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METAMORFOSE HUMANA E MEMÓRIA

METAMORFOSIS HUMANA Y MEMORIA

HUMAN METAMORPHOSIS AND MEMORY

Resumo

Buscamos entender a relação entre metamorfose humana e memória por meio de uma interlocução dos elementos constituintes do sintagma identidade-metamorfose-emancipação proposto por Antonio Ciampa. Tratamos de identificar a distinção entre mesmice e mesmidade e como perceber que a não reflexão contribui para a repetição que dificulta o manejo crítico da memória. Pontuamos uma interlocução entre P. Ricoeur e M. Pollak para problematizar o esquecimento, o silenciamento e seus efeitos para a memória, assim como localizar a potência crítica da justiça e seus componentes emancipatórios. Interessamo-nos em reconhecer o que há de relevante na apropriação crítica da tradição e por qual razão isso é importante para a elaboração de autonomia, a fim de evitar, assim, os fundamentalismos. Finalmente, buscou-se um percurso em que se compreenda que a metamorfose humana e a memória podem oferecer sentidos emancipatórios, desde que comprometidas com um vir-a-ser fundamentado em reconhecimento.

Palavras-chaves:
metamorfose humana; memória; identidade; emancipação; tradição

Resumen

En el siguiente artículo buscamos entender la relación entre metamorfosis humana y memoria, por medio de una interlocución de los elementos constituyentes del sintagma “Identidad-metamorfosis-emancipación” propuesto por Antonio Ciampa. Tratamos de identificar la distinción entre mesmice y mismidad y como percibir que la no reflexión contribuye en la repetición que dificulta el manejo crítico de la memoria. Propusimos una interlocución entre P. Ricoeur y M. Pollak para problematizar el olvido y el silenciamiento y sus efectos para la memoria, así como ubicar la potencia crítica de la justicia y sus componentes emancipatorios. Se nos interesó reconocer lo que hay de relevante en la apropiación crítica de la tradición y la razón de la importancia de la elaboración de autonomía, evitando los fundamentalismos. Finalmente, se buscó una mayor comprensión de la metamorfosis humana y de la memoria pudiendo ofrecerse sentidos emancipatorios desde que comprometidas con un “vir-a-ser” fundamentado en reconocimiento.

Palabras claves:
metamorfosis humana; memoria; identidad; emancipación; tradición

Abstract

We seek to understand the relation between human metamorphosis and memory through an interlocution of the constituent elements of the syntagm identity-metamorphosis-emancipation proposed by Antonio Ciampa. We try to identify the distinction between sameness and sameness and how to perceive that non-reflection contributes to repetition that hinders the critical management of memory. We point out a dialogue between P. Ricoeur and M. Pollak to problematize forgetfulness and silence and its effects on memory, as well as to locate the critical power of justice and its emancipatory components. We are interested in recognizing what is relevant in the critical appropriation of tradition and why this is important for the elaboration of autonomy and thus avoiding fundamentalisms. Finally, we sought a path in which it is understood that human metamorphosis and memory can offer emancipatory meanings as long as they are committed to a becoming based on recognition.

Keywords:
human metamorphosis; memory; identity; emancipation; tradition

Introdução

A metamorfose humana vem recebendo alguns apontamentos que nos interessam, entre outros motivos, por conter e revelar a memória. O que pretendemos aqui é elaborar uma interlocução sobre a natureza da metamorfose humana e considerar a memória como um de seus constituintes.

Tomemos emprestado o questionamento que Ardans (2001Ardans, H. C. B. (2001). Apontamentos sobre a metamorfose humana: um ensaio de psicologia social. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ) realiza ao uso que diferentes autores fazem da palavra metamorfose. Ele pergunta se Castell poderia ter intitulado seu livro As mudanças da questão social em lugar de As metamorfoses da questão social. Depois, interroga se Freud poderia ter dado o título Transmutações da puberdade ao capítulo Metamorfoses da puberdade de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Depois, questiona o termo de Marx metamorfoses da mercadoria substituído por transfigurações da mercadoria. Por fim, quando Nietzsche diz transmutações dos valores, poderia ser metamorfoses dos valores? O que isso tudo envolve a respeito da metamorfose é a pergunta de Ardans.

Pensamos sobre a metamorfose e o lugar da memória no sintagma identidade-metamorfose-emancipação proposto por Ciampa (2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.) como uma importante contribuição para a psicologia social. Não se trata de uma análise das bases epistemológicas desse sintagma, mas de algumas referências decorrentes dele para pensar sobre a metamorfose. Ao indicar a metamorfose, Ciampa fala igualmente de identidade e leva em conta nesse processo seu projeto emancipatório. Identidade é metamorfose, afirma o autor, e queremos considerar que há muitos desafios enquanto categoria psicossocial no trato da metamorfose.

Concordamos com as críticas às teorias que entendem a identidade como conceito estático e hermético presente na subjetividade e sabemos o quanto esse conceito está saturado. Subjetividade é entendida, portanto, a partir de agora, como afirmação e negação simultânea das identidades. Sem uma compreensão diferenciada sobre a identidade e um entendimento dela enquanto metamorfose, pode-se incorrer no erro de entender a memória como um receptáculo de lembranças, um depósito de acontecimentos inertes e opacos do passado. O lugar comum sobre a memória é similar ao da identidade.

Segundo Canetti (1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 337), que contribui diretamente para o pensamento de Ciampa, “a metamorfose é constituída de um grande enigma e é essa capacidade, de metamorfosear-se, que rendeu aos seres humanos tanto poder sobre as outras criaturas: todos a possuem, todos a empregam e todos a consideram absolutamente natural”. Exatamente por ser algo difícil de conceituar e investigar em sua essência é que ela precisa ser abordada a partir de diferentes flancos.

Quando afirmamos que identidade é metamorfose, movimento, estamos dizendo que o agir é constituinte do processo de humanização da pessoa, ou seja, entende-se a metamorfose humana como a progressiva e infindável concretização histórica do vir-a-ser humano, que se dá sempre como superação das limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades. A identidade, como concreto, está sempre se concretizando (Ciampa, 2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 198).

Porém, primeiro retomaremos a questão de Ardans (2001Ardans, H. C. B. (2001). Apontamentos sobre a metamorfose humana: um ensaio de psicologia social. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ) sobre o que envolve a metamorfose. O fato é que a identidade pressuposta - lugar inicial para uma análise de identidade - é um obstáculo às metamorfoses emancipatórias. O interacionismo simbólico de Mead (1993Mead, G. (1993). Espíritu, Persona y Sociedad (Mind, Self and Society). Buenos Aires: Paidós.) oferece conceitos que nos ajudam a entender a relação entre o indivíduo e a sociedade e a formação do self e a construção das identidades sociais; e esclarece a respeito dos tempos impressos na vida humana quanto ao que vai sendo adquirido e ao que é atribuído ao ser humano. Aqui, importa considerar a base da dialética adquirido-atribuído que se revela na constituição de uma pessoa e aponta para outro espaço igualmente provocador que é o da ordem da liberdade e da diferença.

Isso significa que, para o surgimento de um humano, é necessário que seja assegurada a incorporação das atitudes sociais (self). Possibilitada a socialização do indivíduo e a formação da sociedade, graças a esse self, tudo o que lhe foi atribuído pela internalização das normas sociais, assim como tudo o que pode e será interiorizado como sendo criativo, espontâneo e inesperado, fornece elementos para a pessoa lidar com a autonomia e a heteronomia. O self possui dois componentes inseparáveis: o “eu” e o “mim”. O “eu” é a espontaneidade frente a situações novas e inesperadas. É a autonomia e a maneira que o indivíduo lida com as diferentes situações, ou, ainda, a consciência de si. Lima (2010Lima, A. F. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. São Paulo: Fapesp; Educ., p. 231) diz que o “eu” é a fase que se exterioriza, reagindo à atitude dos outros, enquanto o “mim” é a fase que internaliza aquelas atitudes. O “mim” condiz à convenção, à adaptação, à tradição, às normas prontas, enquanto o “eu” revela a originalidade, a ruptura e a criação. As atitudes dos outros constituem o “mim” organizado, e é então quando o indivíduo reage a elas como um “eu”. O que interessa particularmente é que o self organiza e articula o passado, o presente e o futuro. Enquanto o “mim” está voltado ao passado e à manutenção daquilo que é conhecido, o “eu” realiza-se no presente, considerando o projeto para o futuro. O indivíduo é capaz de escapar dos determinismos que a sociedade tenta lhe impor (Mead, 1993Mead, G. (1993). Espíritu, Persona y Sociedad (Mind, Self and Society). Buenos Aires: Paidós.). Não é nossa intenção realizar aqui um estudo, seja ele de que ordem for, sobre as questões ontológicas ou da linguagem que envolvem o conhecimento, mas apenas pontuar que elas se fazem presentes nessa construção de reconhecimento da metamorfose.

A possibilidade de nos humanizar é dada no que nos faz iguais enquanto espécie, mas diferentes enquanto sujeitos. Somos da mesma espécie, mas não somos uma única e mesma expressão dessa espécie devido ao processo de subjetivação. Eis a metamorfose humana, que é primeiramente cultural. Esse conflito indica dois elementos pertinentes à metamorfose: o imperceptível e o indescritível (lugares absolutos da ambiguidade).

Delimitamos, assim, o campo da metamorfose humana. A metamorfose habita muitos terrenos do conhecimento. Vejamos como o elemento “imperceptível” pode ser demonstrado a partir dos saberes das ciências naturais. A semente se metamorfoseia para virar árvore. A mudança de um estado a outro não é percebida de imediato no seu acontecimento. Também a criança recém-nascida possui células que se multiplicam e se decompõem a todo instante enquanto seu organismo cresce, transformando-a permanentemente. A metamorfose não se deixa prender (Ardans, 2001Ardans, H. C. B. (2001). Apontamentos sobre a metamorfose humana: um ensaio de psicologia social. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ). Perante a metamorfose natural, reconhece-se que a coisa é a mesma, embora esteja sempre mudando.

Já o elemento “indescritível” traz o fato de, em todo fenômeno, existir o ser e o não-ser simultaneamente: tudo é e não é ao mesmo tempo. Uma metamorfose se deu e a coisa passou a ser outra, mas não absolutamente. A metamorfose é mágica (Ardans, 2001Ardans, H. C. B. (2001). Apontamentos sobre a metamorfose humana: um ensaio de psicologia social. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. ), é indiscernível. Quando é que o dia deixa de sê-lo para virar noite? A aurora e o pôr do sol são lugares que não podemos classificar e aprisionar em momentos do dia, o antes e o depois do anoitecer. Não podemos entendê-la como sendo uma coisa e não outra. Por isso, evitamos definir a metamorfose como simplesmente uma “mudança”. A ambiguidade a constitui por definição, enquanto a ideia de mudança em um sentido absoluto e completo não permite essas condições em seu ser.

É importante, também, considerar aquilo que é externo e interno ao processo da metamorfose. Ainda nesse sentido, é importante fazer a distinção entre imitação e metamorfose para evitar seus usos indistintamente.

A imitação é algo externo; ela pressupõe que se tenha diante dos olhos algo cujos movimentos se copiam. Em se tratando de sons, a imitação nada mais significa do que a reprodução externa desses sons. Com isso, nada se diz a respeito da constituição interna daquele que imita. Macacos e papagaios imitam; é de supor que, nesse processo, eles não se modifiquem em coisa alguma. Poder-se-ia dizer que não sabem o que estão imitando: jamais o vivenciaram internamente. Assim, podem passar de uma imitação a outra sem que a sequência na qual isso acontece tenha para eles o menor significado. A falta de persistência facilita a imitação. Esta relaciona-se usualmente a um único traço. Uma vez que, pela própria natureza da coisa, se trata de um traço que chama a atenção, a imitação frequentemente simula uma capacidade de “caracterização” inexistente na realidade. (Canetti, 1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 269)

Fica evidente que a metamorfose necessita de continuidade. A imitação traz movimento, mas não transformação substancial ao ser que imita. É apenas a cópia. E isso se aplica às pessoas e às muitas formas de atuação no mundo que cada um pode ter. Porém, a imitação pode servir enquanto elemento inicial em direção à metamorfose. Pela sucessão de imitações, podemos dar o primeiro passo, mas logo é necessário abandonarmos tal modo para entrarmos de fato em um processo de metamorfose (Canetti, 1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras .).

A transição da imitação para a metamorfose ocorre na forma da simulação. Trata-se de um modo no qual há uma aproximação relativamente tranquila, afetiva e amistosa, mas com uma finalidade contrária a isso, mais hostil e dissimulada. Aquilo que se vê e percebe em primeiro momento não corresponde à sua verdadeira intenção. Segundo Canetti (1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 337), que faz inúmeras referências ao folclore dos bosquímanos, a simulação é uma modalidade antiga de metamorfose, caracterizada pela exclusividade de seu aspecto exterior, ou, em outras palavras, criar disfarces. Isso tem relação com o poder e o controle. O caçador que tem controle sobre si e sua arma, assim como sobre a imagem do animal que busca, é um bom exemplo para compreendermos essa ideia. O caçador, para atingir seu propósito, permanece absoluto em seu papel, mas precisa se estender à condição do animal para conhecer seus movimentos e sua própria natureza, passando a ter o controle das duas criaturas (humana e animal) simultaneamente.

O fluxo das metamorfoses das quais ele seria capaz é estancado; ele se encontra em dois lugares precisamente circunscritos, um dentro do outro, e este claramente apartado daquele. É essencial aí que o interior permaneça rigorosamente oculto por detrás do exterior. A intenção mortal denuncia-se apenas no ato final. (Canetti, 1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 370)

A simulação é caracterizada pelo aspecto da duplicidade. A aparência, ou a exterioridade, é evidente no jogo de forças dessa relação. Sua efetividade vai depender da sagacidade dos envolvidos nessa trama, pois nada é o que parece ser. Porém, internamente, a coisa é e não é ao mesmo tempo. Não se pode ser o outro em sua totalidade, mas não se permanece o mesmo ao se estabelecer um contato com esse outro. Não se sai ileso dessa relação. No caso do encontro entre a presa e o caçador, o desfecho é a morte da primeira. O caçador assim espera que aconteça. Para Canetti (1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 372), simulando-se uma criatura que não se é, busca-se enganar outras criaturas. Somente o ser humano emprega conscientemente a simulação. Chegamos a um cenário capaz de privilegiar a memória no processo de metamorfose, e nos pareceu mais pertinente inseri-la por essa proposta até aqui. Existem pontos de partida para a metamorfose (Canetti, 1995), pois trazem pressentimentos e riscos.

Um lugar para a memória

O debate que buscamos fazer neste caminho é aquele que vem apontar o lugar e a função da memória na metamorfose humana. A memória pode ser paradoxal quanto a seus movimentos: na sua maneira de surgir, nos diferentes jeitos de ser contada, na exclusividade de lembrar ou na sutileza de eleger algo em detrimento do que quer que seja. Ela se permite não ser fiel aos fatos e nem atender aos pedidos dos mais exigentes. A memória só nos vale enquanto aquilo que decide lembrar ou esquecer e anuncia enquanto exigência de sua existência o tempo presente, porém, sem relegar o passado.

Ambas, metamorfose e memória, compartilham certa quantidade da experiência que não está no registro cronológico enquanto regra de existência. Suas trajetórias têm de voltar aos terrenos pantanosos das lembranças que se encontram nos campos da tensão dos sentidos produzidos em um universo simbólico e extremamente suscetíveis a interpretações.

Argumenta Bosi (1994Bosi, E. O. (1994). Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras.) que toda memória necessita de uma forma de enraizamento, sendo este um direito humano esquecido. Todo ser humano busca uma raiz pela sua participação em uma coletividade que conserva vivos alguns tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Aqui, percebemos parte da potência da memória que explicita a possibilidade de um projeto futuro, e não apenas uma lembrança passada. Já no anúncio da metamorfose, impregnada da memória, nota-se um acúmulo de experiências que a permitem sair de um estado ou condição para outro diferente do que é. Pressentimento e anunciação são exercícios e elementos compartilhados necessários para a metamorfose humana e a memória. Mas o que isso significa?

O pressentimento é um dos principais pontos de partida para a metamorfose. Ele poderia ser facilmente interpretado como intuição, mas é outro atributo que precisamos reconhecer. Apesar de ser algo simples, pela razão de existir uma significativa confiança naquilo que se sente, o pressentimento exige um corpo que faz mais do que simplesmente sentir, pois esse é o responsável pelos sinais que fazem saber o que irá acontecer. Ele necessita realmente sentir, mas também conhecer aquilo que o aguarda. O pressentimento não é uma adivinhação, mas uma pontuação mais assertiva do tempo que está por vir em conexão direta com o presente. Ao adivinho cabe toda sorte de apostas, nas quais não lhe compromete tanto o erro, enquanto a pessoa que exercita o pressentimento, em muitos casos, se não for capaz de dizer o que está por vir com alguma precisão, pode estar com a própria vida em risco. No caso de um caçador, no exemplo há pouco mencionado, ele pode vir a ser a comida da presa. “O pressentimento diz a verdade. Os estúpidos não compreendem os ensinamentos e caem em desgraça: são mortos por um leão ou algo de ruim lhes acontece. As batidas dizem àqueles que as compreendem que caminhos não tomar e que flechas não empregar” (Canetti, 1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras ., p. 339).

Uma combinação de fatores individuais e sociais vai delimitando esse tempo e as formas de entendimento a seu respeito, nas quais a memória surge com variadas tonalidades. A metamorfose humana exige um corpo para que o pressentimento se materialize. Essa capacidade de a memória ocupar um corpo é que possibilita a identidade abrir mão de determinados aspectos daquilo que se conhece, por ela mesma e pelos outros, para poder ser outra coisa, sem deixar de ser totalmente si mesma. A anunciação da memória contém um devir que, para conduzir à emancipação, que é o que nos interessa na metamorfose humana, necessita de uma trajetória que agregue o paradoxo que também pode ser aprendido. No desenvolvimento do sintagma proposto por Ciampa (2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense.), o autor deixa claro que a metamorfose humana é a progressiva e infindável concretização histórica do vir-a-ser humano. O que chamaremos de projeto aqui é sempre um alinhamento com esse princípio, pois esse vir-a-ser humano sempre ocorre como superação das limitações das condições objetivas existentes em determinadas épocas e sociedades (Ciampa, comunicação pessoal, 1997).

O vir-a-ser da metamorfose é uma possibilidade. Nele está contida a preparação do caminho para a emancipação e nisso se aproxima do pressentimento, da mesma forma que o projeto de vir-a-ser auxiliado pelo pressentimento pode oferecer melhor repertório nas escolhas. E nisso reside a manutenção dos fragmentos emancipatórios que pertencem à produção de autonomia, assim como enfrentamentos daquilo que nos nega. A negação daquilo que nos nega (por exemplo, a escravidão, a homofobia, o sexismo, o racismo, etc.) é necessária, pois sem ela o pressentimento anunciado que leva a um projeto emancipatório pode se perder. A metamorfose não interessa ao autoritário (Canetti, 1995Canetti, E. (1995). Massa e poder. São Paulo: Cia das Letras .), em parte porque no projeto está o futuro, mas a construção para sua materialização só é possível em processos que estão semeados na identidade concreta. Ao existir algo que nos nega - e nesse confronto nós passamos a negar isso - é que surge a transformação. “O risco da não-metamorfose é apontado na identidade como mesmice, como sempre igual a si mesma, exclui a temporalidade e, consequentemente [sic] a diferença” (Ciampa, 2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 199).

A afirmação da identidade enquanto mesmidade e de sua emancipação emerge no conflito da negação daquilo que nos nega. Porém, o projeto de ser humano como ser temporal, de ser-no-mundo, é possibilidade de tudo, inclusive de degradação. Ao negligenciarmos o pressentimento, comprometemos a capacidade de anunciação, pois isso não garante criar condições para preparar um projeto que leve à emancipação. A memória passa então a se diluir porque não legitima a trajetória do sujeito, que no processo de metamorfose busca uma pretendida emancipação. Dilui-se porque pode confundi-lo no entendimento de quem ele acredita ser, quando o que se poderia esperar da memória é exatamente o oposto, com a finalidade de conhecer e relacionar, o que levaria ao esquecimento ou ao silenciamento. Para o projeto de um futuro que se beneficia de a memória ser uma possibilidade emancipatória, é necessário ter condições para garantir alguma alteridade na sua formação material; afinal, esta é constituinte da metamorfose. Segundo Ciampa (2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 199), “a identidade é real porque é unidade do necessário e do contingente”.

De toda forma, entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana, como diz Ricoeur (1994Ricoeur, P. (1994). Tempo e narrativa (Tomo I). Campinas, SP: Papirus., p. 85), há uma correlação que não é puramente acidental. Especificamente, o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e tal narrativa atinge seu pleno significado ao tornar-se uma condição da existência temporal.

Ao pensarmos a memória e a história, incluímos o esquecimento para o apaziguamento entre essas partes para tornar possível o perdão. Poderíamos adotar outras estratégias para discutir o esquecimento e o silêncio, até mesmo para legitimar a diversidade de proposições sobre o tema, mas permaneceremos com a de Paul Ricoeur (2007Ricoeur, P. (2007). A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp. ), pois, ao nivelar a memória, a história e o esquecimento, ele aponta o último como condição fundamental para o perdão enquanto tentativa de seleção no surgimento da dialética entre a memória e a história.

A partir da ideia de um esquecimento feliz (Ricoeur, 2007Ricoeur, P. (2007). A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp. ), entende-se que, ao enfrentar aquilo que geralmente é sentido como um dano, uma lacuna ou uma falha, o esquecimento converte isso em elemento fundamental para o fato ou reparação que surge após a superação do ressentimento. Para isso, é fundamental enfrentar os abusos do esquecimento que então são produtores de toda ordem de negligências e violências. O dano à confiabilidade da memória, ou o esquecimento, é sentido como uma perda irreparável e indesejável. Mas como superar o mal inclassificável, o rancor justificável, o ressentimento que em sua honestidade não pensa em renunciar absolutamente nada? Aqui, Paul Ricouer, herdeiro de toda uma tradição hermenêutica, dialoga com Michael Pollak (1989Pollak, M. (1989). Memória, silêncio, esquecimento. Estudos Históricos, 2(3), 3-15.) e o texto Memória, silêncio, esquecimento, no qual se sinaliza a memória como disputa, ou mesmo como seleção, envolvendo as fronteiras do corpo (indivíduo) e do pertencimento ao grupo (coletivo), a continuidade no tempo e a coerência na formação da singularidade do sujeito.

Nesse sentido, há consideráveis diferenças entre o discurso individual (memória de pessoas), o coletivo (memória dos grupos com afinidades culturais) e a memória histórica (realizada com documentos e registros). Uma possibilidade é pensar a emergência do indivíduo na sociedade e outra a relação do narrador com suas lembranças. Agora consideramos uma necessidade prática a respeito dos instrumentos que cada coletividade constrói para “lembrar”.

O esquecimento e o silenciamento colocam o problema da fidelidade ao passado e se tornam uma permanente ameaça à memória e à história. A memória busca evitar o esquecimento, ou ainda, uma capacidade de manter o que lhe importa.

A memória desses episódios instiga a imaginar seus registros e anúncios. Reconhecer e esquecer são condições intrínsecas. Não podemos falar de esquecimento sem antes conduzirmos um processo de reconhecimento do que se quer negar. A negação e o silenciamento dos fatos, da memória e da subjetividade são um abuso que apenas reproduz uma negligência com os injustiçados. A quem interessa o esquecimento? Normalmente, aos abusadores, mentirosos, autoritários e cínicos. Considerar o esquecimento não é um interesse dessa ordem, mas uma chance de não (re)sentir aquilo que faz sofrer, que aprisiona, que ainda garante a manutenção da violência. Estamos agora diante de outra possibilidade de lidarmos com essa seletividade que surge pela via da própria intersubjetividade, sabendo ser um modo distinto do que pensamos até aqui. Reconhecer é, como aponta Honneth (2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34. ), atuar na gramática dos conflitos sociais. O reconhecimento e a memória garantem justiça aos esquecidos, aos silenciados e àqueles menosprezados pela história oficial. Onde então encontrar a potência crítica da justiça?

Ela reside no paradoxo de ser um acontecimento ético e consequentemente utópico que se insere no presente trazendo a memória do passado com demandas de futuro. A justiça existe na forma de temporalidade aberta. Ela integra a potência anamnética que presentifica o passado e contém a potência utópica de antecipar o sentido do futuro almejado. A abertura temporal da justiça é um desdobramento da sua condição ética. A justiça não se limita à razoabilidade dos argumentos, algo do presente, nem à legitimidade dos procedimentos, próprio da ordem estabelecida. A justiça, embora exija ambos os elementos, existe a partir de sua relação com a alteridade humana, em especial o outro injustiçado, o que a torna eminentemente ética. A dimensão ética faz da memória das vítimas uma condição necessária da justiça. Os injustiçados não podem ser esquecidos, já que sua recordação é parte constitutiva do sentido da justiça. O passado da barbárie ou da injustiça há de ser lembrado como condição da justiça do presente. ... O presente é condição necessária da justiça, mas não suficiente. Toda justiça remete a uma realidade histórica dada, porém sempre a extrapola criticamente para o ideal do que deveria ser. (Ruiz, 2009Ruiz, B. C. (2009). Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo, RS: Unisinos., p. 8)

Assim, toda equidade na promoção de justiça e sua relação com a memória passa por um sentido emancipatório das metamorfoses que ainda não ocorreram, mas que podem vir a existir. O que está em cena é a alteridade humana; afinal, não é toda metamorfose sinônimo de emancipação. A potência crítica da justiça é imprescindível à memória, pois garante aos envolvidos que querem e necessitam ser lembrados a possibilidade de uma metamorfose emancipatória. Sem isso, há sempre o risco da alienação, do enlouquecimento ou mesmo da morte por antecipação. Certamente não nos faltariam exemplificações kafkianas para o entendimento da metamorfose não emancipatória. A reparação que a memória indica é a chance de a condição ética um dia perdida ser reestabelecida nas relações humanas. Novas memórias poderiam ser elaboradas.

Pressentimentos e anunciações

Quando não se tem algo como a escrita para registrar a palavra, são necessários sinais. Como argumenta Nora (1993Nora, P. (1993). Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História., p. 9), a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto, e a história só conhece o relativo. Precisamos dos lugares marcados para saber voltar.

No mito grego de Ariadne, Teseu precisou entrar no labirinto, matar o Minotauro e ser capaz de encontrar o caminho de volta. O oráculo de Delfos o orienta a obter ajuda do amor e utiliza a estratégia de um novelo de linha (o fio de Ariadne) na entrada para, assim, ser capaz de retornar em segurança. Pode-se pensar em um tipo de intuição na forma de agir com essas urgências ao se enfrentar um perigo como adentrar uma caverna. O fato é que não estamos distantes o suficiente de um passado considerado perdido e selvagem em relação à racionalidade ocidental iniciada pelo gregos e sua ideia de civilização. Passado e presente coexistem e interagem. O que acontece é um revestimento das marcas do passado no presente feito pelos investimentos culturais e suas forças sociais. As metamorfoses sociais carregam a memória coletiva.

Por conta dessa possibilidade, podemos fazer a distinção entre a mesmice e a mesmidade. Ciampa (2005Ciampa, A. C. (2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense., p. 140) chama de identidade-mito o universo da mesmice, que corresponde à não mesmidade ou à quase impossibilidade de um indivíduo de atingir a condição de ser-para-si (autodeterminação) e ocultar a verdadeira natureza da identidade como metamorfose. A mesmice é a repetição não reflexiva, mas na mesmidade o mito passa a contribuir com a organização de novos sentidos para a singularidade da emancipação na identidade. Estamos entendendo o mito como pensa o antropólogo Claude Lévi-Strauss (2011Lévi-Strauss, C. (2011). O homem nu (Coleção Mitológicas, IV). São Paulo: Cosac Naify.), que defende que todo mito é uma narrativa que deve tratar de uma questão existencial, ser constituído por contrários irreconciliáveis e proporcionar a reconciliação desses polos para acabar com a angústia. Quando reconhecemos essa construção da memória no tempo do discurso mítico, lidamos com uma subjetividade que só faz sentido ao ser contextualizada em seu processo sócio-histórico. É importante saber sobre a separação entre história e memória e que é a oralidade que separa uma da outra. É nela que se dá o papel da história oral como mediadora entre uma solução que se baseia em documentos escritos (história) e outra (memória) que se estrutura, quase exclusivamente, apoiada nas transmissões orais (Meihy, 2005Meihy, J. C. S. B. (2005). Manual de história oral. São Paulo: Loyola.).

Cabe, para continuar a entender como ocorre a distinção entre história e memória, uma crítica à historiografia eurocêntrica, que tende a hierarquizar a palavra escrita como mais importante do que a palavra falada. Sobre a oralidade e sua importância para a memória, é importante lembrar que:

Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possível conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, não é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem. Não faz a oralidade nascer à escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra. ... O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, da fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra. (Hampaté Bâ, 2010Hampaté Bâ, A. (2010). A tradição viva. In J. Ki-Zerbo (Ed.), História geral da África I: Metodologia e pré-história da África (pp. 167-212). Brasília, DF: Unesco. , p. 181)

Entendemos que o que Hampaté Bâ nos diz é que a subjetividade não pode ser esquecida nesse processo de registrar e entender os acontecimentos. Os sentidos que a memória oferece passam por elaborações identitárias individuais e coletivas. Esse é um ponto determinante de nossa escrita porque revela a identidade como lugar de elaboração de sentidos. Como bem sinaliza Goff (1990Goff, J. L. (1990). História e memória. Campinas, SP: Unicamp., p. 419), “a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o ser humano pode atualizar impressões ou informações passadas ou representar como passadas”. O desafio para as ciências que se interessam por isso é lidar com o problema entre a memória histórica e a memória social.

A memória coletiva é viva, dinâmica, e é isso que a faz se diferenciar da história. Acontece que a metamorfose no tempo compartilhado impõe realidade e materialidade, seja emancipatória ou não. O individual e o social passam a dividir o tempo quanto a sua concretude. O que pretendemos dizer com isso é que não se pode separar a subjetividade que decorre dos esforços de assimilação pelo indivíduo dos valores sociais daqueles esforços decorrentes da objetivação das regras impostas e compartilhadas pela cultura.

A memória também possui o efeito de acionar em nós sensações corporais e involuntárias. A memória é estimulada por sinestesias que envolvem o paladar, a visão, a sonoridade, o olfato: boca, olhos, ouvidos, nariz, pele, órgãos, enfim, são produções e produtores que o corpo sustenta impregnado de histórias e sentidos e que fazem parte da consciência (Damásio, 2000Damásio, A. (2000). O mistério da consciência, do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Cia das Letras .). Rememorar é a mesmidade presente em um afeto, um gosto, um cheiro, um som, uma emoção ou ainda um déjà-vu. Ao contar sobre essa significação das sensações imperceptíveis que a memória provoca e que consequentemente interfere nos processos de metamorfose, cada geração poderá criar e escolher ícones diferentes das anteriores, mas ainda assim eles tratarão de manter a continuidade daquilo que a caracteriza enquanto uma cultura singular. Consequentemente, ocorrerá a manutenção do pertencimento de seus membros ao grupo social.

Não será qualquer lembrança de uma experiência coletiva, nem qualquer tradição, que responderá aos anseios de saber qual caminho tomar para a construção de um projeto emancipatório pela identidade. Há de se viver imerso em uma coletividade e sua tradição por um tempo, compartilhar seus modos de agir e, principalmente, seu universo simbólico para compreender seus paradoxos. Essa compreensão em determinados momentos implica superação e resolução das contradições - que em certa medida é escapar da mesmice -, mas, em outros, é uma capacidade de convivência entre opostos e de conciliação entre os diferentes, que implica uma maturidade emocional e relacional. A proposta de uma psicologia descolonizadora latino-americana vem trabalhando essa perspectiva de pluralidade de cosmovisões entre diferentes culturas, com a valorização de epistemologias de povos tradicionais, indígenas e de matriz africana. A emancipação não se realiza fora de um contexto sociocultural, e quem a vive é o próprio sujeito, cabendo ao pesquisador interessado no cotidiano, junto com esse sujeito, compreender os sentidos que envolvem o paradoxo na constituição da identidade.

Isso fica mais evidente se pensarmos a questão da crítica ao tempo - disputa e seleção na memória - e considerarmos que é preciso contextualizar a vivência para que a memória faça seu trabalho e para que, assim, o pertencimento seja materializado para a metamorfose. Como diz Kandel (2009Kandel, E. (2009). Em busca da memória. São Paulo: Cia das Letras .), mesmo no campo da neurologia, a longo prazo, a repetição é relevante à memória. Porém, há um grande risco de essa repetição se transformar em mesmice. A longo prazo, a identidade irá se metamorfosear, assim como, consequentemente, a memória que a compõe. Portanto, embora a repetição possa aparecer como algo necessário à constituição da consciência e à sua busca por estabilidade, ou como uma prática de treinamento para o conhecimento, tal como apontado nos estudos de Yats (2007Yats, F. A. (2007). A arte da memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp .), ela é sempre um risco à metamorfose.

Esses elementos são importantes para que se reconheça que a narrativa da história oficial, que pode ser diferente da memória, pode ser feita por um indivíduo ou grupo que tenha interesses não emancipatórios, com inclinações autoritárias e de dominação. Essa crítica é importante porque contém uma pertinente análise a respeito das raízes e das opções na contemporaneidade, por lidar tanto com aquilo que está voltado ao passado quanto com as escolhas do presente. Santos (1996Santos, B. S. (1996). A queda do Angelus Novus: para além da equação moderna entre raízes e opções. Revista Crítica de Ciências Sociais, 45, 5-34.) diz que essa relação é uma equação, com a diferença de escala, na qual os indivíduos e grupos vão lidando com forças que intercalam em suas prevalências. Uma possui grande envergadura e alcance e a outra é de duração menor, circunscrita a algo curto e confinado. A questão principal é que ambas, raízes e opções, estão interessadas no futuro, ao contrário do que se pensa; portanto, uma não está meramente interessada no passado (raízes) e outra no futuro (opções). O outro problema diz respeito ao equilíbrio entre elas.

Há de se levar em conta que as opções necessitam de raízes para serem consideradas (Santos, 1996Santos, B. S. (1996). A queda do Angelus Novus: para além da equação moderna entre raízes e opções. Revista Crítica de Ciências Sociais, 45, 5-34.). Ambas, raízes e opções, são orientadas ao futuro, e importa criar um campo de possibilidade que permita distinguir entre opções possíveis e impossíveis, entre opções legítimas e ilegítimas (Santos, 1996). Daí a importância de uma crítica a respeito de a qual memória nos referimos. Sem levar isso em consideração, aumentamos o risco de vermos a metamorfose como desumanização e a memória como esquecimento e silenciamento.

A metamorfose humana, mesmo contendo o risco de se transformar em heteronomia e dominação, ainda pode surpreender na produção de sentidos não convencionais. O exercício da mesmidade, mesmo com todo trabalho exigido para a metamorfose humana, é uma reposição necessária da identidade.

Apropriação crítica da tradição

A infância é devotada aos cuidados dos mais velhos por grande dependência de afeto, aprendizagem e segurança. Nesse período, a responsabilidade pela garantia da vida é toda dos que vieram antes porque são eles que guardam as experiências e os acúmulos dos saberes necessários a essa manutenção. Na medida em que se desenvolve, a nova geração tende a questionar o que veio sendo feito até então, especialmente nas atribuições e sentidos de ordem sociocultural. Esse questionamento decorre em parte pelas sobreposições dos papéis sociais que mudam, ou que desejam mudar, e pelas divergências que existem na própria diversidade cultural em um mundo plural. Por mais que se tente superar o conflito entre a liberdade e a segurança, eles ganham novos contextos, formas e necessidades. Mas são raras as rupturas coletivas extremas entre as gerações. Os sinais exteriores são referências e estímulos para o afloramento de lembranças e recordações individuais que constituem o substrato do ato de rememorar, que se relaciona, segundo Halbwachs (1990Halbwachs, M. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.), com os quadros sociais da memória.

Apesar dos conflitos (necessários), aquilo que talvez atravesse as diferentes gerações é a ancestralidade e a memória. Memórias transmitem condições para se entender contextos sociais e históricos, assim como o esforço de constituir o simbólico das relações. Sua dinâmica é uma cartografia psicossocial, e podemos aceitar que a memória exige uma perspectiva interdisciplinar de seu entendimento.

Pensamos que o reconhecimento no que se refere ao modo de existir tende a se sobrepor a qualquer geografia do pertencimento. Entender o que estamos chamando de tradição é fundamental. Diz respeito a como as pessoas percebem a vida, especialmente o lugar de sua memória, com dilemas e escolhas a respeito da liberdade, do arbítrio e da construção e reprodução da própria tradição.

A palavra exata tradição tem dois significados históricos: a saber, um é mais familiar e mais difundido, e tem o significado de folclore - histórias, crenças, costumes e modelos de comportamento - enquanto o outro significado é menos familiar e pode ser entendido como: prosseguir, transmitir, articular, discutir, aconselhar. E por que eu chamo a atenção para, e também enfatizo bastante, essa diferença na interpretação da palavra tradição? Justamente por causa da possibilidade de o termo tradição - poder, na história dos conceitos - ser compreendido de duas formas diferentes. A primeira (provavelmente a mais comum) é que a tradição é reconhecida como uma estrutura acabada que não pode ou não deve ser modificada jamais, e deve ser preservada em seu estado íntegro e prosseguir inalterada no futuro. Dessa maneira, uma compreensão da tradição está relacionada àquele elemento da natureza humana que é conservador e que está propenso a um comportamento estereotipado, Freud diria ainda a compulsão da repetição. O outro significado da tradição, que eu defendo aqui, diz respeito à nova e criativa forma de reviver a experiência da tradição. Assim como forma, digamos, imediata, positiva, de transmissão, foi executada do outro lado da natureza comum, provisoriamente considerada revolucionária, ao longo das linhas da verdade paradoxalmente expressas: uma esperança de mudança e, ao mesmo tempo, uma necessidade salubre de permanecer no mesmo. (Grubacic, 2006Grubacic, A. (2006). Rumo a um novo anarquismo. São Paulo: Faísca., p. 19)

Essa reflexão faz observar dois aspectos importantes. Referimo-nos, primeiramente, à possibilidade de identificar uma quebra da tradição. O segundo aspecto trata do encontro com a exterioridade das culturas. Nesse caso, é importante salientar que devemos estar atentos para não avaliar a diferença cultural como algo imutável, logo, que é produção histórica.

A tradição, como uma forma de sobreposição, é sustentada em atos, nas condutas, nas imagens e na atualização das necessidades. O indivíduo é atravessado por uma história anterior e maior que a dele mesmo. E é desse lugar que se possibilita notar os efeitos de uma intersubjetividade que também se constrói anterior às escolhas do mesmo indivíduo. Por isso a memória diz tanto sobre o presente. Assim, arriscamos dizer que é importante para a mesmidade os aspectos da tradição que ajudem o sujeito ou grupo a entender a si mesmos pelos caminhos da emancipação. Mas como distinguir uma coisa da outra se toda tradição, crítica ou não, é resultado de escolhas e manuseios?

A tradição, com seus usos e costumes e como porta-voz das diferentes épocas, surge como possibilidade de resposta ao desespero do não-lugar, apontado por Augé (1994Augé, M. (1994). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus.) como um espaço de anonimato no cotidiano, sendo que tal espaço é descaracterizado e impessoal. Ela evitaria, devido a sua crítica, o silenciamento indesejado e o esquecimento abusivo.

No entanto, não nos interessa um simples e ingênuo elogio à tradição, isso porque sabemos que ela também pode ser justificativa para o fundamentalismo, o terror e o extermínio. É necessário interrogar sobre o que queremos conservar. Para a tradição cumprir honestamente o papel de mediadora entre passado, presente e futuro, ela necessita de algum modo ser apropriada criticamente. À tradição não é exigido ser crítica em si mesma, mas sim aos modos como nos apropriamos dela. Isso muda substancialmente a forma de produção de sentidos presentes na tradição e influencia no modo em que a metamorfose é afetada pela memória. Há que se instigar uma apropriação da tradição nos pontos de conflito em que trazem as contradições humanas e nos pontos de partida para a metamorfose.

A legitimação da tradição e de seu reconhecimento precisa atender em alguma medida um vir-a-ser emancipatório para evitar os fundamentalismos. Essa concepção de sujeito ajuda a lidar com o fato de que a metamorfose humana deve também ser capaz de analisar e refletir a respeito de seu percurso para suportar a inquietação da ambiguidade sem decidir pela sedução da conveniência que vem sendo tomada pelo contemporâneo. A crítica da tradição é uma avaliação do passado preciosa e um importante reconhecimento do presente, que existe nas lutas de inúmeros povos e movimentos sociais, nas lutas pelo direito à outra história e à sua própria maneira de viver e de contar suas lembranças.

Ao tentar responder o que queremos preservar na tradição, ao contar outras versões de um mesmo fato, estamos lidando com o que queremos manter ou não em nossas relações. Substituindo a mesmice pela mesmidade em um processo sócio-histórico, ou seja, a superação da reprodução do mesmo e da heteronomia pela autonomia, oferecemos sentidos ao pertencimento ao pensar criticamente a função da tradição. A função da tradição é também mediar passado, presente e futuro, mas sem importar tanto o que é mais valioso, pois isso transformaria a identidade em uma abstração. Nesse contexto, pensa-se o futuro não enquanto progresso, mas enquanto utopia e sobrevivência. O passado e o presente na tradição muitas vezes revelam o indiscernível, como na metamorfose, exatamente porque podemos encontrar sentidos que nos ajudam a entender a natureza das relações humanas. A tradição também é o simples e pertinente manejo atual dos usos e costumes revelados na cultura e neles encontra-se uma chance para organizar o cotidiano com indicativos de sentidos emancipatórios. O que se considera tradição, muitas vezes, é uma pequena parte daquilo que se vê, e suas lembranças nem sempre são exatas. A tradição não é a manutenção da cultura propriamente dita, mas a expressão reduzida de uma dimensão dessa cultura. A tradição tenta manter o rito como um esforço de explicação do mundo, um equilíbrio organizacional das múltiplas tensões que nos habitam, ela é a coerência de nossas estruturas sociais, do mito que revela premissas básicas de nosso modo de pensar. Como nos falou Goff (1990Goff, J. L. (1990). História e memória. Campinas, SP: Unicamp.), o mito vai se reformulando de acordo com sua necessidade. Quando ele se congela, por exemplo, na escrita, não pode mais mudar. O mito é flexível e dinâmico e, sem essas características, ele se cristaliza. Outra vez, quando não há crítica, arrisca-se a uma reivindicação fundamentalista.

Por isso, deve-se ter cuidado com os estereótipos e com o desejo de manter a imutabilidade no outro. Normalmente isso acontece em função de uma visão e de uma narrativa que produzem discursos de pureza incapazes de gerar crítica a partir de sua origem. Suas próprias lembranças procuram atender às suas demandas e interesses sem considerar as diferenças do outro. Isso faz pensar que as lembranças podem ser reconstruídas (Halbwachs, 1990Halbwachs, M. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.), mas não em sua totalidade, pois são reconstruídas em condição de representação. Não é importante a exatidão do acontecimento, mas seus sentidos e seu efeito no presente, afinal, a história irá registrar a tradição quando ela morrer.

Corroboramos, antes de encerrar este texto, com o posicionamento de Goff (1990Goff, J. L. (1990). História e memória. Campinas, SP: Unicamp.), que diz caber aos profissionais científicos da memória fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica. “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a servidão dos homens” (Goff, 1990, p. 471).

Precisamos nos interrogar sobre o que queremos e ir mais adiante: queremos querer o que estamos querendo? Não é exercício de retórica, mas um esforço de liberdade. São as tramas em busca de autonomia. São entendimentos para o que compõe a natureza da metamorfose humana, considerando a memória como um de seus constituintes. A metamorfose humana hoje pode oferecer sentidos emancipatórios, desde que comprometida com um vir-a-ser fundamentado em reconhecimento. A superação das contradições nos usos da memória para evitar os abusos do esquecimento e do silenciamento, assim como nos enfrentamentos dos conflitos para uma metamorfose emancipatória, é condição do tempo presente, que reconhece o passado, mas que vislumbra a utopia para seguir caminhando.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2016
  • Revisado
    01 Ago 2017
  • Revisado
    05 Jul 2017
  • Aceito
    01 Ago 2017
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