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OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E EMANCIPAÇÃO POLÍTICA EM JACQUES RANCIÈRE

LOS PROCESSOS DE SUBJETIVACION Y EMANCIPACION POLITICA EM JACQUES RANCIERE

Resumo:

O objetivo deste artigo é realizar uma reflexão do conceito de subjetivação em Jacques Rancière, salientando a maneira como ele pensa a produção de sujeitos políticos desidentificados, que aparecem na cena polêmica por meio de relações e articulações desierarquizadas. Argumentamos que a potência disruptiva da política em Jacques Rancière não está na afirmação de si, mas na rearticulação entre elementos, que gera desidentificações e dá margem ao surgimento de identidades intervalares. O processo intersubjetivo de subjetivação configura e (re)cria uma cena polêmica sensível na qual se inventam modos de ser, ver e dizer, contestando a maneira como a partilha do mundo é feita e distribuída hierarquicamente, desigualmente, violando a dignidade e o reconhecimento do valor de cada forma de vida. A subjetivação promove arranjos e operações variadas, que desestabilizam e desmontam racionalidades que mantêm legibilidades, audibilidades e visualidades. Ela faz aparecer sujeitos em meio aos conflitos e às negociações por justiça.

Palavras chave:
Subjetivação política; Cena; Dissenso; Desidentificações; Jacques Rancière

Resumen:

Este artículo tiene como propósito reflexionar sobre el concepto de subjetivación en Jacques Rancière, destacando la forma en que él piensa la producción de sujetos políticos desidentificados, que aparecen en la escena polémica a través de relaciones y articulaciones no jerárquicas. Argumentamos que el poder disruptivo en Jacques Rancière no está en la afirmación del yo, sino en la rearticulación entre elementos, lo que genera desidentificaciones y permite el surgimiento de identidades intervalares. El proceso de subjetivación configura un sensible escenario polémico en el que se inventan modos de ser, de ver y de decir, impugnando el modo en que se hace y distribuye el compartir del mundo de manera jerárquica, desigual, violentando la dignidad y el reconocimiento del valor de cada forma de vida. La subjetivación promueve arreglos y operaciones variadas, que desestabilizan racionalidades que mantienen la legibilidad, la audibilidad y la visualidad. Hace aparecer sujetos en medio de conflictos y negociaciones por la justicia.

Palabras clave:
Subjetivacion politica; Escenas; Dissensus; Desidentificaciones; Jacques Rancière

Abstract: This article aims to reflect on the concept of subjectivation in Jacques Rancière, highlighting how he thinks about the production of disidentified political subjects, who appear in the polemic scene through non-hierarchical relationships and articulations. We argue that the disruptive power of politics in Jacques Rancière is not in the affirmation of the self, but in the rearticulation between elements, which generates disidentifications and gives rise to the emergence of interval identities. The process of subjectivation configures a sensitive polemic scene in which ways of being, seeing and saying are invented, contesting the way in which the sharing of the world is made and distributed hierarchically, unequally, violating the dignity and recognition of the value of every form of life. Subjectivation promotes varied arrangements and operations, which destabilize and dismantle rationalities that maintain legibility, audibility and visuality. It makes subjects appear in the midst of conflicts and negotiations for justice.

Keywords:
Political subjectivation; Scenes; Dissensus; Disidentification; Jacques Rancière


Introdução

O pensamento político de Jacques Rancière (1988Rancière, Jacques (1988). A Noite dos Proletários. Companhia das Letras, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., 2004Rancière, Jacques (2004). Aux bords du politique. Gallimard., 2010aRancière, Jacques (2010a). Dissensus: on politics and aesthetics. Continuum., 2010bRancière, Jacques (2010b). Ten Thesis on politics. In Dissensus: on politics and aesthetics (pp. 27-43). Continuum., 2011aRancière, Jacques (2011a). The thinking of dissensus: politics and aesthetics. In Paul Bowman & Richard Stamp (Eds.), Reading Rancière (pp. 1-17), Continuum., 2011bRancière, Jacques (2011b). Against an ebbing tide: an interview with Jacques Rancière. In Paul Bowman Richard Stamp (Eds.), Reading Rancière (pp. 238-251). Continuum., 2012aRancière, Jacques (2012a). O destino das imagens. Contraponto., 2012bRancière, Jacques (2012b). O espectador emancipado. Martins Fonte., 2019aRancière, Jacques (2019a). Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Les Presses du Réel., 2019bRancière, Jacques (2019b). El tiempo de los no-vencidos. Revista de Estudios Sociales, 70, 79-86.) confere destaque ao modo como os sujeitos aparecem ou não em um espaço de interlocução crítica, chamando a atenção para o fato de que aparecer não é tornar-se visível, mas implica reconfigurar as relações entre o visível, o enunciável e o pensável que operam no espaço em que coisas são nomeadas, discursos são produzidos e ações são desempenhadas. O aparecer redefine os enquadramentos e os dispositivos de visibilidade que permitem ou não reconhecer os sujeitos como partes legítimas de processos democráticos.

Jacques Rancière não valoriza um tipo de “divisão” ou distância intransponível que diferencia grupos e classes, mas a afirmação de que a cena que envolve a interlocução de sujeitos e a exposição de seus mundos deve ser sempre reconfigurada, porque o comum deve ser construído diferentemente. A finalidade da ação em Rancière não é a de inserir os “sem-parte” na comunidade existente, ou seja, incluir os excluídos, mas de redefinir constantemente a instância da vida comum através de um processo que requer uma partilha do sensível que não seja consensual. Sob esse aspecto, a figura dos “sem-parte” representa menos um grupo ou classe de sujeitos e mais a designação de uma falha, um dano na maneira de considerar diferentemente e hierarquicamente os sujeitos em processos políticos. Como destaca Jodi Dean, “faz mais sentido pensar na parte dos sem-parte como esse hiato: um intervalo na ordem existente de aparência entre uma ordem já dada e outras configurações possíveis do espaço entre e dentro dos mundos” (2011, p. 86Dean, Jodi (2011). Politics without politics. In Paul Bowman & Richard Stamp (Orgs.), Reading Rancière (pp. 73-94). Continuum International Publishing Group.). Assim, os “sem-parte” podem preferencialmente ser vistos como uma metáfora que indica um intervalo na ordem existente de aparência entre uma ordem já dada e outras configurações possíveis do espaço entre e dentro dos mundos nos quais estão inscritos os sujeitos.

Assim, a filosofia política desse autor não se reduz a um jogo entre inclusão e exclusão, nem afirma que a “encenação do dano” visa à inclusão dos excluídos, “sem-parte”, em uma comunidade que não os considera. O dissenso aponta justamente para o fato de que a exclusão dos “sem-parte” não é o resultado de uma simples relação entre um fora e um dentro previamente estabelecidos, mas “um modo de partilha que torna a própria partilha invisível, uma vez que os excluídos são tornados inaudíveis” (Ruby, 2009Ruby, Christian (2009). L’interruption: Jacques Rancière et la politique. La Fabrique., p. 61).

A partilha consensual do sensível realizado pela ordem policial associa a ética à radicalidade da lei, “que não deixa alternativa, pois equaciona tudo ao simples constrangimento de uma ordem/estado de coisas” (Rancière, 2010aRancière, Jacques (2010a). Dissensus: on politics and aesthetics. Continuum., p. 185). As formas de partilha do sensível definidas pela ordem policial atuam como um conjunto de dados, mais ou menos aceitos e conscientes que formam e limitam as capacidades de percepção e pensamento. Mas, quando temos uma partilha política do sensível, é possível perceber que esses dados podem ser apropriados em uma pluralidade de articulações diferentes entre seus elementos, uma multiplicidade de possibilidades que podem ser combinadas de modos diferentes por indivíduos, coletividades ou eventos que quebram a lógica temporal ordinária, desvelam outras formas possíveis de experiência e outras formas possíveis de se dar sentido a essas experiências (Rancière, 2011a).

Merece nossa atenção mais detida a rede conceitual que Rancière estabelece em torno dos conceitos de política, polícia, consenso, dissenso e partilha do sensível. A política age como subversão ou reconfiguração da partilha do sensível, redistribuindo espaços e tempos, sujeitos e objetos, reorientando a experiência comum (Rancière, 2000c, p. 8Rancière, Jacques (2000c). Literature, Politics, Aesthetics: Approaches to Democratic Disagreement. Interviewed by Solange Guénoun and James H. Kavanagh, Substance, 92 (1), 3-24.). Tal partilha é definida como uma relação entre ocupações e capacidades, entre o fato de estar em um tempo e um espaço específicos, de exercer as atividades relacionadas a esses e de possuir os modos de ver, falar e agir que são pretensamente adaptados a essas atividades. Uma partilha do sensível é uma matriz que define toda uma organização do visível, do pensável, orientando a distribuição de palavras, do tempo, do espaço e das partes de uma comunidade (Rancière, 2020b).

Ao mesmo tempo, Rancière afirma que existem “duas formas de disputa sobre a partilha do sensível” (2010bRancière, Jacques (2010b). Ten Thesis on politics. In Dissensus: on politics and aesthetics (pp. 27-43). Continuum., p. 37), “duas formas de contar as partes de uma comunidade” (2010b, p. 36):

a primeira conta apenas partes reais - grupos existentes definidos por diferenças de nascimento e por funções, espaços e interesses diferentes que fazem o corpo social excluir qualquer suplemento. A segunda conta uma parte dos que não têm parte. Chamo a primeira de polícia e a segunda de política. (Rancière, 2010bRancière, Jacques (2010b). Ten Thesis on politics. In Dissensus: on politics and aesthetics (pp. 27-43). Continuum., p. 36)

A diferenciação entre duas formas de partilha do sensível é feita por Rancière de maneira a tornar mais evidente o modo como a polícia e a política recortam diferentemente o tempo, o espaço, o visível e o invisível, criando enquadramentos consensuais ou dissensuais para orientar nossa experiência no mundo. De um lado, “a polícia é uma partilha do sensível cujo princípio é a ausência do vazio e do suplemento.” (Rancière, 2010b, p. 36). A polícia age sobre o sensível limitando nossa capacidade de apreender e ler o que se manifesta à nossa volta, controlando os deslocamentos dos corpos e as possibilidades de recriação das formas de vida.

a sociedade aqui é caracterizada por grupos atados a modos específicos de fazer, a espaços em que essas ocupações são exercidas e a modos de ser que correspondem a essas ocupações e espaços. Nessa combinação de funções, espaços e modos de ser, não há lugar para intervalos ou vazios. (Rancière, 2010bRancière, Jacques (2010b). Ten Thesis on politics. In Dissensus: on politics and aesthetics (pp. 27-43). Continuum., p. 36)

Diferentemente, a política consiste em “perturbar esse arranjo trazendo um suplemento de partes que não têm parte, identificado com o todo da comunidade. Acima de tudo, a política é uma intervenção no visível e no dizível” (2010b, pp. 36-37). Assim, “na partilha política do perceptível” (2011a, p. 8) a política acontece no espaço da polícia, reconfigurando e reencenando questões e problemas sociais. A tensão constante entre essas duas formas de partilha do sensível é assim explicada por Rancière:

A política diz respeito ao que vemos e podemos ver, sobre quem vemos e não vemos como sujeitos comuns, compartilhando um mundo comum e falando sobre objetos comuns. A política é, antes de tudo, uma questão sobre o visível, sobre o audível, e assim por diante - sobre o que chamei de partilha do sensível. Tentei opor política e polis como duas partilhas do sensível, uma partilha do sensível onde não há conta extra, onde há apenas os grupos, identidades, lugares, funções etc., e onde o que deve ser visto está supostamente visível. Coloco a política como essa partilha do perceptível, onde há esse debate sobre o que é dado, o que é visível, o que é perceptível, audível, etc. - essa maneira de colocar dois mundos em um só mundo. (2003, p. 6Rancière, Jacques (2003). Comment and responses. Theory & Event, 6(4), 1-6., grifos nossos)

A partilha do sensível feita pela política reconfigura os espaços e os enquadramentos da cena na qual um argumento pode ser ouvido como argumento, os objetos apontados nesse argumento podem ser apreendidos como objetos comuns visíveis e o próprio falante pode ser considerado como um interlocutor válido. Assim, “a política tem essa estrutura dialógica e polêmica na qual o nós, institui uma cena polêmica que redistribui as contas e as pessoas” (Rancière, 2009bRancière, Jacques (2009b). Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In Jacques Lévy, Juliett Rennes, & David Zerbib (Orgs.),Et tant pis pour les gens fatiguées (pp. 572-586), Éditions Amsterdam., p. 609), ampliando suas capacidades enunciativas. Mas, Rancière nos lembra que a política é uma “configuração polêmica do mundo comum” (2003, p. 2Rancière, Jacques (2003). Comment and responses. Theory & Event, 6(4), 1-6.) e que uma cena polêmica1 1 “Certos sujeitos que não contam criam uma cena polêmica comum onde colocam em discussão o status objetivo do que é dado e impõem um exame e discussão dessas coisas que não eram visíveis ou consideradas anteriormente” (Rancière, 2000a, p. 125). ou uma cena de dissenso são possíveis porque “sua forma é aquela de um choque entre duas partilhas do sensível” (2010b, p. 39).

Há uma multiplicidade de formas e cenas de dissenso. Cada situação pode ser cindida de dentro, reconfigurada em um regime diferente de percepção e significado modificando a paisagem do que pode ser percebido e pensado, modificando ao mesmo tempo o campo do possível e a distribuição de capacidades e incapacidades. (Rancière , 2020bRancière, Jacques (2020b). La méthode de l’égalité: poétique et politique. In K. Genel & Jean-Philippe Deranty (Eds.), Reconnaissance ou Mésentente? (pp. 97-113). Éditions de la Sorbonne. , p. 113)

É interessante como a política fratura a polícia por dentro, modificando uma paisagem, deslocando as bordas entre ambas, alterando as disposições e distribuições dos vários elementos que desenham nossas experiências. De fato, a política produz uma redistribuição do sensível: ela é uma forma de partilha do sensível que produz dobras e intervalos no mapa da experiência comum, alterando a cartografia e a topografia do perceptível e do pensável.

Nesse sentido, para Rancière, a questão da partilha do sensível envolve uma dimensão espacial e temporal que deve ser pensada em termos de distribuição e redistribuição: “distribuição de lugares, limites, do que está dentro ou fora, do que é central ou periférico, visível ou invisível” (2011a, p. 6). Sob esse aspecto, as dimensões espaciais da política e de sua forma de partilhar o sensível são assim definidas por ele:

Há deslocamentos que modificam o mapa do que é pensável, do que é nomeável e perceptível, e, portanto, do que é possível. Se avanços são alcançados, eles devem ser pensados em termos de cobertura de topografias e não em termos de aplicação de um saber. A política se define como certo mapa do que é dado à inteligência de todos, dos problemas comuns; certo mapa da distribuição de competências e das incompetências com relação a esses problemas. O que tento fazer no domínio do pensamento é contribuir para a possibilidade de outros mapas do que é pensável, perceptível e, em consequência, passível de ser feito. (Rancière, 2009bRancière, Jacques (2009b). Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In Jacques Lévy, Juliett Rennes, & David Zerbib (Orgs.),Et tant pis pour les gens fatiguées (pp. 572-586), Éditions Amsterdam., p. 577)

Assim, a topografia está relacionada à própria definição do conceito de partilha do sensível, ou seja, o jogo de relações entre o visível, o dizível, o pensável e o factível no seio do qual operam os olhares, onde as coisas são nomeadas, os discursos produzidos, as ações empreendidas. Dito de outro modo, uma partilha consensual expressa “a maneira por meio da qual as formas abstratas e arbitrárias de simbolização da hierarquia são concretizadas como percepções dadas, nas quais a destinação social é antecipada pela evidência de um universo perceptivo, um modo de ser, dizer e ver” (Rancière, 2011aRancière, Jacques (2011a). The thinking of dissensus: politics and aesthetics. In Paul Bowman & Richard Stamp (Eds.), Reading Rancière (pp. 1-17), Continuum., p. 7). Mas, este jogo de relações abre espaço para uma pluralidade de diferentes articulações entre seus elementos, uma multiplicidade de possibilidades que se combinam de diferentes maneiras. Por isso, a perspectiva dissensual define como essas articulações são modificadas rompendo a lógica temporal ordinária, desdobrando em outras formas de experiência possíveis.

Ao mencionar como operários devem supostamente permanecer em espaços definidos, utilizando o tempo do trabalho para produzir e o tempo da noite para dormir, Rancière (1988Rancière, Jacques (1988). A Noite dos Proletários. Companhia das Letras) mostra como a ordem policial divide o sensível a partir da ausência de tempos e espaços intervalares e suplementares. Quando espaços e tempos são reenquadrados pela partilha política do sensível, relações inéditas são estabelecidas entre significações e corpos, entre os corpos e seus modos de identificação, lugares e destinações. A partilha política do sensível “desfaz as fronteiras que definem os territórios e as competências” (Rancière, 2009b, p. 576), ela altera o “entre”, o intervalo “entre identidades e os papéis que elas podem desempenhar, entre os lugares que lhes são destinados e aqueles que elas ocupam de maneira transgressiva” (Rancière, 2009b, p. 315). O intervalo verbal e espacial onde opera essa partilha é um “tecido lacunar” (2009b, p. 319), uma topografia intervalar de um jogo que modifica as posições e coordenadas onde aparecem os corpos, as relações entre os corpos e as estimativas de suas capacidades, as palavras e as imagens: “esse jogo desfaz uma ordem dada de relações entre o visível e as significações a ele relacionadas e constitui outras tramas sensíveis que podem contribuir para a ação de sujeitos políticos” (Rancière, 2009b, p. 515).

A partilha política do sensível destaca a qualidade dos sujeitos enquanto seres falantes, que tomam a palavra para gerar intervenções na ordem do sensível que divide o mundo comum entre regimes de visibilidade e invisibilidade, criando pontos de resistência ao inaugurarem cenas dissensuais nas quais os indivíduos se constituem como sujeitos políticos. Sob esse aspecto, a estética seria, em primeiro lugar, “a libertação em relação às normas de representação e, em segundo lugar, a constituição de um tipo de comunidade do sensível que inclui aqueles que não são incluídos, dando a ver um modo de existência do sensível deduzida da divisão entre partes” (Rancière, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., p. 88).

A política é uma atividade de reconfiguração do que é dado no sensível, por isso Rancière afirma que “temos que nos concentrar primeiro na especificidade da ‘estética da política’, na especificidade da invenção política” (2011a, p. 13). A maneira como Rancière concebe a noção de estética em seu trabalho abrange tanto um regime específico da arte (oposto ao regime representativo), quanto uma “batalha sobre o material sensível/perceptível, sobre a visibilidade concernentes às coisas que uma comunidade considera que devem ser observadas, e os indivíduos apropriados para observá-las, julgá-las e decidir sobre elas”. (Rancière, 2000c, pp. 11-12Rancière, Jacques (2000c). Literature, Politics, Aesthetics: Approaches to Democratic Disagreement. Interviewed by Solange Guénoun and James H. Kavanagh, Substance, 92 (1), 3-24.). Sob esse aspecto, e retomando a questão espacial mencionada anteriormente, as interfaces entre uma “estética da política” e uma “política da estética” são assim definidas pelo autor:

Utilizo essa polaridade entre a política da estética e a estética da política para dizer que podemos construir um tipo de espaço, um território, no qual as formas sensíveis que constituem a política e as formas de transformação do sensível que constituem a arte podem se encontrar, mas sem sermos capazes de definir a relação entre as duas a partir de uma globalidade sistemática. (Rancière, 2016Rancière, Jacques (2016). The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Polity Press., p. 55)

A política da estética “não se refere à relação entre arte e política em sentido estrito, mas ao sentido da configuração de uma esfera específica - a esfera da estética - na partilha política do perceptível” (2011a, p. 8). A política da estética reenquadra o mundo da experiência comum, criando novos modos de construção de objetos e novas possibilidades de enunciação subjetiva. Aqui, seria preciso destacar como o “trabalho das imagens” (Rancière, 2019aRancière, Jacques (2019a). Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Les Presses du Réel.) está entrelaçado com uma concepção de política que desestabiliza formas estabelecidas de visibilidade e configura outras poéticas possíveis para apreender os acontecimentos.

A estética da política transforma a percepção que temos da distribuição desigual de espaços, palavras e temporalidades entre os sujeitos. Ela diz respeito a uma ruptura com um tipo de ordem sensível que se pretende natural e que define que pode ou não tomar parte nas atividades coletivas, ancorando corpos a lugares e identidades impostos. A estética da política promove uma fratura em um sistema de identidades constituídas, inventa novos modos de experimentar outras formas de enunciação e de existência. A natureza estética da política é conflitiva, pois revela “não um mundo de interesses ou valores que competem entre si, mas um mundo de mundos que se enfrentam” (2011a, p. 7).

E é por ser capaz de desconcertar os sentidos, e de subjetivar esse desconcerto, que a partilha política do sensível pode reconfigurar os temas, as experimentações e as atitudes que se inscrevem nos espaços comuns de existência. Isso significa, para Jacques Rancière, “que a política é, acima de tudo, uma batalha sobre o material sensível/perceptível que uma comunidade considera que deve ser observado como importante, e os indivíduos apropriados para observá-lo, julgá-lo e decidir sobre ele” (2000b, pp. 11-12Rancière, Jacques (2000b). Le partage du sensible: esthétique et politique. La Fabrique, ). Isso implica uma redefinição do que deve se tornar visível e de quem pode acionar essas operações de visibilidade e legibilidade.

Tais mudanças acionam um processo de partilha política do sensível que requer a invenção da cena polêmica de “aparência” e interlocução na qual se inscrevem as ações, a palavra e o corpo do sujeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui de maneira performática, poética e argumentativa a partir da conexão e desconexão entre os múltiplos nomes e modos de “apresentação de si” que o definem (Quintana, 2019Quintana, Laura (2019). Jacques Rancière and the emancipation of bodies. Philosophy and Social Criticism, 45(2), 212-238.). É na cena que a subjetivação política se desenha a partir do tratamento do dano, do dissenso e da desidentificação.

É importante salientarmos que pretendemos fazer aqui uma articulação entre o processo de subjetivação e o processo de emancipação política, evidenciando como estão imbricadas, sem que, necessariamente sejam confundidas. Rancière (2016Rancière, Jacques (2016). The method of equality. Interviews with Laurent Jeanpierre and Dork Zabunyan. Polity Press.) destaca que a subjetivação política é o processo por meio do qual três elementos acontecem entrelaçados: primeiro, uma identidade já dada e imposta é questionada, transformada ou recusada. Assim, a subjetivação não é o reconhecimento de uma identidade nem tampouco o gesto de assumir uma outra identidade: ela requer o desligamento com a identidade imposta e o posterior trabalho sobre novas posições de sujeito.

Segundo, a subjetivação traz os sujeitos para uma cena, montada por eles próprios, na qual a política interrompe a naturalização de uma ordem consensual. Nesse espaço, eles fazem uma demanda pela igualdade fundamental através de demonstrações argumentativas, que significa que eles também, aqueles que não contam, precisam ser contados. Os sujeitos não existem antes da política, mas passam a existir através da política, ao criarem um lugar comum polêmico para o tratamento do dano e para a demonstração da igualdade.

Terceiro, a subjetivação ressalta o entrecruzamento e o fluxo entre identidades, nomes, posições e identificações, evidenciando que a contingência e o trabalho de articulação são constantes e formam alianças com diferentes sujeitos e grupos. Assim, o sujeito político constrói um modo de ser em oposição a uma identidade atribuída, combinando modos de vida que supostamente pertenceriam a identidades separadas. “A subjetivação política é a constituição de um coletivo capaz de falar em primeira pessoa e de identificar sua afirmação com a reconfiguração de um universo de possibilidades” (2011b, p. 250).

O processo de emancipação está mais ligado ao modo como essas três dimensões da subjetivação serão orientadas para uma verificação da igualdade que também questione a partilha de temporalidades, espacialidades e suas implicações sobre as corporeidades e seu aparecimento político. Assim, “a emancipação não implica uma transformação em termos de conhecimento, mas em termos de posição dos corpos” (Rancière, 2009bRancière, Jacques (2009b). Les territoires de la “pensée partagée”. Entretien a Jacques Lévy, Juliette Rennes et David Zerbib. In Jacques Lévy, Juliett Rennes, & David Zerbib (Orgs.),Et tant pis pour les gens fatiguées (pp. 572-586), Éditions Amsterdam., p. 575). A dimensão estética da emancipação considera o aparecimento dos sujeitos sobre a cena conflitual como “um modo de inscrição em um universo sensível ... o fato de ser dotado de certo corpo, definido por capacidades e incapacidades, e pelo pertencimento a certo universo perceptivo” (Rancière, 2009b, p. 575). Sob esse aspecto, uma das principais dimensões da emancipação é definida por Rancière como uma ruptura com a corporeidade que afirma a correspondência e a adequação “entre certo tipo de ocupação e certo tipo equipamento intelectual e sensorial” (2009b, p. 575). Somada ao aparecimento, ele também aponta que “o centro da questão da emancipação é uma preocupação em quebrar/romper com a partilha do tempo que sustenta a sujeição social (reconfiguração de um estado de coisas)” (Rancière, 2011a, p. 7).

Subjetivação, desidentificação e experiência

Jacques Rancière ressalta que a subjetivação política resulta da “produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo de experiência dado, cuja identificação está ligada à reconfiguração do campo da experiência” (Rancière, 1995, p. 59). A noção de “campo da experiência” é aqui associada à partilha policial do sensível, na qual, para cada um, algum lugar, capacidade, função, temporalidade e corporeidade já está definido a priori e é passível de ajustes, controle e redesignação limitada. Em contrapartida, a experiência desviante da subjetivação política envolve o aparecimento como dinâmica que aciona “modificações efetivas em um campo de experiência, possibilitando a construção de um mundo alternativo em relação àquele no qual as posições já se encontram distribuídas” (Rancière, 2020a, p. 833).

Os atos de subjetivação política redefinem “o que é visível, o que se pode dizer acerca do que é tornado visível e que sujeitos são capazes de fazê-lo” (Jacques Rancière, 2010aRancière, Jacques (2010a). Dissensus: on politics and aesthetics. Continuum., p. 65). A relação estabelecida por Rancière entre a subjetivação política e a experiência marca seu intuito de evidenciar como a reconfiguração das coordenadas do posicionamento dos sujeitos dentro de hierarquias que limitam oportunidades de enunciação e escuta requer menos a substituição do “campo da experiência” pela “experiência desviante” e mais a explicitação de como uma dialoga com a outra, em constante tensão:

O importante para mim é pensar a subjetivação sob um modo dialógico, não pensá-la como a forma de uma emergência, uma experiência que deriva de sua própria apropriação ou formulação direta, mas uma experiência que se formula em uma espécie de diálogo ou relação entre vários tipos de formulações possíveis correspondendo a vários regimes de experiência possíveis. (Rancière, 2018aRancière, Jacques (2018a). “O desmedido momento”. Serrote, 28, 77-97., p. 28)

Assim, a subjetivação não se confunde com uma revolta contra um assujeitamento, mas abrange, por exemplo, o ato de “tomar posse de um espaço que é sinalizado como não pertencente a um dado sujeito” (Rancière, 2020aRancière, Jacques (2020a). La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, 881, 828-840., p. 835). Da mesma maneira que a política não existe para substituir a polícia, a experiência da subjetivação não é o que vai “neutralizar” a experiência da sujeição. “A ordem policial tende a fixar identidades, de modo que o ordenamento social apareça como dado, ocultando ou naturalizando os danos que produz e organizando a heterogeneidade do demos. A divisão das partes aparecerá então como natural, pois a percepção sensível da hierarquização não será polemizada” (Machado, 2013Machado, Frederico (2013). Subjetivação Política e Identidade: contribuições de Jacques Rancière para a Psicologia Política. Psicologia Política, 13(27), 261-280., p. 268).

Rancière ainda destaca que a subjetivação não se alimenta de uma oposição entre institucionalização e espontaneidade, entre uma solidez que aprisiona e uma liberdade explosiva. Não se trata de culpar a rigidez institucional, mas de criar um “povo” que elabore um conhecimento novo: a aposta do autor está em questionar a reprodução da hierarquia dentro das instituições a partir de mudanças que possam ser feitas na “máquina explicativa” que define as vidas e conhecimentos que contam e aqueles que não são considerados.

A subjetivação política altera as coordenadas da experiência quando os sujeitos aparecem em uma cena na qual elaboram os termos de sua emancipação ao se assenhorarem dos tempos, espaços, palavras e modos de presença que lhes eram anteriormente confiscados (Marques & Prado, 2021Marques, Ângela & Prado, M. A. (Org.). (2021). Pequena máquina anti-hierárquica: entrevista com Jacques Rancière sobre o método da cena. SELO PPGCOM.). O dialogismo entre diferentes textos, enunciados, discursos, imagens e objetos configura a cena que torna visível a invisibilidade das desigualdades, oferecendo imagens excessivas de hierarquias que se recusam a emprestar suas palavras àqueles que não deveriam aparecer, que não deveriam ter tempo para criar, nem espaços outros para transitar.

A língua da singularidade igualitária é uma língua idiomática que retoma as palavras, que modifica seu uso, que mistura os gêneros e varia as relações entre o próprio e o figurado. Assim, podemos dizer que, fundamentalmente, o idioma igualitário é como uma linguagem emprestada. (Rancière, 2019cRancière, Jacques (2019c). El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Ned Ediciones., p. 79)

O modo como um sujeito político aparece e fala em público nos revela como sua palavra “se forma com palavras da língua do outro, palavras emprestadas que se retorcem e que perdem seu sentido normal, legítimo” (Rancière, 2019cRancière, Jacques (2019c). El litigio de las palabras: diálogo sobre la política del lenguaje. Entrevista a Javier Bassas. Ned Ediciones., p.79). O aparecer é, de maneira geral, uma experiência de ruptura com uma ordem prefigurada da experiência que programa nossa percepção para responder de maneira consensual aos apelos da alteridade. Esse gesto é insurgente e igualitário, pois desafia a hierarquia que conecta o olhar e a escuta aos dispositivos de controle e de previsibilidade.

Em suma, o aparecer envolve uma outra maneira de pensar e realizar uma distribuição e organização dos corpos e das capacidades, modificando um campo de experiência e construindo uma cena alternativa em relação àquela na qual as posições, expectativas e temporalidades já estavam assinaladas e distribuídas. “Este processo demanda a percepção sensível de que uma determinada experiência não implica necessariamente em uma identidade dada, mas se encontra entre identidades que foram cindidas por um processo de subjetivação anterior” (Machado, 2013Machado, Frederico (2013). Subjetivação Política e Identidade: contribuições de Jacques Rancière para a Psicologia Política. Psicologia Política, 13(27), 261-280., p. 270).

Um sujeito emancipado é uma pessoa capaz de falar da atividade que ele exerce, capaz de conceber essa atividade como uma forma de linguagem. Mas é preciso entender o que linguagem quer dizer: não um sistema de signos, mas uma potência de endereçamento que visa tecer certa forma de comunidade: uma comunidade de seres que partilham um mesmo mundo sensível, mas que, permanecendo distantes uns dos outros, criam figuras para comunicar através da distância sem eliminá-la. Uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores e tradutores. (Rancière, 2018cRancière, Jacques (2018c). Les temps modernes. La Fabrique., p. 114)

Uma das dimensões centrais da subjetivação para Rancière está na concepção do ato de interlocução e de suas condições e discursos, que tecem linhas de força e lugares de sujeito que a eles impõe nome, pertencimento e ocupação. No processo de subjetivação, o sujeito, sobretudo aquele que pertence a um grupo constantemente apartado de processos políticos institucionais é

capaz de elaborar um modo de olhar que sua condição social normalmente interdita e essa aquisição coloca-o no caminho da emancipação. Ele escapa do modo de ser que a dominação preparou para ele, construindo a relação entre o espaço material no qual trabalha e o espaço simbólico que lhe é negado como trabalhador. (Rancière, 2018aRancière, Jacques (2018a). “O desmedido momento”. Serrote, 28, 77-97., p. 20)

A subjetivação política produz um deslocamento na maneira como o que percebemos é organizado, como ganha uma disposição e uma legibilidade. A proposta que se evidencia aqui, faz com que colocar em cena um trabalhador, um sujeito que elabora ativamente sua emancipação, envolve uma abordagem na qual ele “não será mais uma figura de desolação ou de exploração, mas a figura de alguém que enfrentou uma história e tem uma palavra, uma memória, uma força de elocução, uma síntese de sua experiência” (Rancière, 2018aRancière, Jacques (2018a). “O desmedido momento”. Serrote, 28, 77-97., p. 63).

Rancière (2004Rancière, Jacques (2004). Aux bords du politique. Gallimard.) define, portanto, três facetas do processo de subjetivação: (a) a demonstração argumentativa do dano e seu tratamento; (b) a dramatização performática na cena de dissenso; e (c) a desidentificação com uma identidade atribuída pela ordem policial. É exatamente este o ponto que nos interessa: processos de subjetivação nascem de rupturas que deslocam os sujeitos das posições em que estariam previamente encaixados, instaurando dissensos.

Tratar o dano, aparecer na cena

A ação de expressar o dano pode se configurar, primeiramente, como o momento em que se dá o início da formação ética do sujeito como interlocutor. Em seguida, como oportunidade de inventar a cena comunicativa polêmica na qual os sujeitos tentam se inscrever, e como a oportunidade de enriquecer a linguagem que utilizam, de inverter papéis e até mesmo de silenciar os que geralmente falam, para deixar falar aqueles que, a princípio, não teriam nada a dizer. É preciso lembrar que o desentendimento, tal como definido por Rancière (1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée.), não se estrutura sobre uma demanda por igualdade ou reconhecimento expressa pelos “sem-parte”, mas traduz uma ação política que questiona a própria existência do sujeito como tal.

A demanda que se articula à exposição e encenação do dano na cena de dissenso não pode ser atendida, uma vez que os sujeitos mobilizados por um dano político não são entidades à quem esse dano ocorreu por acidente, mas sujeitos cuja própria existência já é o modo de manifestação do dano (Davis, 2010Davis, Oliver (2010). Jacques Rancière. Polity Press.). “O conceito de dano (tort) não está ligado a nenhuma dramaturgia de vitimização. Ele pertence à estrutura original de toda política. O dano é simplesmente o modo de subjetivação no qual a verificação da igualdade adquire figura política” (Rancière, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., p. 63). O dano não pode ser reparado, sob pena de exigir a própria extinção da polícia: ele somente pode ser tratado por modos de subjetivação política que reconfiguram o campo da experiência. “Não há possibilidade de reparação do dano, mas há um lugar comum polêmico para o tratamento do dano e para a demonstração da igualdade.” (Rancière, 2004, p. 121).

O dano político não se resolve pela objetivação do litígio e pelo compromisso entre as partes envolvidas. Mas ele pode ser tratado pelos dispositivos de subjetivação que o fazem permanecer como relação modificável entre as partes, como a própria modificação do terreno sobre o qual o jogo se estabelece. (Rancière, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., p. 64)

A subjetivação política requer a modificação do terreno e das relações dialógicas que modelam o jogo no qual se define um lugar para aqueles que podem ou não ocupar uma parte na ordem estabelecida. Tal processo está associado ao conflito entre uma identidade atribuída pela ordem consensual e uma identificação impossível, ou uma desidentificação com o que seria “próprio” ou específico dos “sem-parte”. Para Rancière (2004Rancière, Jacques (2004). Aux bords du politique. Gallimard.), o que constitui o espaço político está intimamente ligado a um conflito de enunciação que surge quando, na cena, os “sem-parte” não tomam a palavra a partir do lugar que lhes foi atribuído sociologicamente, mas se inscrevem na cena por meio do discurso, da argumentação e dos recursos poéticos da experiência desviante, afastando-se do espaço e do status que lhes foi designado pela ordem policial.

A existência dos sem-parte está ligada a uma desidentificação, ao questionamento da naturalidade com que aos sujeitos é atribuído um lugar à abertura de um espaço de sujeito no qual qualquer um pode ser contado, porque ele é o espaço de uma conta dos não contados, de uma relação entre uma parte e uma ausência de parte. (Rancière, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., p. 60)

A parte dos “sem-parte” não designa a objetividade de um grupo empírico excluído do domínio político. Não se trata de uma outra maneira de se referir à política da identidade pelo posicionamento de um outro marginalizado (Rancière, 2011bRancière, Jacques (2011b). Against an ebbing tide: an interview with Jacques Rancière. In Paul Bowman Richard Stamp (Eds.), Reading Rancière (pp. 238-251). Continuum.). Eles não são sujeitos objeto de uma política da identidade, mas sim de “identificações impossíveis”. Os “sem-parte” portam nomes que não pertencem a sujeitos ou grupos específicos: as subjetividades formadas através do dissenso não podem ser habitadas pelas pessoas ou grupos que encenam o dano. Contudo, elas proporcionam os meios para escapar às identidades policiais que limitam os indivíduos. Assim, as identificações geradas por essas subjetividades criam sujeitos que estão juntos pelo fato de estarem entre identidades, entre nomes.

Um sujeito é um “ser entre”: entre vários nomes, estatutos ou identidades. Entre humanidade e desumanidade, a cidadania e sua negação; entre o estatuto de homem, de ferramenta e de ser falante e pensante. A subjetivação política consiste nas ações voltadas para a comprovação da igualdade pressuposta - ou para o tratamento de um dano por pessoas que estão juntas justamente porque estão “entre”. Trata-se de um cruzamento de identidades que repousa sobre um cruzamento de nomes: nomes que conectam o nome de um grupo ou de uma classe ao nome daqueles que não são considerados, que ligam um ser a um “não-ser” ou a um “ser em devir”. (Rancière, 2004Rancière, Jacques (2004). Aux bords du politique. Gallimard., p. 119)

É possível dizer, portanto, que o tratamento do dano gera desidentificações: rupturas com uma ordem discursiva que oferece a cada pessoa seu lugar na ordem das coisas, um lugar atrelado a uma identidade social. Importante dizer aqui que Rancière (1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., 2004) define a identidade social como a inscrição de um sujeito em uma ordem que associa sem recurso o seu lugar a uma maneira de fazer e dizer apropriados. Essa inscrição não é neutra, uma vez que o dizer e o fazer que ela define são indexados a um valor que dota a inscrição de um poder e de uma significação sociais. Para ele, a identidade social utilizada como base para reivindicações morais só produz efeitos desiguais e, por isso, o sujeito político se define no distanciamento de toda identidade social, em que os “nomes” recebidos por esse sujeito são desviados de sua significação social para se tornarem lugares, processos nos quais se exerce uma demanda de igualdade.

A lógica da subjetivação política não é jamais a simples afirmação de uma identidade, ela é sempre, ao mesmo tempo, a negação de uma identidade imposta por um outro, fixada pela lógica policial. A polícia deseja nomes exatos, que marquem para as pessoas o lugar que ocupam e o trabalho que devem desempenhar. A política, por sua vez, diz de nomes ‘impróprios’ que apontam uma falha e manifestam um dano”. (Rancière, 2004Rancière, Jacques (2004). Aux bords du politique. Gallimard., p. 121)

A subjetivação política produz cenas polêmicas nas quais não mais há uma correspondência exata entre nomes e indivíduos, identidades sociais e identidades políticas. Ela concerne, além disso, a uma figura política coletiva, não individualizada, problematizando o processo de universalização de atores particulares, em situações de luta particulares, sob a forma da constituição de um sujeito plural, coletivo, não redutível à demanda de uma comunidade de sujeitos preidentificados (através das categorias de classe, raça, sexo, ou pelas categorias socioprofissionais). É um tipo de subjetivação que envolve o jogo de enunciação e a forma como os indivíduos aparecem na cena pública dissensual.

A fim de entrar na troca política é preciso inventar a cena na qual palavras ditas se tornam audíveis, objetos se tornam visíveis e indivíduos podem ser reconhecidos. Essa atividade de invenção permite uma redescrição e reconfiguração do mundo comum da experiência. É nesse sentido que podemos falar da poética da política. (Rancière, 2000aRancière, Jacques (2000a). Dissenting words: a conversation with Jacques Rancière by Davide Panagia. Diacritics, 30(2),113-126., p. 116)

A cena é palco de um processo de desidentificação de sujeitos que se encontram no entrecuzamento de nomes, identidades e culturas. Ao mesmo tempo, a desidentificação remete à invenção da cena de interlocução na qual se inscreve a palavra do sujeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui “capaz de se pronunciar em primeira pessoa e de identificar sua afirmação com a reconfiguração de um universo de possibilidades” (Rancière, 2011bRancière, Jacques (2011b). Against an ebbing tide: an interview with Jacques Rancière. In Paul Bowman Richard Stamp (Eds.), Reading Rancière (pp. 238-251). Continuum., p. 250). A cena é tanto a aparição performática de corporeidades que desejam questionar posições de sujeito impostas, quanto uma operação metodológica que articula criticamente uma heterogeneidade de elementos (Rancière, 2021Rancière, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Ed. 34.). Quando Rancière narra o modo como monta uma cena, ele destaca que indica os aspectos e singularidades acerca dos quais o encontro com um conjunto de materiais o fez pensar. O que ele oferece ao interlocutor é sua visão parcial, tentativa, incompleta, mas é o seu olhar acerca de um dado acontecimento em relação a outros. Ao fazer isso, não se pode assumir uma postura prescritiva, explicativa, como se estivesse querendo impor algo. Trata-se de oferecer uma proposição de sentido a ser discutida, reconfigurada, revista, como uma constelação movente.

Em suma, a cena de dissenso confere visibilidade ao tratamento de um dano por pessoas que estão juntas por estarem “entre”, por estarem em um cruzamento de identidades e nomes que ligam o nome de um grupo ao nome daqueles que estão fora de uma conta (Marques & Prado, 2018). A cena de exposição e tratamento desse dano dá a ver um intervalo ou uma falha que permite a demonstração da igualdade e a classificação identitária. Nesse sentido, a desidentificação é uma noção que tenta organizar processos emancipatórios a partir de uma desclassificação das coordenadas que reproduzem a ordem social (Deranty, 2003Deranty, Jean-Philippe (2003). Rancière and Contemporary Political Ontology. Theory and Event, 6(4). https://doi.org/10.1353/tae.2003.0010
https://doi.org/10.1353/tae.2003.0010...
).

Sempre tentei dizer que um ser, que se supõe que esteja fixo em algum lugar, na realidade estava sempre participando de vários mundos, o que conformava uma posição polêmica contra essa teoria asfixiante das disciplinas, mas era também uma posição teórica mais global contra todas as formas de teorias identitárias. Do que se tratava era de dizer que o que define os possíveis para os indivíduos e grupos nunca é uma relação entre uma cultura própria, uma identidade própria e as formas de identificação do poder em questão, senão o fato de que uma identidade se constrói a partir de uma grande quantidade de identidades ligadas a uma grande quantidade de lugares que os indivíduos podem ocupar, a multiplicidade de suas pertenças, das formas possíveis de experiência”. (Rancière, 2014Rancière, Jacques (2014). O ódio à democracia. Boitempo. , p. 91)

Ao invés de propor um conceito emancipatório que identifica previamente seu agente revolucionário por meio da análise das classes sociais, trata-se de salientar as forças polêmicas de desidentificação que instauram um movimento imprevisível no seio de um mundo marcado pelas desigualdades e formas de dominação (Fjeld & Tassin, 2015Fjeld, Anders & Tassin, Etiènne (2015). Subjectivation et désidentification politiques: dialogue à partir d’Arendt et de Rancière. Ciencia Política, 10(19),193-223.).

A noção de sujeito, sob esse aspecto pode ser compreendida como uma identidade reivindicada, que excede todas as coordenadas da ordem social consensual: uma identidade desidentificada, que se orienta por seu excesso em direção a outros mundos possíveis. Não se trata, portanto, de renunciar à noção de identidade, mas de pensar o conceito de sujeito como lugar provisório de união, um nome desidentificado que marca, ao mesmo tempo, os horizontes desses mundos possíveis e os contornos de forças políticas dissensuais. Interessa a Rancière o sujeito desidentificado e móvel sob o qual se juntam as forças políticas de ruptura e disjunção.

Considerações finais

O processo de desidentificação permite o tratamento de um dano por pessoas que estão juntas justamente porque estão “entre”. Trata-se de um cruzamento de identidades que repousa sobre um cruzamento de nomes: nomes que conectam o nome de um grupo ou de uma classe ao nome daqueles que não são considerados, que ligam um ser a um “não-ser” ou a um “ser em devir” (Rancière, 2000aRancière, Jacques (2000a). Dissenting words: a conversation with Jacques Rancière by Davide Panagia. Diacritics, 30(2),113-126.). Assim, o dano pode ser apontado como o ponto de tensão mais forte existente entre a lógica policial de partilha do sensível e o processo prático de verificação da igualdade: na partilha mesma do que é comum a uma comunidade, aqueles que são vistos como não tendo nada a oferecer ao coletivo vêem negada a sua existência política, sua existência como interlocutores. Esse dano fundamental faz com que os “sem-parte” se localizem na difícil posição de não terem uma existência reconhecida na hierarquia social da ordem policial: eles não contam e não foram contados desde o início como pares, como iguais.

Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente acontagemque é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta. (Rancière, 1995Rancière, Jacques (1995). La Mésentente: politique et philosophie. Galilée., p. 45)

Sendo assim, a lógica da desidentificação não é jamais a afirmação de uma identidade, ela é sempre, ao mesmo tempo, a negação de uma identidade imposta e fixada pela lógica policial. A desidentificação promove uma operação intervalar na qual a subjetivação política pode trabalhar: o intervalo entre polícia e política, sempre em movimento, favorece passagens entre nomes, corporeidades e experiências. A polícia deseja nomes exatos, que designem para as pessoas o lugar que ocupam e a função que devem desempenhar. A política, por sua vez, diz de nomes “impróprios” que apontam que sujeitos podem ser mais que o lugar que ocupam socialmente: os nomes que recebem e que não se “adequam” à classificação policial manifestam a presença de um dano (Rancière, 2009aRancière, Jacques (2009a). The method of equality: an answer to some questions. In Gabriel Rockhill & Philip Watts (Orgs.), Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics (pp. 273-288). Duke University Press., 2009b).

A desidentificação atua a partir da abertura de intervalos e não a partir da construção de respostas ou posições de sujeito articuladas: ela busca uma sintaxe “inapropriada”, “excessiva”, criada a partir de elementos disponíveis, mas que, reagrupados e justapostos de outro modo, produzem uma visibilidade singular, forçando os sujeitos a moverem-se constantemente em um entre, entre lugares, entre tempos, entre nomes (Maheirie, Miranda, Sawaia, & Iñiguez-Rueda, 2021Maheirie, Kátia, Miranda, P., Sawaia, Bader, & Iniguez-Rueda, L. (2021). Psicologia nos CRAS: uma análise do dissenso e dos processos de coletivização. Psicologia & Sociedade, 33, 1-17. e232754). Assim, ela promove uma liminaridade entre várias cenas que atuam umas sobre as outras, sem buscar explicações ou costuras entre diferenças. Isso implica uma montagem que evita uma ordem narrativa linear causal: a potência política do diálogo e da articulação entre nomes e cenas que montam a subjetivação reside nas relações inesperadas e nos microacontecimentos sensíveis que elas engendram.

Como vimos, a desidentificação produz um deslocamento na maneira como o que percebemos é organizado, como ganha uma disposição e uma legibilidade. Sob essa perspectiva, a desidentificação não é uma operação de fuga de um real opressor, mas um trabalho de fabulação que se instaura a partir da abertura de um intervalo no espaço-tempo e que se dedica a questionar o determinismo que fixa o destino dos indivíduos e de sua significação. Assim, ela consiste em produzir uma rede complexa, capaz de alterar a legibilidade de um corpo vulnerável, fazendo com que ele não seja mais percebido como “uma figura de desolação ou de exploração, mas como a figura de alguém que enfrentou uma história e tem uma palavra, uma memória, uma força de elocução, uma síntese de sua experiência” (Rancière, 2018aRancière, Jacques (2018a). “O desmedido momento”. Serrote, 28, 77-97., p. 63). O espaço e o tempo desenhados no intervalo desidentificatório suspendem a maneira habitual de inscrição dos sujeitos nas relações intersubjetivas e a maneira consensual de dispor os vínculos, as formas de aparecimento e nos localizarmos em relação a eles (Marques & Prado, 2018aMarques, Ângela & Prado, Marco Aurélio (2018a).Diálogos e Dissidências: Michel Foucault e Jacques Rancière. Appris., 2018bMarques, Ângela & Prado, Marco Aurélio (2018b). O método da igualdade em Jacques Rancière: entre a política da experiência e a poética do conhecimento.Mídia e Cotidiano, 12(3), 7.).

A desidentificação permite um aparecer intervalar no sentido de que o corpo transita entre nomes, entre outras imagens e entre outras sintaxes. Nesse trânsito, o corpo reinventa seus próprios movimentos, seus gestos singulares, sua mobilidade única entre espaços sociais, políticos e institucionais. O aparecer do corpo é uma das dimensões comunicativas e interrelacionais do processo de reconfiguração do campo da percepção e do imaginário político de um indivíduo. Esse deslocamento do corpo modifica a topografia do que é tido como possível e pode ser estudado, por exemplo, a partir da maneira como insurgências, levantes e resistências evidenciam transformações menores e cotidianas dos corpos vulneráveis, alterando a partilha policial do sensível que insiste em regular e controlar os desejos, deslocamentos e aparências de corpos dissidentes e abjetos.

Rancière concebe, então, a desidentificação como parte de um processo intervalar de subjetivação política, configurando sujeitos políticos que revelam como os nomes (proletário, trabalhador, mulher, imigrante etc.) são desviados de sua significação social para transformarem-se em espaços nos quais se define e se encena uma demanda de igualdade. Esses nomes seriam, portanto, provisórios e estariam atrelados a uma situação de fala específica. Sujeitos desidentificados só existem em ato: suas ações são a manifestação de um dissenso, a criação de cenas polêmicas nas quais questionam a suposta naturalidade de uma forma de “contar” que articula a comunidade consensual, conferindo visibilidade à desigualdade que articula os sujeitos e os mantém em “seus lugares designados” (Rancière, 2018b, p. 213Rancière, Jacques (2018b). La Méthode de la scène. Éditions Lignes.). As desidentificações produzem transformações individuais e coletivas: produzem formas de emancipação que não se reduzem à autonomia individual, mas valorizam a produção de relações, cenas de enunciação e articulações entre forças e indivíduos desidentificados de suas designações outorgadas.

A subjetivação política não é o “reconhecimento de” ou o gesto de “assumir uma identidade”, mas o desligamento com essa identidade, a produção de um hiato entre a identidade da ordem vigente e uma nova subjetividade política. O sujeito político age, então, para retirar os corpos de seus lugares assinalados, libertando-os de qualquer redução à sua funcionalidade (Prado, 2019Prado, Marco Aurélio (2019). Emancipações, subjetivações políticas e a questão democrática. In A. Costa-Val, A. Guerra, M. A. Prado, & G. M. Rocha (Orgs.),Confins do Político (pp. 205-227). CRV.). Note-se aqui que este processo de subjetivação recorre a experiência dos corpos em ação, seus deslocamentos, suas percepções sensíveis bem como a invenção de ações coletivas. Neste sentido que esta rede conceitual de Jacques Rancière pode nos ajudar a pensar não só a política desde o lócus da experiência do sensível, mas também como um campo de sujeitos e não de designações identitárias.

A subjetivação política atua nesse redesenho das coordenadas da experiência dos sujeitos “redispondo temporalidades e partilhas que vão definir as formas de experiência possíveis” (Rancière, 2020aRancière, Jacques (2020a). La pensée des bords (entretien avec Fabienne Brugère). Critique, 881, 828-840., p. 829). Como mostra Rancière, a subjetivação instaura um espaço de jogo no qual os modos de individuação e de encadeamentos entre as posições e ocupações dos corpos contribuem para libertar as possibilidades de ação política ao desfazer as formatações estático-midiáticas da realidade.

Rancière não nega que a desigualdade precisa ser performada por aqueles que a vivenciam em sua vida, que a sentem, que a percebem. Ele mesmo procura nas narrativas dos operários a tematização de um dano, a desidentificação com relação a uma identidade socialmente imposta e subversão de uma performance da desigualdade. Na experiência sensível e política da subjetivação, o operário implementa uma ação movida pelo gesto do “como se”, que desloca a lógica que o remete a um dado lugar social. Na verdade, o “como se” também revela que os sujeitos estão “entre” diferentes mundos e que é no intervalo entre eles, nas passagens entre diferentes limiares, que surge a criação de cenas polêmicas de subjetivação. “Sempre tentei dizer que um ser humano que estaria supostamente preso a um dado lugar na verdade sempre esteve partilhando vários mundos. E isso é uma cena polêmica contra a teoria sufocante de diferentes tipos de disciplina, mas também uma posição teórica mais geral contra todas as formas de teorias da identidade” (Rancière, 2016, p. 64).

A maneira como Rancière dá a ver a construção dos processos de subjetivação é instigante, uma vez que ele reelabora acontecimentos ligados à tematização e explicitação de desigualdades através de uma escritura que privilegia as formas de apresentação das situações, de agenciamento dos enunciados, as formas de construção das relações entre causa e efeito que rasuram os formatos tradicionais de inteligibilidade. Para ele, um discurso teórico é, ao mesmo tempo, uma forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre os quais ele se debruça e articula. Ao reivindicar o caráter poético da enunciação da cena, Rancière consegue nos mostrar como a performance da igualdade não só quebrar as fronteiras e as hierarquias entre posições de sujeito, mas também entre os níveis e as formas de discurso.

Além disso a poética envolvida na construção da cena coloca em jogo uma performance da igualdade que alimenta a emancipação. E, segundo Rancière, a emancipação não é apenas a subversão de uma dada distribuição do sensível: ela também abrange as formas de compartilhamento dos saberes e das experiências originadas dessa subversão. Assim como os operários escreveram cartas a seus amigos refletindo acerca da falta de tempo ou de como retomavam o tempo que lhes havia sido roubado, os plebeus compartilham entre si as artes poéticas da elaboração de um “como se” que lhes permitissem ser ouvidos pelos patrícios.

Na emancipação o que se desfaz é a relação entre o que é executado pelo corpo e o que é pensado como preocupação intelectual. Mas também é colocado para circular um excesso de palavras e enunciados que indica aos outros as trilhas a serem perseguidas em uma nova topografia do sensível instaurada. A reenquadramento do senso comum, a criação de um lugar polêmico, precisa de novos saberes e conhecimentos, do espraiamento das pistas que tornaram perceptíveis e legíveis a outras pessoas o que foi recriado. Esse reenquadramento não é instantâneo, mas depende de uma série de microexperiências contextualizadas de partilha do sensível, de uma multiplicidade de operações que reenquadram e tornam acessíveis as formas de produzir esses reenquadramentos das temporalidades, espacialidades e corporeidades. Na obra O espectador emancipado, Rancière (2012aRancière, Jacques (2012a). O destino das imagens. Contraponto.) faz uma relação muito importante entre as cenas de dissenso, a subjetivação e a emancipação:

O que há são simplesmente cenas de dissenso, que podem surgir em qualquer lugar, em qualquer momento. Dissenso é uma organização do sensível na qual não há realidade escondida sob as aparências, nem sistema único de apresentação e interpretação do dado impondo a todos a sua evidência. É que qualquer situação é passível de ser fendida por dentro, reconfigurada sob um outro regime de percepção e significado. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a partilha daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste um processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contadas que vão fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de subjugação. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. Ela é a implementação da capacidade de qualquer pessoa, da qualidade dos homens sem qualidade. (2012a, pp. 48-49)

Rancière explicita como, nas cenas de dissenso, a polícia é fraturada por dentro, o que permite uma reordenação das coordenadas da experiência. Polícia e política operam juntas, em articulação e tensionamento: ambas distribuem o sensível diferentemente, construindo topografias a partir da ação dos sujeitos. A subjetivação política é esse processo de redisposição, que combina desidentificações, dramatização argumentativa e construção de novas identificações. A emancipação vem como desdobramento do trabalho da política, que é contingente, mas nunca pontual ou isento de historicidade e produção de saberes partilháveis. Assim subjetivação e emancipação são parte de um amplo processo poético de elaboração de conhecimentos a serem apropriados e reapropriados em diferentes situações e contextos, por diferentes sujeitos e grupos que anseiam por transformações. Para Rancière, tal poética não promete nenhum futuro determinado. Mas não é a planificação do futuro que define horizontes novos. Ao contrário: é da divisão que opera no coração do presente e das invenções do método da igualdade que podem nascer futuros imprevisíveis”(Rancière, 2020b, p.113).

Esse trabalho que traz juntas a subjetivação e a emancipação alimenta a democracia, uma vez que ela não é um processo evolutivo, mas um trabalho de articulação e apropriação, que faz passar as palavras que circulam em um discurso para se encontrarem com palavras de outros registros. Os saberes derivados desses empréstimos alteram as experiências dos sujeitos, derrubam as fronteiras que definem territórios fixos, competências impostas, limitações de acesso ao sonho. Subjetivação e emancipação atuam para a afirmação de uma capacidade coletiva, investindo a operação de redispor o tempo e as maneiras como ele abriga as experiências e redefine experimentações.

A subjetivação em Rancière procura problematizar o processo de construção de um sujeito plural, coletivo, não identitário e não associado a comunidades ligadas por classe, raça, sexo, gênero ou profissão. Essa subjetivação desidentificatória é um processo de produção de relações e articulações. Assim, a potência deslocadora da política não está na afirmação de si, mas na rearticulação entre elementos, que gera desidentificações e dá margem ao surgimento de algo efetivamente contestador. Contudo, este deslocamento não é centrado no próprio sujeito. Ele busca configurar e (re)criar uma cena polêmica sensível na qual se inventam modos de ser, ver e dizer, promovendo novas subjetividades e novas formas de enunciação coletiva. No processo de subjetivação política, o indivíduo se faz sujeito emancipado através do trabalho que realiza sobre a própria linguagem e seus modos de expressão e aparição diante do outro.

Com esta rede conceitual é possível pensarmos uma contribuição singular do autor para os processos emancipatórios individuais e coletivos. Ao invés de apostar no fortalecimento e na rigidez identitária, o autor nos brinda com reflexões práticas que nos permitem adensar ao campo de estudos da psicologia social e política novas articulações conceituais.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2022
  • Revisado
    02 Set 2022
  • Aceito
    02 Set 2022
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