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Trânsito religioso e construções identitárias: mobilidade social de evangélicos neopentecostais

Religious transit and identity constructions: social mobility of neo-pentecostal evangelicals

Resumos

O trânsito religioso do brasileiro pode ser compreendido como a mobilidade social de pessoas que encontram em um novo grupo características que desejam compartilhar. Para compreender este fenômeno e suas implicações, entrevistamos 20 participantes ativos de uma igreja evangélica neopentecostal. Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo por meio do software QSR N6. Os resultados indicaram que os entrevistados adotaram o novo grupo religioso como endogrupo, transformando em exogrupo o modo de vida anterior - religioso ou não. As pessoas próximas, que permaneceram em seu grupo de origem, inicialmente foram distanciadas, e depois se tornaram alvo dos participantes, os quais buscavam aproximar familiares e amigos ao seu novo endogrupo.

Religiosidade; Identidade social; Neopentecostalismo


Brazilians religious exchange can be understood as social mobility for people which find in a new group skills and thoughts they wish to share. To understand this phenomenon and its implications, we have interviewed 20 active members of a new Pentecostal church. Data were submitted to Content Analysis by the QSR N6 software. Results demonstrate that the new religious group was identified by the participants as their new in-group, and the previous one, religious or not, as their out-group. Close people which remained in the out-group initially had been kept at a distance, but then they became a target; participants try to reach family and friends to their new in-group.

Religiosity; Social identity; Neo-pentecostalism


ARTIGOS

Trânsito religioso e construções identitárias: mobilidade social de evangélicos neopentecostais

Religious transit and identity constructions: social mobility of neo-pentecostal evangelicals

Mariane Ranzani Ciscon-Evangelista; Paulo Rogério Meira Menandro

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Av. Fernando Ferrari, 514 Goiabeiras - 29075-910 - Vitória-ES E-mail: mariciscon@gmail.com

RESUMO

O trânsito religioso do brasileiro pode ser compreendido como a mobilidade social de pessoas que encontram em um novo grupo características que desejam compartilhar. Para compreender este fenômeno e suas implicações, entrevistamos 20 participantes ativos de uma igreja evangélica neopentecostal. Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo por meio do software QSR N6. Os resultados indicaram que os entrevistados adotaram o novo grupo religioso como endogrupo, transformando em exogrupo o modo de vida anterior - religioso ou não. As pessoas próximas, que permaneceram em seu grupo de origem, inicialmente foram distanciadas, e depois se tornaram alvo dos participantes, os quais buscavam aproximar familiares e amigos ao seu novo endogrupo.

Palavras-chave: Religiosidade, Identidade social, Neopentecostalismo.

ABSTRACT

Brazilians religious exchange can be understood as social mobility for people which find in a new group skills and thoughts they wish to share. To understand this phenomenon and its implications, we have interviewed 20 active members of a new Pentecostal church. Data were submitted to Content Analysis by the QSR N6 software. Results demonstrate that the new religious group was identified by the participants as their new in-group, and the previous one, religious or not, as their out-group. Close people which remained in the out-group initially had been kept at a distance, but then they became a target; participants try to reach family and friends to their new in-group.

Keywords: Religiosity, Social identity, Neo-pentecostalism.

A compreensão do indivíduo a partir da perspectiva sócio-histórica implica considerar que ele vive em ambiente que apresenta estruturação social e organização cultural que já existiam antes dele e que exercem sobre ele influências modeladoras em um processo de socialização, processo esse que se concretiza a partir das relações com seus interlocutores. Ao mesmo tempo, é possível que suas ações venham a transformar aspectos da sociedade e da cultura em que vive, indicando que está em jogo um processo que não é unidirecional, uma vez que as influências que recebe são processadas e eventualmente transformadas ou ressignificadas. Esse indivíduo está vinculado a grupos sociais cujos integrantes apresentam características próximas às suas ou com elas compatíveis, grupos esses com os quais se identifica (Licata, 2003; Tajfel, 1983). Esse mesmo indivíduo convive com outros grupos aos quais não se considera pertencente, indicando que sua identificação com tais grupos é muito distinta daquela que desenvolveu em relação aos grupos dos quais se considera partícipe, podendo chegar até mesmo a ser uma relação de completa rejeição. São vários os grupos aos quais ele estará vinculado concomitantemente, além de ter estado vinculado a outros tantos ao longo de sua vida (Tajfel, 1983). Essa multidimensionalidade da identidade permite a combinação e organização de vários de seus elementos, justapondo-os e integrando-os.

O conceito de grupo implica interdependência, uma vez que a identificação entre seus membros acontece pela comparação social (Amâncio, 1997). O grupo do qual o indivíduo faz parte não é necessariamente objetivo, mas psicológico, assim como o é a inserção do indivíduo (Souza, 2005). O membro atribui valores positivos ao grupo do qual se considera parte (endogrupo) e negativos ao grupo do qual está desvinculado (exogrupo) (Leeuwen, Kinippemberg & Ellemers, 2003; Tajfel, 1974; Verkuyten & Wolf, 2007). Tajfel (1983, p. 294) afirma que:

O conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente com o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser definidos através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social de um indivíduo no seu próprio grupo e em outros.

Para o autor, a identidade social de um indivíduo pode ser definida como a compreensão de seu próprio pertencimento a determinados grupos sociais, pertencimento esse ao qual atribui um significado emocional e de valor. Se existem grupos sociais com os quais o indivíduo se compara, se identificando ou se diferenciando, a noção de identidade surgirá da articulação entre o "igual" (entendido de forma estendida, dentro dos limites da compatibilidade) e o diferente. A comparação e a categorização social seriam as bases do processo de construção da identidade, contribuindo para que o indivíduo consiga simplificar e lidar com a realidade social complexa.

O sentimento de pertença a determinado grupo implica compartilhar crenças e atitudes e vivenciar relações mediadas por uma carga valorativa. Em razão de aspectos da organização da sociedade, alguns grupos são valorizados socialmente enquanto outros são marginalizados. De acordo com Tajfel (1983), é nesse contexto que ocorrem os fenômenos de "mobilidade social" e de "mudança social". De acordo com o autor, a mobilidade ocorre sempre que é possível e desejável a um indivíduo deixar o grupo marginalizado e ingressar em outro grupo valorizado socialmente. A mudança acontece quando os indivíduos acreditam que um movimento de natureza política e sociocultural, que resulte em aceitação social do grupo marginalizado, é viável, e nele se engajam construindo condições para o reconhecimento de um novo status para todo um grupo social.

A identificação com determinado grupo pode afetar o comportamento social de uma pessoa (Jackson & Smith, 1999). De acordo com os autores, quanto mais esse indivíduo se identifica com o grupo em questão, mais estará comprometido e se apresentará como suporte para a manutenção do grupo. Quanto mais profunda e mais emocionalmente comprometida for a identificação com o grupo, maior a possibilidade de atribuição de características negativas ao exogrupo e menor a possibilidade de compreensão das insuficiências do endogrupo. O envolvimento com grupos religiosos pode assumir essas características, e quando a identificação deixa de existir, a mobilidade religiosa pode acontecer.

As relações estabelecidas entre os membros de uma denominação evangélica demonstram que existe um grupo no qual as pessoas se relacionam umas com as outras e compartilham uma forma de se relacionar com Deus (Mafra, 2007). Esses relacionamentos geram coesão grupal, pois há a identificação com os princípios bíblicos norteadores da religião que o grupo valoriza, assim como há identificação entre os integrantes do grupo, que procuram agir de acordo com esses princípios e contribuem para a manutenção da igreja (e do grupo) como instituição de apoio e de evangelização, mediante a participação nos ministérios, ou seja, nas atividades previstas para serem desenvolvidas pelos membros do grupo como parte do exercício de sua opção religiosa.

A coesão pode ser ainda observada quando os membros percebem que os brasileiros, ainda que considerados cristãos em sua maioria, pelas determinações históricas, não se comportam literalmente conforme as instruções bíblicas (Antoniazzi, 2003). Assim, está presente um "outro grupo", que diz algo que não cumpre, ou cumpre de forma "distorcida", de acordo com percepções individuais. Do ponto de vista do integrante do grupo associado à denominação evangélica considerada, as relações com tal "outro grupo", portanto, passam pela ambiguidade do afastamento, mas também pelas tentativas de transformar o "outro grupo" de forma que ele passe a ser como o seu próprio grupo. Essa tentativa já aconteceu no Brasil, na época da colonização, quando todos deveriam, por imposição, ser catequizados e convertidos (Souza, 2008). Hoje, essa tentativa passa pelo apelo da compaixão, da empatia: se foi experimentado algo que se julga bom, se expressa o desejo de que o outro também o experimente e escolha passar pelo processo de "conversão", termo aqui utilizado no sentido de mudança de direção. Tal processo, que se concretiza com o abandono de uma religião (ou de uma denominação no âmbito da mesma religião) e subsequente afiliação a outra, ou ainda, no caso dos que até então não tinham opção religiosa, com a adesão a uma religião.

Estudos sobre indivíduos ou grupos evangélicos neopentecostais brasileiros têm considerado sua relação com a política (Machado, 2006) ou com o dinheiro (Guareschi, 1998), mas poucos, como Pacheco e cols. (2007), abordaram a mudança de vida decorrente da conversão como processo individual, que implica transformações para o indivíduo em questão, bem como para os que o cercam. Há necessidade de compreender as implicações dessa decisão para que questões como as citadas acima, assim como também as relações familiares desses indivíduos, possam ser analisadas em um cenário no qual o número de adeptos das denominações neopentecostais vem aumentando nos últimos anos (IBGE, 2000).

Os dados aqui apresentados constituem parte dos resultados de um trabalho cujo objetivo foi conhecer, descrever e analisar concepções e práticas relativas aos temas interrelacionados da vida conjugal, constituição de família e projeto de vida, relatados por casais participantes de um grupo religioso evangélico de origem neopentecostal, buscando elementos significativos para a compreensão do processo de formação identitária implicado. Considerou-se que tratar separadamente os dados apresentados no presente relato se justifica, pelo fato deles fornecerem base para a proposição de que, no processo que conduz um indivíduo à condição de pertencimento (objetivo e psicológico) a um grupo religioso, muitos fatores têm participação, proporcionando a identificação de alguns desses fatores e a discussão de sua relação com as construções identitárias de membros ativos desse grupo.

Procedimentos metodológicos

Participaram 10 casais vinculados a uma igreja neopentecostal. Cada participante foi entrevistado individualmente, cumprindo-se preceitos éticos de esclarecimento e consentimento, tendo havido autorização para gravação das entrevistas. Todos os nomes de participantes utilizados no relato são fictícios. Os dados foram categorizados por meio do software QSR N6 (QSR International, 2002), o que possibilitou maior agilidade e precisão na realização da Análise de Conteúdo (Bardin, 1977). O software permite a importação de segmentos de texto, facilitando a construção e a visualização de categorias, inclusive por permitir que se retorne, sempre que necessário, ao ponto do texto do qual determinada fala foi retirada. As categorias foram organizadas por similaridade de conteúdos. As categorias selecionadas são referentes a aspectos da identidade relacionados à vinculação religiosa.

Resultados e discussão

A idade dos participantes variou entre 24 e 40 anos. Entre os homens, a média de idade foi de 31,3 anos e entre as mulheres de 28,1 anos. Quanto à escolaridade, seis homens apresentaram o ensino médio completo; um homem tinha o ensino superior incompleto e um o estava cursando; um tinha o superior completo e um havia concluído um curso de especialização. Entre as mulheres, três tinham o ensino médio completo, quatro apresentaram o ensino superior completo e uma o estava cursando; duas tinham concluído especialização. Como grupo, portanto, as mulheres se caracterizaram por maior escolaridade. Quase todos os participantes que concluíram apenas o ensino médio têm planos de cursar o ensino superior. No momento da realização das entrevistas, apenas uma entrevistada não exercia atividade remunerada. Os demais entrevistados exerciam profissões compatíveis com sua escolaridade.

Quanto ao tempo de casamento dos participantes, a média foi de cinco anos. O casamento mais recente aconteceu há um ano e meio, e o casal com maior tempo de união completou nove anos de vida conjugal. A igreja da qual os participantes são membros está localizada em bairro considerado como pertencente à periferia da cidade de Vitória/ES.

O tempo de filiação dos participantes à sua atual religião mostrou-se bastante diversificado. A conversão mais recente aconteceu há dois anos. As conversões que aconteceram há mais tempo datam de aproximadamente vinte anos atrás. Em média, o tempo decorrido desde a conversão situa-se em torno de oito anos. Deve ser ressaltado que alguns entrevistados tiveram dificuldade de precisar o período transcorrido desde sua conversão.

Foram definidos, como base para a discussão, dois grandes blocos de assunto. O primeiro diz respeito aos fatores identificados como relevantes para a conversão e engloba quatro categorias temáticas: "Aproximação da Religião Atual"; "Opção pela Igreja Atual"; "Referências a Outras Religiões"; "Religião dos Familiares à Época da Conversão". O segundo bloco de assuntos ocupa-se de ocorrências resultantes da conversão e reúne três categorias temáticas: "Mudanças Positivas Vividas em Decorrência da Conversão", "Relacionamento com Familiares e Amigos do mundo" e "Situações Constrangedoras Vividas em Decorrência da Conversão". Todas as categorias, em última análise, dizem respeito à história da filiação religiosa do participante, e às práticas, concepções e avaliações decorrentes do envolvimento com a religião atual.

Na categoria "Aproximação da Religião Atual" se configura a trajetória de cada um dos participantes referente ao interesse pela religião atual ou, como denominado por eles, o processo de "conversão". A transformação aí implicada é uma realidade, devendo ser lembrado que, como ressalta Ciampa (2001), identidades sociais não são imutáveis. "Sentir-se identificado" com algum grupo novo com o qual passou a haver possibilidade de contato, quando já havia desvalorização de algumas características do grupo anterior, constitui processo psicossocial conhecido e nada atípico (Souza, 2005, p.132), seja ou não de tipo objetivo o pertencimento em questão. Este "sentir-se identificado" com os evangélicos, para a maioria dos participantes, envolveu influência de outra pessoa, que poderia ser alguém com quem o entrevistado se relacionava com proximidade ou intimidade, ou algum simples conhecido (lembrando aqui que o engajamento no processo de atrair novos membros é comum entre adeptos de algumas denominações religiosas neopentecostais).

Para algumas pessoas, como Carina e Mateus, essa influência se deu em momento de suas vidas em que já eram adultos: "Eu estudava em uma escola militar, lá no Rio de Janeiro, e dentro dessa escola havia uma reunião de oração, aí eu acabei participando e me converti" (Mateus). Para outros participantes, a influência da família cristã existiu desde a infância, fazendo com que a história de vida desses indivíduos tenha se caracterizado por integração permanente com a religião, uma vez que foram socializados na e pela religião.

Alguns entrevistados reconheceram a influência de seus companheiros (concretizada antes ou depois do casamento), que passaram pelo processo de conversão previamente. Tal influência pode, inclusive, associar-se à manutenção do relacionamento: "Quando a gente começou a namorar, eu comecei a ir à igreja com ela, a frequentar, e depois de um tempo eu acabei me batizando. Se não fosse por ela eu não teria me convertido" (Rafael).

As pessoas que cercam os participantes, portanto, exerceram influência cultural que foi assimilada através de inter-relações sociais (Bonin, 1998). A influência cultural dos que estão em torno de algum indivíduo e com os quais ele interage, exercida já na infância ou em outros momentos específicos de sua vida, é o veículo por meio do qual a estrutura social se reflete na construção da identidade, como propõem Álvaro e Garrido (2006). Assim, a opção pela mudança religiosa resulta, em grande parte, do conjunto de influências socioculturais ao qual o indivíduo está exposto. Essas influências podem variar da imposição direta de pais ou de cônjuges até influências culturais mais sutis, como, por exemplo, a que resulta da difusão da ideia de que participar de um grupo religioso é um "diferenciador moral" (p. 375), que classifica positivamente o indivíduo em relação aos demais, tal como foi identificado em estudo de Scott e Cantarelli (2004).

A insatisfação com alguma característica pessoal, e a consequente motivação para alterá-la, assim como dificuldades vividas no âmbito pessoal ou no familiar também impulsionaram alguns participantes a procurarem na religião respostas para seus dilemas. Gilson fala sobre o desejo de transformação de uma situação dolorosa, e imediatamente após encontrar conforto em Deus, considera que a mudança foi não apenas imediata, mas também definitiva: "eu queria levantar dali e ter uma nova vida. Naquele instante, após a minha oração, eu levantei e nunca mais me angustiei. E ali eu, sabe, comecei a frequentar a igreja" (Gilson). Carina conta sobre sua peregrinação, ao lado da mãe, em busca não só de conforto, mas de transformações concretas, como aquelas referentes à situação financeira da família: "a gente ficava indo em um monte de igreja, e pedindo a Deus para ajudar" (Carina). Assim como Severina, pessoa na qual é centrada a discussão sobre identidade social no trabalho de Ciampa (2001), os participantes acima mencionados encontraram sua humanidade, constataram a possibilidade de (re)construção de sua identidade, abalada por decepções amorosas (Gilson) ou por dificuldades financeiras (Carina).

A categoria "Opção pela Igreja Atual" complementa, de certa forma, a categoria anterior ("Aproximação da Religião Atual") e abriga as justificativas dos participantes para a decisão de integrarem-se àquele grupo específico. Os participantes, em sua maioria, frequentavam outros grupos e, em determinado momento, decidiram integrar-se a outras denominações religiosas, como mostra o relato a seguir:

Aí fomos para a igreja, porque a gente já conhecia o trabalho do pastor, então isso já ajudou, tranquilizou a gente de estar lá. É um trabalho sério, então a gente resolveu ir para lá, porque não tinha outro, assim, que a gente tinha referência tão boa quanto ele.

(Marisa)

Os participantes relatam, em outras palavras, que o grupo religioso amplo é o mesmo (ou seja, evangélicos), mas algumas diferenças existentes entre as várias denominações fizeram com que se identificassem mais com algumas delas do que com outras, e mudassem sua filiação, ilustrando o processo descrito por Almeida (2004). Aspectos como conhecer o pastor, ou ter referências sobre o trabalho realizado na igreja, transmitem segurança às pessoas que têm dúvida a respeito de qual grupo frequentar. Conhecer outro membro da denominação religiosa com o qual os participantes se identifiquem também pode ser apontado como um aspecto facilitador da escolha. Com base em considerações sobre a mudança de grupo (Tajfel, 1983), é possível dizer que o trânsito religioso entre pentecostais, constatado no presente trabalho, sugere que, entre outros aspectos já apontados, ocorre uma avaliação pessoal e, de certa forma, subjetiva, da capacidade daquela denominação religiosa atender seus anseios. Tal processo se desenvolve a partir de percepções e vivências individuais e do diálogo estabelecido entre instituições religiosas mais ou menos flexíveis e seus membros, os quais, não encontrando em sua denominação religiosa a totalidade do que consideram ser necessário, tentam transformá-la ou a deixam, substituindo-a por outra denominação que considerem mais completa. Participantes que já eram convertidos optaram por essa modalidade de migração, considerando que a denominação que frequentam atualmente é mais compatível com sua concepção de como deveria ser uma igreja completa.

Uma das justificativas utilizadas pelos participantes para a mudança - buscar avivamento - se refere à necessidade de troca dos valores tradicionais pelos pentecostais e à busca pelo batismo no Espírito Santo, com as consequências que tal ocorrência implica (Pierrucci, 2000). Este interesse em vivenciar experiências novas com o Espírito Santo e o conhecimento de que isso não aconteceria por meio de suas igrejas tradicionais (igrejas que frequentavam na época) levaram seis participantes a buscarem a igreja atual, mesmo sem as referências pessoais anteriores, de relacionamento com o pastor e/ou com outros membros. Em tais casos, a referência foi o fato de haver correspondência entre o que viram e o modelo idealizado que haviam construído e que valorizavam. Em outros termos, aquela denominação reunia características ausentes das igrejas que frequentaram antes, características essas que eles estavam buscando: "Aí eu saí, fui para a igreja, outra igreja Batista, que não era tão tradicional como a minha, era como se fosse uma Batista avivada, sabe?" (Viviane).

Com base nesses aspectos pode-se dizer que os participantes que já eram evangélicos, quando passaram a fazer parte da denominação religiosa atual, já viviam a sensação de pertença psicológica a ela antes mesmo da mudança se concretizar - possibilidade referida por Souza (2005). Tal sensação, certamente, é simultânea à reação de não mais se sentirem pertencentes às suas denominações religiosas anteriores, assunto tratado a seguir.

A categoria "Referências a Outras Religiões" reúne considerações dos participantes sobre religiões anteriores com as quais se envolveram, ou comparações de outras religiões com aquela da qual participam atualmente. Participantes que migraram de denominação religiosa devido às diferenças doutrinárias se referem às religiões cristãs que anteriormente integravam, relatando que se sentiam incompletos, mencionando a sensação de que aquelas igrejas não ofereciam o suficiente, o que julgavam necessário. "Tipo assim, eu gostava de estar lá, aprendia as musiquinhas, e tal, mas até então eu não entendia muito bem o que era" (Viviane, referindo-se a uma igreja tradicional).

As referências às religiões protestante e católica estão ligadas a esse sentimento de que estava faltando algo, seja envolvimento mais profundo e com maior conhecimento de Deus, seja maior comprometimento por parte da própria pessoa, como ocorreu com Júlia, que afirma ter vivenciado uma duplicidade colocada por ela como incompatível: não deveria estar comprometida com a igreja e estar, ao mesmo tempo, frequentando lugares nos quais as pessoas costumam se divertir, mas que não são bem vistos pela atual religião da participante, como afirma a seguir: "Na época eu não levava muito a sério assim, claro, fazia tudo para Deus, mas ao mesmo tempo que estava ali na igreja saía para o trio elétrico" (Júlia).

Ao reconhecerem as diferenças entre a participação no grupo religioso atual e os anteriores, ou a identificação com grupos não-religiosos, como relatou Júlia ao abster-se de uma prática comum entre os jovens, a de acompanhar o trio elétrico, os participantes confirmam sua vinculação grupal mediante a diferenciação do outro (Tajfel, 1983). Esta contraposição pode ser encontrada, nesses participantes, em relação a outras denominações, como demonstrado nesta categoria, e em relação ao período anterior à conversão, no qual pertenciam, segundo suas próprias palavras, ao grupo "do mundo", e agiam como pessoas que "são do mundo" (Pacheco, Silva & Ribeiro, 2007).

Religiões não-cristãs não foram mencionadas por qualquer participante, o que não é estranho quando são considerados os dados do IBGE (2000) referentes à religião no estado do Espírito Santo, que registram predominância de católicos e crescimento significativo de pessoas que se identificam como protestantes ou evangélicas.

Os participantes cuja vinculação anterior já se dava com alguma religião evangélica apontaram, em sua própria religião (ainda que em outra denominação), aspectos com os quais não concordam em relação à forma como se apresentam. Vinícius, por exemplo, compara sua igreja anterior, protestante, com sua igreja atual, quanto ao louvor (grupo de pessoas com instrumentos e microfones que direcionam o tempo de adoração a Deus durante os cultos). Diz ele que os ensaios são bem realizados e que a qualidade musical é grande nas igrejas protestantes, mas que nem sempre os membros das bandas apresentam o comprometimento com a vida cristã que considera ideal. Já nas igrejas neopentecostais, ainda segundo o mesmo participante, o comprometimento pessoal existe, mas a qualidade musical é ruim e os ensaios são insuficientes. A comparação, aqui, é realizada entre "eu" (o entrevistado), membro deste grupo, mas indivíduo com características específicas, e o "outro", membro deste mesmo grupo, mas que, em alguns aspectos, diferencia-se do "eu", o entrevistado, exemplificando uma forma de diferenciação abordada por Zavalloni (1973).

As respostas dos participantes quando indagados sobre a "Religião dos Familiares à Época da Conversão", indicaram as religiões Católica, Protestante, Evangélica e Maranata ou afirmavam que os familiares mais próximos não tinham religião. Foi possível perceber que familiares católicos praticantes foram os que apresentaram maior resistência quando os participantes se declararam evangélicos. Já os entrevistados cujos parentes eram evangélicos ou protestantes, na época, registram sua interferência e influência positiva no processo de conversão, ainda que em alguns casos os critiquem por serem pouco comprometidos. Os que identificaram a família como "sem-religião" apenas citaram tal condição, sem comentar sua reação. Pierucci (2004), em análise baseada no censo de 2000, abordou aspectos relacionados ao assunto. Para o autor, o decréscimo no número de católicos nas últimas décadas é compatível com o crescimento de evangélicos e pessoas "sem religião". Esse último grupo, segundo Pierucci, cresceu tanto quanto um grupo religioso poderia crescer. As características da religião dos familiares dos entrevistados no presente são compatíveis com as constatações de Pierucci e exemplificam a diversidade do trânsito religioso pelo qual os brasileiros têm se movimentado nas últimas décadas (Almeida & Montero, 2001).

As respostas sobre a religião dos familiares dos participantes incluem afirmações que complementam o que foi apontado na primeira categoria tratada no texto ("Aproximação da Religião Atual"), evidenciando que a natureza da influência pode ser diversa em cada caso. Se algumas respostas incluídas na categoria mencionada acima deixavam claro que amigos e/ou familiares exerceram influência para que os entrevistados escolhessem e ingressassem em uma nova religião, algumas respostas sobre a religião dos familiares indicam que o indivíduo não é apenas receptor passivo de influências culturais, mas sim que tem participação ativa na construção de sua história. Ele dá novo significado à herança cultural, ao mesmo tempo que a transforma, participando do processo de construção permanente de sua cultura, aceitando ou rejeitando a interferência do outro (Bonin, 1998). Um exemplo dessa possibilidade: "Minha família é católica, mas não praticante. Eles batizaram a gente, mandaram fazer catecismo, mas nem meu pai nem minha mãe vão pra igreja, só mandam os filhos" (Letícia).

Alguns participantes relataram que o fato de não aceitarem a interferência não evitou que enfrentassem a resistência de pessoas próximas, como a dos próprios pais, quando esses não concordavam com as transformações que estavam acontecendo com os filhos. Um caso ilustrativo é o de Rafael, cujos pais não aceitavam sua conversão porque a tradição católica da família estava sendo rompida. A família reagiu, procurando evitar a quebra da tradição, tentando fazer com que Rafael não se afastasse de seu grupo, e só quando perceberam que a decisão não seria alterada, passaram a aceitar seu posicionamento, ainda que dele discordassem. Passada a reação inicial, agora é Rafael que tenta fazer com que sua família passe pelo mesmo processo de conversão ao Evangelho, na expectativa de que eles também venham a fazer parte de seu novo grupo social.

O exemplo selecionado da entrevista de Rafael, supramencionado, introduz o bloco de assuntos que aborda as ocorrências resultantes da conversão. A primeira das categorias temáticas de tal bloco é a intitulada "Mudanças Positivas Vividas em Decorrência da Conversão", que reúne elementos percebidos pelos participantes sobre a sua própria trajetória individual e sobre as transformações que consideram decorrentes de sua inserção no grupo religioso atual. Essas mudanças constituem a "prova" de que cada indivíduo faz parte, agora, de um novo grupo. Esta "prova" tem o poder de "convencer" não apenas ao outro, membro do mesmo grupo, nem tão somente ao outro, membro dos exogrupos, mas é o marco utilizado pelo próprio indivíduo para que se reconheça como parte de seu novo endogrupo, porque passou a compartilhar das mesmas características daqueles que o integram.

O relacionamento de Carlos, Felipe, Letícia e Marisa com suas famílias melhorou após passarem a priorizar a religiosidade. Apesar dos receios de alguns familiares não-evangélicos de que houvesse afastamento, resultou maior aproximação e compreensão, gerando mais intimidade e perdão. Há casos como o de Felipe, que se considerava referência negativa e se tornou exemplo positivo para sua família, o que é motivo de orgulho:

Eu era um dos piores filhos, era o pior na escola, o que menos estudava, o que mais aprontava, o que mais fazia doidera. Depois da minha conversão, depois de conhecer a Cristo verdadeiramente, hoje eu sou o referencial da minha família como servo de Deus.

(Felipe)

A melhoria do relacionamento com as pessoas foi apontada por Carlos, Fernanda, Gilson, Júlia e Juliano como mudança positiva devida à conversão. As transformações levaram a relacionamento mais tranquilo, no qual se dá mais do que se espera receber, no qual existe perdão e certos comportamentos do outro são relevados, no qual se considera o outro como o polo mais importante. Os participantes se auto-referem como tendo sido pessoas egoístas, ásperas ou solitárias no passado, e enfatizam a diferença para a forma como se veem atualmente, oposta a essas características. Pacheco e cols. (2007), em estudo sobre a conversão pentecostal, obtiveram relatos similares, nos quais os participantes discorrem sobre as transformações relativas ao que os caracterizava como pessoas "do mundo" e suas características atuais, mais positivas e que apontam para a "reconstrução da própria identidade a partir da aquisição e da participação em um novo grupo de referência" (p. 60).

Se existe novo grupo de referência e a identidade do participante alterou-se ao ponto dele desprezar o grupo com o qual antes se sentia vinculado, pode-se dizer que o exogrupo, ao qual se atribuem características negativas (Tajfel, 1983), gerando a diferenciação que contribuirá para o estabelecimento desta nova condição identitária, é exatamente o grupo do qual ele próprio fazia parte - o grupo de pessoas "não convertidas", "do mundo" (Pacheco e cols., 2007). Trata-se de grupo com características e práticas negativas, do qual ele já fez parte, mas no qual não mais se reconhece, uma vez que "mudou" e encontrou outro grupo de identificação em que a aceitação pelo outro se concretiza sob outros critérios (Ciampa, 2001).

Além do que já foi mencionado, foram relatadas pelos participantes outras transformações, como: a forma de lidar com seus bens; diminuição de sentimentos de ansiedade e depressão; maior conhecimento bíblico; desaparecimento do sentimento de "vazio" que existia anteriormente e foi preenchido pela "presença de Jesus"; e extinção da ingestão de bebidas alcoólicas. As transformações ocorridas podem se integrar de forma tão definitiva ao cotidiano que alguns entrevistados, há muito tempo membros da igreja, tiveram dificuldade de identificá-las. Todos os participantes, no entanto, afirmaram que uma ou mais áreas de suas vidas foram transformadas após sua conversão e alguns declararam que esse processo é de aperfeiçoamento constante. Tipos similares de transformações também foram encontradas por Pacheco e cols. (2007) em estudo no qual os participantes declararam que antes da conversão possuíam alguns atributos negativos, e que após deixarem de "ser do mundo" passaram a viver de forma mais agradável, positiva e satisfatória.

Todas as novas características, conquistadas após a conversão, foram consideradas positivas pelos participantes. Logo, são negativas as características que os descreviam anteriormente à conversão. Houve, assim, mobilidade social (Tajfel, 1983), de grupo desvalorizado pelos participantes (exogrupo, com características negativas) para grupo valorizado (endogrupo, com características positivas). No entanto, os participantes ainda convivem com familiares e/ou amigos que pertencem ao exogrupo, agora desvalorizado por eles. Os entrevistados discordam da forma como tais pessoas se comportam em várias situações, o que significa que atribuem a eles características negativas, porém relataram que se empenham em estimular tais pessoas a experimentarem a mesma trajetória de mudança que viveram. Dessa forma, considerando que são pessoas significativas em suas vidas, em vez de se distanciar de forma definitiva, se aproximam na tentativa de fazer com que o outro perceba as características positivas de seu grupo e deseje fazer parte dele. De fato, muitos dos participantes que se afastaram de familiares (e de antigos amigos) relataram que atualmente empreendem grandes esforços objetivando a conversão dessas pessoas, afirmando o desejo de que elas voltem a ser parte de seu endogrupo, ou seja, que as pessoas que amam passem a ser como eles são agora, optando por uma nova forma de viver. Na tentativa de conversão, os já convertidos salientam aspectos negativos da vida que os alvos dessa tentativa levam e usam o próprio passado como exemplo de como a conversão os tornou melhores. É difícil dizer se os entrevistados se sentem ou não ameaçados pelas diferenças em relação ao outro, mas enfatizam a existência de tais diferenças o tempo todo.

A categoria "Relacionamento com Familiares e Amigos do Mundo" reúne afirmações sobre como os participantes se relacionam com pessoas que não compartilham de suas escolhas religiosas, mas que lhes eram próximas antes de converterem-se, e com pessoas com as quais convivem diuturnamente no trabalho ou vizinhança, ou seja, pessoas que hoje estão situadas em grupo que, em relação a eles, constitui o exogrupo.

Para alguns participantes, esse relacionamento progressivamente deixa de existir. "Eu me afastei de muitas pessoas, eu tive que me afastar, quando eu me converti, porque eu era uma pessoa que andava em caminhos, que eu entendo hoje por caminhos errados" (Saulo). Alguns consideraram que não se afastaram, mas sim que foram afastados pelos antigos interlocutores, por não compartilharem mais dos mesmos interesses ou porque agora se comportam de forma que intimida e gera desprezo, como relatado por Carlos: "Mudou, porque eles se afastaram, porque eu cheguei à conclusão que amigo para eles é só o que bebe, que compartilha com eles". Para os participantes, esse afastamento pode ser compreendido como forma de evitar o confronto com seus grupos anteriores durante o processo de integração no novo endogrupo. Scott e Cantarelli (2004) afirmam que os jovens da Assembléia de Deus, uma igreja pentecostal, procuram evitar manter amizades fora de seu grupo religioso, ao mesmo tempo em que estreitam os laços e impedem a participação, em seu dia a dia, de quem não pertença à essa mesma denominação religiosa.

Os participantes entendem que estereótipos direcionados às pessoas "do mundo" não mais os retratam, pois deles se distanciaram por meio da conversão e da adoção de novos valores e conceitos. Esses estereótipos influenciam diretamente o relacionamento dos participantes com as pessoas de sua convivência. Assim, o estereótipo negativo atribuído ao outro contribui para que haja distanciamento emocional e/ou de convivência ou, alternativamente, faz com que a evangelização - a tentativa de transformar um membro do exogrupo em integrante do endogrupo - passe a ser o objetivo principal da convivência.

A última categoria a ser abordada foi nomeada "Situações Constrangedoras Vividas em Decorrência da Conversão". Quando questionados sobre vivência de situações constrangedoras porventura enfrentadas por causa da religião, alguns participantes declararam que nada havia que os deixasse embaraçados, ou que não lembravam de qualquer situação específica. Quando alguns participantes citaram alguma situação, esta geralmente estava relacionada à bebida alcoólica e ao fato de estarem em determinados lugares não valorizados por evangélicos, mas que já haviam frequentado. "É claro que sempre tem aquelas gracinhas, às vezes um solta uma piadinha, sabe que é crente, mas não respeita. No trabalho também" (Júlia). Aqueles que já conheciam os participantes antes da conversão lembravam situações passadas relacionadas a temas como esses, o que incomodava os entrevistados.

Ao se incomodarem com o tipo de ocorrência relacionada acima, os participantes evidenciam suas percepções acerca dos estereótipos negativos e do preconceito dirigido a eles por seu exogrupo (Tajfel, 1983). Apesar de apontarem, enfaticamente, o que é positivo em seu grupo, como foi positiva sua conversão para sua vida e seus relacionamentos, alguns entrevistados citaram situações nas quais foram alvo de críticas em função dessa opção, reconhecendo que seu próprio endogrupo é alvo de julgamentos valorativos que lhe atribuem características negativas, em processo similar ao que eles protagonizam quando desvalorizam o que difere do seu grupo. Os evangélicos, apesar de apresentarem crescimento numérico significativo nos últimos anos, no Brasil, e de contarem com a conversão de pessoas cuja atividade faz com que sejam objeto de interesse dos meios de comunicação, com o que o assunto é levado à discussão pública (lembrando também que algumas igrejas, inclusive evangélicas, receberam concessões de exploração de canais de rádio e de televisão), ainda são alvo de valoração negativa por causa de estereótipos ligados a figuras-chave, que também têm sido focalizadas nos meios de comunicação, sob acusação de terem se comportado de maneira que contradiz os princípios cristãos (Campos, 2008).

Os participantes relatam as formas utilizadas para lidar com o preconceito direcionado a eles. Não se entristecer (Rafael) ou "levar na brincadeira" (Felipe) são algumas das estratégias utilizadas para que a hostilidade do outro, direcionada ao seu grupo religioso, não interfira no relacionamento familiar ou de amizade. Aparentemente os participantes lidam com situações similares de forma pacífica, não retribuindo a hostilidade direcionada a eles e evitando, portanto, conflitos religiosos no nível dos relacionamentos pessoais.

Considerações finais

A noção de identidade social pressupõe que um grupo que reúna pessoas que se sintam valorizadas e emocionalmente satisfeitas com sua opção de pertença apresente características que permitam diferenciá-lo de outros grupos, em processo ativo de contraste que justifica o emprego da noção de identidade social. Quando se fala de um grupo definido pela opção religiosa, como o que reúne os participantes do presente estudo, o exogrupo a ser considerado tem características especiais, pois é o grupo constituído por todas as demais pessoas, que são identificadas como pessoas "do mundo" (Pacheco e cols., 2007). A tal grupo das pessoas "do mundo" são atribuídos estereótipos negativos pelos evangélicos, o que inclui tanto comportamentos corriqueiros e culturalmente sancionados, que são vistos por eles como práticas a serem abolidas, quanto uma concepção de mundo ancorada no ateísmo ou em outras religiões, o que é considerado inadequado e justifica a preocupação constante de agir no sentido de atrair novas pessoas para o seu grupo.

Assim, é por intermédio das pessoas "do mundo" que os participantes definem sua identidade, por meio do processo de categorização e comparação social (Tajfel, 1983), ou seja, ao observar o outro e identificar suas características, o indivíduo pode olhar para si e perceber que não é como aquele outro - é diferente. Ao perceber suas próprias características, agora renovadas e com significado definido com base em critérios religiosos, os evangélicos atribuem valoração positiva ao seu endogrupo, que é visto não apenas como diferente, mas como melhor, já que aqueles que o integram se percebem como mais capazes de orientar sua vida, já que foram capazes de mudá-la utilizando os instrumentos tornados disponíveis pela religião.

Para muitos entrevistados, assim como para muitos evangélicos vinculados a diversas igrejas, esse exogrupo tem a característica especial de ser um grupo com o qual se identificavam anteriormente, ou seja, aquele que um dia foi o seu grupo de identificação passou a ocupar outro espaço, em decorrência do processo de mobilidade social (Tajfel, 1983). Como parte desse processo, houve mudança na valoração das características atribuídas a cada grupo, mudança iniciada a partir do contato e da convivência com pessoas evangélicas, enquanto os participantes ainda pertenciam ao grupo "do mundo". Como ocorre em muitos grupos religiosos, a vinculação ao grupo exige demonstrações de pertencimento "desinteressado", apoiado apenas em novas convicções resultantes da fé a partir de então assumida, daí a imposição de renúncias a determinadas práticas que eram cotidianas. De certa forma, a mudança, em si mesma, ou a coragem de mudar, é valorizada.

As respostas dos entrevistados mostraram que são vários, e de diversas ordens, os fatores que concorreram para a conversão. Entre eles podem ser citados: o acesso a informações sobre novas perspectivas culturais na esfera religiosa; a postura dos meios de comunicação aos quais o indivíduo tem acesso sobre as religiões e suas subdivisões; pressão comunitária que pode mesclar aspectos morais e políticos; orientação e comprometimento religioso de seus familiares e de seus cônjuges; orientação e comprometimento religioso de seus amigos e vizinhos; constatação de exemplos concretos de como a religião mudou a vida de algumas pessoas conhecidas; valorização das práticas adotadas nas cerimônias e nos grupos de atividades das igrejas; admiração pessoal por algum líder religioso da comunidade; entre outros. Esses fatores, entretanto, cumprem seu papel em articulação com ocorrências específicas da vida de cada um, o que torna o quadro complexo. São fatores que podem ser irrelevantes para muitos indivíduos em períodos de suas vidas nos quais não há interesse ou oportunidade de refletir sobre mudanças, ou seja, em momentos nos quais suas prioridades e planos são percebidos como adequados e viáveis. Em outros momentos, porém, ocorrências vividas com insatisfação pessoal ou familiar, ou questionamentos sobre a própria condição na sociedade, podem levar o indivíduo à iniciativa de mudar suas ações e suas prioridades, deixando-o mais sensível aos argumentos e às promessas que caracterizam as religiões.

As novas práticas e a nova forma de proceder em relação a diversos aspectos da vida, inclusive a "postura de evangelizador", antes ausente, no caso dos grupos religiosos em que cada fiel busca atrair outras pessoas para experimentarem as mesmas sensações e convicções que passaram a viver, frequentemente gera reações de hostilidade ou de incredulidade entre os que eram interlocutores habituais em seu grupo anterior de pessoas "do mundo". Segundo o relato dos participantes, isso de fato ocorreu, ainda que sem consequências graves, caracterizando reações que a passagem do tempo e a continuidade da permanência no grupo religioso se encarregaram de dissipar. Os participantes do novo grupo religioso constituído não respondem diretamente às eventuais críticas e provocações, mas sua resposta ao exogrupo aparece na forma de evangelização, que pode ser entendida como a tentativa de produzir no membro do grupo "do mundo" o mesmo "desejo" de mobilidade que experimentaram.

A radicalidade das mudanças identificadas pelos participantes em suas próprias vidas é uma faceta complexa da diversidade que caracteriza as ações humanas e os padrões de relacionamentos entre as pessoas e entre os grupos de pessoas, e que pode ser vista como objeto de investigação muito intrigante e motivador.

Sobre os autores:

Mariane Ranzani Ciscon-Evangelista é psicóloga, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo e doutoranda no mesmo Programa com bolsa da Capes. Integra a Rede de Estudos e Pesquisa em Psicologia Social - REDEPSO - da UFES.

Paulo Rogério Meira Menandro é doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integra a Rede de Estudos e Pesquisa em Psicologia Social - REDEPSO - da UFES.

Recebido em 24/06/2010

Reformulado em 10/03/2011

Aprovado em 12/04/2011

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      24 Jun 2010
    • Revisado
      10 Mar 2011
    • Aceito
      12 Abr 2011
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