 0,03% dos doutorandos em universidades brasileiras no ano de 2010, segundo o IBGEInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2012). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Autor. . Mesmo quando equalizamos a escolaridade, negros graduados e pós-graduados têm Renda Domiciliar Per Capita em média 30% menor que brancos com o mesmo nível escolar (IPEA, 2014Instituto de Pesquisa Economica Aplicada - IPEA. (2014). Nota Técnica nº 17. Brasília, DF: Autor.). Um bom exemplo disso é a rarefeita representação negra na carreira docente universitária: de um universo de 378.939 docentes universitários no Brasil, apenas 13,22% são negros (INEP, 2013Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). (2013). Censo da Educação Superior. Brasília, DF: MEC.). Desse montante, somente 33,9% estão em instituições públicas; são de maioria masculina (54,43%) e, em geral, possuem titulação máxima de mestres: 43,09%. Segundo Arboeya e Meucci (2013, p. 06Arboleya, A. & Meucci, S. (2015). Trajetórias de docentes negros no ensino superior brasileiro e a construção de significados para o mérito “incomum” [Trabalho completo]. In V Reunião Equatorial de Antropologia (pp. 1-20). Maceió: REA. ):

O campo educacional superior aparece assim, como foco analítico particularmente expressivo das tensões que permeiam o racismo enquanto fenômeno estrutural e simbólico, figurando como um microscópio social expressivo de sua tenacidade ao pontuar a prática excludente que opera dentro da ambiência universitária, articulada na lógica do mérito.

Nesse sentido, pensar nas políticas de identidade que possam reestruturar esse quadro pede a construção de novas alternativas de vida. E é por meio das competências desenvolvidas no seio das interações sociais (ação comunicativa) que se torna possível a construção, em situações conflitivas, dessas alternativas e a libertação dos modelos identitários cristalizados pelos conteúdos preestabelecidos no contexto de socialização. Tais conteúdos muitas vezes são erigidos no interior dos grupos sociais, conformando-se, portanto, como políticas de identidade, conforme Almeida (2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ).

Ciampa (2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ) discute esse conceito de forma ligeiramente diferente do posicionamento assumido por Guareschi (2000Guareschi, N. M. F. (2000). Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para a psicologia social. Psicologia & Sociedade, 12(1-2), 110-124.), compreendendo as políticas de identidade como as formas diversas pelas quais os grupos sociais hegemônicos e minoritários lutam pela afirmação de suas identidades coletivas. São discursos e estratégias de ação que, quando operados, traduzem a assunção de um personagem coletivo que corresponda às intenções do (ou dos) movimento(s) a que pertencem os sujeitos, confirmando a adesão a determinados modelos identificatórios. A questão crucial para compreendermos o sentido dessas ações reside na condição de que elas só podem ser consideradas legítimas quando centradas nos pressupostos da ação comunicativa, nem sempre passíveis de realização em todos os contextos (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ). Assim, tais políticas podem servir tanto aos interesses sistêmicos quanto às diferentes formas coletivas de integração dos grupos de minorias: são as políticas de identidade de dominação em contraposição às políticas de identidade emancipatórias.

Por um lado, as políticas de identidade podem inspirar o vigor e a energia de mudança, potencializando transformações no contexto social a partir das ações e reivindicações coletivas assumidas pelos grupos oprimidos que, buscando a equilibração das assimetrias de poder, constroem novos espaços de discussão e novas práticas políticas emancipatórias (Ciampa, 2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ). Surge no plano coletivo um personagem (Ciampa, 2002) que, a partir de propostas valorativas, articula indivíduos com relação à sua diferença, catalisando demandas individuais em reivindicações de toda uma categoria; de forma a produzir considerável impacto no âmbito social. De modo que a equação se inverte e a identidade coletiva até então subalterna, com traços estigmatizantes, assume proposições valorativas em relação aos seus atributos diferenciais, favorecendo as “alterações no modo como os indivíduos se vêm a si mesmos e se percebem no mundo e, também, ao modo como eles se posicionam frente a este mundo, reivindicando autonomia e reconhecimento” (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. , p. 136). E, ao afirmarem suas identidades a partir de um reposicionamento no espaço público com a valorização cultural e social da diferença, tais indivíduos podem constituir novas formas de ação política, alimentadas pelo desejo coletivo de alterização.

No contexto dos movimentos negros, podemos considerar como exemplo de políticas de identidade emancipatórias o trabalho realizado pela ABPN - Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Esse grupo, oficialmente instituído desde o ano 2000, funciona como uma associação sem fins lucrativos e que se destina “à defesa da pesquisa acadêmico-científica e/ou espaços afins realizadas prioritariamente por pesquisadores negros” (ABPN, 2011, s/nAssociação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN. (2011). Quem somos. Disponível em: Disponível em: http://www.abpn.org.br/ . Acesso em: 05 de abril, 2011.
http://www.abpn.org.br/...
). O grupo, além de ter constituído uma revista temática indexada de circulação nacional, realiza congressos e utiliza seu site para divulgar notícias pertinentes às discussões que tangem a temática racial. Nos relatórios de perfil de associados, podemos perceber um crescimento significativo da quantidade de membros em apenas dois anos, em sua maioria professores oriundos de universidades federais e estaduais do país (ABPN, 2010Associação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN. (2010). Relatório - perfil 2009 das (os) associadas (os) da ABPN. ABPN, maio. Disponível em: Disponível em: http://www.abpn.org.br/ . Acesso em: 05 de nov. de 2011.
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, 2012aAssociação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN. (2012a). II Relatório de Perfil dos/as Pesquisadores/as Negros/as. Disponível em: Disponível em: http://www.abpn.org.br . Acesso em: 12 de nov. de 2012.
http://www.abpn.org.br...
).

Segundo Gomes (2010Gomes, N. L. (2010). Intelectuais negros e produção de conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In B. S Santos & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 419-442). São Paulo: Cortez .), o segmento negro e sua inserção no campo da pesquisa científica e da produção do saber por muito tempo foi relegado à condição de mero objeto de estudo. A partir dessa assertiva, podemos entender que a importância da iniciativa da ABPN reside justamente na intencionalidade de agregar valores à condição racial dos acadêmicos negros, apresentando-lhes modelos identificatórios, bem como de subverter a situação de privilégios principalmente no campo de produção do saber acerca da problemática da sociedade em relação ao próprio segmento. Um exemplo claro desse movimento emancipatório é o visível exercício de afirmação de uma autoimagem positiva; nos congressos da ABPN, percebe-se o uso de roupas com tecidos coloridos, cabelos trançados, penteados e adornados de forma a evidenciarem sua característica afro. Todas essas manifestações, por mais simples que possam parecer à primeira vista, comungam com uma política que busca, também por meio da afirmação estética, alterar o lugar dos sujeitos no espaço público, reclamando o direito à diferença, em oposição a um “imperativo da beleza que necessariamente englobe sujeitos com traços fenotípicos europeus” (Miranda, 2011bMiranda, S. F. (2011b). O “feio e o belo”: reflexões sobre os efeitos de uma ideologia do corpo. Psicolatina, 22, 1-25., p. 04). De forma que as intervenções no corpo ampliam-se ao âmbito identitário (Miranda, 2011b), e essa construção deixa de ser individual para adquirir parâmetros de políticas de identidade.

Com relação à inversão da equação de desvalorização pressuposta a esses sujeitos, podemos citar também em contexto brasileiro a atuação política excepcional da Fundação Ford - agência filantrópica internacional de fomento, que desde 1962 aplica recursos em programas que, dentre suas várias áreas de atuação, contribuem diretamente para as ações afirmativas na pós-graduação, tendo como instituição parceira a Fundação Carlos Chagas (Rosemberg, 2013Rosemberg, F. (2013). Ação afirmativa na pós-graduação: o Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford na Fundação Carlos Chagas. Coleção Textos FCC (Impresso), 36, 3-100. ). O IFP - International Felowships Program - introduziu-se no Brasil no ano de 2001 e encerrou-se no primeiro semestre de 2013 como o primeiro programa (2001-2013) voltado para sujeitos subrepresentados na pós-graduação, ou seja, no caso brasileiro, “preferencialmente negros/as e indígenas, nascidos nas regiões nordeste, norte e centro-oeste e que provêm de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas e educacionais.” (Rosemberg, 2013, p. 01).

A seleção do IFP constava de uma primeira etapa voltada para a aderência dos candidatos ao público-alvo e uma segunda etapa meritocrática, buscando verificar o potencial acadêmico do candidato, bem como sua característica de liderança e compromisso social, tendo como intenção o investimento na formação de multiplicadores. O programa oferecia um acompanhamento pré-acadêmico, acadêmico e pós-bolsa. Na etapa pré-acadêmica, os recursos disponibilizados permitiam ao bolsista acesso a cursos de línguas, informática e orientação para elaboração do anteprojeto de pesquisa, a ser apresentado com apoio logístico em, no máximo, quatro instituições de interesse. Na etapa acadêmica, o aluno recebia apoio financeiro e logístico para prosseguir os estudos em tempo hábil. Já na etapa pós-bolsa incentivava-se a criação de redes sociais entre os bolsistas, além da busca pela visibilidade desses sujeitos no âmbito acadêmico através do incentivo às publicações (Rosemberg, 2013Rosemberg, F. (2013). Ação afirmativa na pós-graduação: o Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford na Fundação Carlos Chagas. Coleção Textos FCC (Impresso), 36, 3-100. ).

Nesse sentido, durante mais de uma década houve o incentivo à formação de lideranças minoritárias comprometidas com suas raízes, além da consolidação de redes sociais e da divulgação dos trabalhos por coletâneas financiadas pelo próprio projeto. Os mecanismos de cooperação internacional, quando sensíveis aos problemas sociais de cada região, proporcionando autonomia do pesquisador dentro das áreas de interesse das agências de fomento, podem promover o desenvolvimento e fortalecimento da capacitação científica de minorias (também raciais), resultando em benefícios para ambos os partícipes dos projetos (Faria & Costa, 2006Faria, L & Costa, M. C. (2006). Cooperação científica internacional: estilos de atuação da Fundação Rockefeller e da Fundação Ford. Dados - Revista de Ciências Sociais, 49(1), 159-191.).

Acreditamos que a Fundação Ford, através da Fundação Carlos Chagas, ao longo desses doze anos, tenha contribuído substancialmente para a conformação de políticas identitárias emancipatórias dentro desses grupos de pós-graduandos, quando proporcionou o incentivo à formação de redes, fornecendo apoio não só durante o processo de pós-graduação como também o amparo logístico e a preparação desses profissionais para enfrentarem as exigências do mercado acadêmico.

Realizando um recorte para a condição de pós-graduandos negros, podemos afirmar que o empoderamento ocorre na medida em que, através dos procedimentos de acompanhamento e supervisão, as barreiras sociais são atenuadas, de forma que os negros de famílias com poucas oportunidades educacionais atingidos por esse programa social tornaram-se tecnicamente preparados diante das exigências da profissão e não mais invisibilizados por situações de irrelevância e carência (Carvalho, 2006). Além disso, com a formação de redes implementada pelo programa, tornou-se possível a construção de políticas identitárias emancipatórias em relação à condição racial desses sujeitos.

Assim, tanto nas propostas apresentadas pela ABPN quanto pela intencionalidade dos doze anos de intervenção da Fundação Ford, a conformação desses indivíduos como um coletivo é realizada em torno de um referencial identitário (a condição pesquisadores acadêmicos negros) visando a mapear, problematizar, analisar questões pertinentes às suas demandas específicas. Os intelectuais negros, ao mesmo tempo em que tentam subverter o lugar de subalternidade que lhes é outorgado, afirmam-se como pesquisadores e localizam-se no campo científico em causa própria, pois “articulam a militância política e a produção do conhecimento sobre a realidade étnico-racial a partir da sua própria vivência racial” (Gomes, 2010Gomes, N. L. (2010). Intelectuais negros e produção de conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In B. S Santos & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 419-442). São Paulo: Cortez ., p. 496).

Essa condição sem dúvida gera tensões e questionamentos, mas acima de tudo consolida como mito a ideia de uma ciência neutra e descolada da realidade (Gomes, 2010Gomes, N. L. (2010). Intelectuais negros e produção de conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In B. S Santos & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 419-442). São Paulo: Cortez .), favorecendo não mais o olhar distanciado sobre os fenômenos, mas uma vivência crítica, cunhada a partir de “saberes localizados” (Haraway, 1995Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 07-41.), que enriquecem e problematizam as construções teóricas sobre a questão racial, trazendo à tona novos olhares e, indubitavelmente, novas disputas de espaços de poder no meio acadêmico (Gomes, 2010).

Acreditamos que essas novas disputas também colocam em evidência os questionamentos acerca da situação racial do âmbito acadêmico e dos valores e ideologias que sustentam essa condição de desigualdade. Assuntos como a representatividade mínima do segmento no âmbito universitário e docente, a ideologia do mérito e o discurso competente acabam entrando na “ordem do dia” a partir da instituição desse segmento enquanto grupo no contexto brasileiro, pois o simples fato de sua inclusão na arena política já soa como um desafio às políticas de identidade dos setores hegemônicos (Carvalho, 2003Carvalho, J. J. (2003). Ações afirmativas para negros na pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos para professores universitários como resposta ao racismo acadêmico. In P. B. G Silva & V. R. Silvério (Orgs.), Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica (pp. 161-192) Brasília, DF: INEP/MEC.).

É então nessa conjuntura que apontamos as políticas de identidade de dominação, políticas que, quando instituídas e invadidas pelas formas sistêmicas, podem determinar adesões cegas aos ideais de autonomia, a exemplo das representações coletivas e dos comportamentos sociais desenvolvidos pelo pensamento hegemônico, que buscam a manutenção do status quo. No âmbito acadêmico, essas atendem aos interesses das categorias privilegiadas, reforçando as assimetrias nas relações sociais e impondo de maneira coercitiva valores, ideias e posicionamentos na arena política. Os núcleos de pensamento e ação relacionados a esses setores alimentam tanto a ideologia do branqueamento quanto a ideia de democracia racial (Miranda, 2013Miranda, S. F. (2013). Negros, profissionais e acadêmicos: sentidos identitários e os efeitos do discurso ideológico do mérito. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.). As políticas regulatórias reforçam os enquadramentos existentes (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ). A exemplo disso, temos a estigmatização de sujeitos que apresentam atributos físicos diferentes daqueles estabelecidos (Miranda, 2011a) como “desejáveis” à condição de professor universitário (Santos, 2010Santos, E. (2010). Identidades e trajetórias de docentes negra (o)s da UFAM. Disponível em: Disponível em: http://www.periodicos.unir.br/index.php/semanaeduca/article/viewFile/128/168 . Acesso em 10 de mar. 2012.
http://www.periodicos.unir.br/index.php/...
).

Além disso, a representação do negro como intelectualmente inferior acaba sendo retomada quando os discursos de pluralidade, democracia e liberdade de expressão no campo científico são substituídos por ideologias que reforçam as representações de homogeneidade, representações que também dizem respeito às convenções sociais e atributos físicos que pairam no imaginário social brasileiro, estabelecidos por uma hegemonia não negra. A naturalização da condição de saber-poder (Foucault, 1980Foucault, M. (1980). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal. ) desses grupos assim se legitima através das políticas de identidade de dominação no âmbito acadêmico. Também a política do impedimento velado aos acessos educacionais de boa qualidade pode ser apontada como uma das barreiras de reprodução institucional do sistema de privilégios no âmbito brasileiro. Em tempos de neoliberalismo, a questão socioeconômica acaba conduzindo esses sujeitos para que sejam “naturalmente” absorvidos pelas universidades mercantis de massa, fator que contribui para que se formem barreiras em torno de um possível projeto individual pela profissão docente e possíveis projetos políticos de inserção na militância dos acadêmicos negros.

Vejamos que somente em 08 de agosto de 2012, mais de oito anos depois da primeira universidade do país adotar o sistema de cotas de maneira independente, o Senado aprovou o PLC - Projeto de Lei da Câmara - para cotistas nas universidades federais, a ser instituído em nível nacional (ABPN, 2012bAssociação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN. (2012b). Senado aprova PLC das cotas para ingresso em Universidades Federais. 08 de agosto. Disponível em: Disponível em: http://www.abpn.org.br/ . Acesso em: 10 de ago. de 2012.
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). Posteriormente, foi aprovada a Lei n. 12.990, de 09 de junho de 2014, que garante aos negros 20% das vagas reservadas para funcionários públicos (Lei n. 12.990, 2014Lei 12.990, de 09 de junho de 2014. (2014). Reserva aos negros 20 % vagas em concursos públicos e outras soluções para movimento de cargos e empregos. Brasília, DF: Presidência da República.), ou seja, reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Entretanto, podemos verificar que a maioria dos concursos públicos para professores universitários seleciona somente para uma vaga, o que impede que as cotas para professores negros sejam uma realidade de fato e não apenas de direito no país. De tal modo que o descomprometimento taciturno sobre a condição racial na academia brasileira funciona como uma política de identidade de dominação, sustentada principalmente pelas discussões em torno da ideia de mérito e do discurso da supressão do preconceito racial pelo preconceito de cunho econômico (Miranda, 2013Miranda, S. F. (2013). Negros, profissionais e acadêmicos: sentidos identitários e os efeitos do discurso ideológico do mérito. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.).

As políticas de identidade de dominação também podem ser identificadas em proposições essencialistas que podem levar à guetificação dos grupos sociais - aprisionando seus membros a uma visão contrastativa das identidades, que com frequência conduz a atitudes preconceituosas (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ). No movimento negro, esse fenômeno pode ser identificado através da proposição acrítica de reintegração às raízes, a qual muitas vezes acentua a visão estigmatizada da sociedade sobre os negros, e esses, buscando se esquivar, acabam reforçando-a através da busca pela perigosa condição de “pureza étnica”. Essa ação pode enredar os indivíduos em discursos, costumes e práticas que não mais fazem sentido diante do contexto das diversas influências culturais das quais se alimenta a diáspora negra. Em outras palavras, ações que teriam em sua origem o caráter de alterização são dotadas de sentidos essencialistas e acabam denunciando comportamentos com persistentes distinções raciais, com base na oposição da identidade do opressor (Munanga, 1990Munanga, K. (1990). Negritude afro-brasileira: perspectivas e dificuldades. Revista de Antropologia- SP, 33, 109-117.) - indicando que nem sempre as proposições coletivas de militância geram caminhos emancipatórios.

Com base nesses pressupostos, entendemos que, de maneira geral, a questão da emancipação sempre nos remete à discussão do caráter relacional das identidades, fator fundamental na configuração das metamorfoses, principalmente no que diz respeito à questão das minorias sociais. No plano coletivo, essa discussão toma corpo através das políticas de identidade, pois ao mesmo tempo em que o sujeito se transforma, ele depende do reconhecimento do Outro para se alterizar, de maneira que a emancipação é um fator que não se ratifica sem a transposição das vivências e projeções para a esfera pública (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ).

Fazendo o movimento inverso, a afirmação de uma identidade com sentido emancipatório no plano individual corrobora-se através da conformação de identidades políticas. Esse movimento, segundo Ciampa (2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ), é sempre alicerçado pelas políticas de identidade, que num primeiro momento servem aos indivíduos como ideais identificatórios, para a formação de laços solidários e suporte às reivindicações por igualdade. Mas para que a conformação de identidades políticas seja realizada, também se faz necessário o movimento de individuação, ou seja, a criação de uma concepção de identidade única que, ao mesmo tempo em que se vincula a determinados modelos oferecidos pela sociedade, possa se diferenciar, numa atitude reflexiva, para seguir assumindo novos projetos e novas pretensões de reconhecimento.

Na produção de identidades políticas inclui-se, portanto, o movimento de libertação dos ditames sociais (ou das formas sistêmicas de relacionamento), no qual o sujeito adquire competências interativas para reivindicar suas pretensões de reconhecimento em acordo com os grupos aos quais se identifica, ao mesmo tempo em que se diferencia enquanto sujeito único. Nesse contexto, a assunção de uma identidade pós-convencional autentica tanto sua condição de sujeito privado quanto sua localização no contexto social, como “membro da sociedade civil, do Estado e do mundo” (Ciampa, 2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. , p. 08), capaz de colocar em questão as políticas de identidade de dominação que perpassaram suas vivências, buscando difundir ações coletivas alternativas, organizadas com base em condições mais democráticas (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. ).

No limite, todo questionamento diz respeito a um determinado ponto de vista, ou seja, uma perspectiva diferente daquela já estabelecida, que desafie os parâmetros hegemônicos. Por isso a conformação de identidades políticas é sempre produto de um conflito, pois no contexto do sintagma identidade-metamorfose-emancipação não existe processo de transformação que não abra espaços para diferentes formas de existência.

A inversão da metamorfose no âmbito acadêmico negro brasileiro

Segundo (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP.), a possibilidade da realização de um projeto que dê sentido ético às identidades só se realiza mediante a concretização de ações políticas. E se a identidade resulta de um “encontro entre a ideia que fazemos ou a imagem que temos de nós mesmos e dos outros e, a ideia ou a imagem que os outros têm de nós” (Almeida, 2005Almeida, J. A. M. (2005). Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), São Paulo. , p. 52), estamos falando de um processo essencialmente conflitivo, no qual as representações pessoais e coletivas podem ou não convergir.

Perante o choque entre tais representações, pode ocorrer a inversão da metamorfose, de maneira que o “projeto” de uma busca emancipatória se converta num processo de desumanização. Tal processo ocorre quando as ações políticas vislumbradas pelos sujeitos ou grupos encontram obstáculos, são impedidas de forma violenta, impositiva ou coercitiva:

A destruição, a degradação e a indignidade de pessoas e grupos são formas de metamorfose, em última análise, provocadas de modo heterônomo por um poder interiorizado subjetivamente e - ou apenas - exteriorizado objetivamente. Ou seja, quase sempre, senão sempre, há um conflito político que se estabelece entre a pretensão de uma identidade social, de um lado como (a) auto-afirmação e hetero-reconhecimento de um projeto emancipatório e, de outro, como (b) hetero-afirmação e auto-reconhecimento de um projeto coercitivo ou de dominação. (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP., p. 03)

O sentido do processo identitário é questionado, partindo do pressuposto de que este último se correlaciona a um conflito entre autonomia e heteronomia (processo no qual o sujeito só se reconhece através de um projeto calcado em relações de dominação, tornando-se sujeitado à vontade de terceiros ou de uma coletividade, e, portanto, aquém das próprias vontades), ou seja, um processo de metamorfose que é invertido no seu sentido ético, no qual os indivíduos e coletividades são impelidos por forças coercitivas (de ordem subjetiva e/ou objetiva) que impedem a realização de projetos políticos emancipatórios. A ação política, e, por consequência, a produção de identidades pós-convencionais - ou, de acordo com Ciampa (2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ), identidades políticas -, pode ser então obstada por uma interiorização acrítica de normas, ou heteronomia e/ou por uma ação externa que impeça ou dificulte a realização de projetos emancipatórios, que geralmente ocorre de forma violenta, através de coerção, imposições, ameaças.

Os grupos considerados minorias, e nesses se incluem os negros, representam de maneira emblemática o quadro de indivíduos que, por possuírem traços diferentes da norma estabelecida, são desvalorizados e discriminados negativamente. As ressonâncias dessa conjuntura social podem ser visualizadas no meio acadêmico, tanto em relação às forças coercitivas de ordem subjetiva quanto aos impedimentos objetivos, discutidos por Ciampa (2002Ciampa, A. C. (2002). Políticas de identidade e identidades políticas. In C. L. I. Dunker & M. C. Passos (Orgs.), Uma psicologia que se interroga: ensaios (pp. 133-144). São Paulo: Edicon. ).

Em relação às forças coercitivas de ordem subjetiva, podemos perceber sujeitos negros que acabam renegando a própria condição racial ou se omitindo em relação a ela, na esperança de alcançarem reconhecimento do exogrupo. Nesse caso, os indivíduos são impedidos de alcançarem seus projetos a partir de um processo heterônomo extremamente complexo: a interiorização da própria inferioridade, situação “que concretiza a figura racista criada pela mistificadora democracia racial brasileira, a do ‘negro de alma branca’” (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal., p. 12).

A introjeção de uma imagem deturpada de si opera uma marca psíquica, de forma que pensar sobre o aspecto racial da própria identidade redunda sempre num sofrimento insuportável ao indivíduo (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal.), fator que pode culminar:

na representação heterônoma de um personagem muito conhecido em nosso cotidiano: o [negro] que reproduz o conflito e a ambigüidade gerados pelo imaginário social (representado pela ideologia do embranquecimento e pelo ideal da democracia racial) e muitas das vezes não consegue desenvolver atitudes de enfrentamento diante de situações em que se vê negativamente discriminado e que, de maneira nem sempre consciente, pode desenvolver um processo de desvalorização pessoal e negação da importância dos elementos herdados das culturas da diáspora africana no processo histórico de articulação dos vários personagens, igualdades e diferenciações que constituem sua história individual. (Miranda, 2011aMiranda, S. F. (2011a). Identidades de Afro-descendentes: resistência e preconceito como motores de um processo em produção. Recife: ABRAPSO., p. 62)

Nesse contexto, o processo identitário é invertido no seu sentido ético e converte-se em desumanização (Ciampa, 2003Ciampa, A. C. (2003). A identidade social como metamorfose humana em busca de emancipação: articulando pensamento histórico e pensamento utópico [Trabalho completo]. In XXIX Congresso Interamericano de Psicologia. Lima: CIP.), passando a servir aos ideais de uma ordem sistêmica, de maneira que o sujeito, além de reproduzir o conflito impresso no imaginário social, prende-se a referenciais identificatórios vigentes, nos quais o “outro”, ou seja, “o negro”, é simbolicamente destruído e neutralizado (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal.). Em relação às forças objetivas que legitimam a desumanização, podemos citar, no âmbito da política hegemônica da academia, a forma socialmente aceitável de intelectual que se assenta sobre condições socioeconômicas e raciais “naturalizadas”, além da sua intermediação com fatores como gênero e idade (Gomes, 2010Gomes, N. L. (2010). Intelectuais negros e produção de conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In B. S Santos & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do Sul (pp. 419-442). São Paulo: Cortez .). Seguindo esse parâmetro de raciocínio, veremos que muitos profissionais acadêmicos, pelo fato de serem negros, podem ser relegados ao isolamento social e intelectual, além, é claro, de estarem sujeitos à possibilidade de sofrer questionamentos tácitos sobre a ideia de ocuparem um lugar “acima do previsível” para a própria condição racial.

É dessa maneira que o “racismo à brasileira” (Pereira, 1996Pereira, J. B. B. (1996). Racismo à brasileira. In K. Munanga (Org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial (pp. 75-78). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. ), configurado pelas ações discriminatórias encobertas (e não menos violentas), manifesta-se, no plano da universidade, como “racismo acadêmico”, apresentando como atributo constitutivo o atravessamento da ideologia do mérito. Tal atravessamento vigora como obstáculo inquestionável ao processo emancipatório de professores universitários negros no âmbito acadêmico. A discussão aqui apresentada privilegia o argumento de que, por meio de seu estatuto, a ideologia do mérito institui-se como uma ideia que já perdeu funcionalidade de “saber”, cristalizando-se e se convertendo em conhecimento (Chauí, 1981Chauí, M. (1981). Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez.). A partir desse percurso, passa a ser disseminada pelos mecanismos hegemônicos com o objetivo de servir como instrumento de regulação, dominação e desumanização.

Aliada à ideologia do embranquecimento e ao mito da democracia racial (Munanga, 2004Munanga, K. (2004). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica.), converte-se em práticas que reforçam a atitude omissa da sociedade (ou até do próprio indivíduo, que pode assumir uma postura de sujeição) em relação ao tratamento diferencial recebido pelos sujeitos negros no meio acadêmico, acobertando através da ideia de “mérito individual” todo o sistema de desigualdades sustentado ao longo dos tempos.

Também, em determinadas situações, no caso da ideologia do mérito não ser um fator suficientemente persuasivo, o discurso competente (Chauí, 1981Chauí, M. (1981). Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez.) pode operar como ferramenta de violência explícita, como elemento coercitivo a qualquer forma de alteridade que possa emergir; pois é encarnada pela “autoridade” dos intelectuais já estabelecidos, daqueles aos quais a sociedade outorga o direito de utilizarem-se do conhecimento como forma legítima de dominação - esses, geralmente representados por sujeitos hegemônicos, que constituem a absoluta maioria estatística de acadêmicos brasileiros: homens brancos e de classe média (Miranda, 2013Miranda, S. F. (2013). Negros, profissionais e acadêmicos: sentidos identitários e os efeitos do discurso ideológico do mérito. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.).

Tal política de identidade é perversa e se utiliza da autoridade como ferramenta constritora das manifestações de alteridade na academia, atuando tanto para a formação de barreiras ao ingresso das minorias raciais quanto ao seu isolamento intelectual e social, além de contribuir como justificativa à denegação da própria condição racial e aos conflitos inerentes a essa conjuntura, quando já pertencem ou estão em processo de inserção no contexto acadêmico. Logo, percebemos que, em muitas ocasiões, a questão racial é repetidamente denegada na academia, dando espaço à instauração de manifestações de preconceito silenciosamente violentas, num ambiente no qual, teoricamente, deveriam pairar a humanização e construção democrática de saberes - incluindo as produções teórico-práticas acerca da problemática da sociedade brasileira em relação ao contingente negro.

Da impossibilidade de se discutir a meritocracia num sistema desigual: análise crítica

Os efeitos da transmissão intergeracional da pobreza aliados à discriminação racial sustentam na atualidade a persistência do confinamento do segmento negro aos estratos mais inferiores e a consequente alienação desses indivíduos aos acessos educacionais de qualidade no contexto brasileiro (Paixão & Rossetto, 2010Paixão, M. & Rossetto, I. (2010). Acesso ao sistema de ensino e indicadores de proficiência. In M. Paixão, I. Rossetto, F. Montovanele, & L. M. Carvano (Orgs.), Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil, 2009-2010 (pp. 205-248). Rio de Janeiro: Laboratório de Análises estatísticas, econômicas e sociais das relações raciais (LAESER) UFRJ.). De forma que, perante todas as evidências de que temos no país uma lógica guiada pela sustentação dos privilégios de determinados grupos hegemônicos em detrimento do segmento negro, como sustentarmos que o sistema universitário brasileiro está imune aos efeitos do racismo? Como podemos continuar coniventes à cegueira imposta pelo descomprometimento taciturno das universidades em relação a essa realidade, amparado por uma ideologia que defende que a qualificação e mérito pessoais são os únicos critérios utilizados para a seleção e distinção dos sujeitos?

Sob o mesmo ponto de vista, se o contexto acadêmico brasileiro mostra-se permeável aos parâmetros conformados pelo sistema societário, não podemos afirmar que ele apresenta o critério meritocrático como contorno exclusivo de orientação à seleção e ordenação dos indivíduos. Baseados nesses argumentos, defendemos a tese da impossibilidade da discussão da carência de negros no sistema docente quando unicamente guiada pelos pressupostos do mérito e qualificação pessoais.

Definitivamente, a política distributiva do país não se justifica pelo mérito individual, mas pela concessão de vantagens e privilégios a segmentos hegemônicos em detrimento dos demais. Por isso, discutir a avaliação do merecimento como único critério de ordenação dos indivíduos na sociedade brasileira contemporânea significa sustentar a omissão das desigualdades e suas ressonâncias violentas. Decerto, se reconhecermos que vivemos num sistema estruturado de forma racista e que se reproduz por meio de mecanismos de dominação e exploração ao contingente negro em contraponto ao privilégio naturalizado aos segmentos hegemônicos conseguiremos também compreender que sujeitos não negros se beneficiam cotidianamente do racismo, mesmo que não tenham intentos racistas. Isso explica o desconhecimento taciturno da academia sobre sua realidade racial, pois os segmentos hegemônicos não se comprometem a enxergar essa dissonância pelo fato de não serem diretamente atingidos pelas políticas identitárias de dominação. Todos os dias, muitas oportunidades são oferecidas a sujeitos não negros, ao mesmo tempo em que são denegadas aos negros. É a comprovação da existência deste sistema de privilégios “invisíveis” que desmantela qualquer possibilidade de acreditarmos na experiência de uma sociedade gerida exclusivamente pelo sistema meritocrático, pois a própria alternativa da defesa dos privilégios é delegada somente ao segmento privilegiado.

Com base nos princípios sobre o reconhecimento da diferença, corroboramos a discussão implementada por Carvalho (2003Carvalho, J. J. (2003). Ações afirmativas para negros na pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos para professores universitários como resposta ao racismo acadêmico. In P. B. G Silva & V. R. Silvério (Orgs.), Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica (pp. 161-192) Brasília, DF: INEP/MEC.), relativa à ampliação da proposta atual de ações afirmativas no sistema universitário ao topo da pirâmide, implementada pela Lei 12.990, que ainda não pode ser tida como elemento de fato na sociedade pela carência de concursos realizados nessa perspectiva.

Torna-se responsabilidade do Estado não se omitir em relação às distorções geridas pela conjuntura social. Nesse sentido, a promoção de políticas públicas compensatórias (reais) nos mais altos estratos universitários poderá proporcionar um novo sentido à história racial da academia, tendo em vista que os processos decisórios nesse sistema estão majoritariamente nas mãos dos professores, e não dos alunos (Carvalho, 2003Carvalho, J. J. (2003). Ações afirmativas para negros na pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos para professores universitários como resposta ao racismo acadêmico. In P. B. G Silva & V. R. Silvério (Orgs.), Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica (pp. 161-192) Brasília, DF: INEP/MEC.). É a inclusão de professores negros (e não sua incursão) que irá incidir diretamente sobre a cultura dessas instituições, tanto em relação à produção de figuras modelares aos alunos cotistas quanto no fomento à discussão franca (e também científica) sobre o racismo, já que, para a implantação dessas políticas, a academia terá que se admitir como sistema racializado e permeável aos parâmetros normativos.

A ciência e os cientistas têm cor, sim; da mesma forma que seus argumentos, teorias propostas, direcionamentos de pesquisas e práticas. Insistamos que não há nada de emancipatório na apologia do mérito e do desempenho individual, pois enaltecer a falsa ideia de isonomia num sistema segregador é criar uma conivência com as diversas situações de injustiça racial no âmbito acadêmico. Essa discussão se localiza no contexto das políticas de identidade, que poderão (num contexto de devir) alcançar a construção (real e factível) de identidades políticas no contexto acadêmico negro brasileiro.

Agência de fomento

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES - Bolsa de doutorado.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2016
  • Revisado
    28 Mar 2017
  • Aceito
    25 Maio 2017
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