Open-access Rubem Alves e a esperança: entre a tristeza da crença e a alegria da busca

Rubem Alves and the Hope: between the Sadness of the Belief and the Joy of the Search

RESUMO

Este artigo pretende demonstrar como, no pensamento de Rubem Alves, o conceito de esperança é central para a formação de uma teoria da religião. A nosso ver, a esperança se coloca entre a presença da ausência e a emigração mística, respondendo a uma falta ontológica no ser humano. A partir dessa caracterização, pretendemos dialogar com certa crítica feita a Alves a fim de identificar como a falta, que leva à esperança, não é necessariamente sinônimo de tristeza, mas de alegria na busca, a partir da ideia de mística. Pretendemos, com isso, contribuir para a discussão sobre uma teoria da religião em Rubem Alves.

PALAVRAS-CHAVE
Rubem Alves; Teoria da religião; Esperança

ABSTRACT

This article intends to demonstrate how, in Rubem Alves’ thought, the idea of hope is central to the formation of a theory of religion. In our view, hope is placed between the presence of absence and mystical emigration, responding to an ontological lack in the human being. From this characterization, we intend to dialogue with a certain criticism made to Alves in order to identify how lack, which leads to hope, is not necessarily synonymous with sadness, but with joy in the search, based on the idea of mysticism. We intend, here, to contribute to the discussion about a theory of religion in Rubem Alves.

KEYWORDS
Rubem Alves; Theory of Religion; Hope

Introdução

Em História do cerco de Lisboa, José Saramago narra a história de um revisor de livros chamado Raimundo Silva, que está trabalhando em uma obra de história homônima ao livro de Saramago. Os fatos do livro descrevem como, após mais de 300 anos de ocupação dos “mouros”, Lisboa é enfim libertada. Ou não: na ficção de Saramago, Raimundo Silva decide inserir um “não” em uma das páginas do livro, dizendo que “os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa” (Saramago, 1989, p. 50). Uma pequena maldade do revisor final mudou uma obra inteira, falseando-a, e inaugurou uma série de acontecimentos na vida de Raimundo Silva, que terá que lidar com suas decisões editoriais. Tratar de esperança no pensamento de Rubem Alves se assemelha à ficção de Saramago: temos que lidar com decisões editoriais enquanto refletimos sobre o conceito.

Biograficamente, a esperança cai no colo de Alves como uma batata quente. Não que o tema não ocupasse bastante espaço em sua obra inicial, mas ganha ainda mais peso após a publicação de sua tese de doutorado. Explicamos: ao escrever sua tese, o autor a intitulou Towards a Theology of Liberation [Por uma Teologia da Libertação], mas seu editor sugeriu uma mudança por questões comerciais: como se falava em Teologia da Esperança naqueles tempos, fruto do sucesso de Jürgen Moltmann, seu livro foi publicado como A Theology of Human Hope (traduzido como “Uma Teologia da Esperança”), em 19691. Ironicamente, a sua relação com a teologia de Moltmann, nesse momento, não é de filiação, mas de crítica. Como Alves diz em seu prefácio à edição de 1987, “A moda, naqueles dias, era a teologia da esperança, de Jürgen Moltmann. Esperança é coisa bela, que amo. Mas que mora dentro da subjetividade, é coisa interior. E isto não me bastava” (Alves, 1987a, p. 40). Hoje, conhecendo a obra posterior de Rubem Alves e compreendendo sua crítica, faria outra sugestão editorial: que se publicasse a tese como “Para além da Teologia da Esperança”.

Aqui, pretendemos ir, com Alves, além da teologia, em geral. Não temos objetivo de ir contra ela, mas de explorar outros lugares que não lhes são interessantes. Queremos apontar como a esperança ocupa certa centralidade no pensamento de Rubem Alves, apontando elementos para uma teoria alvesiana da religião. Para isso, começamos por apresentar seu conceito de esperança, relacionando-o com a ideia de presença da ausência também recorrente em outras imagens, como a saudade e o desejo. Passamos para um diálogo com a crítica deleuziana empreendida por Giovanni Catenaci em A tristeza de crer, apontando como, para esse autor, a presença da ausência em Alves implica uma tristeza ontológica. Então, dialogando com Edson Fernando de Almeida e Alexandre Marques Cabral, propomos um contraponto com a ideia de corpotência e transcendência não metafísica no pensamento de Alves. Por fim, recorremos à ideia de mística, pensando um tipo de alegria da busca em Rubem Alves.

Pretendemos, com isso, contribuir para a discussão sobre uma teoria da religião em seu pensamento, salientando o conceito de esperança como fundamental para a compreensão da religião no ser humano.

1 Religião: outro modo de dizer esperança

O pressuposto mais básico sobre a religião, em Rubem Alves, é o de que a religião é coisa humana. Por mais óbvia que essa afirmação possa parecer, ela é fundamental para entendermos o modo com Alves pensa a religião. Em O suspiro dos oprimidos, o autor escolhe começar sua exposição do tema a partir da diferenciação entre seres humanos e animais: “Ao contrário dos animais que têm uma programação definida biologicamente e, portanto, fechada, o homem é aberto. [...] o homem não é determinado pelo seu passado biológico. Daí a possibilidade de sua abertura ao futuro” (Alves, 1987b, p. 11-12). A ideia central de sua introdução à religião é demonstrar a não limitação biológica do ser humano, que, para ele, é um tipo de defeito de fábrica, uma abertura crônica ao futuro que, no limite, afirma que o dado não é inexorável. Ou, em outras palavras, o que é não necessariamente precisa continuar sendo.

Essa abertura ao futuro, entretanto, ainda não é um traço da religião, mas faz parte daquilo que o ser humano é. Há, aqui, um tipo de antropologia filosófica que Alves pressupõe. Em suas palavras,

nossa tradição filosófica fez seus mais sérios esforços para demonstrar que o homem é um ser racional, ser de pensamento. Mas as produções culturais que saem de suas mãos sugerem, ao contrário, que o homem é um ser de desejo. Desejo é sintoma de privação, de ausência

(Alves, 1999, p. 21).

Aqui está, ainda que em germe, o princípio da ideia de esperança e de religião em Alves. Essa abertura do ser humano, essa incompletude que se traduz num desejo que é pré racional. Isto é, antes mesmo da racionalidade e do pensamento se estabelecerem no ser humano, o desejo atua. Essa afirmação dialoga diretamente com a tradição filosófica que, desde Aristóteles, define o ser humano como um “animal racional” (Aristóteles, 1999, p. 149). Para Alves, ao contrário, o ser humano é, antes de racional, um ser de ausência. Não é a racionalidade que o diferencia dos animais, mas a abertura, a ausência, a saudade e, então, o desejo e a esperança. Apesar de, muitas vezes, parecerem sinônimos, em minha leitura há dois grupos de imagens usadas por Alves: de um lado, aquelas que estão na fundamentação antropológica do ser humano, a abertura, a ausência, a saudade; de outro lado, as imagens que se desdobram a partir dessa ausência, como o desejo, a esperança, a utopia. De fato, há uma codependência entre esses dois grupos no pensamento de Alves: o segundo não existe sem o primeiro. Mas eles não dizem respeito à mesma coisa. Enquanto o primeiro marca a constituição humana, o segundo marca o agir humano, está mais ligado à sua prática.

Em termos de teoria da religião, poderíamos dizer que, enquanto a ausência fundamental no ser humano possibilita a religião, a esperança a concretiza. Nesse sentido, o desejo é a forma da abertura, a esperança a forma da saudade. Em outras palavras, aqui queremos indicar que enquanto abertura e saudade indicam uma condição antropológica, desejo e esperança se apresentam como a efetivação dessa condição, elas surgem da situação instaurada pelo primeiro grupo. Por mais sutil que seja essa diferença entre tais imagens, a complementariedade delas revela que a discussão teórica em Rubem Alves tem um refinamento e uma complexidade importantes de serem destacadas. Marca dessas características é a discussão sobre a esperança em sua tese de doutorado. Ao contrário da ausência fundamental, a esperança surge da situação do ser humano em seu cotidiano. Diz Alves (1987a, p. 59),

o presente é negado porque o homem, vivendo nele, apreende tudo aquilo que cria a dor, o sofrimento, a injustiça e a ausência de futuro da história. Devido ao presente ser historicamente doloroso e, portanto, desumanizante, ele tem de ser negado. A esperança não se deriva de uma ideia a-histórica a respeito de uma sociedade perfeita; ela constitui, ao contrário, a forma positiva assumida pela negação do presente inumano e negativo.

A esperança, nesse ponto, não surge apenas da constituição antropológica do ser humano, mas de sua condição histórico-social. Ela, de modo mais profundo, se relaciona com a negação de tal condição. Nesse sentido, ela é um fenômeno inerentemente histórico de negação da inumanidade do status do mundo. Mais do que consequência de uma situação, a esperança se coloca, para Alves, como crítica dessa situação. Nesse ponto, esperança e religião se encontram: diante de uma situação cronicamente alienante, o ser humano produz esperança, se nega a tomar a realidade como dado último, insiste em afirmar que o mundo pode ser diferente. Em um contexto em que as teorias sobre a secularização ganhavam cada vez mais espaço nas ciências humanas, Alves afirma que a religião não desaparecerá da sociedade. Para ele, ela continuará “como esperança e como protesto, como símbolo que informa o homem da incompletude permanente e definitiva de sua própria condição, como consciência de que tal sociedade ainda não chegou e nunca chegará” (Alves, 1987b, p. 100). Aqui, a religião é um outro modo de dizer esperança.

Isso se apresenta com mais clareza quando o autor pensa na ciência e na tecnologia como ideologias. Enquanto a ciência se fundamenta em uma ideia de que o mundo é fechado, encerrado em suas alternativas, a esperança e a religião tenderiam a afirmar sempre sua abertura e, consequentemente, a possibilidade do novo. Diz Alves que, “a ciência tenderia, assim, ainda que conscientemente o negue, a uma sacralização da realidade” (Alves, 1984, p. 92). Aqui, a ideia principal é que, contra a noção de que a religião teria uma função conservadora, a ciência assumiria tal função, mantendo o status quo a partir de uma visão fechada de mundo, enquanto a religião e a esperança permaneceriam abertas à mudança, negando a ultimidade da condição social da realidade. Essa é a conclusão direta de Alves (1987b, p. 100): “a religião, mesmo nas suas formas mais ‘alienadas’, contém uma crítica do real que a ciência, prisioneira de sua própria metafísica, não tem condições para transcender”.

Nesse sentido, a religião surge como experiência de esperança: a partir da crítica da realidade, pode-se imaginariamente pensar em outra realidade possível. Teologicamente, Alves coloca isso nos seguintes termos:

E me pareceu, então, que "Deus" era um nome que se pronunciava sempre que alguém queria indicar a teimosia da esperança, quando não havia nenhuma razão para esperar, o absurdo do sorriso quando não havia nenhuma razão para sorrir [...]. Não, Deus não é um substantivo. É esta estranha conjunção, todavia, que enuncia a absurda ligação entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a despeito de tudo. Se fosse isto, eu poderia continuar a falar de Deus, como fundamento misterioso de uma teimosia de ter esperança

(Alves, 1987a, p. 34-35).

Em outras palavras, “Deus” parece ser um signo que indica a esperança de todo ser humano inconformado com a ordem do mundo e cujos desejos não podem ser satisfeitos pelas atuais condições sociais. Aqui, a referência intertextual de Rubem Alves é o livro profético de Habacuque, no qual o autor, descrevendo um tempo de calamidade ecológica, com figueiras e videiras secas, diz que, apesar da situação, todavia, ele continuará fiel ao Senhor (Hab 3,1-19). Esse apesar de, o todavia, é o signo da esperança, a negação de que a realidade seja imutável. Deus é a teimosia da esperança, para Alves. Isso não significa, entretanto, que a esperança seja um conceito abstrato em seu pensamento. Pelo contrário, a esperança é sempre histórica: ela surge a partir dos contextos de alienação do ser humano, de modo que é sempre relativa a eles. Desse modo, ela não nasce da imaginação de um lugar melhor do que a realidade, mas da negação de que uma realidade concreta e historicamente estabelecida seja a única possível.

Por fim, parece-nos que, para Alves, religião é outro modo de dizer esperança: brotando de uma ausência antropológica, a esperança nasce da negação da dureza inumana da realidade frente à crença na onipotência do desejo. Nesse sentido, a esperança é mais do que uma espera por um além vida. Ela é a negação da ultimidade de uma situação histórica concreta que deve ser modificada para que o ser humano se enxergue no mundo que ele mesmo constrói. Não nos parece exagerado dizer que, ao longo de sua obra, Alves não se desfaz de seu objetivo que está dado desde sua tese de doutorado: fornecer aos homens e mulheres uma linguagem que seja capaz de transmitir a abertura do ser humano e assegurar a sempre renovada possibilidade de esperança2. Modificou-se a forma da linguagem, da teologia acadêmica à teopoética, mas seu conteúdo continuou sendo a esperança.

2 A tristeza da crença

Em 2021, sete anos após a morte de Rubem Alves, o cientista da religião Giovanni F. Catenaci publica um livro sobre o tema que discorremos até então, a teoria da religião de Rubem Alves. Todavia, marcado por uma leitura melancólica do autor, Catenaci busca discutir as bases dessa teoria a partir de uma crítica de certo transcendentalismo e da ideia de desejo como falta em Alves. Como veremos a seguir, a leitura de Catenaci aponta, sobretudo, como a teoria da religião de Alves é marcada por uma tristeza que lhe é inerente, fruto de um comprometimento teórico que, no fim, parece-nos acusar Alves de ser demasiadamente calvinista. Logo em sua introdução, Catenaci (2021, p. 51-52) diz: “Em Rubem Alves, tudo se passa como se fosse impossível ser religioso sem uma dose cavalar de agonia, como se a condição para a fé fosse a consciência do estatuto miserável de nossa própria existência [...]”. Essa parece ser uma crítica que liga Alves à ideia teológica de depravação total, como se o autor defendesse diretamente que o ser humano é antropologicamente miserável em sua condição. Parece-nos, entretanto, que mais do que fruto de uma interpretação da obra de Alves, essa afirmação se prende mais a um dado biográfico, o passado presbiteriano, e a uma experiência pessoal de leitura de Catenaci, que está presente também em sua introdução:

No início, era apenas uma sensação, um desconforto, depois foi se agravando, tornando-se um incômodo mesmo; tão intenso que, no final das contas, me impediu de avançar. Não sabia de onde vinha, mas recorrentemente, após o contentamento que acompanhava o processo das leituras [das obras de Alves], eu acabava triste... [...] Falo de uma tristeza sem nome mesmo, uma tristeza estranha, difícil... Pois tudo se passa como se houvesse um choro latente, um lamento atravessando toda a obra de Rubem Alves – ao menos aquelas que tratam das temáticas religiosas, as quais estou interessado a comentar aqui. Um murmúrio quase que imperceptível, mas constante, dolorido, bastante dolorido, que invariavelmente me acomete quando leio as coisas dele...

(Catenaci, 2021, p. 33-34).

A experiência de Catenaci com a leitura de Alves parece ser a base para a sua interpretação. Isso significa que, para ele, tanto quanto o que Alves o faz pensar, interessa o que ele o faz sentir. Catenaci relata que pretendia escrever uma tese sobre Rubem Alves, mas esse desconforto causado por uma angústia que se acabou em tristeza o impediu de seguir com esse projeto. A partir dessa sensação, Catenaci reconheceu na obra alvesiana uma espécie de “choro latente”, uma melancolia reprimida que se apresenta através de uma antropologia ainda calvinista, na qual o ser humano seria miserável. Aquilo que, em Alves, nos parecia indicar caminhos para a esperança, a abertura característica do humano, para Catenci indica tristeza.

Isso se dá, nas palavras do crítico, porque Alves se interessa em manter certa transcendência como base de todo seu pensamento: “Reino de Deus, amanhã, jardim, futuro, são todos nomes que, no final das contas, sugerem em Rubem Alves a mesma coisa: a transcendência” (Catenaci, 2021, p. 53). Esse termo, aqui, não é sinônimo de além-mundo, como se o que estivesse em jogo fosse um paraíso após a morte. Transcendência, nesse ponto, deve ser entendido como o contrário de imanência, isto é, a realidade historicamente dada. Nesse caminho, o termo ganha outro sentido: “a transcendência está cravada no coração da imanência. E sua função é justamente essa: fender o presente a fim de que dele possa brotar uma multiplicidade de outros mundos” (Catenaci, 2021, p. 54). Aqui, transcendência parece um termo adequado para falar da abertura à possibilidade de novos mundos que assumem seu lugar neste mundo, outras realidades possíveis que são sonhadas e gestadas a partir da negação da ultimidade da realidade atual. Isso não significa uma negação da realidade, como se ela fosse uma mera simulação, mas a negação de que a atual realidade seja a única possível3.

Por que, então, Catenaci usa o termo transcendência de modo crítico? O tom de sua crítica se dá por conta da necessária abertura ao novo que é alheio à imanência, de modo que as potencialidades desta seriam anuladas e ignoradas em favor dessa novidade vindoura – que também poderia ser chamada de Messias4. Se nada na realidade atual pode suprir a condição antropológica do ser humano, ele precisa de algo externo, novo. Aqui, tal condição e o transcendentalismo de Alves estão profundamente conectados, ou, nas palavras de Catenaci (2021, p. 122), “sem carência não há transcendência”.

Aqui, chegamos no centro da crítica de Catenaci: o desejo como falta. A nosso ver, a interpretação é frontalmente contra o cerne da teoria da religião alvesiana. As implicações de sua crítica são graves, e o tom acirrado. Em suas palavras,

assim, se em sua tese de doutorado ele [Rubem Alves] nos falava acerca de um messianismo humanista, erigido contra a metafísica descarnada de Barth e Moltmann, agora o que vemos se revelar aos poucos é que, no vácuo aberto pela falta imanente ao desejo, tal como concebido pela psicanálise alvesiana, adentram novamente os significantes transcendentes da razão – os mesmos que Rubem Alves tanto criticara em seus pares. Por mais que resista, o nosso autor não consegue vencer a tentação de roubar do humano sua potência libidinal. A partir de uma abordagem profundamente conservadora da psicanálise, ele acabou sem saída. Pois, se de fato o desejo é falta, então é preciso estabelecer-lhe objetos exteriores a si mesmo, como atratores transcendentes, a fim de que ele se mova para algum lugar previamente estabelecido. Mais do que isso, ele correrá solto, motivado por suas perversões inconscientes

(Catenaci, 2021, p. 84-85).

A relação entre desejo e transcendência é aqui explicada por Catenaci de forma mais direta. Na medida em que o desejo é entendido como falta, Alves apela à transcendência como forma de suprimento dessa falta. Entretanto, a transcendência não faz uso da potência que, para Catenaci, estaria imanente ao próprio desejo, mas se constitui a partir de objetos exteriores ao desejo, recorrendo à racionalidade – a mesma que Alves trata criticamente ao falar de tecnologia, por exemplo5. A falta do desejo ganha forma na religião, que lhe fornece uma série de elementos transcendentes que o preenchem. Assim, o objeto da saudade, da ausência, do desejo... enfim, da esperança é sempre um objeto transcendente. Uma imagem recorrente em Rubem Alves é a de um homem que planta árvores cuja sombra ele jamais verá. Parece ser essa a imagem captada também por Catenaci: o desejo prescinde uma ausência que recorre à transcendência, a um auxílio externo totalmente outro. Essa justaposição de desejo e transcendência é o que faz com que o pensamento de Alves, para o autor, seja, enfim, profundamente triste.

Transcendência, imaginação, desejo, corpo, religião. Todos estes conceitos são utilizados por Rubem Alves no momento de resistir ao poder acachapante do real, no momento de pensar um futuro melhor. Pensamento que, a despeito de sua desenvoltura e carisma, não consegue evitar, deixando transparecer uma tristeza precípua: “aquilo que não temos”; “aquilo que queremos”; “aquilo que não podemos e que iremos buscar inutilmente pelo resto da vida sem sucesso” etc. São estes justamente os signos de sua tristeza, os princípios causais [negativos] do pensamento alvesiano quando se refere à Religião. Elementos que invariavelmente resultam num estatuto profundamente melancólico, e que fica mais evidente quando passamos à dimensão teológica de seus escritos

(Catenaci, 2021, p. 104).

3 Corporeidade e transcendência não metafísica

Contra a interpretação de Giovanni Catenaci, Edson Fernando de Almeida e Alexandre Marques Cabral apresentam uma interessante incursão no pensamento de Rubem Alves sobre uma teoria da religião. Em “Corpotência e mística trans-imanente: elementos para uma teoria da religião” (Almeida; Cabral, 2023a), os autores apontam que o pensamento de Alves depende de fato de uma transcendência, mas não a transcendência metafísica que Catenaci aponta. Antes, Rubem Alves tem como fundamento da transcendência o próprio corpo humano, o que o leva a um tipo específico de mística não-metafísica, a uma afirmação daquilo que os autores chamam de corpotência, um neologismo. Essa interpretação corrobora com uma interessante parceria de trabalho entre Edson Fernando de Almeida e Alexandre Marques Cabral, que insere Rubem Alves de modo mais direto nas discussões filosóficas contemporâneas6.

Eles partem, então, da ideia de que não é possível atribuir uma metafísica à transcendência em Rubem Alves porque ele se fundamenta, justamente, em sua negação, a partir de uma teologia da morte de Deus. De fato, Alves tem uma aberta relação com Nietzsche e a proclamação da morte de Deus como anúncio do fim da metafísica, como em “Deus morreu! Viva Deus” (Alves, 1972). A morte de Deus não é um atestado metafísico de ateísmo, para Alves, nem, em suas palavras “uma reportagem sobre o sepultamento de um ser eterno” (Alves, 1972, p. 10). A própria interpretação de Alves, nesse ponto, fornece aspectos para que pensemos em uma transcendência não metafísica:

Ela [a morte de Deus] anuncia o fim de uma visão global de universo, de uma certa filosofia, de uma linguagem que articulava a experiência do homem, pelo simples fato de que uma nova maneira de pensar a vida, de encarar os seus problemas, de falar, está surgindo e que contradiz e nega, de forma radical e irreconciliável, a forma velha

(Alves, 1972, p. 10).

A morte de Deus se coloca para Rubem Alves como o fim de uma linguagem, de um modo de construir e interpretar o mundo metafisicamente, como o colapso de uma série de estruturas de pensamento que antes eram oferecidas pela filosofia ocidental. Ao mesmo tempo que afirma esse fim, Alves já anuncia a abertura transcendente a algo novo, que surge das ruínas da metafísica: um novo modo de pensar e viver que é, necessariamente, antimetafísico. Esse novo modo, a vida a partir da morte de Deus, contradiz de forma radical, nega de modo irreconciliável, as antigas estruturas de pensamento que até então se colocavam. Aqui, a leitura de Almeida e Cabral se torna mais ainda mais clara: uma vez que a morte de Deus desfaz as estruturas da metafísica, todo o cabedal binário-dicotômico da teologia também cai por terra, dentre eles, a separação entre sensível e suprassensível. Dizem os autores: “A morte de Deus inviabiliza a manutenção das transcendências suprassensíveis. Além disso, a morte de Deus desconstrói as universalidades dos conceitos nascidos da noção de ente comum, como substância, natureza etc.” (Almeida; Cabral, 2023a, p. 8). Essa citação demonstra de modo mais claro como a transcendência não implica, então, metafísica. Ao contrário, na morte de Deus qualquer transcendência metafísica é inviabilizada porque seus conceitos fundamentais também o são. Por isso, os autores nomeiam a abertura humana ao futuro, em Alves, de uma trans-ascendência imanente – ela ascende, sem sentido de evolução, a uma outra possibilidade de realidade que se constitui a partir da imanência.

Isso se constrói, por fim, a partir da ideia de imaginação: “A imaginação suspeita que o possível é maior do que o real, porque a possibilidade não está no âmbito da ‘coisidade’” (Almeida; Cabral, 2023a, p. 8). A possibilidade, aqui, é mais do que a realidade permite, está para além dela como possibilidade de ser. Assim, “A imaginação transgride os limites coisificados da realidade, limites que nada mais são que limitações e, dessa forma, injeta possibilidades outras de ser, formas alternativas possíveis de existência” (Almeida; Cabral, 2023a, p. 9). Isso significa que, por meio da imaginação, a transcendência se coloca para além da reificação metafísica, postulando uma abertura a novas possibilidades de ser. Essa abertura, entretanto, não é metafísica porque não provém de uma suprassensibilidade que está para além da imanência, mas provém do próprio corpo. A conclusão parcial de Almeida e Cabral ajuda a compreender a questão:

Eis o sentido alvesiano da transcendência: através da imaginação o homem transcende a facticidade bruta da realidade que é imediatamente dada e afirma que o que é não deveria ser, e que o que ainda não é deverá ser. O que deverá ser não decorre de qualquer lei moral ou de alguma natureza eterna que funcione como fonte legisladora dos nossos modos de ser. Quem diz o que deve ser é a corporeidade. Ainda que o corpo não possua qualquer natureza previamente dada, como vimos, ele assinala uma dinâmica criativa e criadora em meio à relação ontológica com o mundo. A criação assinala, nesse caso, o próprio movimento de transcendência. Transcender é ultrapassar, por meio da imaginação e de ações correlatas, o que é em direção ao que deve ser

(Almeida; Cabral, 2023a, p. 9).

Nesse ponto, os autores recuperam a noção de que o ser humano nega a negatividade do status quo por meio de uma transcendência. Essa toma um sentido específico aqui: o ultrapassamento, por meio da imaginação, daquilo que é, na direção de uma nova realidade de como as coisas deveriam ser. Quem define o que deve ser, então, não é uma idealidade metafísica, nem mesmo os valores morais metafisicamente estabelecidos: a corporeidade o faz. Mais uma vez, a referência de Alves é Nietzsche e a ideia de que “o corpo é uma grande razão uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (Nietzsche, 2014, p. 42). O corpo assume o papel não metafísico de criar a partir da imaginação, de afirmar o que deve ser a partir das possibilidades ontológicas estabelecidas pela abertura antropológica humana. Longe das possibilidades transcendentais metafísicas, para Almeida e Cabral, é a imanência da corporeidade historicamente dada que nega as condições contemporâneas a fim de afirmar novas possibilidades.

Nesse ponto, os autores fazem uma pergunta que, a nosso ver, falta na crítica de Catenaci: quem são os corpos que desejam? De fato, parece-nos que uma antropologia filosófica que não faça referência à corporeidade encarnada da realidade seja um outro modo de apelar à metafísica. Todavia, isso não parece se dar em Rubem Alves. Os corpos que, sofrendo, negam as condições não são quaisquer corpos. Trata-se de uma corporeidade específica, inscrita na história e no mundo – no mesmo mundo que pretende mudar e contra o qual afirma algo novo. O trecho central da argumentação de Almeida e Cabral, em nossa leitura, é o seguinte:

Não se trata, contudo, de um sofrimento politicamente neutro, algo que poderia ser derivado do simples fato de a vida ser finita, como no seguinte raciocínio: somos finitos, logo sofremos as dores do vir-a-ser. Essa compreensão acerca do sofrimento muitas vezes orienta algumas ontologias da finitude contemporâneas. Exatamente por isso, ao se ontologizar o sofrimento, há a possibilidade de se neutralizar os investimentos políticos, históricos, culturais, religiosos, dentre outros, que condicionam e possibilitam muitos sofrimentos humanos. Dessa forma, não fica clara a diferença entre o sofrimento de uma criança que cai no chão porque está aprendendo a andar e o sofrimento derivado de um ato de homofobia ou mesmo o sofrimento de uma mãe que vê o filho sendo assassinado por causa da guerra sanguinária entre polícia e tráfico de drogas em uma favela da cidade do Rio de Janeiro. São esses sofrimentos meramente variações do sentido ontológico do devir humano? Certamente que não. Por esse motivo, Rubem Alves não realiza qualquer metafísica do sofrimento humano. Não naturaliza os sofrimentos mediante a estratégia de ontologizar a dor, antes assinala o sentido ético-político do sofrimento, uma vez que leva em conta a experiência da opressão, fonte contínua de sofrimento para um grande contingente de seres humanos. [...] Corpos pobres, corpos oprimidos, corpos crucificados e sacrificados não choram um tipo qualquer de sofrimento. Sofrem as dores da opressão. Somente esses corpos gritam pedindo libertação

(Almeida; Cabral, 2023a, p. 10).

Aqui, a corporeidade aparece como fundamento não metafísico da transcendência alvesiana. Na medida em que o corpo sofre em situações reais de injustiça, violência e abuso, esse corpo imagina, deseja um novo mundo em negação ao atual estado de coisas. Assim, o sofrimento não é metafísico, mas brota de uma concretude crua da real condição iníqua dos sistemas econômicos que governam o mundo. Em certo sentido, poderíamos dizer que o desejo que cria transcendência é aquele que nasce de um corpo vítima da necropolítica7. Esses sofrimentos, causados propositalmente por atores que criam uma condição social perversa, não ganham contornos metafísicos porque são gravados em corpos presos à realidade. Entretanto, são esses mesmos corpos que, gritando libertação, sonham, imaginam e demonstram sua potência.

Daí o neologismo dos autores: corpotência. “Por corpotência entendemos a potência afirmadora do corpo em condições histórico-políticas de naturalização dos sofrimentos nascidos da injustiça, da violência e da opressão (Almeida; Cabral, 2023a, p. 16).” Esse conceito objetiva dar visibilidade às capacidades transcendentes que surgem como reação da corporeidade diante de situações de injustiça. Diante dessas condições, os corpos marginalizados e sofredores têm potência para afirmarem a possibilidade de outras realidades mais justas e fraternas. O ato de transcender a morte, aqui, é significado através da corpotência, nomeada por Almeida e Cabral. Nesse ponto, a nosso ver, a tristeza de crer abre espaço à potência da negação da realidade que ousa imaginar novos caminhos. A falta do desejo dá espaço à vontade criativa. Em outras palavras, a melancolia da saudade dá espaço à alegria da esperança.

4 A alegria da busca

Parece-nos, nesse ponto, que a leitura de Catenaci acerca de uma teoria da religião em Alves é incompleta. Falta a ela a percepção de que a potência imanente é o fundamento da transcendência em Alves, de modo que essa se constitui para além da metafísica. Por isso, Almeida e Cabral se esforçam em aproximar Alves do conceito de potência: para demonstrar que há mais do que a melancolia da falta em sua teoria da religião. Esse fato já dava seus indícios desde sua tese de doutorado: falar em libertação é mais do que descrever os processos de escravidão; falar em esperança é mais do que tratar do que falta. É afirmar as possiblidades que estão para além do que é lamentado e negado. Nesse ponto, juntamo-nos com Almeida e Cabral na aposta de que a construção teológica de Rubem Alves deve ser aproximada do conceito de mística. Entretanto, os autores apontam como Alves se adequa a uma ideia de mística não metafísica; enquanto nosso interesse é apresentar o conceito de mística em Alves como um devir-alegre.

Em “Misticismo: a emigração dos que não têm poder” (Alves, 1984, p. 165-175), Rubem Alves trata de um tipo de retorno da religião no seio da sociedade secularizada. Dentro da tendência humanista de apontar o fim da religião na modernidade tardia, como se fosse futuro previsível sua substituição pela ciência em uma sociedade cada vez mais secular, novas tendências espirituais surgiam. Sem o peso de uma instituição que legitimasse tais práticas, diversas ondas de novas religiosidades surgiram nas décadas de 70 e 80 do séc. XX. O mundo estava desencantado, mas ainda pairava no ar certo espírito religioso. Nas palavras de Alves (1984, p. 167), “Parece, entretanto, que algo andou errado com os profetas e as suas profecias. Porque bem no meio dos funerais de Deus e do réquiem à religião, uma chuva de novos deuses começou a cair”. Há um declínio, reconhece o autor, das formas institucionalizadas da religião, mas há ainda um fervor.

Para Alves, mais do que um fenômeno tradicional, a religião se apresenta misticamente fora de seus lugares tradicionais e da formalidade legal. Um tipo de “loucura na secularização e uma cegueira na ciência” (Alves, 1984, p. 168). Essa loucura é, justamente, a aceitação de uma novidade em meio aos sistemas burocráticos ocidentais. Seus exemplos são dois: a cultura das drogas nos países ricos e a abertura a filosofias orientais nas universidades. Esses fenômenos não fazem parte de uma moda passageira, mas correspondem a um desafio à racionalidade estabelecida (que poderia ser chamada de metafísica). A racionalidade do status quo, assim, seria uma loucura diante do novo que se apresenta e toma lugar religioso em meio à secularização. Há, assim, um abraço ao que está fora da racionalidade tradicional, uma aproximação ao mistério.

Justamente aqui a mística toma seu lugar. Nas palavras de Alves (1984, p. 171),

A experiência mística não tem primariamente a ver com a contemplação de outras coisas (os próprios místicos negariam isto), mas com a repentina e inesperada sensação de não se sentir em casa naquilo que era antes considerado como familiar, abrangente, total, real. A racionalidade do cotidiano se revela como irracionalidade por se apresentar como resultado de uma construção arbitrária das nossas descrições.

Aqui, Alves continua muito próximo ao que denominamos como esperança: há uma inadequação da consciência frente ao cotidiano e à sua pretensa racionalidade que liquida corpos. A sensação de não se sentir em casa nesta racionalidade abre caminho para a experiência mística: o sonhar com outra realidade e com outra racionalidade possível. A experiência mística é uma experiência de esperança de que o mundo seja outro, mais amável. Para Alves, essa experiência surge no momento em que as aspirações e os valores humanos são frustrados diante da realidade. Essa incompatibilidade entre consciência e realidade pode ser denominada como uma ignorância, uma vez que se aproxima da loucura na negação daquilo que é.

Todavia, isso não significa que essa atitude de consciência seja absolutamente irracional. Diz o autor, “Não nos podemos esquecer, entretanto, de que a ‘ignorância’ não é uma simples questão de imbecilidade, ou falta de informações ou estupidez. O ato de cognição é motivado por problemas práticos” (Alves, 1984, p. 173). Nesse ponto, a leitura de Almeida e Cabral encontra um seguro amparo: a inconformidade entre consciência e realidade não surge de uma loucura abstrato-metafísica, mas de problemas práticos, diz Alves. Em outras palavras: a mística surge de corpos reais em situações adversas. A partir dessas condições de opressão e morte, a consciência obstrui a realidade do real e pressupõe que há uma novidade para além dele, que lhe é mais importante.

Por isso, Alves afirma que “o sentimento de contradição, em si, não explica o voo místico” (Alves, 1984, p. 174). A experiência mística surge dessa contradição, mas não é explicada somente por ela. Há aqui uma divisão proposta por Alves, baseada no senso de poder. Quando o ser humano o tem, coloca-se para fora de si a fim fazer um mundo diferente. Nesse sentido, a luta pela abolição do mundo, enquanto condição de injustiça, está no centro da mística. Há, aqui, uma potência de transformação do mundo. Quando esse senso de poder não está presente, a mística se põe a emigrar. Nas palavras de Alves, “quando o senso da contradição é acompanhado pelo senso da impotência, o projeto de transformação é substituído pelo projeto de emigração” (Alves, 1984, p. 174). Para ele, o que marca a contemporaneidade é, justamente, esse senso de impotência. Por isso a mística pode substituir, embora não deva, a ação política.

O que chama atenção, nesse ponto, é que a emigração, enquanto fenômeno místico, se aproxima também da construção política do mundo. Tanto a fuga mística quanto a política mística se colocam como devires possíveis a partir da inconformidade. Em certo sentido, ambos colocam o ser humano como um peregrino, ainda que por caminhos diferentes. Aqui, mais do que a tristeza de uma consciência irreconciliada, a mística aponta para uma alegria em buscar novos caminhos, novas possiblidades, uma nova realidade. A definição de Almeida e Cabral se coloca, paralelamente, no mesmo sentido da de Alves, ainda que não o cite diretamente nessa construção:

Por mística, entendemos uma experiência (e as reflexões decorrentes desta experiência) que institui sentidos cujas qualidades transcendem a qualidade opressora que marca o status quo do mundo atual. Em outras palavras, a mística se identifica com uma experiência que acontece no mundo, na horizontalidade da história, porém o sentido que nela se revela acaba por elevar a condição humana a possibilidades que excedem os limites opressores de suas situações históricas. [...] As identidades dos corpos oprimidos são relativizadas e transcendidas pela mística e a estabilidade dos mundos opressores também é colocada em xeque pela mística

(Almeida; Cabral, 2023a, p. 13-14).

A mística, tanto em Alves quanto na interpretação de Almeida e Cabral, se coloca como a alegria de ter uma esperança e a esperança de viver em alegria. E essa alegria, ao contrário das indicações melancólicas de Catenaci, se coloca no devir, no próprio processo de caminhada que está pressuposto na ideia de esperança. Ora, a esperança não requer certeza de chegada – pelo contrário, a chegada indica o fim da necessidade de esperança. Nesse sentido, parece-nos que a teoria da religião em Rubem Alves não se encerra na tristeza da crença, mas se encaminha para a alegria do devir, caracterizada pela esperança. A busca por uma realidade contrária à condição de opressão não se caracteriza, portanto, por um assombro da falta; mas se constitui como uma emigração esperançosa e alegre.

Conclusão

Pretendemos com o presente artigo discutir as implicações do conceito de esperança para o pensamento de uma teoria da religião em Rubem Alves. Diante das recentes leituras sobre o tema, dialogamos com a profícua interpretação de Giovanni Catenaci sobre a tristeza de crer, fazendo uma leitura atenciosa da centralidade da ausência no conceito de esperança; e dialogamos com a interessante contraposição de Edson Fernando de Almeida e Alexandre Marques Cabral sobre a potencialidade e corporeidade que solapam a metafísica na transcendência alvesiana. Fazendo uma mediação, acreditamos que a mística surge como resposta à questão, apontando que, para além da negatividade envolvida na contradição entre consciência corporal frustrada e condição social injusta, a esperança se coloca como uma caminhada alegre, uma emigração em busca de outra realidade sem tristezas. Com isso, indicamos que, mais do que melancolia, a teoria da religião de Rubem Alves é marcada pela esperança de que corporeidades que sofrem diante de brutais condições reais exerçam sua potência de transcender a história rumo a uma nova realidade possível.

  • 1
    Para mais detalhes dessa história, conferir Junior, 2015, p. 255-264.
  • 2
    Anteriormente, apresentamos como há correspondência entre a fase teológica de Alves e a fase literária, apontando traços de um tipo de cristianismo romântico (Mendes; Py, 2017)
  • 3
    Este ponto fica ainda mais claro quando Catenaci expõe o conceito nos seguintes termos: “Transcendência aqui não significa outra coisa além de futuro. Quer dizer, a negação da negação exigida por Rubem Alves no momento de pensar a liberdade não consiste numa fuga do mundo material das causas causadas, mas, sim, na capacidade de perceber que o presente não é absoluto para os humanos, estando aberto mediante suas intervenções àquilo que vem” (Catenaci, 2021, p. 65).
  • 4
    Ao fim e ao cabo, a proposta de Giovanni Catenaci é fazer uma crítica à ideia de desejo em Alves a partir de uma leitura do desejo em Gilles Deleuze. Se este autor revira Sigmund Freud em O anti-édipo (Deleuze; Guattri, 2011), Catenaci tenta revirar Rubem Alves em um tipo de anti-presença-da-ausência. Destaco sua tentativa no seguinte trecho: “Desta feita, à teologia não interessaria mais conjeturar em termos de essência, mas, sim de potência, conforme vimos. Ao invés da falta, aquilo que podemos... O que, por conseguinte deixamos entrever, para possíveis desdobramentos posteriores, nos conduziria à passagem da melancholia à hilaritas. Este sim um afeto positivo, correspondente de um contentamento muito particular, proveniente de uma alegria serena, madura, pessimista talvez, trágica quem sabe, resultante de uma razão que fez as pazes consigo mesma e com o real que lhe circunscreve e integra – não porque o real seja perfeito, mas, sim, porque a despeito de suas contradições e limites, é do ponto de vista daquilo que pode, sempre suficiente. A hilaridade como sintoma de libertação dos arroubos autoritário-messiânicos de uma imaginação escravizada por uma falta ideal – movimento neurotizante, pendular entre o céu e o inferno. Alegria como fundamento da política. O contente como alguém que acolheu suas impotências, e que inclusive pode não-poder, e para quem, aliás, já nada falta” (Catenaci, 2021, p. 120). Para uma leitura mais pormenorizada da obra de Catenaci, recomendamos nossa resenha do livro intitulada “Uma crítica de Alves no espírito de Rubem: uma análise da relação entre melancolia e religião” (Mendes, 2023).
  • 5
    Sobre esse assunto, recomendamos dois importantes ensaios publicados por Rubem Alves em O enigma da religião: “Esperança e objetividade: uma crítica da ciência” (Alves, 1984, p. 83-96) e “Tecnologia e humanização” (Alves, 1984, p. 97-116).
  • 6
    Além do artigo que serve de base para nossa leitura, indicamos “Rubem Alves e o entretempo messiânico” (Almeida; Cabral, 2021), “A hermenêutica dietética antropoteofágica e terrena de Rubem Alves” (Almeida; Cabral, 2022) e “Rubem Alves: do giro místico do protestantismo ao giro protestante da mística” (Almeida; Cabral, 2023b). Nestes, o pensamento de Alves se conecta à filosofia de Heidegger, Lévinas, Derrida, Bataille e outros.
  • 7
    Necropolítica é um conceito desenvolvido por Achille Mbembe, que diz respeito à gestão de vidas e mortes feita nos Estados capitalistas na contemporaneidade. Sobre isso, ver Mbembe, 2017 e, para uma relação entre necropolítica e religião, conferir Mendes; Pieper, 2020.

Referências

  • ALMEIDA, Edson Fernando de; CABRAL, Alexandre Marques. Corpotência e mística trans-imanente: elementos para uma teoria da religião em Rubem Alves. Reflexão, v. 48, p. 1-18, 2023a.
  • ALMEIDA, Edson Fernando de; CABRAL, Alexandre Marques. Rubem Alves: do giro místico do protestantismo ao giro protestante da mística. Perspectiva Teológica, v. 55, n. 1, p. 277-300, 2023b.
  • ALMEIDA, Edson Fernando de; CABRAL, Alexandre Marques. A hermenêutica dietética antropoteofágica e terrena de Rubem Alves. Numen, v. 25, n. 1, p. 118-135, 2022.
  • ALMEIDA, Edson Fernando de; CABRAL, Alexandre Marques. Rubem Alves e o entretempo messiânico: variações sobre corpo, poder e esperança. Estudos de Religião, v. 35, n. 3, p. 217-239, 2021.
  • ALVES, Rubem. Da Esperança Campinas: Papirus, 1987a.
  • ALVES, Rubem. Deus morreu — Viva Deus! In: ALVES, Rubem et al Liberdade e Fé Rio de Janeiro: Tempo e Presença Editora, p. 7-34, 1972.
  • ALVES, Rubem. O enigma da religião Campinas: Papirus, 1984.
  • ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos São Paulo: Paulus, 1987b.
  • ARISTÓTELES. Política São Paulo: Ed. Abril cultural, 1999. (Coleção os pensadores).
  • CATENACI, Giovanni F. A tristeza de crer Uma teoria da religião em Rubem Alves. São Paulo: Editora Recriar, 2021.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • JUNIOR, Gonçalo. É uma pena não viver: uma biografia de Rubem Alves. São Paulo: Planeta, 2015.
  • MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade Lisboa: Antígona, 2017.
  • MENDES, Danilo. PIEPER, Frederico (Orgs). Necropolítica e Religião. In. Religião em tempos de crise São Bernardo do Campo: Ambigrama, 2020, p. 13-38.
  • MENDES, Danilo; PY, Fábio. A teologia do cotidiano à luz da esperança — Traços cristãos românticos em Rubem Alves. Teoliterária, v. 7, n. 14, p. 130-158, 2017.
  • MENDES, Danilo. Uma crítica de Alves no espírito de Rubem: uma análise da relação entre melancolia e religião. Estudos de Religião, v. 37, n. 1, p. 381-389, 2023.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
  • SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.

Editado por

  • Editores
    Franklin Alves Pereira e Márcia Eloi Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2024
  • Aceito
    03 Jun 2025
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