Resumo
Investigamos o desenvolvimento da relação coparental e conjugal durante o processo de transição para a parentalidade no contexto da reprodução assistida, a partir de um estudo de caso coletivo longitudinal. Realizamos uma análise narrativa das entrevistas respondidas por três casais na gestação, no terceiro mês do bebê e em seu primeiro ano. Quando um dos cônjuges já tem filhos pode haver uma assimetria no enfrentamento do tratamento e da transição para a parentalidade. Pode haver, ainda, um deslocamento dos temas de conflito, embora estes tendam a ser abordados com as mesmas estratégias presentes na história do casal. Identificamos indícios da coparentalidade já no tratamento, havendo uma diferenciação crescente entre conjugalidade e coparentalidade.
Palavras-chave:
tecnologia reprodutiva; infertilidade; transição para a parentalidade; relações conjugais; coparentalidade
Abstract
We investigated the development of the marital and the coparental relationships during the transition to parenthood following assisted reproduction, through a collective longitudinal case study. We conducted a narrative analysis of the interviews answered by three couples during pregnancy, baby's third month, and baby's first year. Facing treatment and transition to parenthood may be an imbalanced situation when one of the spouses already has children. Themes of conflict may be displaced. However, the spouses may try to solve it using the same strategies present during their history. We identified evidence of the coparental relationship during the treatment period, and there is a process in which the couple's marital and coparental relationships became gradually differentiated.
Keywords:
reproductive technology; infertility; transition to parenthood; marital relations; coparenting
A transição para a parentalidade é um dos muitos momentos ao longo da história de um casal em que os cônjuges se veem diante da necessidade de readequarem sua relação, seus planos, suas expectativas e, até mesmo, a imagem que fazem um do outro (Flykt, 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ). Do ponto de vista sistêmico, tornam-se necessários ajustes que permitam a criação de um espaço para a entrada de um novo membro (Carter & McGoldrick, 1995Carter, B., & McGoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. In B. Carter, & M. McGoldrick (Eds.), As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar (pp. 07-29). Artes Médicas.; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ). Configura-se, assim, o surgimento de um novo nível de formação familiar, em que os cônjuges passam a simultaneamente fazer parte de dois subsistemas distintos: o conjugal e o parental (Minuchin, 1980/1990Minuchin, S., & Fishman, H. C. (1990). Técnicas de terapia familiar. Artes Médicas. (Original published in 1981); Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ).
O subsistema conjugal tem início quando dois adultos se unem com o propósito de constituir uma vida em comum. Dentre suas principais funções, está a de propiciar aos cônjuges um espaço de satisfação de suas necessidades psicológicas, de apoio mútuo e de refúgio frente às diversas demandas cotidianas (Minuchin, 1980/1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas. (Original published in 1980); Minuchin & Fishman, 1981/1990Minuchin, S., & Fishman, H. C. (1990). Técnicas de terapia familiar. Artes Médicas. (Original published in 1981)).
O subsistema parental, por sua vez, surge a partir da chegada dos filhos e envolve sua criação e socialização, requerendo dos pais a capacidade de “nutrir, guiar e controlar” (Minuchin, 1980/1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas. (Original published in 1980), p. 63), assim como de se adaptar diante das necessidades dos filhos. No entanto, esse sistema não se caracteriza apenas pela relação que cada um dos pais estabelece com a criança. É necessário considerar também como os pais se relacionam entre si no que se refere a esses cuidados (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Lamela et al., 2010Lamela, D., Nunes-Costa, R., & Figueiredo, B. (2010). Modelos teóricos das relações coparentais: Revisão crítica. Psicologia em Estudo, 15(1), 205-216. https://doi.org/10.1590/S1413-73722010000100022
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; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ). Essa relação triádica é chamada de coparentalidade e envolve não apenas as interações ocorridas na presença de todos os membros da tríade (mãe, pai e filho), mas também os sentimentos e percepções que cada parceiro apresenta a respeito dessa relação e da forma como o outro exerce seu papel parental (Van Egeren & Hawkins, 2004Van Egeren, L. A., & Hawkins, D. P. (2004). Coming to terms with coparenting: Implications of definition and measurement. Journal of Adult Development, 11(3), 165-178. https://doi.org/10.1023/B:JADE.0000035625.74672.0b
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).
Diante da transição para a parentalidade, a conjugalidade servirá como a base a partir da qual se desenvolverá a coparentalidade (Van Egeren, 2004Van Egeren, L. A. (2004). The development of the coparenting relationship over the transition to parenthood. Infant Mental Health Journal, 25(5), 453-477. https://doi.org/10.1002/imhj.20019
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). As habilidades relacionais desenvolvidas até então tendem a contribuir para a necessária reorganização do subsistema conjugal, assim como para o apoio mútuo entre os cônjuges, o que favoreceria suas relações coparentais (Van Egeren, 2004Van Egeren, L. A. (2004). The development of the coparenting relationship over the transition to parenthood. Infant Mental Health Journal, 25(5), 453-477. https://doi.org/10.1002/imhj.20019
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). De acordo com o estudo desenvolvido por Bell et al. (2007Bell, L., Goulet, C., Tribble, D. S., Paul, D., Boisclair, A., & Tronick, E. Z. (2007). Mothers’ and fathers’ views of the interdependence of their relationships with their infant: A systems perspective on early family relationships. Journal of Family Nursing, 13(2), 179-200. https://doi.org/10.1177%2F1074840707300774
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), ao longo das primeiras semanas após o nascimento, os pais desenvolveriam novas formas de estarem juntos a partir de um processo de interdependência, em que buscam similaridades e afinidades entre eles e seu bebê. Esse período se caracteriza por uma indefinição de fronteiras entre os subsistemas, que estão se reorganizando. Com o passar do tempo, as relações se diferenciam gradualmente em direção à especialização e integração dos papéis.
De acordo com Van Egeren e Hawkins (2004Van Egeren, L. A., & Hawkins, D. P. (2004). Coming to terms with coparenting: Implications of definition and measurement. Journal of Adult Development, 11(3), 165-178. https://doi.org/10.1023/B:JADE.0000035625.74672.0b
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), a coparentalidade poderia ser compreendida a partir de quatro dimensões: (a) a solidariedade coparental, que está relacionada ao afeto que une os parceiros no exercício da criação do filho; (b) o apoio coparental, que se refere à tentativa de apoiar e ampliar as iniciativas do parceiro; (c) o boicote coparental, que diz respeito às atitudes que prejudicam o alcance das metas parentais do parceiro, assim como à manifestação de críticas ou desvalorização em relação às suas decisões; e (d) a parentalidade compartilhada, que engloba a divisão de tarefas e responsabilidades, assim como o envolvimento de cada um com a criança e os assuntos pertinentes a ela.
Estudos enfocando a coparentalidade têm demonstrado sua importância para o desenvolvimento da criança e da família (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Darwiche et al., 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ). Diversos estudos têm corroborado o princípio fundamental da Teoria Familiar Sistêmica segundo o qual os subsistemas se influenciam mutuamente, ao demonstrarem a associação entre conjugalidade, coparentalidade e parentalidade (Bonds & Gondoli, 2007; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ; Van Egeren, 2004Van Egeren, L. A. (2004). The development of the coparenting relationship over the transition to parenthood. Infant Mental Health Journal, 25(5), 453-477. https://doi.org/10.1002/imhj.20019
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; Varga et al., 2017Varga, C. M., Gee, C. B., Rivera, L., & Reyes, C. X. (2017). Coparenting mediates the association between relationship quality and father involvement. Youth and Society, 49(5), 588-609. https://doi.org/10.1177%2F0044118X14548529
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). Assim, uma boa relação coparental tende a contribuir para a relação que cada um dos pais estabelece com a criança, assim como para a melhora da relação conjugal em si, diminuindo o estresse presente no sistema familiar e favorecendo o desenvolvimento da criança. A qualidade da relação coparental tem se mostrado associada, por exemplo, a manifestações de comportamento pró-social, aos processos de autorregulação emocional e aos estilos de apego demonstrados pela criança (Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ).
No caso daqueles casais que conceberam com o auxílio das técnicas de reprodução assistida (TRA), devemos considerar que, antes de vivenciarem todas essas mudanças provocadas pela chegada do bebê, eles passaram por uma experiência muito específica: a infertilidade e a realização do tratamento (Colpin, 2002Colpin, H. (2002). Parenting and psychosocial development of IVF children: Review of the research literature. Developmental Review, 22, 644-673. https://doi.org/10.1016/S0273-2297(02)00501-4
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). Essa experiência tem sido considerada como um estressor multidimensional (Verhaak et al., 2007Verhaak, C. M., Smeenk, J. M. J., Evers, A. W. M., Kremer, J. A. M., Kraaimaat, F. W., & Braat, D. D. M. (2007). Women’s emotional adjustment to IVF: A systematic review of 25 years of research. Human Reproduction Update, 13(1), 27-36. https://doi.org/10.1093/humupd/dml040
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), uma vez em que, além de lidarem com todos os sentimentos despertados pela situação de infertilidade, os cônjuges também precisam manejar as diversas demandas do tratamento, que envolvem a adequação da rotina pessoal à rotina do tratamento, elevados custos financeiros, bem como procedimentos dolorosos e invasivos (Batista et al., 2016Batista, L. A. T., Bretones, W. H. D., & Almeida, R. J. de. (2016). O impacto da infertilidade: Narrativas de mulheres com sucessivas negativas pelo tratamento de reprodução assistida. Reprodução e Climatério, 31(3), 121-127. https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.05.004
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; Marques & Morais, 2018Marques, P. P., & Morais, N. A. de. (2018). A vivência de casais inférteis diante de tentativas inexitosas de reprodução assistida. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(2), 299-314. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4315
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; Souza et al., 2017Souza, Â. M. De, Cenci, C. M. B., Patias, N. D., & Luz, S. K. (2017). Casais inférteis e a busca pela parentalidade biológica : Uma compreensão das experiências envolvidas. Pensando Famílias, 21(2), 76-88. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200007
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; Verhaak et al., 2007Verhaak, C. M., Smeenk, J. M. J., Evers, A. W. M., Kremer, J. A. M., Kraaimaat, F. W., & Braat, D. D. M. (2007). Women’s emotional adjustment to IVF: A systematic review of 25 years of research. Human Reproduction Update, 13(1), 27-36. https://doi.org/10.1093/humupd/dml040
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).
A literatura nacional e internacional tende a concordar que o tratamento representa um desafio para o casal (Batista et al., 2016Batista, L. A. T., Bretones, W. H. D., & Almeida, R. J. de. (2016). O impacto da infertilidade: Narrativas de mulheres com sucessivas negativas pelo tratamento de reprodução assistida. Reprodução e Climatério, 31(3), 121-127. https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.05.004
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; Marques & Morais, 2018Marques, P. P., & Morais, N. A. de. (2018). A vivência de casais inférteis diante de tentativas inexitosas de reprodução assistida. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(2), 299-314. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4315
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; Martínez-Pampliega et al., 2019; Souza et al., 2017Souza, Â. M. De, Cenci, C. M. B., Patias, N. D., & Luz, S. K. (2017). Casais inférteis e a busca pela parentalidade biológica : Uma compreensão das experiências envolvidas. Pensando Famílias, 21(2), 76-88. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200007
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). Em sua revisão da literatura, Martínez-Pampliega et al. (2019) sugerem que os efeitos do tratamento sobre a relação do casal podem ser substituídos em três linhas: (a) problemas de comunicação entre os cônjuges derivados do estresse relacionado à experiência do tratamento; (b) ansiedade em relação à continuidade da relação; e (c) dificuldade em expressar os sentimentos, contribuindo para uma sensação de isolamento entre os parceiros. Poderia ser acrescentado a essas três linhas, ainda, o impacto da infertilidade e do tratamento sobre a sexualidade do casal, já que esta passa a ser vista como uma tarefa a ser desempenhada para se ter um filho (Batista et al., 2016Batista, L. A. T., Bretones, W. H. D., & Almeida, R. J. de. (2016). O impacto da infertilidade: Narrativas de mulheres com sucessivas negativas pelo tratamento de reprodução assistida. Reprodução e Climatério, 31(3), 121-127. https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.05.004
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; Marques & Morais, 2018Marques, P. P., & Morais, N. A. de. (2018). A vivência de casais inférteis diante de tentativas inexitosas de reprodução assistida. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(2), 299-314. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4315
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; Martínez-Pampliega et al., 2019; Souza et al., 2017Souza, Â. M. De, Cenci, C. M. B., Patias, N. D., & Luz, S. K. (2017). Casais inférteis e a busca pela parentalidade biológica : Uma compreensão das experiências envolvidas. Pensando Famílias, 21(2), 76-88. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200007
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).
No entanto, no que se refere à forma como as TRA podem influenciar a relação do casal durante a transição para a parentalidade, os estudos têm se mostrado divergentes (European Society of Human Reproduction and Embryology [ESHRE], 2015). Por um lado, a experiência da infertilidade e de seu tratamento poderia levar a um processo de seleção dos casais, de forma que permaneceriam juntos apenas aqueles que conseguissem lidar melhor com suas dificuldades (Moreno-Rosset et al., 2016Moreno-Rosset, C., Arnal-Remón, B., Antequera-Jurado, R., & Ramírez-Uclés, I. (2016). Anxiety and psychological wellbeing in couples in transition to parenthood. Clínica y Salud, 27, 29-35. https://doi.org/10.1016/j.clysa.2016.01.004
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; Sydsjö et al., 2002Sydsjö, G, Wadsby, M., Kjellberg, S., & Sydsjö, A. (2002). Relationships and parenthood in couples after assisted reproduction and in spontaneous primiparous couples: A prospective long-term follow-up study. Human Reproduction, 17(12), 3342-3250. https://doi.org/10.1093/humrep/17.12.3242
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). Esses casais apresentariam - ou teriam desenvolvido - habilidades que também se mostrariam úteis para manejar as novas demandas relacionadas à chegada do bebê, o que contribuiria para a manutenção da qualidade da relação durante a transição para a parentalidade. Assinala-se, ainda, que a experiência de enfrentarem juntos a infertilidade possa favorecer a coesão entre os cônjuges e proteger a relação frente aos estressores que costumam ser enfrentados nesse momento (Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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). Por outro lado, estudos têm demonstrado que a experiência da reprodução assistida pode contribuir para a percepção de que a criança é mais vulnerável e de que deve ser protegida (ESHRE, 2015; Hjelmstedt et al., 2004Hjelmstedt, A, Widström, A. M., Wramsby, H., & Collins, A. (2004). Emotional adaptation following successful in vitro fertilization. Fertility and Sterility, 81(5), 1254-1264. https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.2003.09.061
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; Mohammadi et al., 2015Mohammadi, N., Shamshiri, M., Mohammadpour, A., Vehviläinen-Julkunen, K., Abbasi, M., & Sadeghi, T. (2015). ‘Super-mothers’: The meaning of mothering after assisted reproductive technology. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 33(1), 42-53. https://doi.org/10.1080/02646838.2014.970152
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). Nesse contexto, alguns autores sugerem que a família pode se mostrar mais centrada na criança (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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), o que reduziria o espaço para o desenvolvimento da relação entre os pais (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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) e para as demonstrações de carinho e envolvimento entre os cônjuges (Gibson et al., 2000Gibson, F. L., Ungerer, J. A., Tennant, C. C., & Saunders, M. (2000). Parental adjustment and attitudes to parenting after in vitro fertilization. Fertility and Sterility, 73(3), 565-574. https://doi.org/10.1016/S0015-0282(99)00583-X
https://doi.org/10.1016/S0015-0282(99)00...
).
A maior parte dos artigos nacionais recentes sobre psicologia e reprodução assistida enfoca a experiência do tratamento ou de seu insucesso (Batista et al., 2016Batista, L. A. T., Bretones, W. H. D., & Almeida, R. J. de. (2016). O impacto da infertilidade: Narrativas de mulheres com sucessivas negativas pelo tratamento de reprodução assistida. Reprodução e Climatério, 31(3), 121-127. https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.05.004
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; Marques & Morais, 2018Marques, P. P., & Morais, N. A. de. (2018). A vivência de casais inférteis diante de tentativas inexitosas de reprodução assistida. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(2), 299-314. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4315
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; Souza et al., 2017Souza, Â. M. De, Cenci, C. M. B., Patias, N. D., & Luz, S. K. (2017). Casais inférteis e a busca pela parentalidade biológica : Uma compreensão das experiências envolvidas. Pensando Famílias, 21(2), 76-88. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200007
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), enquanto os estudos internacionais, embora investiguem a conjugalidade e a coparentalidade durante o período da transição para a parentalidade, tendem a abordar a relação do casal segundo métodos quantitativos (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Darwiche et al., 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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). Dessa forma, mostra-se necessário aprofundar a compreensão acerca das possíveis repercussões das TRA sobre a relação do casal quando este alcança a gravidez, considerando a realidade brasileira. Com esse intuito, este estudo tem como objetivo investigar como se desenvolve a relação do casal - considerando tanto a sua conjugalidade como sua coparentalidade - durante o processo de transição para a parentalidade no contexto da reprodução assistida. Por se tratar de um estudo qualitativo e longitudinal, espera-se que este estudo contribua para uma compreensão multidimensional e desenvolvimental sobre o tema (Blatter, 2008Blatter, J. K. (2008). Case study. In L. M. Given (Ed.), The Sage Encyclopedia of Qualitative Research Methods (pp. 68-71). Sage.; Stake, 1995Stake, R. E. (1995). The art of the case study research. Sage Publications.), vindo a contribuir para novos estudos na área da psicologia da reprodução humana e para a atuação de profissionais que trabalham com as relações dessas famílias.
Método
Tipo de Estudo
Realizou-se um estudo de caso (Stake, 1995Stake, R. E. (1995). The art of the case study research. Sage Publications.) de caráter longitudinal. As fases investigadas compreenderam: (a) o terceiro trimestre de gestação, momento em que já se superou o período com maior incidência de perdas gestacionais e em que há um maior contato da mãe com as manifestações do bebê em desenvolvimento (Ferrari et al., 2007Ferrari, A. G., Picciníni, C. A., & Lopes, R. S. (2007). The imagined baby during pregnancy: Theoretical and empirical aspects. Psicologia em Estudo, 12(2), 305-313. https://doi.org/10.1590/S1413-73722007000200011
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); (b) após o bebê completar três meses, período em que a mãe tende a se encontrar em um estado de grande disponibilidade emocional para o bebê, mas em que já foram superadas as adaptações iniciais (Lopes et al., 2005Lopes, R. D. C. S., Alfaya, C., Machado, C. V., & Piccinini, C. A. (2005). “No início eu saía com o coração partido...”: As primeiras situações de separação mãe-bebê. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 15(3), 26-35. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12822005000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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); e (c) o período após o bebê completar seu primeiro ano, que se caracteriza por sua maior independência (Lopes et al., 2007Lopes, R. de C. S., Oliveira, D. S., Vivian, A. G., Bohmgahren, L. M. C., Piccinini, C. A., & Tudge, J. (2007). Sentimentos maternos frente ao desenvolvimento da criança aos 12 meses: Convivendo com as novas aquisições infantis. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23(1), 5-16. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000100002
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).
O estudo de caso busca uma compreensão processual, aprofundada e contextualizada, recorrendo, para isso, a delineamentos longitudinais e a múltiplas fontes de dados (Blatter, 2008Blatter, J. K. (2008). Case study. In L. M. Given (Ed.), The Sage Encyclopedia of Qualitative Research Methods (pp. 68-71). Sage.). Sua contribuição não está na generalização estatística de seus resultados, mas na descrição e na interpretação detalhada dos dados com os quais trabalha. Essa característica faz com que os estudos de caso sejam reconhecidos como fonte de inovação no conhecimento sobre determinada área, mostrando-se especialmente úteis à compreensão de temas ainda pouco estudados, como é o caso do desenvolvimento da relação do casal no contexto da reprodução assistida.
Participantes
Participaram deste estudo três casais que conceberam com o auxílio das TRA e cuja esposa se encontrava no terceiro trimestre de gestação, à época do contato inicial. Esses casais foram selecionados a partir da amostra do projeto maior do qual este estudo faz parte. Esse projeto, intitulado Transição para a parentalidade e a relação conjugal no contexto da reprodução assistida: Da gestação ao primeiro ano de vida do bebê (REPASSI; Lopes et al., 2008), contou com a participação de 35 famílias em que ao menos um dos cônjuges colaborou em uma ou mais fases do projeto.
Considerando que o presente estudo tem como objetivo investigar a relação do casal, o primeiro critério para inclusão foi o de que tanto o marido como a esposa tivessem participado das três fases previstas pelo REPASSI (gestação, terceiro mês e primeiro ano de vida do bebê). Esse critério foi cumprido por apenas oito das famílias participantes do REPASSI. Cumprido o primeiro critério, a seleção dos casais a serem incluídos neste estudo baseou-se no critério de heterogeneidade (Patton, 2002Patton, M. Q. (2002). Qualitative research & evaluation methods. Sage Publications.). A partir dessa proposta, buscou-se formar um grupo composto por casais que compartilhavam uma experiência comum, mas que considerasse a diversidade do contexto estudado, sendo heterogêneo no que se refere a aspectos considerados relevantes. A experiência comum refere-se à gestação alcançada com o auxílio das TRA, mais especificamente a fertilização in vitro (FIV). Dentre as diferentes técnicas existentes, selecionou-se a FIV por ser a mais comum entre os participantes que compõem o REPASSI, assim como por ser uma técnica de maior complexidade (Cavagna, 2009Cavagna, F. (2009). Tratamento da infertilidade - Reprodução assistida. In R. M. Melamed, L. Seger, & E. Borges Jr. (Eds.), Psicologia e reprodução humana assistida: Uma abordagem multidisciplinar (pp. 08-15). Livraria Santos Editora. ). A heterogeneidade, por outro lado, voltou-se às diferentes configurações familiares, já que foi possível observar, a partir da amostra do REPASSI, que recorrem à reprodução assistida casais com as mais diversas configurações (p. ex., casais em que nenhum dos cônjuges tinha filhos, casais em que um dos cônjuges tinha filhos de relações anteriores, casais em que ambos os cônjuges já tinham filhos). Como critérios de exclusão, foram considerados o uso de doação de gametas e a ocorrência de gestações gemelares, já que essas experiências estão associadas a especificidades que estão além do nosso objetivo. A partir desse processo, chegamos aos três casais que compõem este estudo. Uma descrição detalhada de cada um deles será apresentada no início da seção Resultados e Discussão, como forma de contextualizar suas narrativas.
Instrumentos
Considerando-se apenas os instrumentos cujos dados foram utilizados no presente estudo, os participantes responderam, durante a gestação, a uma entrevista de dados demográficos, bem como a entrevistas que abordaram a experiência da gestação, a história do casal, a experiência do tratamento de reprodução assistida, sua relação no presente e suas expectativas em relação ao futuro. Após o bebê completar três meses, os participantes responderam a entrevistas sobre a experiência da parentalidade nos três primeiros meses de vida do bebê, a relação do casal no momento presente e as expectativas em relação ao futuro. Após o bebê completar um ano, os participantes responderam a entrevistas sobre a experiência da parentalidade no primeiro ano de vida do bebê, a relação do casal no momento presente e suas expectativas em relação ao futuro.
Procedimentos
Coleta de Dados
Como parte das atividades do projeto maior do qual este estudo faz parte (REPASSI), os participantes foram indicados pela equipe do serviço de ginecologia e obstetrícia de um hospital universitário do sul do Brasil. As pesquisadoras entraram em contato com as gestantes por telefone, quando elas se encontravam no terceiro trimestre de gestação, e informaram-lhes a respeito da realização do projeto. Diante da manifestação de interesse, agendou-se um encontro em que se apresentou a elas e a seus cônjuges o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e discutiram-se eventuais dúvidas. Com o aceite dos termos propostos, teve início a aplicação dos instrumentos, que se deu em um ou dois encontros, realizados na residência dos participantes ou nas dependências da universidade, dependendo de sua preferência. Os participantes foram novamente contatados e convidados a participarem das demais fases desse projeto após o bebê completar três meses e um ano. Em cada fase, os participantes responderam individualmente a entrevistas estruturadas conduzidas de forma semidirigida, ou seja, as pesquisadoras possuíam um roteiro com perguntas que deveriam ser obrigatoriamente apresentadas aos participantes, mas eram orientadas e treinadas a aprofundar as questões trazidas por eles. As entrevistas realizadas com cada participante tinham duração que variava entre 1 e 3 horas, tendo sido realizadas no período entre 2008 e 2012. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas para análise. Dados obtidos a partir da aplicação de outros instrumentos que faziam parte do protocolo do REPASSI não foram utilizados neste estudo.
Análise dos Dados
Os dados foram submetidos a uma análise narrativa (Polkinghorne, 1995Polkinghorne, D. E. (1995). Narrative configuration in qualitative analysis. Qualitative Studies in Education, 8(1), 5-23.). Segundo essa perspectiva, a história é o produto da análise, construída a partir da reorganização dos elementos informados pelos participantes em uma estrutura temporalmente orientada, que relaciona eventos, ações e propósitos, com uma finalidade explicativa.
Dessa forma, a partir das entrevistas realizadas, foram construídas narrativas que expressassem o desenvolvimento da conjugalidade e da coparentalidade dos casais participantes ao longo do período de transição para a parentalidade. A análise dos dados compreendeu as seguintes fases: (a) Leitura repetida e cuidadosa das entrevistas transcritas em busca das relações e significados atribuídos pelos participantes aos eventos, assim como da compreensão da organização geral da narrativa; (b) Escrita da narrativa de cada membro do casal, buscando organizar temporalmente os eventos narrados, bem como explicitar suas possíveis relações e os significados atribuídos tanto pelos participantes como pela pesquisadora; (c) Comparação entre as narrativas das esposas e dos maridos e composição de uma narrativa conjunta; (d) Comparação entre as narrativas dos três casais, considerando-se a transversalidade dos temas, assim como sua importância para o caso específico em que foram identificados (Patton, 2002Patton, M. Q. (2002). Qualitative research & evaluation methods. Sage Publications.). Na construção das narrativas, buscou-se diferenciar as interpretações e os significados apresentados pelos participantes das interpretações e significados atribuídos pelas pesquisadoras, por meio da utilização recorrente das falas trazidas pelos próprios participantes (Riessman, 2002Riessman, C. K. (2002). Analysis of personal narratives. In J. F. Gubrium & J. A. Holstein (Eds.), Handbook of interview research: Context and method (pp. 695-710). Sage.).
As narrativas foram interpretadas segundo os referenciais teóricos da Psicologia do Desenvolvimento e da Terapia Familiar Sistêmica. Essa escolha se baseia no fato de a transição para a parentalidade, momento enfocado pelo estudo, representar um marco tanto no que se refere ao desenvolvimento individual (Colarusso, 1990; Flykt, 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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; Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ), como no que se refere ao desenvolvimento do casal e da família (Carter & McGoldrick, 1995Carter, B., & McGoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. In B. Carter, & M. McGoldrick (Eds.), As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar (pp. 07-29). Artes Médicas.; Minuchin, 1980/1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas. (Original published in 1980)).
Considerações Éticas
O REPASSI foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa filiado à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), em julho de 2007 (Protocolo 07-153). Segue, portanto, as diretrizes definidas na Resolução n° 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996Conselho Nacional de Saúde. (1996). Resolução n° 196, de 10 de outubro de 1996. http://www.datasus.gov.br/conselho/resol96/RES19696.htm.
http://www.datasus.gov.br/conselho/resol...
), vigente à época de coleta dos dados.
Resultados e Discussão
Nesta seção, apresenta-se a síntese e a discussão acerca das narrativas dos três casais participantes deste estudo. Semelhanças e particularidades serão consideradas como forma de melhor compreender como se deu, para eles, o desenvolvimento de sua conjugalidade e de sua coparentalidade.
A História dos Casais
Casal 1
Vitória e Alberto1 1 Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, para preservar a privacidade dos participantes. iniciaram sua relação há mais de dez anos. Nenhum dos dois tinha filhos de outras relações. Segundo Vitória, embora Alberto manifestasse sua vontade de ter filhos desde o início do casamento e a gravidez fosse algo que ele lhe “cobrava muito” por não querer ser um pai “muito velho”, ela sentia que aquele ainda não era o melhor momento. Esse constituía, portanto, um tema de divergência para o casal, sendo que Alberto dizia: “'Tá, se não quer, não quer, depois fica chateada aí...' Essas coisas de casal”. Após alguns anos, Vitória passou a também pensar em engravidar, mas a gravidez não aconteceu. A causa da infertilidade foi descrita como feminina e a gravidez foi alcançada na terceira tentativa com as TRA, quando ela estava na faixa dos 30 e ele, na dos 40 anos. O casal era de nível socioeconômico médio2 2 Para a definição do nível socioeconômico, utilizou-se a adaptação da Classificação de Hollingshead proposta por Tudge e Frizzo (2012). .
Casal 2
Ana e Henrique iniciaram sua relação há mais de dez anos. Quando se conheceram, ele já tinha filhos e vivia com sua ex-esposa, o que gerava conflitos entre eles. Quando passaram a viver juntos, a questão do comprometimento foi substituída por uma nova: a decisão sobre quando ter um bebê. Embora Ana quisesse ter filhos assim que passaram a viver juntos, Henrique queria alcançar outros objetivos antes. Essa situação pareceu acentuar as inseguranças de Ana em relação aos sentimentos do marido: “Também aí eu achava que ele não gostava, daí eu cobrava, enfim, aí eu fazia toda uma novela... Tendo os meus motivos, né”. Somava-se a essas inseguranças o fato de ele ter filhos de outro relacionamento: “Ele, no início, falava: 'Por que tu não pensa em adotar?' E eu pensava: bem capaz que ele vai gostar de uma criança adotada tendo os filhos dele mesmo”. A causa da infertilidade foi descrita como mista. A gravidez foi alcançada na segunda tentativa com as TRA, quando ela estava na faixa dos 40 e ele, na dos 50 anos. O casal era de nível socioeconômico médio.
Casal 3
Frederica e Ernesto iniciaram sua relação há mais de cinco anos. Ernesto destacou os conflitos ocorridos na época do namoro: “Porque ela não é de ficar quieta, é parelha comigo. Se eu falo, ela retruca, e eu retruco, ela retruca, e assim vai. E foi difícil mesmo. A gente tava por separar muitas vezes. Que ela ia embora e eu ia lá falar com ela, e ela voltava, muitas vezes”. A decisão pelo casamento partiu de Frederica, que colocou: “Já que a gente tá há tanto tempo junto, eu só fico contigo se a gente for casar certinho, direitinho”. Sobre ter filhos, ela disse: “Eu até queria ter, mas não tanto, tanto assim, porque eu já tinha, né, mas eu fiquei com ele, a gente casou, daí eu fiquei com vontade de ter, porque ele não tinha”. Para Frederica, ter um filho com Ernesto era visto como uma condição imprescindível para a continuidade da relação, pois ela se preocupava sobre como ele iria se sentir caso nunca pudesse ter seus próprios filhos. Esse sentimento se somou à cobrança da família dele pela chegada dos netos e à sua própria vontade de ter uma nova oportunidade como mãe. A causa da infertilidade foi descrita como feminina. A gravidez foi alcançada na segunda tentativa com as TRA, quando ela estava na faixa dos 30 e ele, na dos 20 anos. O casal era de nível socioeconômico médio-inferior.
O Tratamento
De forma geral, o período do tratamento se caracterizou como um desafio a ser superado pelos casais na busca pela parentalidade. No entanto, percebeu-se que a história do casal e o significado atribuído à vinda desse bebê podem influenciar a forma como se percebe o tratamento e seus efeitos sobre a relação do casal. No Casal 01, a decisão sobre quando ter filhos foi motivo de conflito para o casal. Quando o casal chegou a um consenso de que aquele seria o momento, mas se deparou com dificuldades para alcançar a gravidez, Vitória vivenciou um sentimento de culpa em relação a suas decisões passadas, já que, embora destaque que o marido não lhe fazia cobranças, ela parecia esperá-las: “ele nunca chegou para mim e me cobrou: ‘Porque, se fosse há dois anos atrás, já teríamos resolvido, por que tu não quis engravidar?’ (…) Nunca jogou na minha cara: ‘Tu não pode ter filhos e eu posso’”. (Vitória, Casal 01)
A importância da história do casal também pôde ser identificada nas narrativas dos demais casais. No Casal 02, o fato de Henrique aceitar ter um filho após um longo período de recusas e de se envolver no tratamento adquiriu, para a esposa, o significado de comprometimento com a relação. Já no Casal 03, o filho era visto como condição para a continuidade da relação, de forma que o insucesso inicial das tentativas era acompanhado por ameaças de rompimento: “E ela insistia, sempre insistia e ela tipo falava, assim, como me dando um ultimato: ‘Ou a gente faz esse filho ou terminou’. Isso, no caso, era por causa do dinheiro sabe, de ter o dinheiro: ‘Ou tu dá um jeito ou vamos parar por aqui’”. (Ernesto, Casal 03).
Portanto, nos relatos dos casais 02 e 03, percebe-se como o tratamento vem a aliviar uma tensão existente no casal ou a deslocar seu conteúdo, de forma que é possível compreender como o tratamento pode assumir uma função de triangulação no relacionamento do casal (Burns, 1987Burns, L. H. (1987). Infertility as boundary ambiguity: One theoretical perspective. Family Process, 26, 359-372. https://doi.org/10.1111/j.1545-5300.1987.00359.x
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). Fala-se em triangulação quando duas pessoas utilizam uma terceira pessoa ou outro elemento como forma de amenizar a tensão existente entre elas, sem solucionar a causa do conflito (Nichols & Schwartz, 2002Nichols, M. P., & Schwartz, R. C. (2002). Terapia Familiar: Conceitos e Métodos. Artmed.). Para o Casal 03, por exemplo, tanto o tratamento como o possível filho apresentavam-se como formas de equilibrar o relacionamento. Os conflitos do casal, que já existiam desde o namoro, passaram a se centrar na continuidade do tratamento, e a manutenção da relação foi condicionada à possibilidade de gravidez.
Deve-se destacar, ainda, que os recursos utilizados pelo casal para lidar com o desafio da infertilidade e do seu tratamento foram aqueles já presentes em sua história (Seger-Jacobs, 2006Seger-Jacob, L. (2006). Estresse na gênese e no tratamento da infertilidade. In R. M. M. Melamed & J. Quayle (Eds.), Psicologia em reprodução assistida: Experiências brasileiras (pp. 121-153). Casa do Psicólogo. ). As ameaças de término apresentadas pelo Casal 03 representam a mesma estratégia utilizada em outros momentos de dificuldade do casal, segundo suas narrativas. Por outro lado, deve-se considerar também a possibilidade de que o tratamento tenha vindo a apresentar dificuldades adicionais à comunicação do casal em virtude do estresse relacionado à experiência do tratamento (Martínez-Pampliega et al., 2019).
No que se refere à coparentalidade, percebeu-se, como bem assinalou Burns (1987Burns, L. H. (1987). Infertility as boundary ambiguity: One theoretical perspective. Family Process, 26, 359-372. https://doi.org/10.1111/j.1545-5300.1987.00359.x
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), que o período do tratamento já era marcado por uma forte presença do bebê, e que o casal já descrevia sua família como constituída não apenas por uma díade, mas por uma tríade. Assim, se, em casais que conceberam naturalmente, é possível observar indícios da coparentalidade já durante a gravidez (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Darwiche et al., 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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), no contexto da reprodução assistida, é possível pensar que esse processo se mostre presente já na realização do tratamento, que demanda do casal uma série de decisões e acordos: “Tudo o que eu sabia lá na médica, eu passava pra ele, pra minha sogra e pro meu sogro e eles sempre me apoiaram. (...) A gente já tava naquela emoção toda de já ter o neném, a gente já tava fazendo qualquer coisa, né, aí já tava até pensando em vender alguma coisa para tentar [um novo ciclo de tratamento]” (Frederica, Casal 03).
A Gravidez
A literatura sugere que casais que recorreram às TRA e que passaram por tantas dificuldades para conceber tendem a perceber a gravidez como mais especial e gratificante (Hjelmstedt et al., 2003Hjelmstedt, A, Widström, A. M., Wramsby, H., & Collins, A. (2003). Patterns of emotional responses to pregnancy, experience of pregnancy and attitudes to parenthood among IVF couples: A longitudinal study. Journal of Psychosomatic Obstetrics & Gynaecology, 24, 153-162. https://doi.org/10.3109/01674820309039669
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; Mohammadi et al., 2015Mohammadi, N., Shamshiri, M., Mohammadpour, A., Vehviläinen-Julkunen, K., Abbasi, M., & Sadeghi, T. (2015). ‘Super-mothers’: The meaning of mothering after assisted reproductive technology. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 33(1), 42-53. https://doi.org/10.1080/02646838.2014.970152
https://doi.org/10.1080/02646838.2014.97...
). Dessa forma, é possível cogitar que esse sentimento de conquistar uma meta buscada há tanto tempo reforce a ideia de que o relacionamento conjugal deva acompanhar toda a felicidade vivenciada nesse momento. Os três casais participantes deste estudo destacaram como a gravidez veio a contribuir para a união e o companheirismo existente no casal. Para os casais 01 e 03, a chegada do filho foi vista como tendo consolidado a relação, enquanto, no Casal 02, foi atribuída ao bebê uma função reparadora da relação, havendo a expectativa de que ele colaborasse para a resolução dos pontos percebidos como fracos na relação: “A minha expectativa de ser mãe, essa espera, né, eu acho que o fortalecimento do casamento na relação nossa, que agora não somos só nos dois, somos três” (Vitória - Casal 01); “Olha, vem diluindo cada vez mais os conflitos, assim. (...) Então isso era uma coisa que trazia bastante conflitos, mas agora eu já tô, assim, eu não tô muito preocupada com isso. Antes tudo me preocupava” (Ana - Casal 02).
Por outro lado, verifica-se a possibilidade de que, para proteger essa imagem da relação, alguns casais busquem evitar seus conflitos. Essa evitação pode ocorrer às custas da expressão dos próprios sentimentos e ideias (Walsh, 2006Walsh, F. (2006). Strengthening family resilience. The Guilford Press.). Segundo Martínez-Pampliega et al. (2019), um dos possíveis efeitos do tratamento sobre a relação conjugal pode ser a dificuldade em expressar os sentimentos, o que tende a contribuir para uma sensação de isolamento entre os cônjuges. Cabe, portanto, questionar se as estratégias utilizadas para manter a coesão conjugal durante o tratamento podem ser mantidas na gravidez como forma de preservar esse momento há tanto esperado pelo casal.
A gravidez parece representar um período em que os casais buscam aprender como se organizar no exercício do papel parental (Darwiche et al., 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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). Portanto, no que se refere à coparentalidade, corroborou-se a ideia de que, já na gravidez, essa relação se mostra presente (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
https://doi.org/10.1080/02646838.2012.66...
; Darwiche et al., 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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). As narrativas dos participantes permitem identificar manifestações de solidariedade e apoio coparental (Van Egeren & Hawkins, 2004Van Egeren, L. A., & Hawkins, D. P. (2004). Coming to terms with coparenting: Implications of definition and measurement. Journal of Adult Development, 11(3), 165-178. https://doi.org/10.1023/B:JADE.0000035625.74672.0b
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), bem como discussões sobre o futuro exercício da coparentalidade:
Quando a gente vai deitar, a gente fica umas duas ou três horas, a gente desliga a TV e fica só trovando [conversando] com o nenê. E tirando foto e fazendo pose só da barriga. (Ernesto - Casal 03)
O Alberto, às vezes, fala que tem algumas crianças muito teimosas. Algumas vezes, ele olha a atitude de alguma criança e fala: “Ah, se fosse meu filho não faria isso”. Eu disse: “Ai, não diz isso que pode acontecer. Aí o que tu faria?” “Ai eu faria isso”. Eu disse: “Ah, mas eu faria diferente, né”. Então tem algumas coisas, assim, que a gente pensa diferente sobre educação. (Vitória - Casal 01)
Também já é possível perceber, durante a gravidez, a mútua relação existente entre coparentalidade e conjugalidade (Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a001...
). A narrativa de Ana (Casal 02), por exemplo, demonstrou como ver o marido envolvido com a gestação e o bebê contribuiu para que ela também se sentisse mais segura quanto à sua relação conjugal. Essa interpretação está alinhada aos resultados obtidos por Foley et al. (2019Foley, S., Branger, M. C. E., Alink, L. R. A., Lindberg, A., & Hughes, C. (2019). Thinking about you baby: Expectant parents’ narratives suggest prenatal spillover for fathers. Journal of Family Psychology, 33(8), 905-9015. https://doi.org/10.1037/fam0000568
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), que sugerem que o spill-over, ou seja, o transbordamento entre conjugalidade e coparentalidade, inicia-se ainda durante a gravidez. Segundo esses autores, pais que descreveram piores qualidades de vida e conjugal tenderam a também a apresentar maior dificuldade para falarem sobre o seu bebê durante a gestação.
É importante considerar que, neste período de transição e de construção de novos subsistemas, as fronteiras tendem a se mostrar ainda bastante tênues, inclusive fisicamente (Bell et al., 2007Bell, L., Goulet, C., Tribble, D. S., Paul, D., Boisclair, A., & Tronick, E. Z. (2007). Mothers’ and fathers’ views of the interdependence of their relationships with their infant: A systems perspective on early family relationships. Journal of Family Nursing, 13(2), 179-200. https://doi.org/10.1177%2F1074840707300774
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). Dessa forma, por vezes, as manifestações conjugais e coparentais se confundem, sendo difícil distinguir quando o apoio ou o afeto é dirigido para o cônjuge ou para o bebê: “Ela pede muito carinho, assim, é tipo apoio para ela. (...) Para mim, o que ela me pede o neném está pedindo, eu penso muito nisso. E ela me fala isso: ‘não é eu que estou pedindo, é o nenê que está pedindo’” (Ernesto - Casal 03).
A configuração familiar, aqui representada pela existência de filhos de outras relações, mostrou-se relevante à compreensão da experiência da gravidez desses casais. Tanto no Casal 02 como no Casal 03, foi possível perceber que o cônjuge que já possuía filhos colocava-se em uma relação assimétrica em relação ao parceiro, por já ter vivenciado essa experiência: “Porque eu já fui mãe e ele não entendia nada, pai de primeira viagem, e ele é novo também... Tudo eu comentava com ele, como é que era, como a mulher ficava, porque, às vezes, eu me estresso e xingo ele” (Frederica - Casal 03).
Sentimentos de competitividade em relação aos relacionamentos anteriores do parceiro também se mostraram presentes, influenciando a forma como seus comportamentos eram compreendidos. Além disso, a relação com os outros filhos constituiu um material importante para a construção de expectativas quanto à chegada do novo bebê, tanto por parte do parceiro que já tem filhos como por parte daquele que observa suas relações.
Às vezes, eu vejo, quando tu vai numa maternidade, determinados pais, o pessoal diz assim: “o cara não tá contente, não tá eufórico”. Mas é o terceiro, é o quarto dele. Ele tá contente com o nascimento de mais um filho e tal, mas não é aquela euforia do primeiro. Essa é uma preocupação minha, porque eu vou ter que demonstrar um super contentamento perante a Ana, que é para deixar ela assim mais... Ela vai pensar isso, mais ou menos eu conheço ela: “Será que do primeiro filho não ficou mais do que esse?” Porque tu tem que transmitir a felicidade.... (Henrique - Casal 02)
Por outro lado, a transição para a parentalidade também foi vista como auxiliando o parceiro que ainda não tinha filhos a compreender melhor o outro, o que foi mencionado tanto no Casal 02 como no Casal 03. Nesse sentido, é possível dizer que há uma aproximação entre eles no que se refere à etapa do ciclo de vida familiar vivenciada por cada um (Carter & McGoldrick, 1995Carter, B., & McGoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar. In B. Carter, & M. McGoldrick (Eds.), As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar (pp. 07-29). Artes Médicas.): “Ela não poder ver os filhos dela direto sempre foi um problema para ela, né. (...) E daí eu não sabia, eu não imaginava que era um problema tão grande pra ela. Eu até sabia, mas fazia de louco, né. Hoje em dia não, hoje em dia eu penso mais nela” (Ernesto - Casal 03).
Os Primeiros Meses
Nas narrativas dos casais participantes deste estudo, percebeu-se a tendência a relacionar a satisfação diante da chegada do bebê às dificuldades vivenciadas para concebê-lo, de forma que os casais pareceram buscar reforçar essa ideia de satisfação e gratificação (Hjelmstedt et al., 2004Hjelmstedt, A, Widström, A. M., Wramsby, H., & Collins, A. (2004). Emotional adaptation following successful in vitro fertilization. Fertility and Sterility, 81(5), 1254-1264. https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.2003.09.061
https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.200...
; Mohammadi et al., 2015Mohammadi, N., Shamshiri, M., Mohammadpour, A., Vehviläinen-Julkunen, K., Abbasi, M., & Sadeghi, T. (2015). ‘Super-mothers’: The meaning of mothering after assisted reproductive technology. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 33(1), 42-53. https://doi.org/10.1080/02646838.2014.970152
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): “Nós ficamos sete anos só eu e a Vitoria e agora, com a chegada do bebê, modificou bastante a nossa vida. É muito bom, muito gratificante pegar ele e abraçar, beijar e tudo que tiver que fazer” (Alberto - Casal 01).
No que se refere à coparentalidade, percebeu-se, de forma geral, uma continuidade entre as expectativas apresentadas na gestação e os comportamentos constatados após o nascimento do bebê. Embora os três pais fossem descritos como participativos, os casais admitiram que, neste momento, as mães assumiam o principal papel como cuidadoras. Os três pais descreveram como um empecilho à sua maior participação o receio de que pudessem machucar o bebê ou a insegurança quanto ao que fazer com o filho. A literatura tem demonstrado que, mesmo casais em que os cônjuges dividiam as tarefas domésticas de forma mais equitativa entre si, tendem a adotar uma divisão mais tradicional com a transição para a parentalidade, com as mulheres assumindo as atividades de cuidado (Perales et al., 2018Perales, F., Jarallah, Y., & Baxter, J. (2018). Men’s and women’s gender-role attitudes across the transition to parenthood: Accounting for child’s gender. Social Forces, 97(1), 251-276. https://doi.org/10.1093/sf/soy015
https://doi.org/10.1093/sf/soy015...
). Nossa sociedade ainda apresenta expectativas distintas para pais e mães, reforçando a ideia de que estas apresentariam uma propensão inata para o cuidado (Moura-Ramos et al., 2016Moura-Ramos, M., Gameiro, S., Canavarro, M. C., Soares, I., & Almeida-Santos, T. (2016). Does infertility history affect the emotional adjustment of couples undergoing assisted reproduction? The mediating role of the importance of parenthood. British Journal of Health Psychology, 21(2), 302-317. https://doi.org/10.1111/bjhp.12169
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). Com a chegada do bebê, pais e mães mostram-se especialmente abertos a esses modelos sociais, pois se veem diante da necessidade de garantir os devidos cuidados ao bebê. Se ainda não têm suas experiências com seus próprios filhos para se embasarem, restam os modelos socialmente transmitidos ou aqueles presentes em suas famílias de origem (Perales et al., 2018Perales, F., Jarallah, Y., & Baxter, J. (2018). Men’s and women’s gender-role attitudes across the transition to parenthood: Accounting for child’s gender. Social Forces, 97(1), 251-276. https://doi.org/10.1093/sf/soy015
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). No entanto, para refletirmos sobre essa questão, devemos considerar algumas especificidades do contexto das TRA, em que a criança pode ser vista como especialmente vulnerável e em que há, desde a investigação da infertilidade, uma maior ênfase - e responsabilização - da figura materna, em detrimento da paterna (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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; Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a001...
; Hjelmstedt et al., 2003Hjelmstedt, A, Widström, A. M., Wramsby, H., & Collins, A. (2003). Patterns of emotional responses to pregnancy, experience of pregnancy and attitudes to parenthood among IVF couples: A longitudinal study. Journal of Psychosomatic Obstetrics & Gynaecology, 24, 153-162. https://doi.org/10.3109/01674820309039669
https://doi.org/10.3109/0167482030903966...
; Mohammadi et al., 2015Mohammadi, N., Shamshiri, M., Mohammadpour, A., Vehviläinen-Julkunen, K., Abbasi, M., & Sadeghi, T. (2015). ‘Super-mothers’: The meaning of mothering after assisted reproductive technology. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 33(1), 42-53. https://doi.org/10.1080/02646838.2014.970152
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; Moura-Ramos et al., 2016Moura-Ramos, M., Gameiro, S., Canavarro, M. C., Soares, I., & Almeida-Santos, T. (2016). Does infertility history affect the emotional adjustment of couples undergoing assisted reproduction? The mediating role of the importance of parenthood. British Journal of Health Psychology, 21(2), 302-317. https://doi.org/10.1111/bjhp.12169
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). Portanto, cabe questionar se esse contexto pode reforçar uma divisão de tarefas mais tradicional - e menos equitativa - entre pais e mães.
Identificou-se que a relação conjugal ocupava uma posição secundária na narrativa dos participantes. O fato de essa redução no espaço destinado à conjugalidade já ter sido prevista pelos participantes durante a gestação pode ter contribuído para que essa mudança não fosse encarada como fonte de insatisfação. Além disso, dada a relação entre parentalidade, coparentalidade e conjugalidade, é possível que a satisfação expressa quanto à parentalidade e à coparentalidade possa ter contribuído para amenizar as limitações quanto à conjugalidade.
Considerando-se as especificidades do contexto em estudo, é possível, ainda, que as preocupações com a conjugalidade tenham se mostrado inferiores à realização por ter um bebê. A literatura, de fato, sugere uma maior tolerância por parte desses casais diante das dificuldades relacionadas à transição para a parentalidade (Hjelmstedt et al., 2004Hjelmstedt, A, Widström, A. M., Wramsby, H., & Collins, A. (2004). Emotional adaptation following successful in vitro fertilization. Fertility and Sterility, 81(5), 1254-1264. https://doi.org/10.1016/j.fertnstert.2003.09.061
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), sendo que os mesmos vivenciaram um processo em que a relação conjugal tendia a ser colocada em segundo plano mesmo antes de o casal realmente engravidar (Cairo et al., 2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
https://doi.org/10.1080/02646838.2012.66...
; Flikt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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; Lindblom et al., 2014Lindblom, J., Flykt, M., Tolvanen, A., Vänskä, M., Tiitinen, A., Tulppala, M., & Punamäki, R. L. (2014). Dynamic family system trajectories from pregnancy to child’s first year. Journal of Marriage and Family, 76(4), 796-807. https://doi.org/10.1111/jomf.12128
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). Pode-se pensar, assim, que, enquanto a transição para a parentalidade tende a ser considerada como um dos momentos mais desafiadores da história familiar para casais que conceberam naturalmente (Darwiche, 2015Darwiche, J., Favez, N., Simonelli, A., Antonietti, J.-P., & Frascarolo, F. (2015). Prenatal coparenting alliance and marital satisfaction when pregnancy occurs after assisted reproductive technologies or spontaneously. Family Relations, 64, 534-546. https://doi.org/10.1111/fare.12131
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; Murray et al., 2019Murray, S. L., Seery, M. D., Lamarche, V. M., Kondrak, C., & Gomillion, S. (2019). Implicitly imprinting the past on the present: Automatic partner attitudes and the transition to parenthood. Journal of Personality and Social Psychology, 116(1), 69-100. https://doi.org/10.1037/pspi0000143
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), as alterações de papéis e os cuidados com o bebê são vistos como uma melhora na condição daqueles casais que conceberam com o auxílio das TRA e que já vinham lidando com sérios desafios e restrições relacionados ao tratamento.
As narrativas das esposas sugeriram uma gradual diferenciação entre as relações coparentais e conjugais (Minuchin, 1980/1990Minuchin, S., & Fishman, H. C. (1990). Técnicas de terapia familiar. Artes Médicas. (Original published in 1981)), de forma que se delinearam expectativas diversas quanto à conjugalidade e à coparentalidade. Nesse sentido, o discurso de Frederica (Casal 03) evidenciou que, embora a coparentalidade possa contribuir para a conjugalidade, ela não a substitui: “Ele não ficou, assim, dividido que nem muitos ficam e, às vezes, dão mais atenção para o filho do que para a mulher. Não, ele está sabendo como lidar, ele dá atenção tanto para mim quanto para o bebê”. Além do desenvolvimento da criança e da própria relação, a separação física entre mãe e criança pode ter contribuído para essa crescente diferenciação. Dessa forma, evidenciou-se quando o carinho, a proximidade e o apoio eram destinados aos bebês e não às esposas.
No que se refere à configuração familiar, percebeu-se que permanecia a situação de assimetria existente entre os parceiros que já tinham filhos e aqueles que não. Por outro lado, a narrativa do Casal 02 demonstrou como estar em uma nova relação pode contribuir para uma experiência de parentalidade diversa da anterior: “Isso é muito gratificante, eu digo: 'poxa vida, ele tentando se comunicar com cinco meses'. Não sei se isso é coisa de corujisse de pai, pai velho, como eu digo, mas eu acho que eles são muito evoluídos” (Henrique - Casal 02).
O Primeiro Ano
Foi possível verificar como o desenvolvimento da conjugalidade e da coparentalidade ao longo do primeiro ano do bebê mostrou-se influenciado por questões como o crescimento da criança, sua entrada na creche e o retorno da mãe ao trabalho. Nesse sentido, McHale e Rotman (2007McHale, J. P., & Rotman, T. (2007). Is seeing believing? Expectant parents’ outlooks on coparenting and later coparental solidarity. Infant Behavior and Development, 30, 63-81. https://doi.org/10.1016/j.infbeh.2006.11.007
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) assinalaram que, embora nos primeiros meses de vida do bebê, o principal preditor do relacionamento coparental sejam as expectativas apresentadas pelos parceiros, com o passar do tempo, questões relacionadas à realidade atual do casal terminam se sobressaindo. Assim, foi possível identificar um maior envolvimento do pai nos cuidados com o bebê ou, até mesmo, um aumento nos conflitos coparentais, visto que cresceram as oportunidades de os casais colocarem à prova suas crenças e valores acerca da criação dos filhos (McHale & Rotman, 2007McHale, J. P., & Rotman, T. (2007). Is seeing believing? Expectant parents’ outlooks on coparenting and later coparental solidarity. Infant Behavior and Development, 30, 63-81. https://doi.org/10.1016/j.infbeh.2006.11.007
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).
Notou-se, ainda, a presença de certa continuidade entre a história do casal e o desenvolvimento da relação coparental. Os dois casais que apresentam uma visão mais crítica quanto ao desempenho do cônjuge como pai ou mãe (02 e 03) foram aqueles que destacaram a presença de conflitos na história da relação. Sugere-se, portanto, que, com a transição para a parentalidade, pode haver um deslocamento dos temas de conflito, ao mesmo tempo em que se mantêm as estratégias para sua resolução, ou seja, manter-se-iam as dinâmicas básicas de relação independente de o assunto ser vinculado ao casal, como marido e mulher, ou a seus filhos. Narrativas como a de Ana (Casal 02) reforçam essa ideia, dado que havia, para ela, uma grande semelhança entre os comportamentos que a incomodavam no parceiro como pai e os comportamentos que a incomodavam no parceiro como marido. Já no Casal 03, embora ambos tenham mencionado a redução dos conflitos entre eles, identificaram-se, em suas narrativas, conflitos acerca da criação do filho e, até mesmo, certa competitividade quanto a seu afeto. Nota-se, assim, como o processo de triangulação já presente durante o tratamento pode ter continuidade após o nascimento do bebê, seja por meio de mecanismos de compensação - processo através do qual casais com dificuldades em seu relacionamento deslocam sua necessidade de afeto e proximidade para os filhos (Grych, 2002Grych, J. H. (2002). Marital relationships and parenting. In M. H. Bornstein (Ed.), Handbook of parenting: Social conditions and applied parenting (pp. 203-225). Lawrence Erlbaum Associates.) - ou de deslocamento - processo em que o casal se mantém em uma situação de “harmonia ilusória” ao priorizar as dificuldades relacionadas à criança (Minuchin, 1980/1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas. (Original published in 1980), p. 101).
Manteve-se também a assimetria identificada nas fases anteriores no que se refere à relação entre os parceiros que já tinham filhos e aqueles que ainda não, constituindo-se situações em que se configurava o chamado boicote coparental (Van Egeren & Hawkins, 2004Van Egeren, L. A., & Hawkins, D. P. (2004). Coming to terms with coparenting: Implications of definition and measurement. Journal of Adult Development, 11(3), 165-178. https://doi.org/10.1023/B:JADE.0000035625.74672.0b
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). Verbalizações como a de Ernesto (Casal 03), que dizia sentir a desvalorização de suas opiniões por ser “marinheiro de primeira viagem”, demonstram, ainda, que as crenças apresentadas pelos participantes durante as entrevistas tendem a ser também atuadas na relação do casal, já que Frederica havia se referido a ele com essa mesma expressão em uma de suas entrevistas. Isso corrobora a ideia de que os padrões de interação se mostram relacionados aos padrões significativos presentes nas narrativas de cada um dos cônjuges (Tomm, 1998Tomm, K. (1998). A question of perspective. Journal of Marital and Family Therapy, 24(4), 409-413. https://doi.org/10.1111/j.1752-0606.1998.tb01096.x
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).
Cabe questionar, ainda, se essa desvalorização do parceiro nas entrevistas também não se mostraria relacionada à competitividade coparental (Schoppe-Sullivan et al., 2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ). Segundo Schoppe-Sulivan et al. (2018Schoppe- Sullivan, S. J., Berrigan, M. N., & Wells, M. B. (2018). Rivalry in coparenting at the transition to parenthood. In S. L. Hart & N. A. Jones (Eds.), Psychology of emotions, motivations and actions. The psychology of rivalry (pp. 217-238). Nova Science Publishers. ), a competitividade coparental está positivamente relacionada, nas mães, à presença de padrões de apego ansioso-evitativo e a níveis de assertividade/dominância. Nos pais, por sua vez, os índices de competitividade coparental se mostraram positivamente associados a padrões de apego evitativo. Este estudo não avaliou os padrões de apego dos participantes, mas, no Casal 03, é possível identificar tentativas de dominância na história da relação.
Percebeu-se, em especial para as esposas, a continuidade do processo de diferenciação entre a relação conjugal e a coparental (Minuchin, 1980/1990): “É, às vezes, eu percebo, daí eu digo: ‘ah só pro bebê e pra mim nada?!’. Às vezes, a gente chama a atenção um do outro, né. (...) Eu acho que eu também, às vezes, priorizo mais a questão do bebê, mas isso é uma coisa que eu acho que a gente vai se organizando ao longo do tempo” (Vitória - Casal 01).
Talvez relacionado a esse movimento, identificou-se também que participantes como Vitória (Casal 01) e Ana (Casal 02) passaram a abordar de forma cada vez mais explícita as dificuldades vivenciadas em seu relacionamento com o cônjuge: “E isso desestabiliza e depois eu fico com raiva, eu fico com um pouco de nojo na verdade, né. (...) Me decepciona assim. Tem dias que ele tá um amor, tem dias que ele tá, assim, faz essas coisas” (Ana - Casal 02). Essa visão mais crítica pode estar relacionada tanto a um processo de desidealização desse momento de transição para a parentalidade, como a um retorno dos antigos padrões de relacionamento, como sugere a narrativa do Casal 02. Com o nascimento, os cuidados tomados em relação à esposa durante a gravidez foram deslocados para a criança, o que pode favorecer esse retorno.
O Processo de Desenvolvimento da Conjugalidade e da Coparentalidade ao longo do Primeiro Ano da Criança
As narrativas apresentadas pelos participantes deste estudo demonstraram que a história do casal bem como a experiência da infertilidade e do tratamento podem contribuir para a forma como a conjugalidade e a coparentalidade se desenvolvem ao longo da transição para a parentalidade. Processos de triangulação já presentes durante o tratamento podem se manter com a chegada da criança, ao mesmo tempo em que os desafios vivenciados para alcançar essa gravidez podem incutir, no casal, a ideia de que quaisquer dificuldades na relação são secundárias e válidas (McMahon et al., 1999McMahon, C. A., Tennant, C., Ungerer, J., & Saunders, D. (1999). ‘Don’t count your chickens’: A comparative study of the experience of pregnancy after IVF conception. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 17(4), 345-356. https://doi.org/10.1080/02646839908404600
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) ou de que todos os esforços devem ser investidos na criação da criança, em detrimento da relação conjugal. Ernesto (Casal 03) chegou a verbalizar que, após o sucesso do tratamento, sentia que deveria dedicar-se inteiramente à parentalidade, colocando os demais relacionamentos, inclusive com a esposa, em segundo plano. Nos três casais, percebeu-se, ao menos em algum momento, a dificuldade em admitir que a parentalidade pudesse estar associada a quaisquer dificuldades ou insatisfações. Dessa forma, é possível pensar se, em alguns casais - como parece ser o caso do 02 -, a relação conjugal e coparental pode assumir uma posição de “bode expiatório”, em que todas as dificuldades são relacionadas ao parceiro e à relação, mas a parentalidade permanece em uma posição idealizada.
Deve-se considerar, por outro lado, que, antes de alcançarem a gravidez, esses casais passaram por uma série de desafios relacionados à infertilidade e ao tratamento. De acordo com Leiblum (1997Leiblum, S. R. (1997). Love, sex, and infertility: The impact of infertility on couples. In S. R. Leiblum (Ed.), Infertility: Psychological issues and counseling strategies (pp. 149-166). John Willey & Sons.), o uso das TRA demanda dos casais “sofisticadas habilidades de negociação e comunicação” (p. 154), sendo que Sydsjö et al. (2002Sydsjö, G, Wadsby, M., Kjellberg, S., & Sydsjö, A. (2002). Relationships and parenthood in couples after assisted reproduction and in spontaneous primiparous couples: A prospective long-term follow-up study. Human Reproduction, 17(12), 3342-3250. https://doi.org/10.1093/humrep/17.12.3242
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) chegaram a sugerir a existência de um processo de seleção, em que só alcançariam a gravidez aqueles casais que desenvolveram essas habilidades de forma satisfatória o suficiente para garantir a continuidade de seu relacionamento diante de todas as dificuldades. Portanto, trata-se de casais para os quais a transição para a parentalidade não constitui o maior desafio enfrentado em suas histórias e que já haviam superado momentos de elevado estresse, o que pode ter contribuído para a forma como manejam a transição para a parentalidade (Patterson, 2002Patterson, J. M. (2002). Integrating family resilience and family stress theory. Journal of Marriage and Family, 64, 349-360. https://doi.org/10.1111/j.1741-3737.2002.00349.x
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).
Com o passar do tempo, percebeu-se uma crescente diferenciação entre as relações coparentais e conjugais (Bell et al, 2007Bell, L., Goulet, C., Tribble, D. S., Paul, D., Boisclair, A., & Tronick, E. Z. (2007). Mothers’ and fathers’ views of the interdependence of their relationships with their infant: A systems perspective on early family relationships. Journal of Family Nursing, 13(2), 179-200. https://doi.org/10.1177%2F1074840707300774
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; Minuchin, 1980/1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas. (Original published in 1980)), embora ambas seguissem demonstrando uma grande interdependência (Flykt, 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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). Esse processo, no entanto, tendeu a se dar de forma diversa entre mulheres e homens, sendo que, para estes, o processo pareceu se dar de maneira mais lenta. Segundo Féres-Carneiro (2003Féres-Carneiro, T. (2003). Separação: O doloroso processo de dissolução da conjugalidade. Estudos de Psicologia, 8(3), 367-374. http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19958.pdf
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), os homens tendem a apresentar uma percepção mais vinculada das relações conjugais e familiares, o que pode influenciar como esse processo de diferenciação se dá para eles. Além disso, Flykt et al. (2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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) sugerem que os pais podem precisar de mais tempo para reorganizarem suas representações sobre si, sobre a parceira e sobre a criança.
A relação também pode passar a ser avaliada de forma mais crítica ao longo do crescimento do bebê. Os relatos dos casais participantes deste estudo sugerem que esse processo pode estar relacionado tanto a um retorno dos antigos padrões de interação presentes no casal, como a uma desidealização em relação ao processo de transição para a parentalidade. No que se refere ao retorno dos antigos padrões, Murray et al. (2019Murray, S. L., Seery, M. D., Lamarche, V. M., Kondrak, C., & Gomillion, S. (2019). Implicitly imprinting the past on the present: Automatic partner attitudes and the transition to parenthood. Journal of Personality and Social Psychology, 116(1), 69-100. https://doi.org/10.1037/pspi0000143
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) sugerem que, ao longo de um relacionamento, os parceiros desenvolvem um conjunto de respostas automáticas que são empregadas em suas interações. No entanto, diante da transição para a parentalidade, um novo repertório de respostas deve ser desenvolvido. Respostas novas e antigas coexistirão, regulando as interações do casal. No entanto, quando há uma incongruência entre essas respostas, podem surgir conflitos que tendem a prejudicar a coparentalidade.
Quanto à desidealização, o fato de as insatisfações com o parceiro terem se mostrado mais destacadas nas narrativas das mulheres pode estar relacionado ao fato de elas assumirem a maior parte dos cuidados com o bebê, o que contribui para que elas tenham mais chances de verem frustradas suas expectativas em relação à participação do parceiro e pode reverberar na conjugalidade (Flykt et al., 2011Flykt, M. Lindblom, J. Punamäki, R.-L., Poikkeus, P., Repokari, L., Unkila-Kallio, L., Vilska, S., Sinkkonen, J., Tiitinen, A., & Almqvist, F. Tulppala, M. (2011). Prenatal expectations in transition to parenthood: Former infertility and family dynamic considerations. Couple and Family Psychology: Research and Practice, 1(S), 31-44. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/a0016468
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). Conforme assinalaram Pasinato e Mosmann (2016Pasinato, L., & Mosmann, C. (2016). Transição para a parentalidade e a coparentalidade: Casais que os filhos ingressaram na escola ao término da licença-maternidade. Avances en Psicología Latinoamericana, 34(1), 129-142. https://doi.org/10.12804/apl34.1.2016.09
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), em estudo nacional, no período de transição para a parentalidade, as mães tendem a se sentir sobrecarregadas, já que as tarefas domésticas ainda não são divididas de forma igualitária em nossa sociedade.
Embora se espere que esse processo de diferenciação ocorra entre os casais, independentemente da forma de concepção adotada, é possível sugerir algumas especificidades deste contexto. O período de realização do tratamento mostra-se já marcado pela presença do filho e, consequentemente, por relações triádicas (Burns, 1987Burns, L. H. (1987). Infertility as boundary ambiguity: One theoretical perspective. Family Process, 26, 359-372. https://doi.org/10.1111/j.1545-5300.1987.00359.x
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), o que nos permite pensar acerca de uma antecipação da coparentalidade. O lugar de destaque que a busca pela parentalidade ocupou por muito tempo na vida desses casais também pode vir a contribuir para uma maior lentidão nesse processo, visto que o casal já estava acostumado a colocar sua relação conjugal em segundo plano. Como assinalaram Cairo et al. (2012Cairo, S., Darwichea, J., Tissota, H. Favezb, N., Germondc, M., Guexa, P., de Rotena, Y., Frascarolo, F., & Despland, J. -N. (2012). Family interactions in IVF families: Change over the transition to parenthood. Journal of Reproductive and Infant Psychology, 30(1), 5-20. https://doi.org/10.1080/02646838.2012.669830
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), o foco na criança pode prejudicar a reorganização dos cônjuges e o desenvolvimento de sua coparentalidade.
No mesmo sentido, pode-se questionar acerca das especificidades desses casais no que se refere ao impacto da transição para a parentalidade sobre a conjugalidade. De acordo com Belsky et al. (1983Belsky, J., Spanier, G., & Rovine, M. (1983). Stability and change in marriage across the transition to parenthood. Journal of Marriage and the Family, 45, 567-577. https://doi.org/10.2307/351661
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), logo após o nascimento do bebê, o casal tende a vivenciar um período de “lua de mel”, em que os impactos da transição para a parentalidade sobre o relacionamento não são sentidos de forma acentuada. Aos três meses do bebê, no entanto, esse processo já teria sido finalizado para a maior parte dos casais. Percebemos como, de forma geral, nos casais participantes deste estudo, esse processo ainda se mostra presente aos três meses, em especial para os maridos.
A configuração familiar mostrou-se também relevante. Conforme discutido anteriormente, o fato de um dos cônjuges já ter filhos pode contribuir para o desenvolvimento de certa assimetria na relação coparental, assim como a relação com os outros filhos se torna um referencial importante na construção de expectativas e na própria avaliação do relacionamento com este novo bebê. Por outro lado, a gravidez pode ajudar aquele cônjuge que não tinha filhos a melhor compreender o outro.
Considerações Finais
Este trabalho investigou como se desenvolve a relação do casal - considerando tanto a sua conjugalidade como sua coparentalidade - durante o processo de transição para a parentalidade no contexto da reprodução assistida. Com esse intuito, realizou-se um estudo de caso coletivo longitudinal que acompanhou os casais desde a gestação até o primeiro ano de vida do bebê, investigando as narrativas construídas por esses homens e mulheres.
A realização de entrevistas com as esposas e os maridos contribuiu para a contextualização dos dados e obtenção de diferentes perspectivas. O fato de as entrevistas terem sido realizadas individualmente e de não haver entrevistas conjuntas não nos permite analisar como os comportamentos manifestos de cada cônjuge influenciam-se mutuamente (Minuchin & Fishman, 1990Minuchin, S., & Fishman, H. C. (1990). Técnicas de terapia familiar. Artes Médicas. (Original published in 1981)) nem como se dão os processos conjuntos de atribuição de significados e de construção da narrativa familiar (Fiese & Sameroff, 1999Fiese, B. H., & Sameroff, A. J. (1999). The family narrative consortium: A multidimensional approach to narratives. In B. H. Fiese, A. J. Sameroff, H. D. Grotevant, F. Wamboldt, S. Dickstein, & S. Fravel (Eds.), The stories that families tell: Narrative coherence, narrative interaction, and relationship beliefs (pp. 01-36). Blackwell. ). O uso de narrativas individuais, no entanto, permite-nos compreender os sentidos atribuídos pelos participantes à sua história e à sua relação, o que pode vir a influenciar a forma como agem com seu cônjuge (Fiese & Sameroff, 1999Fiese, B. H., & Sameroff, A. J. (1999). The family narrative consortium: A multidimensional approach to narratives. In B. H. Fiese, A. J. Sameroff, H. D. Grotevant, F. Wamboldt, S. Dickstein, & S. Fravel (Eds.), The stories that families tell: Narrative coherence, narrative interaction, and relationship beliefs (pp. 01-36). Blackwell. ).
O caráter longitudinal deste estudo deve ser também ressaltado. Além de contribuir para uma visão de processo, esse delineamento oferece aos pesquisadores a oportunidade de acessar a visão do participante sobre um mesmo fato em diferentes momentos. O uso de uma amostra heterogênea também contribuiu para demonstrar como o fato de já ter filhos de outras relações pode influenciar o desenvolvimento da relação de casal nesse contexto. Dessa forma, esse trabalho sugere uma importante questão a ser aprofundada por estudos posteriores.
Dentre as limitações do presente estudo, destaca-se a abordagem retrospectiva da história do casal e da experiência do tratamento. Deve-se considerar, ainda, que o fato de os pesquisadores terem sido apresentados aos participantes por meio da equipe médica possa ter influenciado suas respostas. É possível que eles tenham se preocupado em passar uma imagem favorável aos pesquisadores, como forma de se mostrarem gratos pela oportunidade de terem realizado o tratamento (Leiblum, 1997Leiblum, S. R. (1997). Love, sex, and infertility: The impact of infertility on couples. In S. R. Leiblum (Ed.), Infertility: Psychological issues and counseling strategies (pp. 149-166). John Willey & Sons.).
Outro fator a ser discutido se refere ao fato de os dados aqui analisados terem sido coletados no período entre 2008 e 2012. Certamente, novos estudos sobre o tema devem ser conduzidos no sentido de verificar como os processos aqui descritos se mantiveram ou se transformaram nesse período. No entanto, não acreditamos que o tempo transcorrido seja suficiente para mudanças significativas nos processos psicológicos e relacionais aqui investigados, haja vista que estudos recentes sobre a experiência das TRA têm apresentado resultados semelhantes aos relatados há mais de dez anos (Batista et al., 2016Batista, L. A. T., Bretones, W. H. D., & Almeida, R. J. de. (2016). O impacto da infertilidade: Narrativas de mulheres com sucessivas negativas pelo tratamento de reprodução assistida. Reprodução e Climatério, 31(3), 121-127. https://doi.org/10.1016/j.recli.2016.05.004
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; Marques & Morais, 2018Marques, P. P., & Morais, N. A. de. (2018). A vivência de casais inférteis diante de tentativas inexitosas de reprodução assistida. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(2), 299-314. https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.4315
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; Souza et al., 2017Souza, Â. M. De, Cenci, C. M. B., Patias, N. D., & Luz, S. K. (2017). Casais inférteis e a busca pela parentalidade biológica : Uma compreensão das experiências envolvidas. Pensando Famílias, 21(2), 76-88. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200007
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). As TRA seguem sendo descritas como uma experiência impactante, marcada por incertezas e frustrações, uma experiência que envolve não apenas o casal, mas sua família de origem e sua rede social, fazendo com que, muitas vezes, o tratamento seja mantido em segredo para que o casal não se sinta mais pressionado. Os casais que recorrem às TRA continuam enfrentando tratamentos invasivos, submetendo-se a restrições financeiras e sacrificando sua rotina de trabalho e lazer para participar das diferentes etapas do tratamento. As questões de gênero que permeiam o tratamento, com as mulheres se sentindo mais responsabilizadas e submetendo-se a maior parte dos procedimentos, também continuam sendo relatadas.
Além disso, deve-se destacar que este é um estudo de caso e que, como tal, não tem como objetivo a generalização de seus resultados para toda uma população. O objetivo do estudo de caso consiste em permitir uma compreensão contextualizada dos processos. Acreditamos que a descrição dos casos aqui apresentada permite ao leitor avaliar em que contextos e situações os conceitos e hipóteses elaborados a partir deste estudo podem ser aplicados.
Este estudo não teve como objetivo comparar as experiências de casais que conceberam naturalmente e casais que recorreram às TRA. No entanto, as narrativas dos participantes sugerem algumas questões que poderiam ser investigadas em estudos posteriores: (a) o fato de já terem superado, como casal, o desafio do tratamento favorece o desenvolvimento da coparentalidade entre esses casais, quando comparados àqueles que conceberam naturalmente? (b) a diferenciação entre os subsistemas conjugal e coparental se daria de forma diversa entre casais que conceberam naturalmente e casais que recorreram às TRA?
Também teriam muito a contribuir estudos que investigassem como se dá, nesse contexto, o posterior desenvolvimento da conjugalidade e da coparentalidade, ou seja, como se daria esse movimento após a transição para a parentalidade? As diferenças entre homens e mulheres no processo de diferenciação entre conjugalidade e coparentalidade são elementos que podem ser abordados em estudos específicos.
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Apoio: CAPES, CNPq e FAPERGS.
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Nossos agradecimentos à Profa. Judith Daniluk, que orientou a primeira autora deste estudo durante seu estágio doutoral na University of British Columbia e cujos ensinamentos foram essenciais para o desenvolvimento da análise narrativa dos casos aqui descritos.
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1
Todos os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, para preservar a privacidade dos participantes.
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Para a definição do nível socioeconômico, utilizou-se a adaptação da Classificação de Hollingshead proposta por Tudge e Frizzo (2012).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
10 Out 2019 -
Revisado
30 Dez 2019 -
Aceito
13 Jan 2020