Resumos
O termo ''pesquisa de campo'' é normalmente empregado na Psicologia Social para descrever um tipo de pesquisa feito nos lugares da vida cotidiana e fora do laboratório ou da sala de entrevista. Nesta ótica, o pesquisador ou pesquisadora vai ao campo para coletar dados que serão depois analisados utilizando uma variedade de métodos tanto para a coleta quanto para a análise. Neste texto, relatamos as conclusões iniciais de uma série de discussões sobre pesquisas de campo feita numa perspectiva pós-construcionista. Partindo das dificuldades provocadas por uma noção de campo fisicamente determinada, a discussão retoma a perspectiva de Kurt Lewin sobre o campo como totalidade de fatos psicológicos, para depois se aproximar das propostas de Ian Hacking sobre ''matriz'' e a discussão mais ampla sobre materialidades. A conseqüência desta reflexão foi a proposição de um ''campo-tema'' onde o campo não é mais um lugar específico, mas se refere à processualidade de temas situados. O texto conclui com uma discussão sobre algumas implicações desta proposta para o processo de pesquisa e para as práticas narrativas usadas para relatar as suas conclusões.
pesquisa de campo; teoria de campo; perspectivas construcionistas; campo-tema
The expression ''field research'' is normally used in social psychology to describe a type of research that is carried out outside the laboratory and in the places where everyday action takes place. In this approach, the researcher will go ''to the field'' in order to collect data that will later be analyzed and in order to do this a variety of different methods will be used, both to gather the data and to examine it. This paper reports on the initial conclusions from a series of discussions held on field research, taking as a starting point a post-constructionist perspective. Beginning with the difficulties created by the notion of ''field'' as physically determined and separate, the debate moved on to consider the arguments of Kurt Lewin in favor of a notion of psychological field in which the field is the totality of psychological facts, before settling with the notion of matrix as proposed by Ian Hacking and the wider discussion of materiality. The result was the proposal of the notion of ''theme-field'', in which field is no longer a specific place but refers to the processuality of situated themes. The paper ends by considering the implications of this approach for the research process and for the narrative practices that are used to describe it and to discuss its conclusions.
field research; field theory; constructionist perspectives; theme-field
Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construcionista1 1 Este trabalho foi organizado e elaborado a partir das discussões semanais do Núcleo de Organizações e Ação Social PUC-SP durante o segundo semestre de 2002. Participaram ativamente destes debates: Alejandra Leon Cedeno, Alexandre Bonetti Lima, Carla Betuol, Denise Halsman, Fabio de Oliveira, Henrique Crossfelts, Janete Dias, Jesus Canelon Perez, João Bosco A. Sousa, Maria de Fatima Nassif, Monica Mastrantonio Martins, Roberto Minoru Ide e Tatiana Bichara. Uma versão preliminar do trabalho foi discutido no início de 2003 no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, coordenada pela Mary Jane Spink.
Field research social psychology: a post-construcionist perspective
Peter Kevin Spink
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
O termo ''pesquisa de campo'' é normalmente empregado na Psicologia Social para descrever um tipo de pesquisa feito nos lugares da vida cotidiana e fora do laboratório ou da sala de entrevista. Nesta ótica, o pesquisador ou pesquisadora vai ao campo para coletar dados que serão depois analisados utilizando uma variedade de métodos tanto para a coleta quanto para a análise. Neste texto, relatamos as conclusões iniciais de uma série de discussões sobre pesquisas de campo feita numa perspectiva pós-construcionista. Partindo das dificuldades provocadas por uma noção de campo fisicamente determinada, a discussão retoma a perspectiva de Kurt Lewin sobre o campo como totalidade de fatos psicológicos, para depois se aproximar das propostas de Ian Hacking sobre ''matriz'' e a discussão mais ampla sobre materialidades. A conseqüência desta reflexão foi a proposição de um ''campo-tema'' onde o campo não é mais um lugar específico, mas se refere à processualidade de temas situados. O texto conclui com uma discussão sobre algumas implicações desta proposta para o processo de pesquisa e para as práticas narrativas usadas para relatar as suas conclusões.
Palavras-chave: pesquisa de campo, teoria de campo, perspectivas construcionistas, campo-tema
ABSTRACT
The expression ''field research'' is normally used in social psychology to describe a type of research that is carried out outside the laboratory and in the places where everyday action takes place. In this approach, the researcher will go ''to the field'' in order to collect data that will later be analyzed and in order to do this a variety of different methods will be used, both to gather the data and to examine it. This paper reports on the initial conclusions from a series of discussions held on field research, taking as a starting point a post-constructionist perspective. Beginning with the difficulties created by the notion of ''field'' as physically determined and separate, the debate moved on to consider the arguments of Kurt Lewin in favor of a notion of psychological field in which the field is the totality of psychological facts, before settling with the notion of matrix as proposed by Ian Hacking and the wider discussion of materiality. The result was the proposal of the notion of ''theme-field'', in which field is no longer a specific place but refers to the processuality of situated themes. The paper ends by considering the implications of this approach for the research process and for the narrative practices that are used to describe it and to discuss its conclusions.
Keywords: field research, field theory, constructionist perspectives, theme-field
Durante os últimos dez anos, estimulados por pesquisas que fizeram com que o Núcleo se transformasse em um foco de debate crítico sobre os processos organizativos e a ação social, discutimos, em ocasiões diversas, o que é pesquisa em Psicologia Social e o que é pesquisa de campo. Essa reflexão perpassou cinco eixos temáticos.
Um primeiro eixo de discussão se preocupou com a relação entre ''pesquisado'' e ''pesquisador'' e englobou a pesquisa colaborativa, a pesquisa ação, a pesquisa participativa e a ética que orienta a pesquisa. O segundo eixo envolveu a questão dos métodos e a experiência do Núcleo com o uso de múltiplos e diferentes métodos dentro da mesma investigação sem se preocupar com argumentos sobre triangulação ou compatibilidade. O terceiro eixo de discussão, mais teórico, aproximou os membros do Núcleo a uma abordagem construcionista sobre processos sociais e a uma valorização da análise de práticas discursivas (M.J. SPINK, 1999); entendendo estas de maneira ampla, como estando situadas em lugares e no tempo.
O quarto eixo de reflexão trouxe o reconhecimento de que os estudos feitos pelo Núcleo não se caracterizavam, de maneira geral, por um planejamento antecipado da estratégia de pesquisa, com a identificação precisa de objetivos e a escolha deliberada de métodos de investigação e análise. Ao contrário, a pesquisa tendia a se dar a partir da identificação de um ponto de partida, a partir da qual: ''iria se caminhando sem saber direito como e onde''. O processo foi descrito em termos da desnaturalização sucessiva (ou estranhamento) em relação à temática em foco, do olhar multidirecional e da ausência de um ponto predefinido de chegada ou término, a não ser o sentimento de ''ser suficiente''.
O quinto eixo de discussão foi uma conseqüência dos demais e se referiu a como ''contar'' ou ''narrar'' esses processos ou histórias. Afinal, como estruturar uma tese, uma dissertação, um relatório de pesquisa ou um trabalho a ser apresentado em congresso, cujo caminho não era necessariamente ortodoxo? Nota-se que, enquanto a discussão sobre pesquisa qualitativa já chegou à maturidade e alcançou o reconhecimento de sua contribuição e de sua processualidade, permanece a tendência de organizar a redação do trabalho dentro dos moldes comuns (por exemplo: MELOY, 2002).
Os cinco eixos entravam e saíam das conversas ora se confrontando ora fornecendo pistas para linhas argumentativas e tentativas de investigação. Não havia um encadeamento lógico, mas influenciaram, cada um a sua maneira, os trabalhos feitos pelo Núcleo. Aparecem mais nítidos em certas investigações onde estes debates tiveram um papel mais central, mas estão também presentes nas entrelinhas de muitos dos trabalhos já concluídos e nos que estão ainda em andamento.2 2 Ver, por exemplo, as seguintes dissertações de mestrado do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, PUC-SP: Leny Sato (1991) Abordagem Psicosocial do Trabalho Penoso; Maria de la Asunción Carolla Blanco (1996) Paisagem da Alma; Mônica Mastrantonio Martins (1999) Tempo e Trabalho; Alejandra Cedeño (1999) Guia Múltipla de Autogestão; Myrt Thania de Souza Cruz (2001) Uma história de aleijamento do povo; João Bosco Alves de Sousa (2002) Contando Histórias fazendo história; Carla Bertuol 2003 A criança e o estatuto da criança e do adolescente um estudo sobre a polissemia da criança nos espaços públicos. Mestrado, PUC SP, 2003; André Rodrigues Lemos Bruttin.(2003) Empregabilidade na mídia de negócios um estudo de sentidos em circulação; Denise Aparecida Vetorazzo Halsman (2003) Os programas de assistência complementar e sua relação com a complexidade urbana: limites e possibilidades; Tatiana Alves Cordaro Bichara (no prelo) Exclusão e Informalidade: um estudo sobre o lugar social dos vendedores ambulantes de Quito Equador; Henrique Croisfelts (no prelo) Processos Associativos: versões circulantes sobre ação e cidadania entre participantes de uma associação de moradores de bairro.
O Núcleo de Organização e Ação Social tem um compromisso com os eventos cotidianos e com a busca de ações que reduzam as desigualdades e melhorem a qualidade da vida coletiva. Em conseqüência desta postura, a elaboração teórica do núcleo tende a se preocupar com o terreno teórico de médio alcance; de conceitos e esquemas parciais que ajudam a compreender as possibilidades de ação em um lugar ou contexto específico, mas que não são necessariamente generalizáveis além desse horizonte.
Durante essas discussões, o sentido de ''campo'' e, portanto, de ''pesquisa de campo'' mudou muito. Inicialmente a visão de ''campo'' presente nas conversas aproximava-se da antropologia tradicional, ou da sociologia da Escola de Chicago da década de 1930 quando Robert Park transferiu as práticas de pesquisa da primeira geração dos antropólogos para as ruas de Chicago (COULON, 1995). Nesta visão, a pesquisa de campo se referia à observação e à interação com as pessoas ''no seu habitat natural'', no lugar específico da ação fora das paredes do laboratório. Era um campo que existia num ''lugar'' e quando o pesquisador não estava ''no lugar'', também não estava ''no campo''. O ''campo'' portanto era onde o pesquisador ia para fazer seus estudos.
A próxima fase foi marcada pela retomada das idéias de Kurt Lewin (1952) sobre o campo como a totalidade de fatos psicológicos que não são reais em si, mas são reais porque tem efeitos. Começou-se a incluir os meios de comunicação nos estudos, não como objetos específicos de investigação, mas como componentes do campo; incluiu-se também documentos diversos e abordagens que buscavam acompanhar eventos no tempo em vez de congela-los como numa fotografia instantânea.
Na terceira fase, uma preocupação crescente com a intersubjetividade e com a discussão construcionista sobre linguagem e ação levou a uma perspectiva na qual os horizontes e os lugares eram compreendidos como produtos sociais e não como realidades independentes. O ''campo'' começou a ser visto não como lugar específico, mas como a situação atual de um assunto, a justaposição de sua materialidade e socialidade (LAW & MOL, 1995). Nesta ótica, não é o campo que tem o assunto, mas seguindo Bourdieu (ORTIZ, 1983) - é o assunto que tem um campo.
No início do segundo semestre de 2002, o Núcleo decidiu discutir de maneira mais sistematizada essas diferentes perspectivas acerca do campo. Ao juntar as conclusões neste texto, pensei que seria interessante iniciar com uma história. Contar histórias faz parte do processo de pesquisa pelo menos no tipo de Psicologia Social que fazemos no Núcleo e contar histórias é também uma ação importante na vida cotidiana. Quantas vezes, quando as pessoas querem relatar uma experiência importante, uma inovação ou uma ação social, se sentem mais confortáveis narrando o processo. Quantas vezes quando não sabemos como elaborar o texto de uma investigação recorremos à segurança da expressão: ''conte como aconteceu''.
CONTANDO HISTÓRIAS: O CAMPO DA BONECA CONTADORA DE HISTÓRIAS
Nós contamos histórias e nós nos tornamos as histórias que nós contamos. Os contadores e contadoras de histórias nos contam sobre valores, sobre heróis, heroínas, sobre o passado e sobre o presente, para que possamos vir a ser as histórias que são contadas. Seguramos seus aventais, sentamos no chão a seus pés e nos localizamos e posicionamos nas tramas que aí desenrolam.
Mas na vida cotidiana há muitos contadores de histórias e, diferente do Pinóquio, não há um grilo falante para dizer quais são as histórias boas e quais são as histórias más; as histórias que devemos ou não devemos acreditar.
A fotografia é de uma boneca contadora de histórias (''story teller doll''). Ela tem uns 20 centímetros de altura e está contando uma história para as crianças que estão no seu colo. Ela foi feita por Rose Brown dos Pueblos de San Ildefonso e Cochiti, Novo México, e as estatuetas ''contadoras de histórias'' são parte da história moderna dos povos indígenas desta região.
Muitos dos Pueblos de Novo México têm uma longa tradição de figurinhas de cerâmica, entretanto a boneca contadora de histórias é uma figura contemporânea. Em 1964, um colecionador de artesanato indígena, Alexander Girard, sugeriu à ceramista Helen Cordero, do Pueblo de Cochiti, a inclusão de mais crianças nas figuras de mãe e criança que fazia. Ela pensou muito e eventualmente fez a figurinha de um homem com cinco crianças sentadas no colo e nos ombros. A figurinha foi feita em memória a seu avô Santiago Quintana, um famoso contador de histórias para crianças (BAHTI, 1988). A pequena boneca contadora de histórias, portanto, conta histórias e também tem uma história. O meio, como McCluhan (1964) diria, é também uma mensagem.
Era uma vez... que eu não sabia da existência de bonecas contadoras de história. Mas um dia, andando numa pequena cidade nos Estados Unidos, entrei numa exposição de artesanato para ver, ler e conversar. Numa outra ocasião anos depois, entrei em outra exposição, conversei com mais pessoas e finalmente comprei uma pequena boneca contadora de histórias para presentear uma pessoa muito especial que tinha acabada de editar um livro sobre práticas discursivas.
Este é um bom lugar para começar a nossa discussão de campo; com o campo das bonecas contadoras de história. Primeiro é claro que não há um campo independente das bonecas contadoras de história; um lugar específico onde você pode ir e dizer ''este é o campo das bonecas contadoras de história''. O campo das bonecas contadoras de histórias é um processo contínuo e multi-temático no qual as pessoas e os eventos entram e saem dos lugares, transformando-se em versões e produtos que também são feitos por pessoas e utilizados por pessoas em diálogos que podem ser lentos e distantes, mas mesmo assim acontecem. Por exemplo, a conversa entre ceramista e dono de loja: Eles gostaram da minha figurinha, talvez eu devo fazer mais. Ou de alguém que prepara um livro e conversa com os leitores a partir de outras conversas: Nós não incluímos as histórias sobre a criação do mundo no livro das histórias dos pueblos, porque os lideres religiosos não concordaram; estas histórias são muito centrais para sua visão do mundo e eles não gostam que as suas histórias sejam consideradas uma mera curiosidade ou um divertimento. Como Mary Jane Spink deixa claro num texto recente, ninguém fala sozinho.
Todo enunciado é resposta ao enunciado que o procedeu. Está, portanto, atravessado por dialogicidade. É o que chamamos de interanimação dialógica. Distinguindo-se das unidades de significação da linguagem as palavras e as sentenças que são impessoais, não pertencem a ninguém e não são endereçados a ninguém, o enunciado tem tanto um autor (e portanto expressividade) como um destinatário. Este destinatário pode ser um participante-interlocutor imediato que está presente em um diálogo do cotidiano, um coletivo diferenciado de especialistas em alguma área de comunicação cultural específica, um público mais ou menos diferenciado, um grupo étnico, contemporâneos, pessoas de mentalidade semelhante, oponentes e inimigos, um subordinado, um superior, alguém que lhe é inferior, familiar, estrangeiro e daí por diante. E pode ser também um outro indefinido, não concreto.
(MJ Spink 2003, no prelo)
Não há um campo independente das bonecas contadoras de história porque estamos sempre potencialmente no campo das bonecas contadoras de história, mesmo que nossa presença seja quase impossível de detectar; estando nós longe do Novo México, longe dos textos, longe do dia a dia das ceramistas e longe de tudo. Ao contar esta pequena história, uma das muitas que podem ser contadas sobre as bonecas contadoras de histórias, podemos ver como a minha relação com as bonecas contadoras de história mudou, de quase inexistente pra não tão inexistente. De olhe lá, eu já li algo sobre estas figuras para estes são os lugares, livros, pessoas que serão neces sários contatar pra aprender mais, pra escutar mais, pra pensar mais, para discutir mais. Ao relatar, ao conversar, ao buscar mais detalhes também formamos parte do campo; parte do processo e de seus eventos no tempo.
Mas quem somos nós? O nós desta história que eu acabei de contar é composto de pessoas presentes e pessoas ausentes, mas também presentes de maneira coletiva. Uma é uma pessoa curiosa que também é psicólogo social. Curiosidade é uma característica social ubíqua do dia a dia e é uma das pedras fundamentais da noção coletiva de mudança; do pressuposto que as coisas podem ser diferentes. Ao relatar, neste texto, uma parte de uma das histórias das bonecas contadoras de histórias, esta pessoa curiosa que também é psicólogo social a entrelaça dentro de um outro campo, o campo do debate sobre a pesquisa em Psicologia Social onde os leitores continuam a conversa tornando neste processo - as histórias das bonecas contadoras de histórias psicologicamente relevantes. E quando, como psicólogos sociais, fazemos pesquisa, o que fazemos? Argumentamos que um tema, um campo, ou melhor, um campo-tema merece ser estudado, merece nossa atenção como psicólogos sociais. Propomos que é psicologicamente relevante.
Há campo-temas que já foram declarados psicologicamente relevantes tantas vezes que corremos inclusive o risco de assumi-los como óbvios - como fatos independentes e autônomos - esquecendo que são construções sociais. Por exemplo, o campo de ''meninos e meninas de rua'', o campo das ''estereotipias raciais'' ou dos ''portadores de deficiência'' ou do ''desenvolvimento comunitário'', da ''redução da pobreza'', da ''globalização'' ou da ''exclusão digital''.
A identificação do campo, por exemplo, em resposta à questão ''sobre o que você está trabalhando?'', não somente o torna psicologicamente relevante, mas também psicologicamente presente. Assim, ao dizer, ''estou trabalhando com os múltiplos sentidos da criança presente no Estatuto da Criança e o Adolescente'', você está propondo a relevância de um campo-tema e também anunciando seu posicionamento neste campo-tema. O restante é uma questão de lugares de encontro, de opções de engajamento e de possibilidades de diálogo. A única diferença entre nós como pessoas na rua, interessadas em assuntos, buscando fazer experiências para ver se algo dá certo, e nós como psicólogos sociais, é quando tornamos o assunto ''disciplinarmente presente''. Veja, por exemplo, as justificativas que podem ser encontradas nas introduções de nossos trabalhos, artigos e teses, quando estamos argüindo a favor da presença e da importância de um campo-tema e nos colocando dentro desse campo, não como indivíduos, mas como parte de um coletivo: ''os psicólogos''.
Os construcionistas argüiram faz tempo (IBAÑEZ, 2001) que não há nenhuma diferença fundamental entre curiosidade e ciência; e também entre a ciência e os demais saberes e conhecimentos presentes no mundo social. Investigar é uma forma de relatar o mundo e a pesquisa social é tanto um produto social para relatar quanto um produtor de relatos; uma maneira de contar e produzir - o mundo. A pesquisa nasce da curiosidade e da experiência tomados como processos sociais e intersubjetivos de fazer uma experiência ou refletir sobre uma experiência. Podemos chamá-la de uma experiência disciplinada pelas práticas de uma coletividade, seja esta uma comunidade agrícola, um movimento de parteiras tradicionais ou de bolsistas do CNPq. Agora, qualquer disciplina coletiva no nosso caso a disciplina dos psicólogos sociais dentro das ciências humanas e sociais - tem seus pontos positivos e negativos, suas contradições e paradoxos (FOUCAULT, 1975). As disciplinas acadêmicas em geral se fundam na boa fé e na esperança de que agem para o bem público. Sem disciplina entendida como regras, normas e pressupostos, ou limites não há coletividade; os libertários e os anarquistas também têm sua disciplina, seus pressupostos sobre governança, responsabilidade coletiva e a maneira de conduzir a vida diária. Uma disciplina acadêmica é somente isto: uma disciplina; nem mais ou menos importante, superior ou inferior a qualquer outra prática de análise e discussão instituída. É mais uma maneira de contribuir para o dia a dia.
Para qualquer Psicologia Social que assume os argumentos contrucionistas como válidos, a questão da nossa contribuição acadêmica levanta muitas questões morais; aliás, ela é ''a'' questão moral. Nossa presença no dia a dia de discussão, no debate diário da construção de sentidos e argumentação nos campo-temas, não é automática ou pre-autorizada pelas palavras mágicas ''ciência'' ou ''pesquisa''. Ao contrário é algo que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser negociada e debatida. Isso acontece também no dia-a-dia de qualquer um: Quem é você, o que quê você tem a ver com isto?; O que quê você pensa?; Olha você tem que falar o que pensa, você está implicado também, isto é parte de sua vida, queira ou não. Dado que o dia-a-dia e a investigação psicossocial compartilham a mesma fronteira da curiosidade (KELLY, 1955; GARFINKEL, 1967), devemos esperar e estar preparados para responder como psicólogos sociais: o que é que nós estamos fazendo, como e aonde? O que temos a ver com o campo-tema; O que estamos fazendo ali? Qual é a nossa contribuição, a nossa parte neste processo? Precisamos aprender que ser parte do campo-tema não é um fim de semana de pesquisa participante e muito menos uma relação de levantamento de dados conduzido num lugar exótico, mas é, antes de mas nada, a convicção moral que, como psicólogos sociais, estamos nesta questão, no campo-tema, porque pensamos que podemos ser úteis.
Ser útil pode ser algo como o apoio ao debate ou, dado que nenhuma teoria ou argumento viaja por conta própria (LATOUR, 1987), ajudar os saberes e conhecimentos presentes a viajar para que outros possam conecta-los com outras idéias e possibilidades dentro do processo de coletivização. Pode ser também a contribuição de trazer outras vozes para o debate, de mostrar outras posições e outros argumentos. A contribuição que nós temos pra oferecer é provavelmente diferente em casos diferentes e dificilmente os seus limites e alcances estarão claro para nós. Mas é muito importante que não nos esqueçamos de perguntar: ''E daí? Por que isto é importante?'', ''Por que estou aqui?''.
Tornar algo psicologicamente relevante não é um processo simples e muito menos sem problemas. Há muitos, infelizmente, que consideram que tornar algo psicologicamente relevante é capta-lo; torna-lo parte integral da Psicologia, algo que só nos os psicólogos sabemos ou, muito pior, que só os psicólogos tem a habilidade de resolver. Trata-se de uma escolha ética que precisamos fazer entre possessão ou contribuição; propriedade ou utilidade; de ser um agrupamento de interesses privados ou ser parte da coletividade social.
A CONSTRUÇÃO E NEGOCIAÇÃO DO CAMPO-TEMA
Se o campo não é um lugar específico, delineado, separado e distante, segue que estamos sempre potencialmente em múltiplos campos. Podemos variar em relação à nossa centralidade no campo, mas as matrizes do campo estão sempre presentes; sempre temos acesso pelo menos de maneira subordinada e tática (CERTEAU, 1994) a uma parte das conversas e ações que o produzem e reproduzem.
É esta potencialidade de movimento do pesquisador ou pesquisadora, ou de qualquer pessoa como parte do campo, que mostra não somente as possibilidades, mas também as restrições de acesso aos espaços chaves de argumentação e debate. Campo, entendido como campo-tema, não é um universo ''distante'', ''separado'', ''não relacionado'', ''um universo empírico'' ou um ''lugar para fazer observações''. Todas estas expressões não somente naturalizam mas também escondem o campo; distanciando os pesquisadores das questões do dia a dia. Podemos, sim, negociar acesso às partes mais densas do campo e em conseqüência ter um senso de estar mais presente na sua processualidade. Mas isso não quer dizer que não estamos no campo em outros momentos; uma posição periférica pode ser periférica, mas continua sendo uma posição.
O campo-tema, como complexo de redes de sentidos que se interconectam, é um espaço criado - usando a noção de Henri Lefebvre (1991) - herdado ou incorporado pelo pesquisador ou pesquisadora e negociado na medida em que este busca se inserir nas suas teias de ação. Entretanto isso não quer dizer que é um espaço criado voluntariamente. Ao contrário, ele é debatido e negociado, ou melhor ainda, é argüido dentro de um processo que também tem lugar e tempo. Mesmo quando herdamos um campo-tema ou usamos termos que presumimos como legítimos, por exemplo, o campo dos movimentos sociais de HIV/aids, continuamos a negocia-lo através dos argumentos sobre a sua importância como tópico.
Campo portanto é o argumento no qual estamos inseridos; argumento este que têm múltiplas faces e materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes. Os lugares por exemplo uma aldeia de pesca fazem parte do campo tanto quanto as conversas (RIBEIRO, 2003). Uma aldeia de pesca pode ser um dos lugares onde um argumento está presente, parte de um campo-tema de conflitos sobre saberes e de opções de desenvolvimento; mas haverá muitas outras. Entramos nesses lugares quando entramos no debate sobre o conflito de saberes e sobre opções de desenvolvimento e não quando entramos na aldeia; a aldeia é somente uma parte da territorialidade do campo-tema. Igualmente podemos estar na mesma aldeia por outras razões, por exemplo para discutir sobre partidos políticos, práticas de saúde ou turismo.
Nada acontece num vácuo; todas as conversas, todos os eventos, mediados ou não, acontecem em lugares, em espaços e tempos, e alguns podem ser mais centrais ao campo-tema de que outros, mais accessíveis de que outros ou mais conhecidos de que outros. Algumas conversas acontecem em filas de ônibus, no balcão da padaria, nos corredores das universidades; outras são mediadas por jornais, revistas, radio e televisão e outras por meio de achados, de documentos de arquivo e de artefatos, partes das conversas do tempo longo presentes nas histórias das idéias. Alguns até podem acontecer com hora marcada, com blocos de anotações ou gravadores. Entretanto, esses lugares não são contextos; os blocos de anotações, os gravadores, o ônibus, a padaria, a universidade, os jornais, o rádio, os documento, os achados e artefatos são, como materialidades, também partes das conversas. O social, para usar a teoria de actor-network,3 3 A teoria actor-network (rede-ator) foi elaborada inicialmente a partir dos trabalhos de Latour & Woolgar sobre o fazer da ciência, sobre a produção e disseminação de conhecimento e os processos em que pedaços diferentes do social, do técnico, do conceitual e do textual são juntados e convertidos em produtos científicos. Posteriormente a noção central de uma multiplicidade de pessoas, maquinas, animais, textos, em interação foi aplicado a outras instituições e redes de sentidos como as organizações, famílias e a economia, utilizando o argumento construcionista de que afinal ciência nada mais é de que um outro processo social. A discussão da simultaneidade de construção da socialidade e materialidade se aproxima, em parte, à teoria de estruturação de Giddens (1979).(Ver: LATOUR B. & WOOLGAR, S. 1979, LATOUR, B. 1987 E LAW, J. & HASSARD J. 1999.) não é independente das matérias e nem é dependente delas; ao contrário, o social é produzido por e simultaneamente produz ''redes de materiais heterogêneos'' (LAW & HETHERINGTON, 2001) incluindo pessoas, textos, técnicas, falas, máquinas e conceitos. A conversa e o bloco de anotações não são acontecimentos independentes; o bloco de anotações é também parte da conversa, ele também é constitutivo, como também é o consentimento informado em pesquisa social (MENEGON, 2003).
Quando falamos sobre a boneca contadora de histórias, argüimos que é possível pensar num campo de interesses em termos de discussões que envolvem a boneca contadora de histórias e argüimos que talvez isto seja útil. Também é provável que, em certos lugares do Novo México, há outras conversas, mais densas, e eventos importantes para a compreensão desta processualidade onde podemos escutar e ampliar as vozes que são mais ativas na construção da boneca e sua materialidade. Mas isso não quer dizer que o campo é lá. O campo para a Psicologia Social, para repetir, começa quando nós nos vinculamos à temática...o resto é a trajetória que segue esta opção inicial; os argumentos que a tornam disciplinarmente válida e os acontecimentos que podem alterar a trajetória e re-posicionar o campo-tema.
Quando falamos em negociar falamos em processos que são multidirecionais. Processos que podem ser iniciados em qualquer momento e por qualquer parte, pessoa ou acontecimento. Muitos de nós tivemos a experiência de iniciar uma investigação no ponto A e terminar no ponto J, com uma questão diferente ou um outro ângulo que foi sugerido de alguma maneira por aquilo que aconteceu durante a investigação. Às vezes foram os próprios acontecimentos; às vezes foram os horizontes que abriram e fecharam; às vezes terminamos porque é um bom momento, porque não é possível avançar muito mais ou porque os caminhos estão fechados.
A boneca contadora de histórias é ao mesmo tempo uma história social e um artefato. Não são ''os termos em que o mundo é conhecido''(GERGEN, 1985), os únicos artefatos sociais que interessem os psicólogos sociais construcionistas. Também estamos interessados nos seus produtos. Todos os artefatos são sociais: não somente os termos, mas também as terminologias e as múltiplas construções históricas cujas materialidades são parte do dia a dia. Caminhos, automóveis, casas, máquinas, computadores podem parecer ser os artefatos técnicos de um mundo objetivo, mas sua materialidade é construída em falas, às vezes consensualmente e às vezes muitas vezes não.
Para a Psicologia Social, o passado está sempre no presente por de sua contribuição constante aos textos múltiplos do polissêmico dia-a-dia. Não há dúvidas de que os produtos materializados de nossos debates e argumentos doem e matam, mas nós não podemos culpar mais ninguém por sua presença. A pólvora, por exemplo, foi utilizada durante séculos para produzir fogos de artifício para o divertimento de crianças e adultos, bem antes de virar um armamento. Em meados do século dezessete, o mar era visto como ameaçador; suas tempestades eram assustadoras e algo e a ser evitado a tudo custo. As aldeias que dependiam do mar para a sua sobrevivência eram construídas voltadas para a terra, de costas para o mar. O mar é o mesmo no século vinte e um, nem mais nem menos tumultuoso; mas agora é o foco de lazer, repleto de sentidos de prazer e as cidades são construídos de frente para o mar (CORBIN, 1994).
O passado está no presente pelas muitas falas e em tempos diferentes. Essas não são homogêneas, mas heterogêneas; às vezes são consensuais às vezes conflitivas. Diferentes regras institucionais, construídas em momentos diferentes, podem fazer com que nossa vida diária pareça confortável e inevitável, mas nós não necessariamente as seguimos e quando as seguimos, nem sempre o fazemos de maneira cega. É a presença simultânea, conforme argumentou Bloch (1977), de diferentes repertórios de análise e de argumentação que permite que aquilo que é visto às vezes como inevitável (ou dominante) seja derrubado. Nossas categorias são sociais, mas é um social denso e aberto às contradições de versões alternativas. Os processos hegemônicos e a coletividade como intelectual orgânico não são forças separadas, organizadas confortavelmente em espaços diferentes e distintos de ação. Ao contrário, eles estão presentes na cacofonia e polifonia das falas situadas, dos artefatos e das materialidades dos lugares (SPINK, 2001a, b).
Esta noção mais ampla de campo-tema como debate constante e sem limites ou fronteiras, tem muitos pontos de intersecção com a noção de ''matriz'' utilizada por Ian Hacking (1999):
As idéias não existem no vácuo, habitam situações sociais. Vamos chamar isto a matriz dentro na qual uma idéia ou conceito é criado (...). A matriz dentro da qual a idéia de mulher refugiada éformada é um complexo de instituições, ativistas, artigos de revista, advogados, decisões jurídicas, procedimentos imigratórios. Para não falar da infra-estrutura material, barreiras, passaportes, uniformes, balcões de aeroporto, centros de detenção, tribunais e os campos para crianças refugiadas. Você pode querer considerar estes como sociais porque seus sentidos são o que são importantes para nós, mas são materiais e sua materialidade faz uma diferença substantiva para as pessoas. Igualmente, as idéias sobre mulheres refugiadas afetam o ambiente material (porque mulheres refugiadas não são violentas e não há necessidade de armas, mas há uma grande necessidade de papel, papel, papel)... (HACKING, 1999 p.10)
A noção de matriz chama a atenção para o lugar como sendo constitutivo de falas e conversas, incluindo a conversa em sua materialidade. As pessoas não são iguais e onde elas falam, como elas falam e quando elas falam são partes mutuamente constitutivas (Harraway, 1995). Acontecimentos sociais não acontecem, eles têm lugar. A materialidade é social; ela é produzida em fala, sua existência é argüida e a fala continua dentro e em volta dela.
A materialidade tem também as características de um meio na medida em que permite conversas com outros lugares e tempos. Por exemplo, para ter uma noção de ''caminho'' é necessário ter uma noção de onde e para onde; por exemplo ''o caminho do mar''. Para ter um caminho público é necessário ter uma noção de propriedade coletiva distinta da privada. O caminho do interior para São Paulo numa determinada época não era um caminho como a Rodovia Anhanguera de hoje. O caminho ia de fazenda para fazenda, dentro das fazendas, e era necessário alguém ir à frente, negociando acesso. Hoje temos estradas públicas de mão dupla, pedágio, ônibus, gasolina, pneus e congestionamento de fins de semana na época dos feriados. Na Europa de hoje, as grandes estradas seguem os traçados elaborados pelo Império Romano, obedecendo ao princípio do que o caminho mais rápido entre dois pontos é uma linha reta, e materializando nos seus traçados a hegemonia presente na expressão todos os caminhos levam a Roma. Nos mesmos moldes, a internet, documentos, artefatos de todos os tipos podem também ser partes do campo, maneiras de aumentar a nossa capacidade de diálogo. Jornais, por exemplo, são somente uma parte do processo social complexo da ''publicidade'', no seu sentido de tornar público (HABERMAS, 1984). O documento público não é um mero registro, ele é parte do processo; ele é materialidade e não matéria, parte de um diálogo lento, tal como também são as estradas e caminhos.
VISITANDO O PROFESSOR LEWIN
Esta interação entre uma Psicologia Social puramente social e uma Psicologia Social que incorpora a construção das materialidades também incorpora alguns elementos do trabalho de Kurt Lewin. Sem dúvida a noção de campo em Bourdieu é também importante, mas talvez com Bourdieu os vínculos mais fortes estão com a noção de hábitus (ORTIZ, 1983) porque a noção de campo em Bourdieu tem um alcance maior do que um campo-tema, se referindo a um número de campo-temas dentro da estrutura de classes. Na área da Ciência Política a noção de advocacy coalitions (SABBATIER & JENKINS SMITH, 1993) utiliza a idéia das redes e conexões, coalizões que advogam e formam os contornos da política pública, também com paralelos à noção de matriz. Entretanto é com Lewin que temos provavelmente o maior débito histórico, especialmente por causa de sua ruptura com o conceito clássico de um campo distinto e objetivo.
Esta é a introdução que Dorwin Cartwright fez à teoria de campo de Lewin na coletânea publicada após da sua morte (Teoria do campo nas ciências sociais LEWIN, 1952):
Todo comportamento é concebido como uma mudança, de alguma forma, de um campo num determinado tempo. Ao tratar da Psicologia Individual o campo dentro do qual o cientista tem que trabalhar é o espaço de vida do indivíduo. O espaço de vida consiste da pessoa e o ambiente psicológico que existe para ele. Ao lidar com a Psicologia de Grupo ou a Sociologia, uma formulação similar é proposta. Nós podemos falar do campo dentro do qual o grupo ou a instituição existe com exatamente este mesmo sentido, o espaço de vida do grupo consiste do grupo e o seu ambiente como existe para o grupo.
Na expressão ''como existe para o grupo'' (as it exists for the group), encontramos a resolução pragmática de Lewin para a questão da existência, que ele formulou de maneira geral na expressão: ''o que é real é que tem efeitos'' (what is real is what has effects. Lewin, 1936 p.19). Para Lewin, a teoria de campo não era uma teoria, mas um método de analisar relações causais e construir conceitos; de trabalhar com a noção de que qualquer evento é o resultado de múltiplos de fatores. Sua concepção de que qualquer comportamento ou mudança no campo psicológico depende somente do campo psicológico naquele tempo, também, introduziu uma perspectiva complexa sobre o tempo (o presente, o futuro no presente e o passado no presente), uma noção de processualidade e também a necessidade de trabalhar no nível tanto macroscópico quanto microscópico, incluindo o que ele chamou de ''unidades situacionais'' (que aproxima o terreno de médio alcance).
Temos que conceber a vida do grupo como o resultado de constelações específicas de forças dentro da conjuntura (setting) mais ampla.... o campo como um todo, incluindo seus componentes psicológicos e não psicológicos (LEWIN, 1952 p .174)
Lewin discutiu a relação entre os espaços psicológicos e não-psicológicos a partir de três noções: o espaço de vida psicológico (ou o equivalente em termos do grupo, instituição ou comunidade); o reconhecimento de que há múltiplos processos no mundo físico e social que não afetam o indivíduo (ou grupo, instituição ou comunidade) neste momento de tempo; e a zona fronteiriça, onde certas partes do mundo físico e social podem afetar o estado do espaço de vida do indivíduo, grupo, instituição ou comunidade naquele momento. Por exemplo, a comida que está atrás da porta não afeta o espaço de vida da pessoa, a não ser que a pessoa saiba o que está lá, ou saiba que a porta é a do armário da cozinha onde são guardados os biscoitos. A noção de zona fronteiriça chama atenção para os horizontes e às maneiras pelos quais horizontes podem ser ampliados ou reduzidos, por exemplo, no processo de exclusão ou inclusão social (CAMAROTTI & SPINK, 2000; SPINK, 2003) e como as ''portas'' da vida cotidiana podem ser igualmente abertas ou fechadas, conhecidas ou escondidas. ''Amanhã'', como lugar no tempo e espaço, é uma coisa para alguém que tem uma agenda de atividades; que recebe por mês e que trabalha regularmente de segunda a sexta. Amanhã não é o mesmo para alguém que não tem agenda, que não tem emprego e que não sabe o que vai acontecer - amanhã.
Lewin discute a questão da zona fronteiriça num pequeno, mas brilhante, trabalho sobre Psychological Ecology (LEWIN, 1952):
Qualquer tipo de vida de grupo ocorre numa situação com certos limites; limites daquilo que é possível e que não é possível e que pode ou não acontecer. Os fatos não psicológicos de clima, de comunicação, as leis do país ou da organização são partes freqüentes destas limitações externas. A primeira análise do campo é feita do ponto de vista da ecologia psicológica, o psicólogo estuda os dados não-psicológicos para descobrir o sentido dos dados em determinar as condições da vida do indivíduo ou grupo. Somente depois que estes dados são conhecidos, é que o estudo psicológico pode começar a investigar os fatores que determinam a ação [..] naquelas situações demonstradas como significativas (p.170)
Lewin fala a partir de uma perspectiva subjetiva, mas é uma subjetividade social, mesmo quando ele discute o indivíduo. Por que as pessoas comem o que comem?. Esta foi a pergunta inicial do estudo que serviu como foco para a sua discussão de Psicologia Ecológica. Porque está na mesa!, veio a resposta. A não ser nas famílias mais ricas, a comida que se come é a comida que está na mesa ou seu equivalente. A questão, de fato, é outra: descobrir como a comida - e qual comida - chega à mesa. Para entender como a comida chega à mesa é necessário analisar os múltiplos canais, portas e porteiras, dentro dos quais os componentes e os sentidos práticos da refeição estão sendo construídos, incluindo tradições, panelas, mercados, produtos e práticas sazonais. Buscando uma perspectiva de médio alcance, Lewin chegou muito perto da noção de matriz; especialmente quando focalizou o espaço de vida do grupo, da instituição e da comunidade.
Se voltarmos agora àquele campo objetivo, distinto e empírico, herdado da antropólogia e tornado local pela Sociologia da Escola de Chicago, percebemos a importância da mudança introduzida por Lewin. O campo é o método e não o lugar; o foco está na com preensão da construção de sentidos no espaço de vida do indivíduo, grupo, instituição ou comunidade. Percebemos também com mais clareza a importância do movimento introduzido por Hacking ao desfocar o indivíduo, grupo, instituição ou comunidade e focar o tema. Campo é o campo do tema, o campo-tema; não é o lugar onde o tema pode ser visto como se fosse um animal no zoológico mas são as redes de causalidade intersubjetiva que se interconectam em vozes, lugares e momentos diferentes, que não são necessariamente conhecidos uns dos outros. Não se trata de uma arena gentil onde cada um fala por vez; ao contrário, é um tumulto conflituoso de argumentos parciais, de artefatos e materialidades.
A INVESTIGAÇÃO EM AÇÃO
Quando fazemos o que nós chamamos de pesquisa de campo, nós não estamos ''indo'' ao campo. Já estamos no campo, porque já estamos no tema. O que nós buscamos é nos localizar psicossocialmente e territorialmente mais perto das partes e lugares mais densos das múltiplas interseções e interfaces críticas do campo-tema onde as práticas discursivas se confrontem e, ao se confrontar, se tornam mais reconhecíveis (Long, 2001). Para fazer isso, não há métodos bons ou ruins; há simplesmente maneiras de estar no campo-tema, incluindo a poltrona da biblioteca. Método, nada mais é de que a descrição do ''como'', ''onde'' e ''o que''. O escritor inglês Rudyard Kipling, escreveu em 1902: ''Eu mantenho seis serviçais honestos que me ensinaram tudo que sei; seus nomes são ''o que'' , ''por que'' e ''quando'', e ''como '', ''onde'' e ''quem''. (I have six honest serving-men,(they taught me all I knew), their names are What and Why and When, and How and Where and Who The Elephant's Child, Just So Stories).
Ao abrir a noção de método desta maneira, aumentamos e não diminuímos a nossa obrigação de entender as conseqüências de nossa presença no campo-tema. O campo-tema não é um aquário que olhamos do outro lado do vidro; é algo do qual fazemos parte desde o primeiro momento em que dissemos, ''estou trabalhando com........''. A investigação em ação, portanto, se refere à ação da investigação; sua localização como parte do tema. Conversar sobre o que entendemos, ampliar argumentos, narrar e publicar o que parece importante narrar ou publicar, não são atividades eventuais e opcionais. Estamos no campo-tema porque disciplinarmente achamos que podemos ser úteis e é sempre bom lembrar que, ao contrário da posição confortável da separação de problema e solução na famosa frase atribuída ao Lenin se somos parte da solução, provavelmente somos também parte do problema.
Lugares, eventos, pessoas, rostos, artefatos, documentos, impressões, recortes, anotações, lembranças, fotos e sons em partes e em pedaços (muitos pedaços); um confronto de saberes uma negociação de sentidos numa busca de ampliar possibilidades de transformar práticas. Só o mal avisado pode pensar que isso é uma atividade neutra. Por exemplo, ao tirar fotos de mulheres na zona rural e construir uma parede de fotos no lugar onde não tem espelhos e muito menos vitrines, o que fazemos é dialogar; com a identidade urbana e a identidade rural, com a feminilidade, a família, a beleza, as questões de gênero. Dialogamos porque estamos onde estamos, não só fisicamente, mas sócio e psicologicamente.
Não há dados nas nossas investigações porque não há fatos empíricos esperando pacientemente e independentemente para serem interpretados. Transformar o agir do outro em ''dados'' é desqualificar sua presença e reduzi-lo, como Garfinkel (1967) argumentou, ao status de um ''idiota social'', ou pior, ao status de uma mercadoria onde a mais valia acadêmica rouba-lhe a sua competência na construção diária da desigualdade. Não há dados, mas há, ao contrário, pedaços ou fragmentos de conversas: conversas no presente, conversas no passado; conversas presentes nas materialidades; conversas que já viraram eventos, artefatos e instituições; conversas ainda em formação; e, mais importante ainda, conversas sobre conversas. Não há múltiplas formas de coleta de dados e, sim, múltiplas maneiras de conversar com socialidades e materialidades em que buscamos entrecruza-las, juntando os fragmentos para ampliar as vozes, argumentos e possibilidades presentes.
NARRANDO: A DISSERTAÇÃO ASSUME UMA FORMA
A Ciência tem suas maneiras de narrar e é também ela uma maneira de narrar. Há muitas outras maneiras de narrar com a mesma utilidade: por exemplo, o narrar da experiência ou o narrar da tradição. Muito daquilo que chamamos Ciência, especialmente a Ciência Social e a Psicologia Social, é a re-textualização do outro; o re-narrar do já narrado. O re-narrar acadêmico é um narrar de maneira escrita do narrar oral, da conversa, da visita, do material, da materialidade, dos achados e perdidos.
A linguagem acadêmica não tem nenhum direito a priori de dominar as demais formas de expressão, porque não há um saber ou um conhecimento que engloba os demais. Ao contrário, há múltiplos saberes e há também múltiplos conflitos entre as epistemologias tradicionais e as da modernidade científica; sem falar nos saberes do senso comum, que fazem de conta que não são saberes (GEERTZ, 1983). Os saberes são processos sociais e coletivos e a pesquisa em Psicologia Social também é um processo social e coletivo; um processo no qual somos considerados membros competentes como também somos membros competentes de outros processos e outros saberes. Os saberes são diferentes e deconstruir a Psicologia Social desta maneira não é destrui-la. Ao contrário, é coloca-la com os pés de volta no chão, no lugar dos lugares junto com os demais saberes. Ao narrar os nossos trabalhos precisamos não somente construir um diálogo entre o campo-tema e os nossos colegas psicólogos sociais; mas também um diálogo para outras pessoas que não sejam nem do campo-tema e nem da Psicologia Social, mas também podem se vincular à questão em discussão. No lugar dos lugares, a transparência das contribuições diferentes é a base da coletividade.
Se o processo de pesquisa não é um processo de achar o real ou uma investigação para descobrir a verdade mas, ao contrário, é uma tentativa de confrontar, entrecruzar e ampliar os saberes, precisamos também buscar meios e formas de narrar e veicular nossos estudos que incluem e não excluem; que apóiam os debates e não afastam e excluem os debatedores. Se sabemos que uma dissertação ou tese precisa ser re-escrita para se tornar um livro que é agradável para ler, onde está o problema: com a tese ou com o livro? Sem dúvida nossos estilos acadêmicos de narrar estão ainda muito presos aos pressupostos científicos pre-construcionistas e precisamos estar preparados para abrir mão da estrutura e estilos convencionais das dissertações, teses, artigos e apresentações quando estes não ajudam a construir um dialogo inicial entre o campo-tema e as demais pessoas direta ou indiretamente presentes - incluindo os não-presentes-mas-presentes-nas-narrativas. Podemos olhar para outras disciplinas para ver outras soluções possíveis, não somente as Ciências Humanos e Sociais mas também nos meios artísticos e literários. Precisamos, ainda, estar preparados para discutir como negociamos nossa presença nas diferentes partes da matriz do campo-tema e como lidamos com a questão ética nos lugares onde fomos e nas conversas que tivemos; de descrever o que fizemos e como fizemos de maneira compreensível para todas as pessoas direta ou indiretamente presentes. Precisamos lembrar que psicólogos e psicólogas sociais são, antes de mais nada, seres sociais...
SPINK, P. Poverty and Place. in Carr S.C. & Sloan,T.S. Poverty and Psychology: emergent critical practice. NY: Kluwer Academic/Plenum (in press), 2003
Recebido: 29/4/2003
1ª revisão: 5/8/2003
Aceite final: 10/9/2003
Peter Kevin Spink é Doutor em Psicologia, Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, pesquisador do Núcleo de Organizações e Ação Social com ênfase em psicologia organizacional, políticas públicas, administração pública.
O endereço eletrônico do autor é:
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Mar 2004 -
Data do Fascículo
Dez 2003
Histórico
-
Aceito
10 Set 2003 -
Revisado
05 Ago 2003 -
Recebido
29 Abr 2003