Acessibilidade / Reportar erro

PERCEPÇÕES E AFETOS NA PRISÃO: ANÁLISE DE NARRATIVAS DE PRESOS E AGENTES PENITENCIÁRIOS

PERCEPCIONES Y AFECTOS EN PRISIÓN: ANÁLISIS DE NARRACIONES DE PRISIONEROS Y OFICIALES DE PRISIÓN

PERCEPTIONS AND AFFECTIONS IN PRISON: ANALYSIS OF PRISONERS' AND PENITENTIARY OFFICERS' NARRATIVES

Resumo

Trata-se de um estudo de caso numa penitenciária do Ceará, Brasil, cujo objetivo foi identificar e analisar percepções ambientais de usuários em ambiente penal, pela expressão de suas experiências no lugar, bem como das simbologias a ele atribuídos. Por meio de entrevistas narrativas realizadas em novembro de 2017, participaram da pesquisa seis presos e seis agentes penitenciários. Suas respostas passaram por análise de conteúdo, permitindo identificar dimensões macro, meso, exo e microsistêmicas de relações ambientais na prisão. Fundamentado na Psicologia Ambiental, concluiu-se que a prisão provoca uma ruptura sócio relacional com o mundo exterior, demonstrando ser incômodo mais relevante do que a sujeição forçada em espaço fisicamente inadequado e superlotado. Ponderou-se, dentre outras reflexões, sobre a função social do aprisionamento que, nas condições atuais, apresenta-se distante dos objetivos de reinserção social e recuperação de pessoas. A prisão provoca sentimentos negativos e depreciadores nas, e sobre, pessoas que o vivenciam.

Palavras-chave:
Psicologia Ambiental; Percepção ambiental; Aglomeração; Prisão

Resumen

Estudio de caso en una prisión de Ceará, Brasil, con el objetivo de identificar y analizar las percepciones ambientales de los usuarios a través de la expresión de sus experiencias en el lugar y así como las simbologías que se le atribuyen. A través de entrevistas narrativas realizadas en noviembre de 2017, participaron en la investigación seis presos y seis oficiales de prisión. Sus respuestas pasaron por análisis de contenido, lo que permitió identificar dimensiones macro, meso, exo y microsistémicas de las relaciones ambientales en la prisión. Basado en la Psicología Ambiental, se concluyó que el encarcelamiento causa una ruptura socio-relacional con el mundo exterior, lo que demuestra ser molestia más relevante que la sujeción forzada en un espacio físicamente inadecuado y superpoblado. Se consideró que la función social del encarcelamiento está lejos de los objetivos de reintegración social y recuperación de las personas. El encarcelamiento causa sentimientos negativos y despectivos en y sobre las personas que lo experimentan.

Palabras clave:
Psicología Ambiental; Percepción ambiental; Aglomeración; Prisión

Abstract

This is a case study from a Brazilian prison unit, in the state of Ceará. Its aim was to identify and analyze a prison environment user’s perceptions through the expression of their experiences and of the symbology assigned to the place. Through narrative interviews accomplished in November 2017, the research reached six inmates and six prison officers as participants. Their answer went through content analysis, which allowed the identification of macro, meso, exo and micro systemic dimensions of the prison's environmental relations. Grounded in Environmental Psychology, the study concluded that prison causes a social relational break with the outside world. This way, this break demonstrated to bother people more than the forced bondage inside a physically inadequate and overcrowded space. Among other reflections, it was considered that currently the social function of imprisonment is far from the goals of people's social reintegration and recovery. Instead, imprisonment causes negative and derogatory feelings in and about people who experience it.

Keywords:
Environmental Psychology; Environmental perception; Crowding; Prison

Introdução

Não é de hoje que o Brasil lida com grandes populações prisionais e um alarmante percentual de reincidência, desproporcional às taxas de criminalidade do país (Institute for Criminal Policies Research, 2019Institute for Criminal Policies Research. (2019). World Prison Brief. Recuperado de http://www.prisonstudies.org/country/brazil
http://www.prisonstudies.org/country/bra...
; Ministério da Justiça 2017Ministério da Justiça. (2017). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Atualização de Junho 2016. Brasília, DF. Recuperado de http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf
http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/not...
). As problemáticas envolvidas, porém, não podem ser compreendidas sem aproximar-se das pessoas que vivenciam esses lugares. Dar espaço para a expressão dos usuários das instituições penais brasileiras é percebido como condição para apreensão de sua realidade, imbricada em condicionantes jurídicas, gerenciais, assistenciais, históricas, culturais e físicas. Pois, como afirma Paulo Freire (2018Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido (66a ed.). São Paulo: Paz e Terra.) a respeito das pessoas: “temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui”.

Este artigo, portanto, tem o objetivo de identificar e analisar, por meio das narrativas das pessoas, percepções e afetos sobre o ambiente prisional, na suposição de que os significados atribuídos a esses lugares, por parte de seus usuários, poderá colaborar para melhor compreender as relações pessoa-ambiente que se constroem ali (Kuhnen, 2011Kuhnen, A. (2011). Percepção Ambiental. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 250-266). Petrópolis, RJ: Vozes .).

Assim, este estudo fundamenta-se na Psicologia Ambiental, área que se destaca por considerar as pessoas e os fenômenos dentro do seu contexto ambiental, numa relação recíproca em que o ambiente influencia comportamentos e os comportamentos influenciam os ambientes (Günther & Rozestraten, 2005Günther, H. & Rozestraten, R. J. (2005). Psicologia Ambiental : Algumas Considerações sobre sua área de pesquisa e ensino. Psicologia Teoria e Pesquisa, 9(10). Recuperado de https://psibr.com.br/leituras/psicologia-social/psicologia-ambiental-algumas-consideracoes-sobre-sua-area-de-pesquisa-e-ensino
https://psibr.com.br/leituras/psicologia...
). Nesse contexto, entende-se “percepção ambiental” como sendo um processo de duas vias, onde a primeira se dá pela estimulação dos órgãos sensitivos pelo ambiente, resultando no reconhecimento do estímulo por parte do indivíduo. A outra via é referente às influências contextuais e experiências do sujeito, que, por sua vez, interferem na primeira. O resultado não é uma simples cópia da realidade, mas uma construção única e particular ao indivíduo sobre a estimulação externa (Gibson 1986Gibson, J. J. (1986). The ecological approuch to visual perception. Nova York: Taylor; Francis Group.; Merleau-Ponty, 1999Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes .).

Essa interpretação pode ser relacionada ao conceito de ambiência como suporte da percepção. Entende-se que a ambiência não é objeto da percepção, mas é através da imersão ambiental nesta que se percebe. Assim, a ambiência distingue-se do mundo dos objetos, sendo compreendida como meio à noção de percepção (Thibaud, 2018Thibaud, J.-P. (2018). Ambiência. In S. Cavalcante & G. Elali (Eds.), Psicologia Ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 13-25). Petrópolis, RJ: Vozes .).

Interpreta-se que o relacionamento humano com o lugar depende, por um lado, das características biológicas e sensoriais das pessoas; por outro lado, a relação humana com os lugares está vinculada às simbologias atribuídas aos espaços, diferenciando um ambiente físico de outro, por seus valores funcionais, sociais e culturais. Bronfenbrenner (1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas.) afirma que essas simbologias dos espaços têm a ver com as relações de trocas entre pessoa e ambiente em dimensões complementares. Ele as define em quatro: 1) microssistema, no qual o ambiente em questão é o imediato e diretamente relacionado com as características físicas e materiais específicos, influenciado pelas atividades exercidas, pela função social da pessoa e por suas interrelações; 2) mesossistema, que, em resumo, é um sistema de microssistemas, e considera os vínculos com a comunidade imediata, como amigos e familiares próximos; 3) exossistema, que considera as relações de vizinhança, trabalho externo, e vida social, como as entidades institucionais; 4) e macrossistema, a mais expandida de todas, onde a pessoa está sujeita à influência dos eventos que agem no nível da cultura e da sociedade, das crenças e ideologias.

Cordeiro (2009), a partir da teoria ecológica de Bronfenbrenner (1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas.), avalia essas dimensões relacionais dentro dos espaços penais, e conclui que, nesse ambiente específico, o exossistema e o mesossistema estão imbricados, confundindo-se, pois, as relações que são estabelecidas com a comunidade imediata estão restritas ao ambiente institucional. Ela define como microssistema as inter-relações situadas no espaço privado das celas. O exossistema é compreendido nas relações ambientais com a comunidade imediata, ou seja, expandido às vivências coletivas e aos espaços de atividades laborais, educacionais e recreativas. O mesossistema refere-se às relações institucionais e seus integrantes. O macrossistema é expandido às relações extramuros, com a sociedade externa.

Destaca-se também valores simbólicos multidimensionais agregados aos ambientes penais: o fenômeno da territorialidade, por exemplo, é um importante organizador da vida humana, entendido como um conjunto de comportamentos de um indivíduo ou grupo, baseado no controle que se tem ou se procura ter sobre um espaço físico, objeto ou ideia. Reflete em comportamentos de ocupação do ambiente, defesa, personalização ou demarcação (Wener, 2014Wener, R. E. (2014). The environmental psychology of prisons and jais: creating humane spaces in secure settings (2a ed.). Nova York: Cambridge University Press. ). Associados à territorialidade, a aglomeração e privacidade também se mostram relevantes na compreensão das relações pessoa-ambiente nos espaços prisionais. Aglomeração é termo usado para definir situações nas quais uma pessoa percebe que sua necessidade sócio espacial ultrapassa o que lhe é disponível, tornando a permanência no lugar incômoda (Pinheiro & Elali, 2011Pinheiro, J. Q. & Elali, G. A. (2011). Comportamento socioespacial humano. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 144-158). Petrópolis, RJ: Vozes .). O conceito privacidade, por sua vez, não se restringe à intimidade do indivíduo, mas é compreendido como controle seletivo do acesso a si mesmo ou a seu grupo (Günther, 2011), considerado natural ao ser humano e influenciador da dimensão territorial do espaço pessoal desejado em cada momento e lugar.

Diante desse referencial, o interesse pelas percepções e significados atribuídos à prisão por parte dos usuários do lugar, direcionou este estudo a incluir presos e agentes nas análises, e pautar seus relatos pelas multidimensões de relações ambientais. Ademais, supõe-se que essas percepções ou interpretações de significados podem viabilizar a compreensão de seus comportamentos no tocante ao entorno em que vivem e, quem sabe, lançar luz sobre as práticas do sistema penitenciário vigente.

Métodos

O campo de pesquisa deste trabalho foi uma penitenciária de regime fechado, localizada à 35 quilômetros da capital do Ceará. Projetada para 500 presos, a penitenciária investigada foi indicada pela Secretaria da Justiça e Cidadania do Ceará (SEJUS), na justificativa de que esta era a unidade mais nova - na época, com seis anos de ocupação -, menos lotada e menos problemática do Estado.

Foram realizadas entrevistas narrativas semiestruturadas (Flick, 2004Flick, U. (2004). As narrativas como dados. In Pesquisa Qualitativa (pp. 109-123). São Paulo: Bookman.), técnica que se apoia na memória dos indivíduos e leva em consideração a intensidade e as características de suas vivências em função do contexto sóciocultural, dos indícios de temporalidade representados e da ordem - real ou situacional - em que foram narradas (Elali & Pinheiro, 2008Elali, G. A. & Pinheiro, J. Q. (2008). Autobiografia Ambiental: Buscando afetos e cognições da experiência com ambientes. In I. B. Guntert & C. G. Colas (Orgs.), Métodos de pesquisa nos estudos pessoa-ambiente (pp. 217-251). São Paulo: Casa do Psicólogo.). Tendo por base o estudo de Flick (2004), cada entrevista narrativa desta investigação foi conduzida como mostra o roteiro apresentado na figura 1.

Figura 1
Roteiro para Entrevista Individual Narrativa

Participaram do estudo 6 internos (presos) e 6 agentes penitenciários, e a coleta de dados ocorreu durante três semanas consecutivas, em novembro de 2017. Não houve qualquer critério de inclusão / exclusão de participantes no que tange ao tempo de vivência dentro da instituição. Entretanto, foram convidados a contribuir com as entrevistas narrativas apenas aqueles que participaram do rapport investigativo na unidade estudada.

Isso é dito pois, antes da realização das entrevistas, dedicou-se a um importante período de construção de vínculo e confiança entre pesquisadora e participantes. Inspirado na pesquisa etnográfica, esse momento consistiu em conversas informais por meio de abordagens a pessoas aleatórias na unidade, no intuito de apreender o valor simbólico do aprisionamento com a seguinte pergunta: o que é a prisão para você? (Albuquerque, Cavalcante, & Ferreira, 2019Albuquerque, N. G. C., Cavalcante, S., & Ferreira, K. P. M. (2019). O que é a prisão para você? Significados da prisão para presos e agentes. Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis, 16(2), 93-110. https://doi.org/https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v16n2p93
https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v1...
). Só então, os participantes foram convidados a agendar uma conversa particular que se configurou nas entrevistas narrativas tidas aqui como foco.

É importante destacar que foram excluídos da investigação outros tipos de usuários do ambiente penal, como os médicos, assistentes sociais, psicólogos, advogados, assessores jurídicos, dentre outros. Além da justificativa de que sua permanência no lugar tem caráter de curta duração, a exclusão desses participantes se deu principalmente pela necessidade de construção de confiança entre a pesquisadora e os grupos de internos e agentes penitenciários. Diante de demonstrações de divergências de ideais com esses profissionais, para que os pesquisados confiassem na pesquisadora, foi necessário se afastar desses outros grupos, apesar de serem considerados também importantes usuários do ambiente penal.

Com os agentes penitenciários, as entrevistas aconteceram em salas da administração e do atendimento médico e psicológico. Com os internos, elas aconteceram no parlatório, pequeno ambiente separado em módulos que se assemelham a confessionários.

Durante as sessões das entrevistas narrativas, portou-se o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, o roteiro para entrevistas narrativas (Figura 1), um gravador de áudio portátil e um diário de campo. O material coletado foi divido em dois grupos distintos, sendo o primeiro grupo formado pelas narrativas dos internos e o segundo pelas narrativas dos agentes penitenciários. Este material foi submetido à análise de conteúdo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo (70a ed.) São Paulo: Martins Fontes.), cujas categorias foram fundamentadas nas teorias ecológicas que sustentam este trabalho.

É importante atentar para as identidades dos participantes. Compreende-se que as atividades que o ser humano exerce fazem parte da construção de sua identidade (Felipe & Kuhnen, 2012Felipe, M. L. & Kuhnen, A. (2012). Apego ao lugar no contexto dos estudos pessoa-ambiente: práticas de pesquisa. Estudos de Psicologia, 29(4), 609-617.). Dessa forma, muitas das falas que surgiram nas narrativas dos colaboradores podem ser justificadas pela apreensão de quem eram antes e de quem são agora as pessoas que narram. Assim, no decorrer desta análise, os participantes não serão identificados por nomes, mas por alguma característica marcante de sua identidade, a partir de suas narrativas. Os internos serão identificados como: o vigilante, o estrangeiro, o aviador, o motorista, o cozinheiro e o filho querido. E os agentes como: o experiente, o cientista, o idealizador, o polivalente, o ex-policial e o administrador. Essas identificações tiveram origem a partir do próprio discurso dos entrevistados, com o cuidado de impossibilitar o reconhecimento dos sujeitos reais.

Resultados e discussão

Tomando por base a leitura de Cordeiro (2009), adaptada de Bronfenbrenner (1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas.), sobre as percepções do ambiente penal e suas relações ambientais em multidimensões, a análise dos dados permitiu identificar padrões de respostas dos participantes. Estas foram subdivididas em dois grupos principais e cinco subgrupos (classes): o primeiro grupo é formado pelas narrativas dos internos, subdivididas nas dimensões “macrossistêmicas” (classe 1), “exo/mesossistêmicas” (classe 2) e “microssistêmicas” (classe 3). O segundo grupo é formado pelas narrativas dos agentes, classificadas em dimensões “macrossistêmicas” (classe 4) e “exo/mesossistêmicas” (classe 5). Não foram identificadas nas narrativas dos agentes, dimensões microssistêmicas de relações ambientais, considerando as suas definições adotadas neste trabalho.

Na classe (1), das narrativas dos internos, emergem falas sobre percepções do ambiente penal na dimensão “macrossistêmica”, considerada como a dimensão de relações humanas e ambientais expandidas à sociedade externa, de fora dos muros da instituição penal. Foram identificadas falas que fazem referência às conexões que se estabelecem com o ambiente social público, como, por exemplo, a submissão do estabelecimento penal às condições sociais e culturais da sociedade na qual está imersa.

No Brasil em geral, a reincidência é muito grande. Uma pequena faixa da sociedade, as pessoas menos abastadas financeiramente, não têm o que fazer... [Um filho] vê o pai preso hoje, que vai ter que ficar 10 anos [na prisão]. ...a mãe vai ter que sair para trabalhar e vai deixar ele sozinho dentro de uma favela com más companhias. [Ele] vai cair nas drogas... vai começar com pequenos delitos, [depois] homicídios.... Quando esse pai sair, nós não teremos mais só o pai que era um meliante, nós teremos o pai e o filho. (Aviador)

Numa articulação crítica sobre a sociedade, o aviador demonstra uma visão que se estende para além das suas experiências particulares, alcançando uma dimensão maior da realidade, o que revela a sua categorização nesta ramificação macrossistêmica da análise. O aviador diz ter múltiplas nacionalidades, experiências em tempos de guerra em Bagdá, um matrimônio anterior com filhos no Iraque e experiências profissionais como comandante de aviação - justificando a sua identificação neste trabalho. Em sua fala, é possível destacar sua percepção sobre a origem da criminalidade, que, segundo ele, incide preferencialmente sobre os mesmos grupos sociais, por um processo que não é o de imitação, mas o de condicionamento e tendência, num ciclo vicioso.

Outro exemplo similar foi retirado da fala do estrangeiro, preso no Brasil por crime hediondo, com 150 anos de condenação. Aqui ele também faz uma crítica à estratégia social do aprisionamento, enfatizando sobre a ineficiência da prisão quanto ao aspecto de inclusão social e recuperação de pessoas:

É um encarceramento cada vez maior. Coloca lá para dentro [da prisão e] fecha. Fechado não dá problemas [?] Só que dá. Pode não dar para o presídio em si, para a unidade em si, mas dá para a sociedade. Então, ...pessoas que estudam o sistema penitenciário já viram que este [é um] depósito humano, ...é uma faculdade do crime. (Estrangeiro)

É interessante notar que a percepção ambiental macrossistêmica, que extrapola os limites dos muros da unidade e da experiência da pessoa, não apareceu em falas de nenhum outro interno. A carência de narrativas sobre o ambiente exterior demonstra que o aprisionamento leva a uma desvinculação da pessoa presa com o mundo de fora, refletindo na percepção ambiental dessas pessoas. A noção de ser parte da sociedade externa se perde, e, com ela, a percepção de relação social também, tornando ainda mais difícil a ideia de retorno. Destaca-se aqui, de forma empírica, uma falha trágica do processo de ressocialização provocada pelo próprio ato do isolamento social.

Já as relações ambientais com o espaço institucional e seus integrantes, incluindo os presos, os agentes e a gestão do estabelecimento, classificadas aqui como percepções dos ambientes “exo/mesossistêmicos” - classe (2) -, foram identificadas nos discursos de todos os internos. Dentre os exemplos está o relato do aviador sobre os confrontos entre internos e suas regras de convivência: “as regras... dentro da prisão... têm uma rota de colisão muito grande. Por exemplo, ...95% das pessoas que aqui se encontram são analfabetas” (Aviador).

Nesta fala, o Aviador tenta explicar o motivo pelo qual há tantos problemas relacionais entre os internos e as suas próprias regras grupais de convivência, como, por exemplo, o pertencimento, ou não, em facções criminosas. Ele comenta que o analfabetismo os coloca em condição vulnerável de participação nesses grupos e, em muitos casos, não há como escapar dessa submissão.

Reflete-se sobre o efeito negativo do agrupamento forçado de pessoas dentro das unidades penais, e sobre as relações ambientais ali criadas. Influenciadas pelo espaço físico limitado e pela impossibilidade de sair desse lugar, as prisões parecem magnificar fenômenos como territorialidade, aglomeração e privacidade (Günther, 2011; Pinheiro & Elali, 2011Pinheiro, J. Q. & Elali, G. A. (2011). Comportamento socioespacial humano. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 144-158). Petrópolis, RJ: Vozes .), apresentando implicações diretas sobre comportamentos (Thibaud, 2018Thibaud, J.-P. (2018). Ambiência. In S. Cavalcante & G. Elali (Eds.), Psicologia Ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 13-25). Petrópolis, RJ: Vozes .). “Quando a [administração] bota 8, 10, 12 pessoas que delinquiram, juntas, todas elas vão absorver umas das outras” (Estrangeiro).

Uma vez parte desses grupos, a desvinculação se torna complicada, sem incentivos sequer por parte dos representantes da instituição penal:

Eu tirei minha camisa, não sou mais [da facção], graças a Deus. ...A partir do momento que eu tirei a camisa, eu comecei a ser feio aqui dentro. Eu não podia descer em mais nenhuma vivência, que eles [me] tiravam, ganhei muita inimizade, inimigos. Passei quatro meses no isolamento, sem contato com a família, sem contato com meus filhos, sem visita. (Vigilante)

Em seu relato, o vigilante - denominado assim por sua anterior função enquanto parte da facção - comenta sobre a nova relação de rivalidade criada com o grupo ao qual pertencia, a partir do momento em que decidiu se desvincular. Ele vivenciou experiências extremas de privação social e espacial em cela de isolamento, pois este grupo, predominante na penitenciária estudada, exigiu o afastamento do vigilante do convívio coletivo.

Além disso, é inevitável não relacionar o relato com os sistemas de privilégios e castigos de Goffman (2015Goffman, E. (2015). Manicômios, prisões e conventos (9ª ed.). São Paulo: Perspectiva. ), que parecem ainda perpetuar o ambiente penal. Isso é dito porque não ficou claro o motivo pelo qual o Vigilante foi submetido a quatro meses de isolamento, sendo isolado inclusive da família. Qual seria a justificativa para tanto, já que ele estava se afastando da suposta facção criminosa? É possível suscitar a interpretação de que as celas de isolamento são dispositivos operadores de penalização em vista da docilização de indivíduos, ou seja, são recursos de adaptação do comportamento, que induzem à aceitação das regras de convivência institucionais (Gunther & Elali, 2018Gunther, I. A., & Elali, G. A. (2018). Docilidade ambiental. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: Conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 47-59). Petrópolis, RJ: Vozes .).

É importante dizer que as celas de isolamento e triagem no Brasil têm suas particularidades. Relatórios periódicos de inspeção realizadas pelo Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (2017Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias. (2017). Relatório de Inspeção em Estabelecimentos Penais de Goiás do Período 28 e 30 de março de 2017. Goiás. Recuperado de http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/relatorios-de-inspecao/RelatriodeInspeoGois2017.pdf
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/re...
) mostram que a estada nessas celas tem cunho punitivo e efeito degradante. São denunciadas situações de celas superlotadas, de presos sem visitas de familiares, assistência jurídica e médica insuficientes (pp. 73-74). Destacam-se relatos de celas sem janelas (p. 74), outras sem banheiro (p. 55) e sem fornecimento de água para banho por mais de 50 dias consecutivos (p. 93), sem distribuição de produtos de limpeza e higiene pessoal, quando os presos são obrigados a coletar as fezes com as mãos e as jogá-las para fora, resultando em proliferação de insetos e doenças de pele (p. 93).

Não foi o caso da unidade investigada, mas as narrativas aqui demonstraram uma realidade também imprópria, com privação de direitos a visitas de familiares e restrição de acesso a produtos básicos, mesmo na unidade considerada pela secretaria como a menos problemática do estado.

“Então, eu passei muito sofrimento, agora eu consegui comprar uma cela para morar, porque na cadeia a gente compra... Na cadeia a gente compra a cela, a gente compra a televisão, compra ventilador, tudo se compra” (Motorista). Além dos produtos citados na fala do Motorista - preso por dirigir caminhonete roubada - se comercializa produtos como sabonete, escova de dente, pasta, barbeador, água sanitária, sabão de lavar roupas e desinfetante, para eventual limpeza das celas. O espanto com esse tipo de comercialização é ainda maior ao se verificar que são poucos aqueles que têm oportunidade de trabalho remunerado na unidade. Realidade não diferente dos demais estabelecimentos penais estaduais e federais - apenas 5% do presos do Ceará, e 15% dos presos do país, têm acesso à trabalho remunerado (Ministério da Justiça, 2017, p. 56). Não faz sentido, portanto, a comercialização de produtos básicos nas unidades penais, já que a grande maioria dos presos não têm recursos para aquisição desse material, fator que pode motivar trocas e negociações ilícitas.

Diante dessa realidade, reflete-se sobre as simbologias atribuídas à prisão quando em condição de trabalho: identificou-se relação esperançosa de internos quando se referiram ao serviço laboral desenvolvido na unidade:

Além de eu trabalhar [na cozinha], eu queria participar também dos estudos e ocupar cada espacinho que eu tiver, ocupar minha mente no trabalho, no estudo (Cozinheiro).

Para mim, eu preferi estar preso assim normalmente do jeito que eu estou, porque aqui eu estou livre... A gente está o dia todinho ali solto, conversando, capinando (Vigilante).

É curiosa a expressão “porque aqui eu estou livre...” do vigilante. Como um antagonismo, o participante que se considera livre dentro da prisão faz referência à sua história de vida e envolvimento com facções criminosas - como já dito -, atividade cessada e que antecedeu a experiência atual descrita como libertadora. Além disso, é inevitável não perceber a relação dessa expressão com o exercício da atividade laboral na unidade penal, que parece conduzir a uma possível transformação positiva do sistema penal e seus integrantes. “Quando você oferece uma profissão, um curso profissionalizante a um detento, um acesso à educação (...), você dá uma segunda opção [para ele].” (Estrangeiro)

Aproximando-se ainda mais, também foram identificadas falas de relações ambientais “microssistêmicas” nas narrativas dos internos - classe (3). Eles relatam sobre o espaço privado dentro das celas e sobre as trocas e transformações de ordem individual (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas.; Cordeiro Lima, 2009Cordeiro Lima, S. (2009). De perto e de dentro: diálogos entre o indivíduo-encarcerado e o espaço arquitetônico penitenciário através de lentes de aproximação. Maceió: Edufal.). “Lá na vivência, é cela normal. Quatro pessoas dividiam a cela, no máximo seis. Para mim, uma cela se cabe quatro, ali se torna uma família” (Vigilante).

Considerando que as referidas celas foram originalmente projetadas para duas pessoas, observa-se indiferença diante de sujeição forçada nesse ambiente de cela compartilhada por quatro ou mais detentos. O super adensamento humano aqui demonstrou ser pouco incômodo, diante da percepção de aglomeração social, corroborando o estudo de Lennox (1990Lennox, A. (1990). De-coding the imagery of prisons: what role for environmental psychology? Journal of Environmental Psychology, 10, 273-284.), no qual a autora levanta essa mesma consideração.

A história dos indivíduos se mostra novamente chave para a compreensão dessas respostas encontradas. Muitos deles têm suas origens familiares em grupos sociais de baixo poder aquisitivo. Vieram de bairros pobres e, supõe-se, moravam em pequenas casas de poucos cômodos, dividindo espaço com suas famílias. Portanto, para essas pessoas, a alta densidade espacial da prisão não está muito distante dos padrões de vida externos a ela, não gerando qualquer incômodo.

Voltando-se ao grupo dos agentes penitenciários, foi possível identificar dois subgrupos, classificados em “macrossistêmicos - classe (4) e “exo/mesossistêmicos - classe (5). Não aparecem em suas narrativas referências classificáveis como microssistêmicas - consideradas neste trabalho como aquelas restritas às relações no ambiente das celas.

A sociedade em si não sabe o que é o sistema prisional. Ela ouve falar, mas com muita brevidade... É um local insalubre, perigoso, que, querendo ou não, eu não aconselho um filho meu a entrar. Eu entrei mesmo por necessidade, não sou de família rica, então entrei por necessidade. (Administrador)

Numa percepção de relação ambiental “macrossistêmica” - classe 4 -, o Administrador - denominado assim por sua formação em Administração - justifica nesta fala o motivo pelo qual decidiu prestar concurso para agente penitenciário. Percebe-se um descontentamento em exercer a profissão, enfatizando um incômodo por sua sujeição forçada ao ambiente penal, mesmo para fins de trabalho.

Nós somos o elo fraco. Nós não temos apoio da sociedade, nós não temos apoio do Estado. Não temos apoio do Estado e nós somos o Estado. Nós somos o braço forte, a personificação, o servidor em exercício do seu dever, da sua função. O agente penitenciário é a personificação do Estado, mas nós não recebemos apoio. Por quê? (Ex-Policial)

Os relatos de todos os agentes demonstraram frustração com a realização de seu trabalho, relacionada ao difícil cumprimento da sua função laboral, tendo em vista a quantidade reduzida de funcionários efetivos, a superpopulação prisional e os efeitos disso. Na unidade estudada, no período da realização da pesquisa, havia em média 12 agentes por plantão, para aproximadamente 600 presos. Este fator, sem dúvidas, é influente na configuração ambiental da prisão e nos métodos empregados para gerenciar o lugar.

Isso é dito, pois, a rotina de gerência do lugar inclui rondas periódicas e conferências de celas, em um sistema classificado por Tartaro (2003Tartaro, C. (2003). Suicide and the Jail Environment: an evaluation of three types of institutions. Environment and Behavior, 35(5), 605-620. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0013916503254753
https://doi.org/10.1177/0013916503254753...
) de supervisão indireta. Sem intenções de criação de vínculos com os internos em prol da atenção individualizada, esse sistema é considerado reativo, na medida em que os agentes são orientados a entrar em ação apenas quando são surpreendidos com alguma atitude indisciplinar dos presos. Haja vista a proporção de agentes e presos da unidade, não haveria outra possível forma de trabalho. “O que a gente sente realmente hoje é a falta de agentes por plantão, que é o que emperra mais para as coisas funcionarem direito e para entrar esses projetos... tipo escola e tal (Experiente - que se apresenta como aquele com muitos anos de serviço).

Esse fator justifica a ausência de narrativas de agentes nas dimensões microssistêmicas aqui analisadas, já que não há o desempenho de qualquer tipo de convivência entre os presos e os agentes nos ambientes das celas. Não obstante, dentre as várias problemáticas desse sistema de gerenciamento, Tartaro (2003Tartaro, C. (2003). Suicide and the Jail Environment: an evaluation of three types of institutions. Environment and Behavior, 35(5), 605-620. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0013916503254753
https://doi.org/10.1177/0013916503254753...
) coloca que prisões que trabalham assim apresentam maiores índices de suicídios entre os internos e baixíssimo potencial recuperativo. Ao contrário daquelas que contam com um maior número de agentes por quantidade de presos, e nas quais os funcionários assumem papel de socioeducadores, mantendo se em contato com os internos e de forma proativa, desempenhando atividades diversas.

O ex-policial expõe sua opinião sobre o seu papel na unidade, quando diz que “a ressocialização parte da pessoa porque, na verdade, nem a salvação [é possível] se a pessoa não quiser. Deus só vai dar a salvação, se aquela pessoa permitir. Porque assim Deus deu o livre arbítrio” (Ex-Policial).

Diante da magnitude do problema, o distanciamento desses agentes é até compreensível, podendo ser relacionado às atitudes blasé, definida por Georg Simmel como comportamento de autodefesa do equilíbrio sociobiológico, em que a pessoa se distancia das relações afetivas desenvolvendo a longo prazo mecanismos internos como indiferença e contato superficial, devido aos excessivos estímulos aos quais é submetida (Garcia, 2007Garcia, J. L. (2007). Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social: Georg Simmel e a autonomia da tecnologia. Sci. Stud., 5(3), 287-336. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11114/12882
http://www.revistas.usp.br/ss/article/vi...
). Que condições esses agentes têm de agirem de outra forma, trabalhando em unidades superlotadas, sem equipamentos suficientes, sem apoio psicológico, sem privacidade em exposição constante a pessoas consideradas perigosas pela sociedade? A partir da teoria da atitude blasé (Garcia, 2007), é possível dizer que permanecer indiferente é uma espécie de fuga emocional, pois seria psiquicamente insuportável manter-se sensível a tudo, na medida em que não há qualquer apoio ou instrução que dê lugar a outra atitude.

Afirma-se aqui uma fragilidade do sistema penal como um todo. Se a intenção de fato é o tratamento humano, a aceitação do indivíduo e a crença na ressocialização de pessoas, é urgente cuidar do grupo profissional responsável por tal missão. “Seria importante um atendimento, um tratamento, um apoio psicológico para o profissional” (Administrador).

Indo adiante, no discurso dos agentes também foram identificadas falas referentes às suas relações ambientais em dimensões “exo/mesossistêmicas” - classe 5. São compreendidas nas relações com a comunidade imediata expandidas às vivências coletivas e aos espaços de atividades laborais, educacionais e recreativas, e incluem as relações com a instituição e seus integrantes. Portanto, aqui são identificados relatos de confrontos dos agentes e da administração do estabelecimento com o ambiente-prisão (instituição), assim como com os internos (comunidade imediata):

Nesta unidade só existe uma facção e aqueles da massa (presos que não fazem parte de grupos criminosos) ...Então, mesmo separando, fazendo essa triagem por facção, ainda há muitos registros de homicídios... Há um código organizacional [deles] ...Ou seja, é uma série de problemas que temos que lidar de imediato. (Ex-Policial)

É interessante notar que os agentes, mesmo conscientes da sua missão em defesa das regras institucionais, percebem e demonstram aceitação de que há uma força grupal advinda dos internos, principalmente no que se refere àqueles pertencentes à facção criminosa predominante na unidade. Em sua fala, o ex-policial demonstra que há certa margem de limitações de poder, imposta por tal grupo, ou seja, é comum haver conflitos e negociações entre os internos e o estabelecimento, em prol dos interesses do grupo criminoso, regido por regras próprias que, por vezes, sobrepõem àquelas da instituição.

Todos os dias tem uma dentista. Só não em dia de visitas [aos domingos]. Mas médico, só um, duas vezes na semana. Eu acho muito pouco isso ...Nós somos divididos em vários postos, então [diariamente] tem uma rotatividade. Tem dias que estou lá em baixo, nas chamadas vivências. Tem dias que eu estou ali na entrada da penitenciária, ...na recepção. Tem dias que a gente está aqui no quadrante, de onde é distribuído todo o trabalho de atendimento psicológico, jurídico, tudo isso. (Polivalente - que se apresenta por suas várias funções)

Para esse grupo de usuários do lugar, a rotina no ambiente penal é tão rígida quanto para os internos, corroborando a descrição de Goffman (2015Goffman, E. (2015). Manicômios, prisões e conventos (9ª ed.). São Paulo: Perspectiva. ) a respeito de instituições totais. Destaca-se a fala do Cientista, quando questionado sobre a inércia do lugar, mesmo diante das celas superlotadas: “Pra gente, não sei .... Pra gente não muda muita coisa não” (Cientista).

O Cientista foi denominado assim por seu relato de estudioso da área penal. Percepção que pode justificar seu posicionamento particular de distanciamento diante da realidade como uma tentativa de manter-se neutro, também relacionável às atitudes blasé.

Ademais, é importante chamar atenção para a complementaridade entre os grupos de narrativas na apreensão do que é uma prisão a partir das percepções de seus usuários. Não basta apenas ouvir um ou outro grupo social para entender a complexa realidade na qual todos estão inseridos. É preciso tentar enxergar a realidade a partir da percepção de cada grupo para apreender a sua totalidade. É preciso ver, vendo (Benevides, 2008Benevides, M. G. (2008). Relendo um mito: introdução metodológica e auto-analítica. In Entre Ovelha Negra e Meu Guri (p. 198). São Paulo: Annablume.).

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi compreender as relações pessoa-ambiente penal ao dar espaço para usuários de uma prisão brasileira expressarem suas experiências, percepções e significações. A análise de conteúdo das narrativas dos participantes permitiu identificar dois grupos - de presos e de agentes -, subdivididos em um total de cinco categorias, caracterizadas em multidimensões de suas relações no ambiente penal (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas.; Cordeiro Lima, 2009Cordeiro Lima, S. (2009). De perto e de dentro: diálogos entre o indivíduo-encarcerado e o espaço arquitetônico penitenciário através de lentes de aproximação. Maceió: Edufal.).

Em muitos aspectos, esta pesquisa reafirmou conceitos e enfatizou preocupações, ainda que obliteradas pela imensa distância a ser percorrida para o alcance de soluções para a realidade estudada. Dentre essas reafirmações, está a evidência de que a aglomeração é característica intrínseca do ambiente penal na atualidade para ambos usuários participantes desta pesquisa - presos e agentes. Entretanto, sendo considerado como fenômeno incômodo pela sujeição forçada ao lugar, esta pesquisa demonstrou que a percepção de aglomeração está relacionada com o efeito de ruptura social relacional que a prisão provoca, e não com o fator de adensamento físico.

Ressalta-se que nenhuma narrativa se referiu diretamente ao espaço físico da prisão, em seus aspectos estéticos, térmicos, acústicos etc. Em lugar disso, as queixas dos internos focaram na impossibilidade de contato com suas famílias ou grupos de pertencimento, referindo-se à ambiência do lugar (Thibaud, 2018Thibaud, J.-P. (2018). Ambiência. In S. Cavalcante & G. Elali (Eds.), Psicologia Ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 13-25). Petrópolis, RJ: Vozes .). Do mesmo modo, os agentes expressaram inquietações relacionadas ao ambiente percebido como instável pela superlotação e pequeno contingente de profissionais, condições consideradas inapropriadas para o exercício de suas funções.

Conclui-se ainda sobre a necessidade de uma reconfiguração das penas e dos espaços destinados a seu cumprimento no sentido de considerar o trabalho e a educação como mecanismos estratégicos para ressocialização de pessoas. Além disso, é preciso que os agentes penitenciários sejam incluídos nesses programas. pois, sob a perspectiva holística da Psicologia Ambiental, na qual cada pessoa em um lugar constitui ambiente para outro (Rivlin, 2003Rivlin, L. G. (2003). Olhando o passado e o futuro: revendo pressupostos sobre as inter-relações pessoa-ambiente. Estudos de Psicologia , 8(2), 215-220. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1413-294X2003000200003
https://doi.org/10.1590/S1413-294X200300...
), uma formação humana dos profissionais designados a cuidar dos apenados é condição sine qua non para mudanças positivas.

Este estudo também permite dizer que as prisões são uma espécie de pequenas cidades, imbricadas à realidade social externa a seus muros. As limitações físicas determinadas pela rigidez de suas arquiteturas e sua gerência, não evitam que esse lugar se mostre réplica do mundo externo, considerando as relações humanas e sociais de controle e territorialidade que se mostram tão similares àquelas do contexto social ao qual pertencem. Apropriação espacial, demarcação de territórios, regras de convivências, líderes e submissos em negociações por espaços e recursos são alguns exemplos de relações ambientais percebidas como similares a qualquer comunidade externa, contudo magnificadas pela submissão forçada dos integrantes ao lugar.

Portanto, estudos em espaços prisionais são um potencial de pesquisa na área da Psicologia Ambiental sobre o comportamento socioespacial humano (Pinheiro & Elali, 2011Pinheiro, J. Q. & Elali, G. A. (2011). Comportamento socioespacial humano. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 144-158). Petrópolis, RJ: Vozes .), sem a necessidade do atributo artificial de um laboratório. Conceitos como aglomeração, privacidade (Cavalcante & Pinheiro, 2018Cavalcante, S. & Pinheiro, N. P. (2018). Privacidade. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: Conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 197-203). Petrópolis, RJ: Vozes .), affordance (Gunther, 2011Gunther, H. (2011). Affordance. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Temas básicos em Psicologia Ambiental (pp. 21-27). Petrópolis, RJ: Vozes .), territorialidade (Higuchi & Theodorovitz, 2018Higuchi, M. I. G. & Theodorovitz, I. J. (2018). Territorialidade. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: conceitos para leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 228-236). Petrópolis, RJ: Vozes .) e estresse ambiental (Cavalcante & Elali, 2011Cavalcante, S., & Elali, G. A. (2011). Temas básicos em Psicologia Ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes.) são potencializados na medida em que os usuários desses lugares não entram em contato com outro ambiente por longos períodos de tempo. Sob esse olhar, pode-se dizer que estudos sobre prisões permite também compreender melhor as relações humanas e ambientais do mundo fora delas.

Ademais, há muito ainda a ser investigado e exposto a respeito. Pois aqui não foi possível vivenciar o ambiente penal para realizar pesquisas por meio de etnografia, observação participante ou experiências similares. Além disso, foram excluídos outros grupos importantes de usuários da prisão, como já dito, sem falar do direcionamento pela SEJUS à realização da pesquisa na unidade mais nova, menos lotada e menos problemática do Estado. Apesar disso, as apreensões desse estudo permitiram uma noção da complexa realidade de uma penitenciária e de seu ambiente, percebido pelos olhos de seus usuários.

Por fim, e mesmo fundamentados na Psicologia Ambiental, os dados aqui expostos foram interpretados pela ingerência da percepção de mundo dos pesquisadores. Cabe à difícil tarefa de análise crítica dos discursos (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A ordem do discurso: aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola.) detectar os princípios de ordenamento, de exclusão e de rarefação das falas, o que nada mais é do que interpretação subjetiva de uma determinada realidade.

Referências

  • Albuquerque, N. G. C., Cavalcante, S., & Ferreira, K. P. M. (2019). O que é a prisão para você? Significados da prisão para presos e agentes. Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis, 16(2), 93-110. https://doi.org/https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v16n2p93
    » https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v16n2p93
  • Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo (70a ed.) São Paulo: Martins Fontes.
  • Benevides, M. G. (2008). Relendo um mito: introdução metodológica e auto-analítica. In Entre Ovelha Negra e Meu Guri (p. 198). São Paulo: Annablume.
  • Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Cavalcante, S., & Elali, G. A. (2011). Temas básicos em Psicologia Ambiental Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Cavalcante, S. & Pinheiro, N. P. (2018). Privacidade. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: Conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 197-203). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias. (2017). Relatório de Inspeção em Estabelecimentos Penais de Goiás do Período 28 e 30 de março de 2017 Goiás. Recuperado de http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/relatorios-de-inspecao/RelatriodeInspeoGois2017.pdf
    » http://depen.gov.br/DEPEN/depen/cnpcp/relatorios-de-inspecao/RelatriodeInspeoGois2017.pdf
  • Cordeiro Lima, S. (2009). De perto e de dentro: diálogos entre o indivíduo-encarcerado e o espaço arquitetônico penitenciário através de lentes de aproximação Maceió: Edufal.
  • Elali, G. A. & Pinheiro, J. Q. (2008). Autobiografia Ambiental: Buscando afetos e cognições da experiência com ambientes. In I. B. Guntert & C. G. Colas (Orgs.), Métodos de pesquisa nos estudos pessoa-ambiente (pp. 217-251). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Felipe, M. L. & Kuhnen, A. (2012). Apego ao lugar no contexto dos estudos pessoa-ambiente: práticas de pesquisa. Estudos de Psicologia, 29(4), 609-617.
  • Flick, U. (2004). As narrativas como dados. In Pesquisa Qualitativa (pp. 109-123). São Paulo: Bookman.
  • Foucault, M. (2003). A ordem do discurso: aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 São Paulo: Loyola.
  • Freire, P. (2018). Pedagogia do oprimido (66a ed.). São Paulo: Paz e Terra.
  • Garcia, J. L. (2007). Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social: Georg Simmel e a autonomia da tecnologia. Sci. Stud., 5(3), 287-336. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11114/12882
    » http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11114/12882
  • Gibson, J. J. (1986). The ecological approuch to visual perception. Nova York: Taylor; Francis Group.
  • Goffman, E. (2015). Manicômios, prisões e conventos (9ª ed.). São Paulo: Perspectiva.
  • Gunther, H. (2011). Affordance. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Temas básicos em Psicologia Ambiental (pp. 21-27). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Günther, H. & Rozestraten, R. J. (2005). Psicologia Ambiental : Algumas Considerações sobre sua área de pesquisa e ensino. Psicologia Teoria e Pesquisa, 9(10). Recuperado de https://psibr.com.br/leituras/psicologia-social/psicologia-ambiental-algumas-consideracoes-sobre-sua-area-de-pesquisa-e-ensino
    » https://psibr.com.br/leituras/psicologia-social/psicologia-ambiental-algumas-consideracoes-sobre-sua-area-de-pesquisa-e-ensino
  • Gunther, I. A., & Elali, G. A. (2018). Docilidade ambiental. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: Conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 47-59). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Higuchi, M. I. G. & Theodorovitz, I. J. (2018). Territorialidade. In S. Cavalcante & G. Elali (Orgs.), Psicologia Ambiental: conceitos para leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 228-236). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Institute for Criminal Policies Research. (2019). World Prison Brief Recuperado de http://www.prisonstudies.org/country/brazil
    » http://www.prisonstudies.org/country/brazil
  • Kuhnen, A. (2011). Percepção Ambiental. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 250-266). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Lennox, A. (1990). De-coding the imagery of prisons: what role for environmental psychology? Journal of Environmental Psychology, 10, 273-284.
  • Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da Percepção (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes .
  • Ministério da Justiça. (2017). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Atualização de Junho 2016 Brasília, DF. Recuperado de http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf
    » http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf
  • Pinheiro, J. Q. & Elali, G. A. (2011). Comportamento socioespacial humano. In S. Cavalcante & G. A. Elali (Orgs.), Temas básicos em psicologia ambiental (pp. 144-158). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Rivlin, L. G. (2003). Olhando o passado e o futuro: revendo pressupostos sobre as inter-relações pessoa-ambiente. Estudos de Psicologia , 8(2), 215-220. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1413-294X2003000200003
    » https://doi.org/10.1590/S1413-294X2003000200003
  • Tartaro, C. (2003). Suicide and the Jail Environment: an evaluation of three types of institutions. Environment and Behavior, 35(5), 605-620. Recuperado de https://doi.org/10.1177/0013916503254753
    » https://doi.org/10.1177/0013916503254753
  • Thibaud, J.-P. (2018). Ambiência. In S. Cavalcante & G. Elali (Eds.), Psicologia Ambiental: conceitos para a leitura da relação pessoa-ambiente (pp. 13-25). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Wener, R. E. (2014). The environmental psychology of prisons and jais: creating humane spaces in secure settings (2a ed.). Nova York: Cambridge University Press.
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • Aprovação, ética e consentimento: Não se aplica
  • Financiamento: Não houve financiamento

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2019
  • Revisado
    28 Ago 2019
  • Aceito
    27 Set 2019
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com