Open-access Da espera ao esperançar: por uma fenomenologia teológica da esperança

From Waiting to Hoping: Towards a Theological Phenomenology of Hope

RESUMO

O horizonte de reflexão que modestamente propomos nesse artigo pretende lançar luzes sobre a possibilidade de uma hermenêutica do ano jubilar como uma autêntica fenomenologia teológica da Esperança. O centro da reflexão é o resgate do olhar bondoso do Criador como luz que ilumina toda criatura. Neste sentido, o desafio da santificação da existência, possibilidade especial oferecida pelo ano jubilar, consiste em recuperar em nós o olhar misericordioso e cheio de esperança do criador que vê, constantemente, a beleza da criação. Fazer a passagem da simples expectativa para o ato teológico da Esperança supõe ultrapassar nosso olhar de justiça fenomenológica, que vê estritamente aquilo que nos aparece a partir da luz superficial do mundo. Esta é a tarefa diária, condição de possibilidade de reconciliação entre a criatura e seu Criador.

PALAVRAS-CHAVES
Fenomenologia; Esperança; Jubileu

ABSTRACT

The modestly reflection propose in this article aims to shed light on the possibility of a hermeneutics of the Jubilee Year as an authentic theological phenomenology of Hope. The center of the reflection is the recovery of the Creator’s kind gaze as a light that illuminates every creature. In this sense, the challenge of sanctifying existence, a special possibility offered by the Jubilee Year, consists in recovering within ourselves the merciful and hopeful gaze of the Creator who constantly sees the beauty of creation. Making the transition from simple expectation to the theological act of Hope implies going beyond our gaze of phenomenological justice, which sees strictly what appears to us from the superficial light of the world. This is the daily task, a condition for the possibility of reconciliation between the creature and its Creator.

KEYWORDS
Phenomenology; Hope; Jubilee

Introdução

Do Esperar ao Esperançar, o horizonte de reflexão que modestamente propomos nesse artigo pretende lançar luzes sobre a possibilidade de uma hermenêutica do ano jubilar como uma autêntica fenomenologia teológica da Esperança. O centro da reflexão é o resgate do olhar bondoso do Criador como luz que ilumina toda criatura. Em sua Fenomenologia da Verdade, Urs von Balthasar, recorda que o desafio da santificação da existência, possibilidade especial oferecida pelo ano jubilar, consiste em recuperar em nós o olhar misericordioso e cheio de esperança do criador que vê, constantemente, que tudo era muito bom (Balthasar, 1952). Esse convite a ultrapassar nosso olhar de justiça fenomenológica, que vê estritamente aquilo que nos aparece a partir da luz superficial do mundo, impõe-se como tarefa diária, condição de possibilidade de reconciliação entre a criatura e seu Criador.

A partir do elucidado, o caminho que propomos possui a exigência da retomada do fundamento filosófico e antropológico da relação dialética entre expectativa e esperança que, por sua vez, conduzir-nos-á a uma Fenomenologia bíblico-teológica acerca da nossa condição existencial de “Peregrinos da Esperança”. A passagem da mera espera à esperança marca aquilo que Kierkegaard chamava de salto de fé, não o mero abandono do estágio estético e ético, em busca de outra coisa, numa tentativa desesperada de um misticismo desesperançado da carnalidade, mas a reintegração do homem à bondade da criação. Por quê? Porque inspirado no olhar de Deus, ao ver que tudo era muito bom, o homem pode descobrir a verdade primordial sobre si mesmo, a saber: que ele é o coroamento dessa criação em sua bondade e beleza.

Destarte, uma fenomenologia da Esperança como grandeza teológica central da configuração da nossa existência escatológica nessa terra, lança-nos numa postura crística-existencial. Crística e não meramente crítica, para elucidar ao leitor que porventura tenha ficado em dúvida. A existência crística emerge como um constante peregrinar cujo foco consiste no testemunho autêntico traduzido no verbo esperançar. O cristão não é somente aquele que espera, mas aquele que na postura de vida dá razões de sua esperança. Razão aqui assume a perspectiva bíblica de testemunho vivencial, não se trata de um discurso eloquente e bem concatenado em argumentos lógicos desenhados como numa tese perfeita. Testemunhar a esperança é assumir a postura de peregrinos em festa, é aparecer para o mundo como o clarão do raio em meio às tempestades.

Peregrinar no esperançar, caminhar não sem rumo, mas com os olhos fitos no único porto seguro que é Cristo. Recordando o toque festivo de Yovel (לבֵוֹי), o chifre de carneiro utilizado para produzir o som tipo corneta que anuncia o ano de Graça do Senhor (Lv 25,10). É a boa notícia resumida no fantástico e ousado verbo “esperançar”. No português regionalista dos vaqueiros brasileiros diríamos, tocar o chifre, o berrante, e aos berros anunciar que não peregrinamos de qualquer modo, e que somos, sobretudo, Peregrinos da Esperança.

O contexto escriturístico do resgate do Shabat Shalom, presente em Levítico 25, precisa ser imediatamente resgatado para a vivência do ano jubilar proposto pela Igreja, cujo título, Peregrinos da Esperança, não foge à tonalidade da intencionalidade teológica daquilo que deve ser a espiritualidade jubilar, a saber: um anúncio alegre a recordar que a Graça precede toda possibilidade de fracasso. Foi assim mesmo que o último ano jubilar de 2015 proclamava o Ano Extraordinário da Misericórdia.

O Ano Jubilar conhecido como “Ano Santo” pode ser também situado como chave hermenêutica para a compreensão da Lei de santidade na exegese de Levítico 25, como abordaremos mais adiante (Artus, 2014). A questão que emerge diz respeito à autêntica interface entre o Ano Jubilar e a Lei de Santidade, no contexto escriturístico, que pode ser condensada na pergunta: como o horizonte de Levítico 25 nos remete à santidade de Deus? E, ainda, como a santidade de Deus toca nossa existência na vivência do ano jubilar? Dentre muitas possibilidades podemos apontar o horizonte de reflexão segundo o qual a proclamação do Ano Santo do Senhor intenciona resgatar, primordialmente, a memória da Suma Graça pela qual todas as coisas foram feitas e, assim, fazer ver naquilo que aparece diante de nossos olhos (a terra, as posses, a relação com o dinheiro, a família, o estrangeiro, o pobre que nos interpela) a bondade e santidade que sustentam toda a criação.

O Ano Jubilar, portanto, apresenta-nos a possibilidade de uma Fenomenologia Teológica da Esperança, ou ainda, a possibilidade de uma Fenomenologia da Graça, a manifestação ou a shekinah do Senhor, isto é sua presença, efetiva e afetiva em toda a criação, de forma especial, na carne dos menos favorecidos que também precisam ter vida, e vida em abundância (Jo 10,10). Por isso, a começar pela terra, culminando no último ser vivo, todos devem GOZAR do Shabat. No descanso do Shabat usufruímos do Shalom escatológica, esperança dos que creem, horizonte dos que buscam o Senhor.

1 O Arquétipo Esperança: por uma antropologia fundamental

Utilizando uma espécie de licença poética, pode-se lançar mão da categoria de arquétipo da psicologia de Jung para abordar a categoria da Esperança a partir da perspectiva de uma antropologia fundamental. Fundamental, entende-se aqui, obviamente, como aquilo do qual não se pode abrir mão ao pensar nossa condição humana. Das filosofias às mais elaboradas narrativas, dos projetos científicos aos delineamentos da vida cotidiana naquilo que nos parece mais ordinário, a esperança emerge como movimento fundamental daqueles que estão vivos. “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” diz o nono verso do terceiro canto da Divina Comédia. O texto denuncia, o inferno é a ausência de toda esperança. Em tempos de narrativas constrangedoras em relação à possibilidade de salvação ou perdição, o inferno como ausência de esperança, parece-nos oferecer uma boa reconfiguração da nossa condição de destinados à Graça.

Uma fenomenologia da esperança apontará que onde há hálito de vida, há espera, ainda que baseada numa certa expectativa. Mesmo atormentado pelas bestas, nas selvas escuras da vida, quando o caminho parece perdido, surge um Virgílio para anunciar que numa rota que parece passar pelo inferno, há ainda esperança: “A ti convém seguir outra viagem, tornou-me ele ao me ver lacrimejando, para escapar deste lugar selvagem” (Dante, Divina Comédia, Inferno, Canto III, V.91-93). Esse lugar selvagem, a existência dura do homem que pelo cansaço da vida se afasta da virtude, no risco iminente da barbárie, pode-se dele evadir, ainda que aos infernos tendes que ir. Peregrinar pelo inferno existencial, os nossos e o do próximo, tal como Dante guiado por Virgílio, pode-nos fazer recordar o princípio esperança, reanimar o arquétipo desgastado pelas narrativas tão hodiernas do desespero.

De forma semelhante, na novela Senhor dos Anéis, em sua terceira parte intitulada O Retorno do Rei (Tolkien, 2010), ressaltamos a passagem em que Pippin, o chamado Peregrin Took, acende o farol de Gondor que pode ser interpretada no contexto da narrativa tanto como uma trombeta que chama para a guerra, quanto um farol de esperança que convoca para a unidade no enfrentamento das trevas. O contexto da narrativa, ao menos na sua versão cinematográfica, gira em torno de uma resistência por parte do regente para pedir ajuda ao reino vizinho. A tocha estava apagada e não havia ordem para acendê-la, então, Peregrin Took, um peregrino da esperança, dá o passo decisivo, mostrando que em algum momento precisamos passar da expectativa à esperança.

Às vezes é preciso esperançar, e esperançar pode ser forjar com as próprias mãos a esperança, encantar outra vez o mundo. Inclusive exercer o ofício de pedagogos da Esperança, para recordar o grande educador Brasileiro (Freire, 1997). Incomensurável são as narrativas que tematizam a esperança, recordamos, por exemplo, a frase de Drummond, o influente poeta mineiro que costuma fazer, em verso, uma pergunta nauseante, mas não menos fundamental: “o que muda na mudança, se tudo em volta é uma dança, no trajeto da esperança, junto ao que nunca se alcança?” (Drummond, 1984, p. 13). A depender do ponto de vista, a esperança nesses versos pode ser vislumbrada como a dança dos tolos, ou ainda, como utopia a nos colocar num constante baile da vida. Seja como for, ela emerge como um traço fundamental da existência. Querendo ou não todos entramos em algum momento nesse baile. Quando não, morremos!

Para além dos discursos poéticos, em prosa ou verso, é possível entrever nas mais diversas reflexões filosóficas uma fenomenologia da esperança. Desde os estoicos, com seu ideal popular de ataraxia como supressão de toda perturbação conectada à ansiedade de um espírito que espera, passando pelo epicurismo, reinterpretando o prazer como cessação de toda angústia no cumprimento do gozo da vida. Até as filosofias mais contemporâneas – como o discurso do Princípio-Esperança do filósofo marxista Ernst Bloch, ou da Esperança como sentido da vida, do humanista Viktor Frankl – a esperança insiste em aparecer como traço existencial fundamental. Muitos autores contemporâneos têm retomado o discurso da secularização da esperança cristã, apontando a ilusão de um pensamento que apostou no fim da metafísica e do desencantamento do mundo como o fim da esperança no sentido transcendente do termo. A redução da nossa espera à expectativa não significa necessariamente o abandono do que aqui nomeamos como arquétipo da esperança, mas somente uma das faces de sua manifestação.

Obviamente, nesse artigo, cujo escopo é propor uma Fenomenologia Teológica da Esperança, o tema da escatologia cristã como uma das manifestações mais genuínas do arquétipo da esperança se impõe como tônica do discurso, tema que será aprofundado no próximo tópico. Por agora, importa retomar ainda o tema da esperança em alguns contextos específicos da nossa tradição filosófica. Partindo da metafísica grega, onde o tema da esperança não é abordado diretamente, a não ser na articulação de alguns conceitos fundamentais, a entrelaçar mitologia e discurso filosófico, pretendemos chegar a algumas reflexões chaves que nos possibilite ampliar o horizonte, inicialmente fenomenológico, em busca de um olhar que atinja a perspectiva teológica do Jubileu Peregrinos da Esperança.

No período clássico da filosofia greco-romana podemos vislumbrar uma fenomenologia da Esperança articulada entre algumas categorias que tecem a trama dos mitos em sua maioria, como por exemplo, moira (destino), tyche (azar ou fortuna), conjugadas às discussões sobre o destino do ser humano e a imortalidade da alma, atravessada pela noção de liberdade. As grandes questões supunham a articulação dessas categorias míticas e filosóficas que envolviam, como num novelo, a existência humana. A Psicologia platônico-aristotélica, lançando mão da possibilidade da liberdade como característica central da psique humana vai, aos poucos, articulando a existência do homem como grandeza metafísica que não pode prescindir do mistério da comunicação entre esses elementos fundamentais.

A esperança metafísica de que algo da psique humana permanece pode ser entrevista nas questões da imortalidade da alma que abundam os chamados diálogos platônicos. Iniciando pelo ensaio da tripartição da alma, sua origem e destino na República, Timeu e Fedro, passando pelo famigerado ceticismo temporário do Banquete, até a culminação na conexão entre a imortalidade da alma e a doutrina das ideias, em Fédon (Robinson, 2007). No seu comentário à Psicologia de Platão, Robinson, resgatando a influência do orfismo e dos mitos escatológicos na filosofia platônica, possibilita-nos entrever uma fenomenologia da esperança, não no sentido cristão, que diz respeito a visão clássica da existência humana. Se é ou não a parte racional da alma que sobrevive, afirmar a virtude, oposta à crueldade e barbárie, como critério para essa permanência pós-morte, tudo isso aponta para o horizonte de um desejo fundamental para a existência humana, o que diz respeito à esperança da imortalidade:

Na República, os resultados são muitos piores, pois a escolha crucial de uma vida futura e todos os riscos que a acompanham são vistos como dependendo do tipo de virtude que se tem. O homem que praticou apenas a virtude “popular” pode, talvez, desfrutar de um período de beatitude, mas Platão deixa claro que, quando se trata de escolher uma outra vida, ele tem menos chance ainda que o pecador de fazer uma escolha sábia e, de fato, corre o sério risco de escolher uma vida que implicará uma punição longa, senão eterna, depois

(Robinson, 2007, p. 169).

Ainda que a salvação, no sentido grego, assuma aspectos bastantes diferentes daquela proposta pela escatologia de cunho judaico-cristão, parece-nos patente a afirmação de uma fenomenologia da esperança também nas reflexões filosóficas no que tange à origem, desenvolvimento e destinação da psique em seu contexto original da filosofia clássica. A mesma fenomenologia da esperança pode ser entrevista na teologia de Aristóteles. Segundo Berti, em Aristóteles, Deus emerge na condição de amigo dos homens, causador de tudo que acontece na alma humana, também causa da sua fortuna:

Mas Deus, para Aristóteles, não apenas conhece tudo, incluindo o homem, mas ele também ama o homem: com efeito, na Ética a Eudemo ele afirma que Deus é amigo do homem, não com uma amizade que comporta igualdade ou reciprocidade (no sentido de troca), porque ele não tem necessidade de nada, mas com uma amizade como a do pai em relação ao filho, do benfeitor em relação ao beneficiado, do superior ao inferior. Na mesma obra, mais à frente, Aristóteles afirma que Deus é causa também do que acontece na alma do homem, porquanto o princípio da razão é superior à razão, sendo, por isso, causa do seu sucesso, quer dizer, da sua fortuna

(Berti, 2011, p. 464).

Deus é afirmado como causa da fortuna do homem, que o ama como pai. Existe horizonte de esperança mais explícito que tais afirmações?

A Esperança como arquétipo surge tal como nó borromeano, para usar uma figura lacaniana, e compõe o cenário por onde se desliza a existência humana. O nó borromeano emerge, na psicanálise lacaniana, como o entrelaçamento entre o Simbólico, Real e Imaginário. Assim também, podemos pensar, numa Fenomenologia da Esperança, essa imagem do nó borromeano como o entrelaçamento entre filosofia e teologia a partir do arquétipo antropológico da Esperança; ou ainda, como metáfora para pensar as dimensões de entrelaçamento das virtudes teologais como fé-esperança-caridade. Neste sentido, a esperança, como terreno de interfaces entre Filosofia e Teologia, emerge como sintoma junto ao desespero neurótico na psicologia. Também aparece como o horizonte que sustenta a quimera do domínio absoluto da razão tecnocrata, que postula não somente passos tecnicamente possíveis, como habitar fora do globo terrestre, mas quimeras que nos jogam de volta à região mais fantástica do mito, como a sobrevivência da memória pessoal num banco de dados, habitando, figurativamente nas nuvens.

Adolphe Gesché, um teólogo que manteve sempre vivo seu senso filosófico, aponta-nos um horizonte possível da fenomenologia da esperança ao longo do pensamento moderno em seu livro “A destinação” (2004). Retomando autores como Ernst Bloch, Pannenberg e Levinas, ele sugere a retomada da reflexão do tempo não como limite, mas como relação com o infinito. O infinito, ou ao menos nossa abertura a algo que nos remete a um além, pode ser vislumbrado aqui como o invólucro da esperança. Ao citar Pannenberg o autor recorda que uma “fenomenologia da esperança mostra que pertence à natureza do ser humano consciente esperar algo além da morte” (Pannenberg, 1971, p. 97 apud Gesche, 2004, p. 126).

A possibilidade do discurso moderno sobre o homem não pode esquecer as indagações feitas por Kant em sua Crítica da Razão Prática. Se por um lado, emerge claramente a questão sobre sua identidade: o que é o homem?; doutro modo emerge, com igual força, a perspectiva metafísica da esperança: o que se pode esperar? Da crítica da razão pura à crítica da razão prática emerge a possibilidade de um olhar fenomenológico que aponta, mais que uma passagem, um movimento sempre possível, se não necessário, a dialética entre a expectativa e a esperança. Sobre a expectativa não existe muito o que discursar. Um bom domínio do método científico, a organização rigorosa, os passos lógicos, fazem possível um mundo previsível. Se A gera B, posso facilmente deduzir que existe algo de A em B e vice-versa. Se sei que o ônibus passa às 9h, o mínimo que posso esperar é que o motorista cumpra seu horário. E se há algo de atraso, ainda que minha expectativa fique frustrada, paira uma certeza de que cedo ou tarde o ônibus virá. Se um átomo possui um número ímpar de elétrons não existe outra expectativa, pelas leis da eletrosfera, que não seja a instabilidade, logo, posso esperar radicais livres no meu corpo, etc. A expectativa, portanto, encaixa-se na arte da descrição fenomenal daquilo que posso prever, em certa medida. Não há mistério nem excesso de sentido, as coisas são como foram programadas para serem e, se não são, algo saiu errado; logo, expectativa frustrada.

Bem outra coisa é o princípio-Esperança. Adentramos o reino da doação, da esperança e não da simples espera. Não estamos mais numa perspectiva antropo-lógica, mas numa teo-lógica no sentido metafísico do termo. Quer seja o homem, o Dasein Heideggeriano, o ser infeliz e fadado à dor de Schopenhauer, o eterno desejante de Lacan, o princípio esperança subjaz à sua realidade como arquétipo fundamental a lançar a incômoda questão: será só isso que posso esperar?

Quando ensino Matrizes da Clínica Fenomenológica existencial humanista no curso de psicologia, mesmo não fazendo uma fenomenologia da Esperança, tenho por hábito mostrar o princípio esperança como um dos núcleos constitutivos da pessoa humana, para não usar a categoria patologizada da personalidade. Grosso modo, uma Fenomenologia da Esperança poderia ser haurida com alguma assertividade ao organizarmos a matriz do pensamento sobre a esperança em duas grandes categorias. Na primeira parte, situamos o discurso numa fenomenologia do desespero e da angústia na matriz do existencialismo ateu. Autores de grande importância que precedem esse movimento, como Schopenhauer e Nietzsche entre outros do Romantismo alemão, nunca abandonaram o tema. E a angústia emerge aqui, por exemplo, como um sintoma do desespero. Retomado pela Daseianalyse1 inspirada em Heidegger, prolongada por Sartre e outros autores, o tema do projeto humano como responsabilidade exclusiva de nossa existência desencantada e expatriada formam um legado inestimável. O ateísmo de cunho filosófico certamente explora o tema com maestria, o desespero emerge assim como uma reação à esperança metafísica. Nessa dimensão, a escatologia secularizada coloca a salvação como algo que o homem deve desbravar aqui na terra, já que além dele mesmo, a possibilidade é o nada. A pergunta do porquê existe o ser ao invés do nada, formulada por Sartre, delineada na Náusea, aponta para uma fenomenologia do desespero. Se, de fato como o autor anuncia, a existência precede a essência, o que nos resta é construir essa última, e esperar, no sentido de expectativa, o espetáculo final, ou seja, a morte.

No segundo momento, apontamos para uma Fenomenologia da Esperança, própria da matriz do existencialismo de cunho judaico-cristão. Autores precursores dessa perspectiva como Soren Kierkegaard e Levinas, influenciaram uma geração que, mesmo não assumindo o postulado de fé, resgataram a perspectiva da esperança como um verdadeiro arquétipo da humanidade. Michel Henry, acusado de realizar a conversão teológica da fenomenologia francesa, Merleau-Ponty com sua ênfase no invisível, Gabriel Marcel convertido depois ao catolicismo, Emmanuel Mounier fundador do personalismo e, para finalizar basicamente essa lista que é bem mais extensa, Paul Ricoeur com sua virada hermenêutica que colaborou inclusive para novas leituras dos textos da Esperança, num outro modo de dizer Tradição Bíblica. Sobre tal perspectiva, notável, por exemplo, é o seu texto Nommer Dieu (1977), onde a partir da polifonia bíblica resgata, esperançosamente, o referencial poético como força originária que nos faz passar do texto à vida.

Os autores supracitados fizeram, a seu modo, a proposta da passagem da expectativa à esperança, do corpo científico ao corpo sentido, corpo que sente e que produz sentido ao sentir. Uma Fenomenologia da Esperança emerge aqui como recordação fundamental da falibilidade do ser humano não como tragicidade, mas como possibilidade de abertura ao transcendente. A angústia é igualmente tematizada, mas não necessariamente aparece como horizonte último da existência humana. Na estrutura mais básica do seu pensamento, Kierkegaard (2017), por exemplo, recorda que a existência humana possui uma tensão dialética entre liberdade e natureza, desejo e apatia, esperança e desespero, finitude e infinitude que, por sua vez, pode ativar em nós o horizonte último da Esperança escatológica. O caminho vislumbrado pelo autor, propõe uma vez mais a passagem do mundo bruto das expectativas ao mundo iluminado pela Esperança. O salto de fé configura o gesto central daquele que espera. O homem precisa fazer seu caminho, assumindo e englobando suas três dimensões crescentes rumo ao último salto de fé. Assim, de animal estético, passando pela existência ética, o ser humano é chamado à comunhão mística e, pelo último salto de fé, engloba o estético e o ético no último estágio, o religioso.

A brevidade do artigo, bem como a delimitação do nosso escopo não permite seguir a dissertação do tema. Apontamos aqui algumas observações que permitam ao leitor vislumbrar uma Fenomenologia da Esperança que pode ser vislumbrada em algumas reflexões filosóficas de cunho fundamental da nossa tradição. Passamos agora explicitamente ao tema da Fenomenologia Teológica da Esperança.

2 Fenomenologia da Esperança: perspectiva de uma antropologia teológica fundamental

Nesse derradeiro momento da reflexão retornemos ao toque festivo do Yovel (ֵלבוֹי). Pensar uma fenomenologia da Esperança a partir da perspectiva de uma antropologia teológica fundamental, exige, como em toda teologia, um retorno à fonte primordial da Palavra de Deus. Esse nosso percurso se delineia a partir de dois momentos numa mesma hermenêutica das escrituras. Num primeiro momento, retoma-se o olhar bíblico-teológico a partir do contexto vital da esperança messiânica; num segundo movimento, abordar-se-á a existência crística como a razão de nossa esperança.

a) Olhar bíblico-teológico: contexto vital da esperança messiânica

Não nos parece absurdo afirmar que numa fenomenologia teológica da esperança o toque festivo do Yovel inclui em si dois movimentos fundamentais da história da revelação que se pode intuir do Antigo Testamento. Em primeiro lugar, ele aparece como uma espécie de intercessão que se situa entre a síntese da teologia da criação na densidade mística do Shabat, por outro lado, manifesta a experiência de libertação de um povo que aprendeu que o ato criador de Deus se manifesta em cada momento da existência como salvação. O fruto de tudo isso é a postura de reverente gratidão, que envolve a proclamação do jubileu, em quaisquer uma de suas acepções, seja aquela que diz respeito ao preceito da guarda do sábado, seja na proclamação do ano de graça a cada 50 anos (Lv 25).

Portanto, uma fenomenologia da esperança haurida das narrativas bíblicas, nesse caso, da tradição judaica, precisa levar em conta a articulação dos dois polos hermenêuticos que contextualizam a existência do toque alegre do Yovel. Toquem porque o Senhor é bom. Bendito sejais Senhor Deus do universo que fez os céus e a terra, que faz cair a chuva sobre justos e injustos. Bendito sejais Senhor Deus do Universo que de todos os perigos nos livrou (Sl 33). A esperança cristã, herdada da tradição judaica, parece apontar para a síntese que anuncia que criação e salvação são um mesmo gesto de um mesmo Deus. A exegese bíblica há bastante tempo já apontou para a unidade entre uma teologia da criação e da salvação, igualmente, do ponto de vista redacional, e ainda mais, do ponto de vista existencial, a experiência de fé num Deus salvador coloca as bases para uma teologia da criação. Por isso, no contexto de uma fenomenologia da esperança, o horizonte do jubileu messiânico, seu âmbito de nascimento, desenvolvimento e retomada numa escatologia cristã, surge como aspecto estruturante e estruturador de nossa compreensão.

Qual o horizonte vital da esperança messiânica no AT? E como tal contexto aponta para aspectos fundamentais que permanecem no horizonte escatológico da nossa fé? A imagem do Peregrino da Esperança como povo que espera a chegada do seu Senhor para a grande festa, Jubileu messiânico, inunda as narrativas em forma de súplicas ou mesmo de exortação: espere pelo Senhor mais que o Vigia pela aurora (Sl 129). Israel é o povo que nos ensina, com sua longa e dramática história, a passar da expectativa à esperança. Abraão, o Pai da fé, é o modelo daquele que esperou contra toda esperança (Rm 4,18-21). Romanos (5,5) ainda recorda que nossa Esperança não decepciona, completaríamos, a expectativa, sim. Essas citações retomam de forma magistral a teologia da esperança do Antigo Testamento, que aparece em diversos momentos, como por exemplo no cumprimento da promessa da descendência feita a Abraão (Gn 21), oferecendo uma síntese entre a Esperança messiânica do ethos judaico e a fé no cumprimento da promessa em Jesus Cristo.

A perspectiva vital da esperança messiânica oscila entre o cumprimento das clássicas promessas feitas aos pais, por um lado, e da defraudação da expectativa colocada nos homens, fruto do pedido não sábio de um povo que esqueceu quem era o seu Senhor e, por medo, pede um Rei (1Sm 8). Essa narrativa anuncia, por um lado, a infidelidade do povo descrente, por outro lado, a bondade de Deus que compreendendo a fragilidade do povo concede à casa de Davi uma tutela provisória para o bem do povo. A esperança davídica não tem origem humana. O Ungido do Senhor, aquele que vem em seu nome, emerge, destarte, por excelência como o Peregrino da Esperança. Nesse sentido, sua voz profética deve ser constantemente um Yovel que anuncia a Graça perene do Salvador e que denuncia o risco constante do desvio de seu povo.

A gênese do messianismo em Israel é uma narrativa imbuída de esperança. O messianismo em Israel possui estreitos vínculos com o surgimento da monarquia. Nesta perspectiva, destaca-se o papel fundamental de Davi e a promessa da dinastia feita a ele (2Sm 7). É preciso situar, a partir da narrativa de Samuel, o contexto do surgimento do regime monárquico no povo israelita. A teologia política de Israel é uma teologia da esperança, como podemos extrair da leitura de Sicre em seus textos básicos da esperança messiânica (2008). Desde o início da constituição do povo de Israel, Deus se apresenta como o Senhor que cuida da sua gente, o Deus da Esperança e da Promessa.

O Senhor, chama Abrão e lhe faz a promessa da terra e descendência (Gn 15,4-21), Ele tira o povo das garras do opressor (Egito) e estabelece com ele uma aliança (Ex 19); o Bendito, louvado seja, faz o povo penetrar na terra prometida (Js 1,1-5). O Deus que é Um (Dt 6,4-5) é sempre fiel ao seu povo. Os filhos de Israel vivem postura esquizofrênica, possuem o coração dividido em constante trânsito entre o Deus fiel e os ídolos criados à custa do próprio orgulho (1Rs 18,21). A história de Israel é uma narrativa do amor e da fidelidade de Deus, a resposta e, por vezes, a infidelidade do povo. Trata-se da história de amor entre a humanidade e Deus, uma história de expectativa, de esperar e de esperança.

A dinâmica fidelidade de Deus e infidelidade humana é relatada ao longo da tradição de Israel não só em textos proféticos, como é o caso da paródia do matrimônio em Oseias (1,2-30), mas também em fórmulas litúrgicas, como ocorre na páscoa judaica através da palavra yadáh que busca num só movimento confessar a fidelidade de Deus e a infidelidade dos homens. Neste contexto que o dever de pronunciar a bênção pode ser entendido como um dever de justiça retributiva em relação a Deus. É preciso confessar (yadáh) a fidelidade de Adonai e a ruptura da aliança por parte dos homens (Giraudo, 2003). O messianismo messiânico não se encontra desvinculado desta dinâmica, ao contrário, é expressão, quase que sintética, desta história.

Nesse horizonte, o messias deveria ser o mais fiel dentre todos os habitantes de Israel, o cumpridor primeiro da aliança, o que anuncia constantemente a Graça do Senhor. No entanto, ao desfigurar a função que lhe é dada por Deus, torna-se o protótipo da infidelidade, o primeiro dos infiéis, e a ele se lança a responsabilidade pela desgraça de Israel, narrada pela literatura profética e deuteronomista (Am 7,10). As controvérsias, a rejeição e a crítica dos profetas aos monarcas de Israel encontram seu fundamento e inserção nesta dinâmica fidelidade de Deus e infidelidade do homem. Eles são assassinos da esperança, deixaram de peregrinar. São como porcos cevados, estáticos, que não anunciam outra coisa que os próprios privilégios. Os órfãos e viúvas estão desguarnecidos, os campos cansados esperam o ano da Graça do Senhor, o Jubileu messiânico (Duquoc, 1985). Esperam o Messias, o verdadeiro ungido que toque novamente com entusiasmo, ou seja, cheio de Deus, o Yovel. Para isso, é preciso, a partir de uma fenomenologia da Esperança, resgatar a função messiânica de Israel como a encarnação do Peregrino da Esperança.

b) A existência crística: razões da nossa Esperança

O resgate da função messiânica, como o Peregrino da Esperança, encontra em Cristo seu ponto de apoio. Somos convocados, neste sentido, inseridos numa existência crística, a sermos colaboradores deste resgate. Aliás, nisso consiste o mandato do Senhor: ide por todo mundo e anunciai aos povos a boa nova (Mc 16,15). Somos visceralmente chamados, na existência crística, a sermos peregrinos da Esperança. Dar razões da nossa esperança (1Pd 3,15) poderia ser definido como nosso modo de existência, uma releitura da encarnação da função messiânica em nossa vida em Cristo. A ressignificação da função messiânica em nós desperta, no contexto de uma antropologia teológica fundamental, para a reflexão sobre o que é primordial em nossa forma de viver. A opção existencial entre anunciadores da Esperança ou propagadores da cultura da expectativa, emerge como dado fundamental na Fenomenologia teológica da esperança.

Quais implicações traz nossa existência crística, configurados em Cristo, como Peregrinos da esperança? A primeira delas é, ao olhar para o Jubileu messiânico, perceber que nossa função é a do servo. Que não somos reis de coisa alguma, que tocar o Yovel é uma nobre função profética, dos que foram chamados a anunciar que tudo é graça. Ao se colocar a serviço, numa Fenomenologia Teológica da Esperança, outros traços da existência crística aparecem. Dentre eles, emerge a Esperança com sua afinidade semântica ao dom da Fé e da Caridade, as três virtudes teologais que sustentam o Peregrino por caminhos planos e acidentados.

Perceber o ato de existir como eleição fundamental. Saber que Deus ao nos chamar à existência, doa-nos um hálito que deve ser devolvido em forma de sopro constante do Yovel, que cada respiração é a possibilidade de anunciar, na nossa peregrinação existencial nessa terra, que Deus é bom. Todas essas coisas configuram a ressignificação de nossa existência enquanto Peregrinos da Esperança. Rejeitar o que Duquoc chama de Patologia messiânica (Duquoc, 1985, p. 162), que mata a Esperança e dissemina o egoísmo, emerge nessa nossa fenomenologia como o desafio diário, a fuga da raiz de todo pecado mortal, tal como o de Davi que, julgando-se rei, tocou silenciosamente o Yovel da maldição para Urias. Por isso, somente a existência centrada em Cristo pode nos livrar do sopro de Davi que ressoa em suas palavras como trama de assassinato do inocente. Pelo seu pecado, Davi passa de peregrino da Esperança ao homem das expectativas. Espera perversa, no sentido do sádico que assiste de longe ao espetáculo, a morte do pobre, para tomar posse do que é dele.

No discurso sobre uma Fenomenologia Teológica da Esperança, a reconfiguração da função messiânica como Peregrinos da Esperança conclama à existência ético-teológica, cuja fonte é o Peregrino da Esperança, por excelência, o verdadeiro Messias, Jesus. Para Duquoc a ruptura entre os seguidores do Nazareno e a sinagoga aponta para o problema de sentido do messianismo. Ao designar Jesus como Messias, sem se preocupar pelos efeitos reconhecíveis de sua messianidade, os cristãos se obrigam a reinterpretar em que sentido Jesus é o Messias (Duquoc, 1985, p. 162). A ruptura entre os seguidores do Nazareno e a comunidade judaica é, fundamentalmente, um problema de fé. Os seguidores de Jesus abandonam, progressivamente, as prescrições da Lei porque têm certeza que Jesus é o messias que cumpre toda Torah, o Peregrino da Esperança. O judaísmo, por sua vez, não vendo as consequências explícitas e universais deste messianismo, como por exemplo o Shalom interpretado estritamente como restauração do reino dravídico imaginado, não acreditam em Jesus como o messias.

Irrompe deste contexto a necessidade de reinterpretar o evento Cristo a partir da chave de leitura do Messias diferente. Trata-se de um messianismo que anuncia e afirma o Reino de Deus em germe em nosso meio. Talvez seja a palavra “germe” que caracterize a não preocupação dos cristãos em se deterem em efeitos reconhecíveis da messianidade de Jesus. Ele é o messias diferente e seu ser Messias não traz alteração perceptível na ordem cósmica. Isto porque não se trata de um messianismo autoritário, que descarta o mundo presente, para estabelecer arbitrariamente um outro mundo, mas trata-se de um messianismo participado. É sugestivo pensar a missão messiânica de Jesus em chave de leitura e de escuta. Jesus é aquele que escuta e dialoga sempre com o Pai. O que ele quer transformar é a consciência e a vida dos homens. Se alguma alteração tiver que ocorrer, esta deve partir da comunidade messiânica subsistente no Cristo, pela graça de Deus Pai, na unidade do Espírito Santo. A autoridade do messianismo de Jesus está no serviço e no desejo de resgatar a dignidade de todos os homens (Duquoc, 1985).

Há uma banalização da esperança messiânica ao interpretá-la como esperança patriótica. O messias de Israel não é só o messias para Israel, mas aquele que vem de Deus e passa pelo povo de Israel para atingir a todos os povos. O Peregrino da Esperança não tem aqui na terra Pátria alguma, por isso é peregrino: o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8, 20), ou ainda como nos recorda Pedro: “E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai em temor, durante o tempo da vossa peregrinação” (1Pr 1,17). Em contexto de polarização política, propagada inclusive por homens e mulheres que se dizem cristãos, não se pode esquecer que a promessa messiânica não está em função da glória nacional, mas em função da glória de Deus e, bem sabemos, com Santo Irineu, que a glória de Deus é o homem vivo (Ireneu de Lião, Contra as Heresias, IV, 20, 7). A ruptura entre os povos, a divisão e sectarismo nada têm a ver com a teologia da Esperança. Talvez sim com a pseudo teologia da expectativa.

A novidade do Messias Jesus não está só no fato de que ele seja o salvador do mundo. Israel, como prefiguração da comunidade messiânica, também tinha a incumbência de ser luz e vínculo de salvação para os outros povos (guiar os povos até YHWH). A perspectiva universal do messianismo já estava presente em Israel. A novidade está em que o messianismo de Jesus não deixa manifesto os efeitos políticos esperados da promessa messiânica. Jesus ultrapassa a dimensão da expectativa para resgatar a mística da esperança, como salto de fé: “Se crês verás a glória de Deus” (Jo 11,40).

3 Por uma conclusão inconclusa: encantar o mundo com nossa esperança

A Fenomenologia Teológica da Esperança, partindo do toque festivo do Yovel, não pode deixar de enfatizar a dimensão litúrgico-celebrativa do ano jubilar. Nosso anúncio não parte de um profetismo frio, um tipo jornalismo que faz anúncio apático à realidade. A proclamação traz em si a categoria da festa. Nesse sentido, parece-nos interessante notar que em sua dimensão litúrgico-teológica a espiritualidade jubilar, centrada na ideia do Peregrino da Esperança, perpassa todo ano litúrgico. Somos de fato, convidados a iniciar um novo ano com a Esperança messiânica do Advento e, igualmente, a Igreja nos propõe a encerrarmos o ano com a festa do Cristo Rei do Universo, resgatando a Esperança Escatológica da recapitulação de tudo no Filho Unigênito.

A esse movimento merece ainda atenção dois elementos, próprios da Esperança cristã. O primeiro, resgatado por Rahner, ressalta a dimensão de mistério e silêncio da esperança cristã:

A esperança Cristã fala talvez ocasionalmente com certa ênfase do iniciado, do que saberia mais de Deus e de sua eternidade do que da obscura prisão do presente. Mas, na verdade, essa realização absoluta e consumada permanece o mistério que devemos adorar em silêncio e, como que escapando de todas as imagens, mergulhando no inefável

(Rahner, 1989, p. 502).

O peregrino da Esperança está mergulhado no inefável, sua postura de quem adora e serve em silêncio ressoa como verdadeiro toque do Yovel. O anúncio se encontra explícito em sua atitude existencial de contemplação que traz em si o testemunho daquele que bem sabe em quem colocou sua Esperança (2Tm 1,12). Nesse resgate da via contemplativa, o Jubileu “Peregrinos da Esperança” ajuda-nos a rever nossa relação íntima com o Senhor da Promessa. Todo anúncio desvinculado da Esperança que brota do contato pessoal com o Senhor não passa de ruído hipócrita. A possibilidade de anúncio que cria vínculo, parte da íntima comunhão com o Senhor, como nos recorda João: “O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3). A espiritualidade da comunhão, centro da vida cristã emerge, portanto, como fruto primordial daquilo que anuncia o Discípulo esperançoso em sua peregrinação pelas estradas da vida.

O segundo elemento que intencionamos resgatar nessa conclusão inconclusa, parte da proposta intuída da teologia de Urs von Balthasar. Trata-se da dialética existencial entre duas formas do esperar. Por um lado, ressalta-se aquele que fundamenta sua espera a partir de um olhar fenomenológico, centrado na expectativa, próprio da justiça em sua acepção mais literal, devedora da expectativa, e intolerante a toda possibilidade de mistério. Nessa perspectiva, a dimensão da contemplação e vivência do inefável se encontra negada. O homem, desencantado de toda esperança, encontra-se jogado num mundo cujos horizontes termina no limite do alcance do meu olhar. A verdade do outro e da vida, a verdade do anúncio fica reduzida ao limite da minha mirada.

Balthasar recorda, porém, que existe uma possibilidade de espera fundamental que ultrapassa o horizonte das expectativas. Trata-se da conformação da mirada do homem ao ver de Deus, próprio da revelação da Graça. “E Deus viu que tudo era muito bom”, diz-nos um dos textos fundamentais da protologia judaico-cristã (Gn 1,31). A passagem da justiça fenomenológica à justiça teológica pode ser entrevista como uma das intuições fundamentais da mística do Shabat resgatado na tradição do Ano Jubilar. O peregrino da Esperança, em sua existência crística, convoca a humanidade a ultrapassar a pretensão de redução da realidade da vida e do mundo à sua própria mirada:

Vista desde Deus a criatura não contém verdade nela mesma a não ser na medida em que ela se encontra constantemente tirada do nada por Deus e elevada à esfera divina [...] A justiça estrita seria a apreciação da distância entre o modelo e a cópia, o olhar seco lançado sobre o que é, enquanto diferente daquilo que deveria ser. Mas como nós o dissemos, Deus não considera esta distância nela mesma, ele a vê somente no modelo, e é por isso que o olhar divino sobre a criatura não deve ser descrito de outra forma que o olhar de um amor que envolve (ultrapassa) a justiça. O amor é a realização de toda justiça, mas ele é ao mesmo tempo algo mais que a simples justiça.

(Balthasar, 1952, p. 253-254).

O amor como realização de toda justiça, esse é o anúncio que o Jubileu Peregrinos da Esperança quer retomar em sua intencionalidade teológica mais profunda. A reconfiguração do nosso olhar fenomenológico ao olhar teológico mais que uma proposta é uma consequência espiritual daquele que assume a tarefa de reconfigurar sua vida à existência do Cristo, o Peregrino da Esperança, por excelência. Exige a passagem urgente da simples espera ao esperançar.

  • 1
    Daseianalyse é um termo na clínica psicológica e psiquiatra criada pelo psiquiatra e psicoterapeuta Medard Boss.

Referências

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  • BALTHASAR, Urs von. Phénoménologie de la vérite Paris: Beauchesne et ses Fils, 1952.
  • BERTI, Enrico. Novos Estudos Aristotélicos II: física, antropologia e metafísica. São Paulo: Loyola, 2011.
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  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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  • GIRAUDO, Cesare. Num só corpo: tratado mistagógico sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003.
  • KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Petrópolis: Vozes, 2017.
  • RAHNER. Karl. Curso Fundamental da Fé São Paulo: Paulina, 1989.
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  • ROBINSON, T. M. A Psicologia de Platão São Paulo: Loyola, 2007.
  • SICRE, José Luis. De Davi ao messias: textos básicos da esperança messiânica. Petrópolis: vozes, 2008.
  • TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Editado por

  • Editores
    Franklin Alves Pereira e Márcia Eloi Rodrigues.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2025
  • Aceito
    24 Jun 2025
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