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Crenças de Professores sobre Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes

School teachers’ beliefs on sexual violence against children and adolescents

Creencias de los docentes sobre la violencia sexual contra niños y adolescentes

Resumo

Objetivou-se investigar as crenças de professores acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes. Uma amostra de 164 professores de ensino fundamental e médio, de escolas públicas e privadas, respondeu a um questionário sociodemográfico e a Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS). Análises descritivas, de frequência, testes U de Mann-Whitney e teste de Kruskall-Wallis foram realizados. O escore médio da ECAS, nessa amostra, foi de 25,74 (DP = 6,83), indicando uma tendência à discordância e neutralidade à tolerância/legitimação. Ao se comparar grupos, as variáveis gênero, faixa etária e presença de filhos mostraram ter influência sob as crenças. A experiência com casos de suspeita, participação em cursos ou palestras e conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente não apresentaram diferenças estatisticamente significativas em relação às crenças. Tais resultados foram discutidos a partir de considerações sobre gênero, sexualidade, capacitação profissional e características de crenças. É necessário investimento em estratégias de formação continuada, sendo que devem ser sensíveis às características dos participantes e às suas crenças.

Palavras-chave:
delitos sexuais; notificação; professores escolares

Abstract

The objective was to investigate school teachers’ beliefs on sexual violence against children and adolescents. A sample of 164 elementary and high school teachers from public and private schools responded to a sociodemographic questionnaire and the Brazilian version of the Sexual Abuse Beliefs Scale (SABS). The samples’ general mean in the SABS was 25.74 (SD = 6.83), indicating a tendency towards disagreement and neutrality to tolerance/legitimization. When comparing groups, gender, age group, and having children of their own showed influence on beliefs. Experience in suspected cases, participation in courses or lectures, and knowledge of the Children and Adolescents Statute did not present statistically significant differences in beliefs. These results were discussed from considerations about gender, sexuality, professional capacitation, and characteristics of beliefs. Investment in continuing education is needed, which must be sensitive to the participants’ characteristics and beliefs.

Keywords:
sex offenses; notification; school teachers

Resumen

El objetivo fue investigar las creencias de los docentes sobre la violencia sexual contra niños y adolescentes. Una muestra de 164 profesores de primaria y secundaria, de escuelas públicas y privadas, respondieron un cuestionario sociodemográfico y la Escala de Creencias sobre el Abuso Sexual (ECAS). La puntuación media general de ECAS en esta muestra fue de 25,74 (DS = 6,83), indicando una tendencia al desacuerdo y la neutralidad a la tolerancia/legitimación. Al comparar los grupos, las variables género, edad y tener hijos influyeron en las creencias, mientras que la experiencia en casos sospechosos, la participación en formaciones o charlas y el conocimiento del Estatuto de los Niños y Adolescentes no mostraron diferencias estadísticamente significativas con relación a las creencias. Tales resultados fueron discutidos a la luz de cuestiones de género, sexualidad, formación profesional y características de las creencias. Es necesario invertir en estrategias de educación continua, que deben ser sensibles a las características de los participantes y sus creencias.

Palabras clave:
delitos sexuales; notificación; maestros

Introdução

A violência sexual contra crianças e adolescentes é definida como exposição da vítima a atos sexuais que ela é incapaz de compreender ou permitir e que não esteja devidamente preparada para desempenhar, sendo praticada por uma figura de poder (World Health Organization [WHO] & International Society for the Prevention of Child Abuse and Neglect [ISPCAN], 2006World Health Organization, & International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (2006). Preventing child maltreatment: A guide to taking action and generating evidence. Suíça: World Health Organization. Recuperado de http://whqlibdoc.who.int/publications/2006/9241594365_eng.pdf
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). A violência sexual pode ocorrer por meio de comentários indesejados, ameaças, repressão, intimidação psicológica e penetração, podendo resultar em danos psicológicos, sociais e físicos (WHO, 2002World Health Organization (2002). World report on violence and health. Geneva: World Health Organization. Recuperado de https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf;jsessionid=134056A902D82C2582748FB6CDB3BB52?sequence=1
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).

Em uma análise de dados extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), no período entre 2011 e 2017, verificou-se a notificação de 184.524 casos de violência sexual no país, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes. Destes, 40.154 (69,2%) ocorreram na própria residência da vítima. Os agressores foram os próprios familiares (i.e., pai, mãe, padrasto, madrasta e irmão) em 20.545 (37%) dos casos e amigos/conhecidos em 15.431 (27,6%; Ministério da Saúde, 2018Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde (2018). Boletim epidemiológico 27 - Análise epidemiológica da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017. Recuperado de https://www.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho/25/2018-024.pdf
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). Diante de tais dados, pode-se considerar que na maioria dos casos (cerca de 65%) os agressores foram pessoas próximas às vítimas, podendo ser familiares e/ou amigos/conhecidos. Essa proximidade entre agressores e vítimas pode dificultar a revelação devido à dinâmica que a violência sexual assume nesses casos.

Por meio do estudo dos modelos propostos em publicações prévias, Hohendorff, Nelson-Gardell, Habigzang e Koller (2017Hohendorff, J. V., Nelson-Gardell, D., Habigzang, L. F., & Koller, S. H. (2017). An integrative conceptual model for enhanced understanding of the dynamics of sexual violence against children. In D. D. Dell’Aglio & S. H. Koller (Eds.), Vulnerable Children and Youth in Brazil (pp. 77-88). Cham, Switzerland: Springer International Publishing.) propuseram um modelo integrativo da dinâmica da violência sexual, dividido em seis estágios. O primeiro estágio é a Preparação, no qual há uma aproximação do agressor da vítima com o objetivo de construir uma “relação especial” entre eles, seguido dos Episódios, quando a violência sexual começa a ser cometida, por meio de exposição da vítima a atos sexuais, carícias, toques, penetração, que muitas vezes não são percebidos como sendo algo inadequado. O Silenciamento ocorre, inicialmente, porque a vítima não tem entendimento do caráter inadequado dos atos e, após, por conta da utilização de ameaças e chantagens por parte dos agressores. Mesmo assim, pode acontecer a Narrativa, estágio no qual a revelação da violência pode ocorrer de forma acidental ou intencional. Após, pode ocorrer a Repressão, quando os agressores mantêm a falta de credibilidade no relato das vítimas, fazendo com que as pessoas próximas a elas não acreditem, alegando ser uma fantasia ou mentira ou, ainda, culpabilizando-as e estigmatizando-as. Por fim, o estágio da Superação consiste na resposta de credibilidade e apoio que é dada à vítima por pessoas de seu convívio, garantindo sua proteção. A proteção é garantida quando as medidas e intervenções necessárias são efetivadas visando contribuir para a diminuição de consequências da violência e contribuindo para processos de resiliência (Hohendorff, Nelson-Gardell, Habigzang, & Koller, 2017Hohendorff, J. V., Nelson-Gardell, D., Habigzang, L. F., & Koller, S. H. (2017). An integrative conceptual model for enhanced understanding of the dynamics of sexual violence against children. In D. D. Dell’Aglio & S. H. Koller (Eds.), Vulnerable Children and Youth in Brazil (pp. 77-88). Cham, Switzerland: Springer International Publishing.).

Para que ocorra a proteção de forma efetiva é necessária uma rede de proteção organizada e estruturada. Considera-se o momento da revelação da violência sexual delicado para a vítima, pois, ao relatar, podem ocorrer revitimizações caso a rede não ofereça credibilidade ao relato e não tome as providências necessárias para a proteção. Nesse momento, a rede de proteção pode potencializar ou minimizar os danos à criança e ao adolescente, dependendo da abordagem realizada (Habigzang, Ramos, & Koller, 2011Habigzang, L. F., Ramos, M. S., & Koller, S. H. (2011). A revelação de abuso sexual: As medidas adotadas pela rede de apoio. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(4), 467-473. doi: https://doi.org/10.1590/s0102-37722011000400010
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).

A Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm
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, confere máxima prioridade nos atendimentos a vítimas de violência, qualquer que seja, pelos serviços de saúde e assistência social, para proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Os profissionais da saúde e assistência devem possuir formação continuada e capacitação, assim como os profissionais da educação, de modo que desenvolvam competências necessárias para identificação e prevenção de todas as formas de violência. Além disso, é necessário garantir que esses profissionais tenham preparo para a realização da notificação, uma vez que, de acordo com o artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente ([ECA] Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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), “os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”.

Embora avanços tenham ocorrido, o despreparo e as dificuldades da rede de proteção são percebidos em diferentes estudos (Deslandes & Campos, 2015Deslandes, S. F., & Campos, D. D. S. (2015). A ótica dos conselheiros tutelares sobre a ação da rede para a garantia da proteção integral a crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Ciência & Saúde Coletiva, 20, 2173-2182. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015207.13812014
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; Santos & Costa, 2011Santos, V. A. dos, & Costa, L. F. (2011). A violência sexual contra crianças e adolescentes: Conhecer a realidade possibilita a ação protetiva. Estudos de Psicologia (Campinas), 28(4), 529-537. doi: 10.1590/S0103-166X2011000400013
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; Santos, Costa, & Silva, 2011Santos, V. A. dos, Costa, L. F., & Silva, A. X. (2011). As medidas protetivas na perspectiva de famílias em situação de violência sexual. Psico, 42(1), 77-86. Recuperado de http://repositorio.unb.br/handle/10482/14238
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; Silva, Vega & Paludo, 2015Vega, L. B. da S., & Paludo, S. dos S. (2015). Exploração sexual e rede de proteção na perspectiva da vítima. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 67(2), 47-60. Recuperado de https://www.redalyc.org/pdf/2290/229042579004.pdf
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). Profissionais da área da saúde, juristas e das instituições escolares ainda têm dificuldade em realizar o manejo adequado para notificar os casos que surgem (Habigzang et al., 2011Habigzang, L. F., Ramos, M. S., & Koller, S. H. (2011). A revelação de abuso sexual: As medidas adotadas pela rede de apoio. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(4), 467-473. doi: https://doi.org/10.1590/s0102-37722011000400010
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). Em um estudo realizado entre os anos de 2002 e 2006, no estado do Rio Grande do Sul, foi verificada a procedência dos encaminhamentos de atendimentos realizados por um centro de referência em acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Os resultados mostraram em primeiro lugar, os encaminhamentos de serviços de proteção especial (e.g., conselho tutelar, delegacia, assistência social etc.), em segundo lugar, os serviços de saúde e, em terceiro, a rede de educação com os menores números de encaminhamentos (Pelisoli, Pires, Almeida, & Dell’Aglio, 2010Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., & Dell’Aglio, D. D. (2010). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Dados de um serviço de referência. Temas em Psicologia , 18(1), 85-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v18n1/v18n1a08.pdf
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).

A escola e, principalmente, os professores têm importante papel na identificação e notificação de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (Bergström, Eidevald, & Westberg-Broström, 2016Bergström, H., Eidevald, C., & Westberg-Broström, A. (2016). Child sexual abuse at preschools - A research review of a complex issue for preschool professionals. Early Child Development and Care, 186(9), 1520-1528. doi: https://doi.org/10.1080/03004430.2015.1121253
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; Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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; Santos, Santos, Neves, & Oliveira, 2018Santos, W. R. C., Santos, R. A. dos, Neves, J. D. de V., & Oliveira, M. do V. (2018). O papel da escola para o enfrentamento da violência sexual contra crianças nos discursos de professores do Ensino Fundamental em Augusto Corrêa-PA. @rquivo Brasileiro de Educação, 6(14), 114-154. doi: https://doi.org/10.5752/P.2318-7344.2018v6n14p114-154
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; Pelisoli & Picoloto, 2010Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., & Dell’Aglio, D. D. (2010). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Dados de um serviço de referência. Temas em Psicologia , 18(1), 85-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v18n1/v18n1a08.pdf
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), bem como na sua prevenção (Brino, Williams, & Cavalcanti, 2008Brino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2008). Professores como agentes de prevenção do abuso sexual infantil. Educação & Realidade, 33(2), 209-229. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=317227052014
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; Pelisoli & Picoloto, 2010Pelisoli, C., & Piccoloto, L. B. (2010). Prevenção do abuso sexual infantil: Estratégias cognitivo-comportamentais na escola, na família e na comunidade. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 6(1), 108-137. doi: https://doi.org/10.5935/1808-5687.20100007
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). Na maioria dos casos, a violência ocorre dentro de casa e as crianças costumam sentir-se seguras para revelar para seus professores, pelo motivo de passarem muito tempo juntos, tendo uma relação de confiança (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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).

Embora a escola seja o local ideal para identificação e notificação dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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; Santos et al., 2018Santos, W. R. C., Santos, R. A. dos, Neves, J. D. de V., & Oliveira, M. do V. (2018). O papel da escola para o enfrentamento da violência sexual contra crianças nos discursos de professores do Ensino Fundamental em Augusto Corrêa-PA. @rquivo Brasileiro de Educação, 6(14), 114-154. doi: https://doi.org/10.5752/P.2318-7344.2018v6n14p114-154
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), sua atuação é considerada incipiente nesses casos (Rocha, Lemos, & Lirio, 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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). Fatores como o assunto ser considerado um tabu (Brino & Williams, 2003bBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003b). Capacitação do educador acerca do abuso sexual infantil. Interação em Psicologia, 7(2). doi: https://doi.org/10.5380/psi.v7i2.3218
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) e a falta de conhecimento e formação (Allen, Livingston, & Nickerson, 2019Allen, K. P., Livingston, J. A., & Nickerson, A. B. (2019). Child sexual abuse prevention education: A Qualitative study of teachers’ experiences implementing the Second Step Child Protection Unit. American Journal of Sexuality Education, 1-28. doi: https://doi.org/10.1080/15546128.2019.1687382
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; Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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bBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003b). Capacitação do educador acerca do abuso sexual infantil. Interação em Psicologia, 7(2). doi: https://doi.org/10.5380/psi.v7i2.3218
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; 2008Brino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2008). Professores como agentes de prevenção do abuso sexual infantil. Educação & Realidade, 33(2), 209-229. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=317227052014
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; Cascardo & Gallo, 2018Cascardo, G. M., & Gallo, A. E. (2018). Mapeamento do conhecimento de professores sobre violência intrafamiliar. Psicologia da Educação, 46, 31-39. doi: https://doi.org/10.5935/2175-3520.20180004
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; Márquez-Flores, Márquez-Hernández, & Granados-Gámez, 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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; Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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; Santos, 2011Santos, B. R. dos (2011). Guia escolar: Identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Recuperado de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000016936.pdf
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) acabam dificultando que a escola e seus professores cumpram com seu papel protetivo.

Os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes precisam estar preparados para agir diante da suspeita ou confirmação de violência sexual. Professoras/es devem ser capacitados para reconhecer sinais de ocorrência e as devidas ações de manejo para romper com pactos de silêncio presentes na violência sexual contra crianças e adolescentes (Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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). As capacitações necessitam, também, abarcar as crenças que professores podem ter acerca do assunto. Em um estudo qualitativo brasileiro com 20 professoras de educação infantil, foram identificadas as seguintes “crenças inadequadas” (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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, p. 124): utilização de procedimentos inadequados diante de suspeita (e.g., apenas falar com responsável sobre a violência), percepção da violência sexual como um problema associado ao nível socioeconômico e ocorrendo apenas em determinadas faixas etárias, concepções errôneas sobre sinais indicativos da ocorrência (e.g., criança contaria se algo ocorreu), visão estereotipada de gênero e visão de senso comum sobre agressores (e.g., desumano, não merecedores de compaixão).

As crenças podem ser entendidas como formulações simbólicas individuais produzidas a partir do contexto cultural (e.g., rotina de trabalho, linguagem). Apesar de conferirem “certezas” ao indivíduo, elas não possuem, necessariamente, compromisso com a verdade, não precisando de comprovações para serem aceitas. Devido a isso, tendem a se tornar sólidas e cristalizadas com o passar do tempo. Geralmente são utilizadas para explicar genericamente diferentes situações mesmo diante da carência de conhecimento sistematizado. As crenças conferem segurança ao determinarem o pensamento e a ação dos indivíduos. Por conta disso, elas reduzem a necessidade de refletir sobre diversas situações que se apresentam, sendo consideradas guias para a ação (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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). Crenças errôneas acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes podem conduzir à negação da gravidade dos casos, revitimização, respostas negativas relacionadas à sexualidade infantil e consideração da violência sexual como doença (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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).

Embora tendam a serem sólidas e cristalizadas, as crenças podem ser modificadas. Para tal, é necessário que sejam identificadas e questionadas quanto a sua validade mediante exposição de conhecimentos. Tendo em vista que as crenças influenciam a prática de professores (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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), é importante sua identificação referente a fenômenos que fazem parte do seu cotidiano. Na literatura brasileira, parece haver escassez de estudos acerca das crenças de professores sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. Tal escassez pode ser explicada parcialmente pela falta de um instrumento específico para investigação de crenças sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. No entanto, recentemente, foi publicado um estudo com evidências de validade de uma Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS), de origem portuguesa e adaptada ao contexto brasileiro (Pereira et al., 2019Pereira, C. A., Maciel, S. C., Dias, C. C. V., Alexandre, T. M. O., Oliveira, M. X., & Pimentel, C. E. (2019). Validação da Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS) no Contexto Brasileiro. Psico-USF, 24(1), 145-158. doi: https://doi.org/10.1590/1413-82712019240112
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). Dessa forma, objetivou-se investigar as crenças de professores do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas brasileiras acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes, bem como possíveis diferenças, entre grupos, nas crenças.

Método

Foi realizado um estudo quantitativo, transversal, de delineamento tipo survey.

Participantes

Participaram 164 professores de ensino fundamental e médio, sendo 82% de escolas públicas, 12% privadas e 6% que atuavam em escolas públicas e privadas, com predominância do Estado do Rio Grande do Sul (88,5%). Os professores possuíam idades entre 20 e 60 anos (M = 42,40; DP = 9,63), sendo 88% (n = 144) do gênero feminino, 88% (n = 144) brancos, 72% (n = 118) casados ou em união estável, 68% (n = 111) com um a dois filhos, 57% (n = 93) com renda entre um e três salários mínimos. Noventa e oito porcento (n = 161) possuía curso superior completo, 86% (n = 141) especialização, sendo as titulações mais altas o mestrado (n = 20; 12%) e o doutorado (n = 5; 3%). Do total, 74% (n = 122) dos professores não participaram de cursos ou palestras específicas sobre violência sexual contra crianças e adolescentes e 52% (n = 86) tiveram suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente escolar que trabalham. Em relação ao conhecimento do artigo 13 do ECA, 53% (n = 87) dos participantes relataram conhecê-lo.

Instrumentos

  • Ficha de dados sociodemográficos e laborais: Desenvolvida para esta pesquisa para caracterizar os participantes. Questões referentes à idade, gênero, formação, anos de experiência, participação em cursos ou palestras específicas sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente escolar e conhecimento do artigo 13 do ECA foram investigadas.

  • Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS): A versão original, de origem portuguesa, possui 17 itens, que estão divididos em três fatores: legitimação do abuso pela sedução infantil; legitimação pela ausência de violência; e a crença de que o abuso não existe quando o ofensor não corresponde a um estereótipo pré-definido (Ladeiro, 2014Ladeiro, C. (2014). Percepção e valoração do diagnóstico de abuso sexual em crianças e adolescentes pelos profissionais de enfermagem (Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto). Recuperado de https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/77713
    https://repositorio-aberto.up.pt/handle/...
    ). A escala foi adaptada para o Brasil por Pereira et al. (2019Pereira, C. A., Maciel, S. C., Dias, C. C. V., Alexandre, T. M. O., Oliveira, M. X., & Pimentel, C. E. (2019). Validação da Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS) no Contexto Brasileiro. Psico-USF, 24(1), 145-158. doi: https://doi.org/10.1590/1413-82712019240112
    https://doi.org/10.1590/1413-82712019240...
    ). A versão brasileira, validada com uma amostra de estudantes universitários, possui 11 itens e um único fator, apresentando alfa de Cronbach de 0,88. Os itens da ECAS são respondidos por meio de uma escala Likert de cinco pontos, que variam de 1 (Discordo totalmente) a 5 (Concordo totalmente). A ECAS fornece uma medida genérica de tolerância/legitimação da violência sexual contra crianças e adolescentes. As pontuações na escala podem variar de 11 a 55 sendo que, quanto maior a pontuação, maior o grau de tolerância/legitimação com algo que é ilícito (i. e., a violência sexual contra crianças e adolescentes). Os itens da ECAS consistem em afirmações como “As crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor” e “A maioria das queixas de abuso sexual são falsas.” O alfa de Cronbach da escala neste estudo foi de 0,92.

Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Meridional - CEP/IMED sob CAAE nº 16444819.6.0000.5319. Para participar da pesquisa, os professores necessitavam estar de acordo com critérios de inclusão, ou seja, professor de ensino fundamental ou médio, de escolas públicas ou privadas, com no mínimo dois anos de atuação, considerando que, em dois anos, o professor teve contato com mais de uma turma, permitindo vivenciar situações distintas em seu ambiente de trabalho. Quanto aos critérios de exclusão, optou-se em não incluir na pesquisa professores que, no último semestre de trabalho, solicitaram afastamento por motivo de saúde física ou mental, devido considerar que o profissional após retomar suas atividades poderia estar sensível emocionalmente aos questionamentos que foram realizados no questionário de pesquisa sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. Ao todo 25 profissionais não deram continuidade no questionário ao se depararem com a primeira afirmativa “Eu sou professor/a de escolas públicas e/ou privadas, com no mínimo dois anos de atuação e não tive afastamento por motivos de saúde física e/ou mental no último semestre.”

O formulário foi disponibilizado no Google Formulários contendo os instrumentos de pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para avaliação prévia de quatro pesquisadores com experiência em pesquisas online e quatro professoras de ensino fundamental e médio, todos selecionados por conveniência. As professoras que avaliaram a versão inicial do formulário não participaram da pesquisa. Após avaliação prévia, alguns ajustes conforme a sugestão dos profissionais foram realizadas no questionário sociodemográfico e laboral, como, por exemplo, a inclusão da opção de resposta “Outro” nas perguntas sociodemográficas relacionadas a gênero e estado civil, bem como na questão referente à salário e cor de pele a inclusão da opção “Prefiro não responder”.

Em seguida, após os procedimentos realizados, o formulário de coleta de dados foi disponibilizado para acesso e divulgado via e-mail entre a rede de contato dos pesquisadores, por meio de postagens em redes sociais e contatos via WhatsApp. O formulário ficou disponível por aproximadamente 50 dias, entre os meses de agosto e outubro de 2019 e foi encerrado quando não houve mais respostas. Após a conclusão da pesquisa, foi realizado um levantamento das respostas a fim de descrever os resultados obtidos, utilizando o software SPSS. As diretrizes éticas para pesquisas com seres humanos foram atendidas conforme as resoluções 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde, 2012Conselho Nacional de Saúde (2012). Resolução 466/2012. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
) e 510/2016 (Conselho Nacional de Saúde, 2016Conselho Nacional de Saúde (2016). Resolução 510, de 7 de abril de 2016. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
).

Análise de Dados

A fim de responder aos objetivos do estudo, foram realizadas análises descritivas (médias e desvios padrão) e de frequência. Além disso, teste U de Mann-Whitney foi realizado com o intuito de verificar possíveis diferenças nas crenças (medida geral) e por afirmativa entre grupos (gênero, faixa etária, presença de filhos, participação em curso e conhecimento a respeito do artigo 13 do ECA). Análise de Kruskall-Wallis foi realizada para comparar as crenças entre professores de que atuam 1) escola privada, 2) escola pública e 3) escola pública e privada. Os testes de normalidade (Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk) demonstraram que as crenças não apresentavam uma distribuição normal (p < 0,05) e, portanto, foi utilizado teste não paramétrico. Nos resultados estatisticamente significativos, considerando p < 0,05, teste de tamanho de efeito foi realizado, considerando o cálculo Z/√N e os seguintes parâmetros de interpretação: tamanho de efeito nulo ou irrisório (valor 0,00 - 0,10), fraco (valor 0,11-0,25), moderado (valor 0,30-0,49), forte (0,50; Cohen, 1988Cohen, J. (1988). Statistical power analysis for the behavioral sciences (2nd ed.). Hillsdale, NJ: Lawrence Earlbaum Associates.).

Resultados

A média de pontuação na ECAS foi de 25,74 (DP = 6,83), sendo que a mediana foi 24. A pontuação mínima 17 e a máxima 45 pontos. A média de 25,74 posiciona, na escala Likert de cinco pontos, entre as opções “Discordo” e “Não concordo, nem discordo”. A pontuação mínima obtida (17) indica posicionamento entre “Discordo totalmente” e “Discordo”, enquanto a pontuação máxima obtida (45) indica posicionamento entre “Concordo” e “Concordo totalmente”. Ainda que, quanto maior a pontuação, maior o grau de tolerância/legitimação da violência sexual contra crianças e adolescentes, é preciso levar em consideração que duas opções de resposta (i. e., “Discordo totalmente” e “Discordo”), embora possuam pontuação, não indicam concordância com o enunciado e sugerem não tolerância/legitimação da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Tendo em vista que a média não é representativa devido ao tamanho amostral e a não normalidade na distribuição das variáveis, optou-se por verificar a mediana (Md = 24), que se aproximou da média. Sendo assim, buscou-se a porcentagem, para cada afirmativa das respostas na escala Likert, com o objetivo de melhor caracterizar o posicionamento dos professores em relação a tolerância/legitimação da violência sexual. Conforme pode ser visto na Tabela 1, as maiores porcentagens para cada afirmativa foram nas respostas “Discordo totalmente” e “Discordo” indicando não tolerância/legitimação. As menores porcentagens foram nas respostas “Nem concordo, nem discordo” e “Concordo”, enquanto a opção “Concordo totalmente”, que indica alguma tolerância/legitimação da violência sexual, não teve frequência alguma.

Tabela 1
Porcentagem de Respostas para cada Afirmativa

A análise de diferença entre grupos - gênero (feminino e masculino), faixas etárias, professores com e sem filhos, professores que já suspeitaram de violência sexual e que não suspeitaram, que já realizaram cursos ou palestras sobre violência sexual contra crianças e adolescentes e os que não realizaram e entre aqueles que conheciam o artigo 13 do ECA e os que o desconheciam - por meio do teste U de Mann-Whitney indicou haver diferenças nas crenças. Mulheres, professoras mais velhas e aquelas com filhos apresentaram maior pontuação na escala sendo, portanto, mais tolerantes à violência sexual contra crianças e adolescentes, com tamanho de efeito que variou de fraco a moderado (Tabela 2). Por sua vez, teste de Kruskall-Wallis indicou não haver diferenças estatisticamente significativas nas crenças de professores que atuam em escolas públicas, privadas e escolas públicas e privadas (H = 0,506, p = 0,78).

Tabela 2
Diferenças no Valor Total da ECAS por Grupos

A análise das crenças a partir de cada afirmativa da ECAS também foi realizada comparando-se os gêneros (masculino e feminino), professores mais jovens e mais velhos e com ou sem filhos. No geral, os resultados indicaram haver diferenças estatisticamente significativas, por grupos, em algumas afirmativas. O tamanho de efeito das diferenças variou de fraco a moderado (0,15 a 0,30).

As mulheres apresentaram maiores pontuações nas seguintes afirmativas: “Os abusadores são pessoas que parecem diferentes das pessoas normais” (U = 1028,000, p = 0,04), “As crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor” (U=1038,000, p = 0,05), “Se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente o abuso é pouco grave” (U = 1036,000, p = 0,03), “Só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente” (U = 970,500, p = 0,01) e “A maioria das queixas de abuso sexual são falsas” (U= 1009,000, p = 0,03).

Professores mais velhos pontuaram mais que as/os mais novas/os nas seguintes afirmativas: “As crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor” (U = 2464,500, p < 0,01), “Só se pode falar de abuso quando há violência” (U = 2716,500, p = 0,02), “Se uma criança/adolescente só se queixa do abuso muito mais tarde, então ele provavelmente não existiu” (U = 2460,500; p < 0,01), “As adolescentes levam os homens mais velhos a abusar delas” (U = 2338,000, p < 0,01), “Só com crianças pequenas é que se pode falar de abuso” (U = 2507,000, p < 0,01), “Se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente o abuso é pouco grave” (U = 2558,000, p < 0,01), “Só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente” (U = 2597,500, p < 0,01) e “Se não houver penetração, então o abuso é pouco grave” (U = 2644,500, p < 0,01).

Os professores com filhos pontuaram mais nas seguintes afirmativas: “As crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor” (U = 1588,000, p < 0,01), “Só se pode falar de abuso quando há violência” (U = 1674,000, p < 0,01), “Se uma criança/adolescente só se queixa do abuso muito mais tarde, então ele provavelmente não existiu” (U = 1650,500, p < 0,01), “As adolescentes levam os homens mais velhos a abusar delas” (U = 1714,000, p < 0,01), “Só com crianças pequenas é que se pode falar de abuso” (U = 1595,000, p < 0,01), “Se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente o abuso é pouco grave” (U = 1560,000, p < 0,01), “Só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente” (U = 1704,000, p < 0,01) e “Se não houver penetração, então o abuso é pouco grave” (U = 1586,500, p < 0,01).

Discussão

O objetivo deste estudo foi o de investigar as crenças de professores do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas brasileiras acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes e possíveis diferenças, entre grupos, nas crenças. Na amostra de 164 professores obteve-se a média de 25,74 pontos na ECAS, indicando que, de maneira geral, há uma maior predominância de respostas de discordância em relação às afirmativas. A partir disso, é possível afirmar que, no geral, professores não toleram/legitimam a violência sexual. Em menor número, mas não desprezível, há algumas respostas que remetem a posições “neutras” (i.e., “Nem concordo nem discordo”) à tolerância/legitimação da violência sexual.

A escala utilizada foi recentemente adaptada ao contexto brasileiro em um estudo com universitários (Pereira et al., 2019Pereira, C. A., Maciel, S. C., Dias, C. C. V., Alexandre, T. M. O., Oliveira, M. X., & Pimentel, C. E. (2019). Validação da Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS) no Contexto Brasileiro. Psico-USF, 24(1), 145-158. doi: https://doi.org/10.1590/1413-82712019240112
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), sendo necessário mais estudos para verificar evidências de validade com públicos distintos. Além disso, a forma como a pontuação dos itens é realizada merece atenção. A ECAS fornece uma medida geral de tolerância/legitimação da violência sexual contra crianças e adolescentes. Embora se considere que quanto maior a pontuação, maior o grau de tolerância/legitimação (Pereira et al., 2019Pereira, C. A., Maciel, S. C., Dias, C. C. V., Alexandre, T. M. O., Oliveira, M. X., & Pimentel, C. E. (2019). Validação da Escala de Crenças sobre Abuso Sexual (ECAS) no Contexto Brasileiro. Psico-USF, 24(1), 145-158. doi: https://doi.org/10.1590/1413-82712019240112
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), dadas as opções de resposta (i.e., “1. Discordo totalmente”, “2. Discordo”, “3. Não concordo nem discordo”, “4. Concordo” e “5. Concordo totalmente”), é possível perceber que a tolerância/legitimação estará presente somente a partir da opção 3 de resposta, o que equivale a pontuações mínimas de 33 pontos. Ainda, há de se ter atenção à afirmativa “Se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente o abuso é pouco grave” que, na escala original, pode indicar “machucado”, como o termo “magoado” é compreendido em Portugal, país de origem da escala. Já no Brasil, “magoado” refere-se mais aos aspectos emocionais do que físicos. Tendo em vista esses aspectos, é necessária atenção ao se interpretar os resultados da escala, considerando suas nuances e limitações.

Para que a escola e os professores cumpram com seu papel protetivo, é preciso que haja conhecimento das situações de risco que crianças e adolescentes podem enfrentar. O conhecimento, além de capacitá-los para as ações que devem ser adotadas, é necessário para que crenças distorcidas possam ser modificadas. Embora a média geral obtida pelos professores na ECAS esteja mais próxima à opção “Discordo”, ela se situou entre essa opção e a opção “Nem concordo nem discordo”, indicando uma posição neutra. Por afirmativa, o percentual de respostas nessas posições, embora baixo (de 1 a 3%) pode sugerir uma crença distorcida a respeito da violência sexual ou uma posição de indiferença. Tal posição é preocupante ao se considerar o papel que cada professor ocupa em cada turma, dada importância dessa figura enquanto um adulto de referência para muitas crianças e adolescentes e seu papel de poder tornar pública uma informação privada, rompendo com o ciclo da violência sexual (Santos, 2011Santos, B. R. dos (2011). Guia escolar: Identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Recuperado de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000016936.pdf
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). De fato, as crenças distorcidas a respeito da realidade da violência sexual podem fazer com que as/os professoras/es não notifiquem, indo de encontro ao que indica o ECA (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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), o qual refere que professores devem notificar, preferencialmente o Conselho Tutelar (CT), casos de suspeita e confirmação de qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes.

Dessa forma, é necessário o investimento em formação continuada para professores visando corrigir crenças distorcidas e capacitá-los para atuação. A falta de conhecimento e capacitação é constantemente indicada nos estudos acerca da atuação de professores em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (Allen et al., 2019Allen, K. P., Livingston, J. A., & Nickerson, A. B. (2019). Child sexual abuse prevention education: A Qualitative study of teachers’ experiences implementing the Second Step Child Protection Unit. American Journal of Sexuality Education, 1-28. doi: https://doi.org/10.1080/15546128.2019.1687382
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; Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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b; Cascardo & Gallo, 2018Cascardo, G. M., & Gallo, A. E. (2018). Mapeamento do conhecimento de professores sobre violência intrafamiliar. Psicologia da Educação, 46, 31-39. doi: https://doi.org/10.5935/2175-3520.20180004
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; Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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; Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/69...
; Santos, 2011Santos, B. R. dos (2011). Guia escolar: Identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Recuperado de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000016936.pdf
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).

Por meio do investimento em formação continuada, é possível diminuir crenças errôneas em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes. Estas colaboram para respostas negativas em relação à sexualidade infantil, vitimização e negação da gravidade da violência sexual (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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). As ações de formação continuada devem ser dirigidas não somente aos professores, mas a todos os integrantes da comunidade escolar (Pelisoli & Piccoloto, 2010Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., & Dell’Aglio, D. D. (2010). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Dados de um serviço de referência. Temas em Psicologia , 18(1), 85-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v18n1/v18n1a08.pdf
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; Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
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) já que os professores necessitam de apoio de seus gestores para a condução das ações de proteção cabíveis (e.g., notificação). Além disso, a participação de pais, mães e cuidadores é indicada (Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
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).

Estudos específicos sobre crenças de professores acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes são escassos tanto em nível nacional quanto internacional. Nos estudos encontrados (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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; Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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), as crenças dos professores foram investigadas a partir de estudos descritivos qualitativo (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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) e quantitativo (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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). Em nenhum deles, buscou-se investigar a possível relação entre as crenças e as diferenças em relação ao gênero, idade, formação etc.

No presente estudo, mulheres, professores mais velhos e aqueles que possuem filhos obtiveram maior pontuação na escala apresentando, portanto, crenças mais tolerantes à violência sexual contra crianças e adolescentes ou indicando uma posição neutra em relação às situações. Embora os tamanhos de efeito entre os grupos tenham variado de fraco a moderado, as diferenças encontradas permitem que algumas considerações sejam feitas.

Os resultados da comparação entre professoras (mulheres) e professores (homens) necessitam ser analisados com cautela devido à disparidade no número de cada grupo (i.e., 144 mulheres e 19 homens). No entanto, a maior tolerância ou posição neutra em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes por mulheres pode ser explicada de acordo com estereótipos de gênero tendo em vista que crenças pessoais são formadas a partir do contexto cultural (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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).

Aspectos socioculturais como o machismo a que mulheres e professores mais velhos foram expostos ao longo da vida podem contribuir, em alguma medida, para a apresentação de crenças mais tolerantes à violência sexual contra crianças e adolescentes. A discussão dos papéis de gênero tem sido mais frequente nas últimas décadas. No entanto, pessoas com mais idade podem ter sido educadas em um contexto sócio-histórico no qual expressões do machismo eram mais frequentes e pouco questionadas, as fazendo desenvolver crenças menos flexíveis acerca dos papéis de gênero e da violência. Isso pode influenciar, por exemplo, percepções acerca da culpabilização da vítima. Supõe-se, portanto, que mulheres com mais idade apresentaram níveis mais elevados de crenças de tolerância à violência devido aos aspectos socioculturais aos quais foram submetidas. É possível que gerações mais novas estejam mais conscientes de questões como papéis de gênero, machismo e violência devido ao debate mais frequente em torno desses temas.

O conceito de crenças aplicado aos professores costuma ser o de formulações simbólicas individuais produzidas a partir do contexto cultural (e.g., rotina de trabalho, linguagem). Dessa forma, as crenças conferem “certezas” ao indivíduo, não necessitando de comprovações para serem aceitas. Devido a isso, tendem a se tornar sólidas e cristalizadas com o passar do tempo (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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). A passagem do tempo, portanto, parece fortalecer crenças pessoais, o que pode explicar o resultado deste estudo no tocante a professores mais velhos apresentarem maiores escores na ECAS, indicando maior tolerância ou neutralidade em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes, o que é preocupante. Além disso, os professores mais novos podem legitimar menos a violência sexual, quando comparados aos mais velhos, devido a possíveis aprendizados sociais de gerações passadas que determinavam diferenças acentuadas de gênero estabelecendo lugares de poder e submissão a homens e mulheres/adultos e crianças. Além disso, nas últimas décadas, é perceptível que a discussão de violações de direitos é mais frequente em cursos de formação profissional. No entanto, esses aspectos não foram diretamente investigados neste estudo, não sendo possível afirmar que esse seja o caso.

Questões relacionadas à sexualidade ainda são percebidas social e culturalmente como tabus (Biasus, Demantova, & Camargo, 2011Biasus, F., Demantova, A., & Camargo, B. V. (2011). Representações sociais do envelhecimento e da sexualidade para pessoas com mais de 50 anos. Temas em Psicologia, 19(1), 319-336. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v19n1/v19n1a25.pdf
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) e a violência sexual é uma ramificação do tema sexualidade. Embora a discussão sobre a sexualidade tenha se tornado mais frequente nos últimos anos, é possível que professores mais velhos possuam crenças cristalizadas acerca do tema, refletindo entendimentos rígidos e dicotomizados acerca dos papéis de homem e mulher, adulto e criança/adolescente. Mesmo que sejam sólidas e cristalizadas, as crenças podem ser modificadas mediante exposição de conhecimentos (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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), indicando a necessidade de investimentos em formação para professores em relação ao tema.

Em um estudo israelense, foram constatados efeitos da revelação da violência sexual dos estudantes na vida pessoal dos professores (Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
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). Efeitos físicos e psicológicos foram descritos, bem como impactos na percepção sobre parentalidade e relacionamento com seus próprios filhos. Uma professora, inclusive, indicou que sua decisão de não ter filhos foi por conta do impacto que as revelações feitas pelos seus estudantes tiveram sobre ela. Embora indicado como um caso extremo, os autores consideraram que as histórias de violência sexual com as quais professoras/es se deparam podem afetar as perspectivas sobre suas vidas pessoais (Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
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). Por outro lado, é possível cogitar que a presença de filhos pode impactar a forma como a violência sexual contra crianças e adolescentes é encarada. Embora se cogitasse que a presença de filhos pudesse refletir em uma pontuação mais baixa na escala, indicando menor tolerância da violência, o contrário foi verificado neste estudo.

Tendo em vista se tratar de uma das formas mais graves de violência contra crianças e adolescentes, professores com filhos podem se distanciar do assunto como uma forma de proteção e até mesmo negação. É possível cogitar que a presença de filhos possa aumentar o desconforto pessoal relacionado ao tema, não permitindo que se busque conhecimento e, assim, perpetuando crenças errôneas. O desconforto pessoal com o tema é considerado um obstáculo ao adequado manejo das situações de violência sexual por professoras/es (Allen et al., 2019Allen, K. P., Livingston, J. A., & Nickerson, A. B. (2019). Child sexual abuse prevention education: A Qualitative study of teachers’ experiences implementing the Second Step Child Protection Unit. American Journal of Sexuality Education, 1-28. doi: https://doi.org/10.1080/15546128.2019.1687382
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). Embora seja considerado um provável obstáculo, o desconforto pessoal pode não implicar um obrigatório distanciamento do tema. Dessa forma, professores, mesmo desconfortáveis com o tema, podem adquirir conhecimento e capacitação adequados de forma a estarem aptos para o manejo de situações como a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Estratégias de formação e capacitação devem ser sensíveis às peculiaridades dos participantes uma vez que certas características (e. g., ter ou não filhos) podem ter influência nos profissionais. Trata-se, portanto, de uma tarefa complexa, uma vez que o envolvimento com o assunto pode influenciar na vida pessoal, bem como aspectos da vida pessoal podem influenciar a percepção sobre a violência sexual.

Ao se analisar as afirmações da ECAS que cada grupo mais pontuou, três foram comuns às professoras mulheres, aos professores mais velhos e com filhos, sendo elas: “As crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor”, “Se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente, o abuso é pouco grave” e “Só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente.” Acreditar que as crianças são seres sexuais e provocam atração sexual, que a violência sexual sempre é violenta e que crianças podem consentir ao não resistir à violência sexual são considerados mitos (Sanderson, 2005Sanderson, C. (2005). Abuso sexual em crianças: Fortalecendo pais e professores para proteger crianças contra abusos sexuais e pedofilia. (F. de Oliveira, Trad). São Paulo: M. Books do Brasil.).

Crianças e adolescentes estão em fase peculiar de desenvolvimento e necessitam de proteção (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). A infância e a adolescência são fases marcadas pelo desenvolvimento físico, cognitivo, psicológico e social. Crianças e adolescentes dependem, em grande medida, de adultos para que se desenvolvam de forma plena (Dessen & Polônia, 2007Dessen, M. A., & Polônia, A. C. (2007). A família e a escola como contextos de desenvolvimento humano. Paidéia (Ribeirão Preto), 17, 21-32. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-863X2007000100003
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). Cabe aos adultos ensiná-las e protegê-las diante de sua vulnerabilidade. No entanto, alguns adultos se valem dessa vulnerabilidade para cometer violências. Considerar que crianças seriam sedutoras e deveriam resistir à violência sexual são formas de estigmatização e culpabilização das vítimas classicamente descritas pela literatura da área (Finkelhor & Browne, 1985Finkelhor, D., & Browne, A. (1985). The traumatic impact of child sexual abuse: A conceptualization. American Journal of Orthopsychiatry, 55(4), 530-541. doi: https://doi.org/10.1111/j.1939-0025.1985.tb02703.x
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). Em um estudo qualitativo nacional, crenças inadequadas sobre sedução infantil também foram evidenciadas nos relatos de professoras (“Mudou, ela ficou, eu não sei se ela gostou, porque ela ficou mais atirada, sabe, com roupas decotadas.”, “E ela é bonitinha, ela tem corpinho de moça, já.” (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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, p. 124). Os mitos de que “crianças podem provocar o abuso pelo seu comportamento sedutor” e que “só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente” evidenciam a transferência de responsabilidade pela violência para a vítima, negando tratar-se de indivíduo que requer proteção devido à vulnerabilidade inerente à faixa etária.

Crenças como “só se pode falar de abuso se a criança/adolescente resistir fisicamente”, “se o abusador não tiver magoado a criança/adolescente, o abuso é pouco grave” denotam desconhecimento sobre o conceito de violência sexual e suas possíveis consequências. Existem formas dessa violência sem contato físico e casos graves mesmo que sem associação à violência física. A crença inadequada de que a maior parte das situações de violência sexual contra crianças e adolescentes envolve comportamento físico violento também foi evidenciada em um estudo com 450 professores espanhóis (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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). Diante disso, é necessário que o conceito de violência sexual contra crianças e adolescentes, formas comuns de ocorrência e suas consequências sejam conteúdos abordados em estratégias de formação e capacitação profissional.

Embora se esperasse que a experiência com o manejo de casos de suspeita de violência sexual, a realização de cursos ou palestras sobre o assunto, o tipo de escola que atua e o conhecimento do artigo 13 do ECA pudessem ter alguma relação com as crenças, a comparação entre grupos indicou não haver diferença na pontuação da ECAS. Embora não tenha sido foco deste estudo o conhecimento das estratégias de manejo adotadas pelos professores, é possível cogitar que a experiência com casos por si só possa não alterar crenças e, até mesmo, reforçar crenças prévias distorcidas uma vez que elas geralmente são utilizadas para explicar genericamente diferentes situações e conferem segurança ao determinarem o pensamento e a ação dos indivíduos (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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).

A realização de cursos ou palestras sobre o assunto não ter influenciado as crenças dos professores dessa amostra permite que sejam tecidas considerações sobre tais estratégias de formação e capacitação. Sabe-se que a mudança de crença é um processo complexo e contínuo, que depende de diferentes fatores. Dentre estes, a carência de estratégias de formação continuada para professores em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes merece destaque.

O Brasil contava com um projeto de capacitação continuada chamado Escola que Protege. Lançado em 2004, o projeto era voltado a “profissionais de educação para atuar em prevenção, atenção e reinserção social e educacional de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade nas áreas de violência física e/ou psicológica, negligência/abandono, violência sexual, exploração sexual comercial [...] e exploração do trabalho infantil” (Santos, 2011Santos, B. R. dos (2011). Guia escolar: Identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Recuperado de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000016936.pdf
http://portaldoprofessor.mec.gov.br/stor...
). O projeto foi elaborado pelo Ministério da Educação e era executado em parceria com universidades públicas por meio de ações de extensão e oferta de cursos gratuitos (Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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). Informações atuais sobre o projeto não foram encontradas. É possível cogitar que, diante dos cortes orçamentários promovidos nos últimos anos no país, o projeto tenha sido enfraquecido ou, até mesmo, desativado.

Embora se cogitasse que o tipo de escola poderia ter alguma influência nas crenças de professores que atuam em escolas públicas, privadas e escolas públicas e privadas, verificou-se, na amostra estudada, ausência de diferença. Sendo assim, é possível que fatores pessoais e culturais se sobressaiam na constituição e manutenção de crenças sobre violência sexual. Diante disso, mais uma vez, salienta-se a necessidade de trabalhar ações de formação que levem em consideração tais fatores.

Por fim, o conhecimento do artigo 13 do ECA, que indica a obrigatoriedade da notificação diante de casos suspeitos e/ou confirmados de violação de direitos de crianças e adolescentes, também não influenciou a pontuação na ECAS. Embora muito importante, é compreensível que apenas um artigo de uma lei não exerça influência sob as crenças. Além disso, é preciso considerar que apenas 53% (n = 87) dos professores participantes conhecia o artigo 13 do ECA, bem como 74% (n = 138) não participaram de cursos ou palestras sobre o tema, evidenciando, mais uma vez, a necessidade de fomentar estratégias de formação continuada para este público.

Considerações Finais

Os professores possuem papel importante na identificação e notificação de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (Bergström et al., 2016Bergström, H., Eidevald, C., & Westberg-Broström, A. (2016). Child sexual abuse at preschools - A research review of a complex issue for preschool professionals. Early Child Development and Care, 186(9), 1520-1528. doi: https://doi.org/10.1080/03004430.2015.1121253
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; Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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; Pelisoli & Picoloto, 2010Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., & Dell’Aglio, D. D. (2010). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Dados de um serviço de referência. Temas em Psicologia , 18(1), 85-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v18n1/v18n1a08.pdf
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; Santos et al., 2018Santos, W. R. C., Santos, R. A. dos, Neves, J. D. de V., & Oliveira, M. do V. (2018). O papel da escola para o enfrentamento da violência sexual contra crianças nos discursos de professores do Ensino Fundamental em Augusto Corrêa-PA. @rquivo Brasileiro de Educação, 6(14), 114-154. doi: https://doi.org/10.5752/P.2318-7344.2018v6n14p114-154
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). Embora esforços sejam feitos, a escola ainda não cumpre seu papel protetivo de forma efetiva (Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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). Fatores como o tabu social em torno da sexualidade (Brino & Williams, 2003bBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003b). Capacitação do educador acerca do abuso sexual infantil. Interação em Psicologia, 7(2). doi: https://doi.org/10.5380/psi.v7i2.3218
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), a falta de conhecimento e formação (Allen et al., 2019Allen, K. P., Livingston, J. A., & Nickerson, A. B. (2019). Child sexual abuse prevention education: A Qualitative study of teachers’ experiences implementing the Second Step Child Protection Unit. American Journal of Sexuality Education, 1-28. doi: https://doi.org/10.1080/15546128.2019.1687382
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; Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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bBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003b). Capacitação do educador acerca do abuso sexual infantil. Interação em Psicologia, 7(2). doi: https://doi.org/10.5380/psi.v7i2.3218
https://doi.org/10.5380/psi.v7i2.3218...
; 2008Brino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2008). Professores como agentes de prevenção do abuso sexual infantil. Educação & Realidade, 33(2), 209-229. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=317227052014
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=3...
; Cascardo & Gallo, 2018Cascardo, G. M., & Gallo, A. E. (2018). Mapeamento do conhecimento de professores sobre violência intrafamiliar. Psicologia da Educação, 46, 31-39. doi: https://doi.org/10.5935/2175-3520.20180004
https://doi.org/10.5935/2175-3520.201800...
; Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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; Rocha et al., 2011Rocha, G. O. R. da, Lemos, F. C., & Lirio, F. C. (2011). Enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil: Políticas públicas e o papel da escola. Cadernos de Educação, 38, 259-87. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/d8e1/699691dcb6b741b111a052f19e38745e04cf.pdf
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; Santos, 2011Santos, B. R. dos (2011). Guia escolar: Identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Recuperado de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000016936.pdf
http://portaldoprofessor.mec.gov.br/stor...
) e crenças pessoais (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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; Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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) costumam ser indicados nos estudos da área. Embora as crenças sejam indicadas, parece haver grande escassez de estudos sobre elas, tendo sido encontrados um estudo nacional (Brino & Williams, 2003aBrino, R. de F., & Williams, L. C. de A. (2003a). Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa, 119(1), 113-128. doi: https://doi.org/10.1590/s0100-15742003000200006
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) e um internacional (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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). Assim, é possível considerar que o presente estudo contribui para a literatura da área ao investigar as crenças de professoras/es e possíveis variáveis relacionadas.

Embora a média de pontuação na ECAS tenha sido de 25,74, posicionando a amostra, na escala Likert de cinco pontos, entre as opções “Discordo” e “Não concordo, nem discordo”, qualquer posicionamento diferente do “Discordo totalmente” e do “Discordo” merece atenção, ainda mais ao se considerar o valor máximo obtido na amostra (i.e., 45 - entre “Concordo” e “Concordo totalmente”). Ainda que a média não seja representativa devido ao tamanho amostral e a não normalidade na distribuição das variáveis, a mediana teve valor semelhante (Md = 24). Além disso, verifica-se, a partir dos percentuais de respostas por afirmativa, que, pelo menos, um professor concordou ou mostrou-se neutro em alguma crença.

Ao considerar a importância de um professor na vida de uma criança e adolescente e que muitos relatos ocorrem em contexto escolar, qualquer concordância ou neutralidade, independentemente do percentual, torna-se preocupante. Considera-se que crenças influenciam ações (Soares & Bejarano, 2008Soares, I. F., & Bejarano, N. R. (2008). Crenças dos professores e formação docente. Revista Entreideias: Educação, cultura e sociedade, 13(14), 55-71. doi: https://doi.org/10.9771/2317-1219rf.v13i14.3024
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), podendo conduzir à negação da gravidade dos casos, revitimização e respostas negativas relacionadas à sexualidade infantil (Márquez-Flores et al., 2016Márquez-Flores, M. M., Márquez-Hernández, V. V., & Granados-Gámez, G. (2016). Teachers’ knowledge and beliefs about child sexual abuse. Journal of Child Sexual Abuse, 25(5), 538-555. doi: https://doi.org/10.1080/10538712.2016.1189474
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) indicando a urgência de que essas crenças sejam consideradas em ações de formação continuada. A partir dos resultados do presente estudo, é possível perceber algumas crenças mais presentes nos grupos comparados e que certas características pessoais podem influenciar a percepção acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes. Assim, considera-se que a abordagem do tema da violência sexual é complexa e requer cuidadoso planejamento levando em conta o perfil do público-alvo de estratégias de formação continuada.

É necessário que as limitações deste estudo sejam consideradas. Embora tenha se realizado extensa divulgação da pesquisa e a coleta de dados tenha se estendido por quase dois meses, o número de participantes foi baixo e a maioria da amostra foi proveniente de um único estado, o que pode enviesar as análises estatísticas realizadas, bem como impediu a realização de análises mais robustas. À guisa de exemplo, não foi possível verificar se a escolaridade influenciava as crenças devido a pouca variabilidade da amostra. Ademais, é possível que os professores que responderam ao questionário online sejam aqueles mais interessados no assunto, o que pode influenciar os resultados. Cogita-se que professores com menos interesse ou até mesmo com crenças mais distorcidas sobre violência sexual contra crianças e adolescentes possam não ter interesse em participar de pesquisas sobre o assunto. Assim, estudos futuros com amostras maiores e mais variadas são necessários. É necessário incluir outros integrantes da comunidade escolar, uma vez que a proteção das crianças e adolescentes é tarefa de todos (Pelisoli & Picoloto, 2010Pelisoli, C., Pires, J. P. M., Almeida, M. E., & Dell’Aglio, D. D. (2010). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Dados de um serviço de referência. Temas em Psicologia , 18(1), 85-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v18n1/v18n1a08.pdf
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; Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
https://doi.org/10.1016/j.childyouth.201...
), e os professores podem sentirem-se solitários ao se depararem com revelações (Tener & Sigad, 2019Tener, D., & Sigad, L. (2019). “I felt like I was thrown into a deep well”: Educators coping with child sexual abuse disclosure. Children and Youth Services Review, 106, 104465. doi: https://doi.org/10.1016/j.childyouth.2019.104465
https://doi.org/10.1016/j.childyouth.201...
). Diante disso, é necessário fortalecer a comunidade escolar por meio de estratégias de formação, bem como fomentar sua integração à rede de proteção, visando a realização de intervenções conjuntas.

Tendo em vista que a ECAS é, até o momento, a única escala de crenças sobre violência sexual contra crianças e adolescentes adaptada ao Brasil com evidências de validade, é possível que novos estudos sobre o assunto sejam conduzidos com essa escala. Para tal, é necessário atentar-se às afirmativas da escala e seu formato de resposta. Por ser uma adaptação recente, futuros estudos psicométricos com a escala podem ter como foco a readequação das alternativas de resposta, principalmente em relação à pontuação da primeira (i.e., “Discordo totalmente”), que poderia ter pontuação zero. Além disso, a revisão do uso da palavra “magoado” em uma das afirmativas também poderá ser realizada, tendo em vista os significados distintos dessa palavra no português do Brasil e de Portugal.

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Nota dos autores:

  • Estudo realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), por meio do edital 01/2017 - Apoio a Recém Doutor (ARD), e da Fundação IMED, por meio de bolsa produtividade concedida ao terceiro autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2020
  • Revisado
    19 Maio 2021
  • Aceito
    02 Ago 2021
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