Acessibilidade / Reportar erro

Reduzir-se a nada: articulações entre o masoquismo, o feminino e a máscara

Reducirse a nada: articulaciones entre el masoquismo, el femenino y la máscara

Diminishing to nothing: relations between the masochism, the feminine and the mask

Réduire à néant: les liens entre le masochisme, le féminin et le masque

Resumos

O artigo demonstra que o feminino não possui uma característica masoquista que lhe seja inerente. O suposto masoquismo feminino seria uma das máscaras utilizadas pelo feminino tanto para localizar-se como mulher como para atrair o desejo de um homem. Concluímos, porém, que existem parcerias tão devastadoras que podem reduzir o sujeito a nada.

Psicanálise; Literatura; Masoquismo; Feminino; Máscara


El artículo demuestra que la mujer no tiene un rasgo masoquista que le es inherente. El supuesto masoquismo femenino sería una de las máscaras usadas tanto para ella localizarse como mujer como para atraer el deseo de un hombre. Llegamos a la conclusión, sin embargo, de que hay asociaciones tan devastadoras que pueden reducir el sujeto a nada.

Psicoanálisis; Literatura; Masoquismo; Femenino; Máscara


This paper demonstrates that the feminine doesn’t have an inherent masochist character. The supposed feminine masochism would be one of the masks used by the feminine as means to find a place as well as to attract the male’s desire. Yet we conclude that there are some partnerships so devastating that they can diminish the subject to nothing.

Psychoanalysis; Literature; Masochism; Feminine; Mask


La présente recherche a comme but démontrer que le féminin ne possède pas une caractéristique masochiste même, naturelle. La recherche nous a permis déduire que le masochisme féminin peut être l’une des masques utilisées par le féminin, soit pour attirer le désir d’ um homme soit pour se situer comme femme. Nous soulevons alors l’hypothèse où les personnages ont établi des partenariatstellements ravageurs qu’elles ont fini pour s’aniquiler en se réduisant au néant.

La psychanalyse; Littérature; Masochisme; Féminin; Masque


Reduzir-se a nada1 1 O presente artigo foi extraído da dissertação de mestrado homônima de Carolina Nassau Ribeiro, orientada pelo Prof. Dr. Jeferson Machado Pinto, e defendida em agosto de 2008 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais. : articulações entre o masoquismo, o feminino e a máscara

Diminishing to nothing: relations between the masochism, the feminine and the mask

Réduire à néant: les liens entre le masochisme, le féminin et le masque

Reducirse a nada: articulaciones entre el masoquismo, el femenino y la máscara

Carolina Nassau Ribeiro; Jeferson Machado Pinto

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

RESUMO

O artigo demonstra que o feminino não possui uma característica masoquista que lhe seja inerente. O suposto masoquismo feminino seria uma das máscaras utilizadas pelo feminino tanto para localizar-se como mulher como para atrair o desejo de um homem. Concluímos, porém, que existem parcerias tão devastadoras que podem reduzir o sujeito a nada.

Palavras-chave: Psicanálise. Literatura. Masoquismo. Feminino. Máscara.

ABSTRACT

This paper demonstrates that the feminine doesn’t have an inherent masochist character. The supposed feminine masochism would be one of the masks used by the feminine as means to find a place as well as to attract the male’s desire. Yet we conclude that there are some partnerships so devastating that they can diminish the subject to nothing.

Keywords: Psychoanalysis. Literature. Masochism. Feminine. Mask.

RÉSUMÉ

La présente recherche a comme but démontrer que le féminin ne possède pas une caractéristique masochiste même, naturelle. La recherche nous a permis déduire que le masochisme féminin peut être l’une des masques utilisées par le féminin, soit pour attirer le désir d’ um homme soit pour se situer comme femme. Nous soulevons alors l’hypothèse où les personnages ont établi des partenariatstellements ravageurs qu’elles ont fini pour s’aniquiler en se réduisant au néant.

Mots-clés: La psychanalyse. Littérature. Masochisme. Féminin. Masque.

RESUMEN

El artículo demuestra que la mujer no tiene un rasgo masoquista que le es inherente. El supuesto masoquismo femenino sería una de las máscaras usadas tanto para ella localizarse como mujer como para atraer el deseo de un hombre. Llegamos a la conclusión, sin embargo, de que hay asociaciones tan devastadoras que pueden reducir el sujeto a nada.

Palabras-clave: Psicoanálisis. Literatura. Masoquismo. Femenino. Máscara.

Introdução: Psicanálise e Literatura

Este artigo foi escrito com o intuito de desmistificar a concepção “rodrigueana” da mulher masoquista, segundo a qual as mulheres normais gostam de apanhar, concepção que habita tanto o imaginário dos leigos como de psicanalistas tais como Hélène Deutsch2 2 Seu livro Psicologia de la Mujer (Deutsch, 1947) contém uma série de hipóteses sobre a constituição e o desenvolvimento da sexualidade feminina, nas quais o masoquismo e a passividade são considerados os seus pilares. Vale ressaltar que não é nossa proposta elucidar as teorias formuladas por essa autora, mas apenas apontar sua existência. (1884-1982). Além de aluna, Deutsch foi paciente de Freud e tornou-se a principal defensora da teoria de que o feminino possui uma característica masoquista que lhe é inata. A fim de detectar a relação entre masoquismo e feminino, dispusemo-nos a seguir um percurso marcado por etapas que nos permitiram apreender o que está em jogo nessa associação. Para efetivarmos essa empreitada, utilizamos o texto literário como recurso metodológico para enriquecer os ensejos motivadores desta pesquisa, pois acreditamos que ele possibilita o desvelamento de impasses de relevância tanto teórica como clínica, que devem interessar ao avanço da psicanálise. A nossa proposta foi, portanto, a partir da leitura de algumas obras literárias, extrair um problema para, em seguida, nos lançar no trabalho de pesquisa, procurando captar em que medida a teoria poderia elucidar esse problema. Esclarecemos que essa ferramenta foi utilizada com o intuito de delimitar o seu alcance, sem ultrapassar os pontos que resistem à interpretação, evitando, assim, utilizar as obras literárias apenas como ilustrações dos conceitos psicanalíticos. Aclaramos, ainda, que não é nosso objetivo estabelecer uma crítica literária, tampouco diagnosticar o autor ou patologizar o texto. Optamos por ressaltar as nuances dessas obras que nos mostraram os impasses a nortear o rumo da pesquisa de forma que, por meio delas, apontamos os limites e o alcance deste trabalho.como Hélène Deutsch2 (1884-1982). Além de aluna, Deutsch foi paciente de Freud e tornou-se a principal defensora da teoria de que o feminino possui uma característica masoquista que lhe é inata. A fim de detectar a relação entre masoquismo e feminino, dispusemo-nos a seguir um percurso marcado por etapas que nos permitiram apreender o que está em jogo nessa associação. Para efetivarmos essa empreitada, utilizamos o texto literário como recurso metodológico para enriquecer os ensejos motivadores desta pesquisa, pois acreditamos que ele possibilita o desvelamento de impasses de relevância tanto teórica como clínica, que devem interessar ao avanço da psicanálise. A nossa proposta foi, portanto, a partir da leitura de algumas obras literárias, extrair um problema para, em seguida, nos lançar no trabalho de pesquisa, procurando captar em que medida a teoria poderia elucidar esse problema. Esclarecemos que essa ferramenta foi utilizada com o intuito de delimitar o seu alcance, sem ultrapassar os pontos que resistem à interpretação, evitando, assim, utilizar as obras literárias apenas como ilustrações dos conceitos psicanalíticos. Aclaramos, ainda, que não é nosso objetivo estabelecer uma crítica literária, tampouco diagnosticar o autor ou patologizar o texto. Optamos por ressaltar as nuances dessas obras que nos mostraram os impasses a nortear o rumo da pesquisa de forma que, por meio delas, apontamos os limites e o alcance deste trabalho.

Partimos, inicialmente, de dois romances extraídos da literatura. O primeiro se chama A Vênus das Peles e foi escrito por Leopold von Sacher- Masoch em 1870 (Michel, 1992). Destacamos que foi da literatura produzida por Sacher-Masoch que o psiquiatra Krafft-Ebing extraiu o quadro nosográfico nomeado por ele de masoquismo – prazer em sofrer sevícias e humilhações. A estética dos textos desse escritor é marcada pela decência, pelo clima de suspense, pela morosidade e pelos rituais. O masoquista é um educador que persuade a sua presa a tornar-se o algoz de seus sofrimentos. No clássico A Vênus das Peles, deparamo-nos com um personagem do sexo masculino que ativa e racionalmente persuade uma mulher a executar a função da déspota cruel. Severino não pode ser categorizado como vítima, pois é ele quem conduz e dirige a cena que culmina no seu aviltamento. Ele educa Wanda – sua musa amada – para que ela se torne uma mulher despótica, já que assim ele poderá ser espancado, humilhado e traído, sendo que, para garantir que isso aconteça, elabora um contrato que lhe assegure o sofrimento. Sua única condição é que ela sempre usasse suas peles quando estivesse na presença dele.

Severino age ativamente para que ele mesmo seja colocado na posição de objeto dessa mulher. Desmistificamos, assim, a suposição de que o masoquista é passivo. Ao contrário, é ele quem ativamente conduz a circunstância que culmina na sua humilhação, o que possibilita a revelação de que sua passividade é apenas aparente.

O segundo romance, intitulado História de O, foi escrito em 1954 por uma autora que na época preferiu não se identificar e usou o pseudônimo de Pauline Réage para assinar o livro. A obra relata com riqueza de detalhes as formas como a personagem “O” se entrega à realização das fantasias sádicas de seu amante, René. O leitor pode sentir-se desconcertado ao constatar que “O” se entrega com dedicação aos desejos de seu amante para demonstrar o amor que sentia por ele. Ela consente que ele a entregue a outros homens cuja face ela nem sequer vislumbra, se submete a rituais de espancamento e de humilhação vindos de qualquer pessoa que fosse indicada por ele, inclusive, permitindo que ele a entregue, tal qual uma mercadoria, para um mestre de origem inglesa, ainda mais rigoroso e exigente – Sir Stephen. Antes de a ele ser entregue, “O” é informada pelo inglês sobre os detalhes de suas exigências e, assim, ela apreende que seria diariamente escravizada, ultrajada e submetida a quaisquer pedidos do novo mestre. Tanto René como Sir Stephen solicitam a sua aprovação e ela consente de maneira subserviente. Nesse momento, a personagem apresenta um raro momento de embaraço:

Ela consentia? Mas ela não podia falar. Essa vontade que lhe pediam de repente para expressar, era a vontade de abdicar de si mesma, de dizer de antemão sim a tudo aquilo a que ela certamente queria dizer sim, mas a que seu corpo dizia não, pelo menos em relação ao chicote. (Réage, 1954/2005, p. 111, itálicos nossos).

Chama a atenção do leitor o fato de que ela, aparentemente masoquista, vacile em relação ao chicote, mas não hesite ao pedido do homem amado. Apesar da dúvida, ela acaba aceitando a proposta de tornar- se escrava, convencida de que ele “apreciava nela o objeto em que se transformara” (Réage, 1954/2005, p. 118) e também por observar que seu amante elege Sir Stephen como mestre, tal qual um irmão mais novo escolhe o mais velho para ser o líder da brincadeira.

Para seduzir esse mestre, inicialmente, indiferente aos seus afetos, “O” calcula que iria reduzir-se a nada, possibilitando, assim, que seu novo mestre se apaixone por ela: “Enquanto ouvia, “O” pensava que seria talvez também tarde demais, tanto tempo levaria até que fosse reduzida a nada, para que ele, finalmente, se enamorasse pela sua obra e a amasse um pouco” (Réage, 1954/2005, p. 123, itálicos nossos). Logo, “reduzir-se a nada” é um meio para que ela se torne a obra e o produto dos anseios do mestre inglês para, finalmente, ser amada também por aquele homem cuja importância recrudesce paulatinamente para a personagem, até o momento em que substitui definitivamente René.

Sir. Stephen leva “O” para “Salmois” – casa dirigida por uma senhora sádica chamada Annie-Marie, cujo trabalho é moldar e castigar mulheres ao gosto de seus mestres. Nessa estranha “casa de mulheres”, “O” se submete a uma série de transformações corporais: permite que lhe perfurem o lado esquerdo de seu sexo para colocarem argolas de ouro entrelaçadas, cuja grossura equivaleria a de um lápis, e aquiesce também que Sir Stephen inscreva uma marca em suas nádegas com ferro em brasa, indicando assim que ele a possuía.

As argolas que furavam o lóbulo esquerdo de seu sexo e mostravam com todas as letras que ela era propriedade de Sir Stephen desciam até um terço de sua coxa, e a cada passo mexiam entre suas pernas como o badalo de um sino.... As marcas impressas pelo ferro em brasa, de três dedos de comprimento e metade disso de altura, estavam gravadas na carne com um centímetro de profundidade, como se tivessem sido feitas por uma goiva. Bastava passar o dedo para senti-las. “O” sentia um orgulho insano desses ferros e dessas argolas. (Réage, 1954/2005, p. 202).

O romance encerra-se com a aberrante cena em que “O”, completamente nua e depilada em suas partes íntimas, puxada por uma coleira cuja corrente se prende à argola trespassada em seu sexo e usando a máscara de coruja, é levada para uma festa. Agora, transmutada numa espécie de híbrido de mulher, coruja, objeto raro (algo incerto e inominável), captura o olhar e os comentários de todos os que ali estão presentes. Todos querem saber quem é ela e de quem ela é. A resposta é clara e parte do comandante, o organizador da festa: “[Ela é] De vocês, se quiserem” (Réage, 1954/2005, p. 238). Nessa noite, algumas pessoas a tocam, outras a repudiam, mas sem dúvida ela é o objeto do olhar de todos. A história termina quando, ao nascer do sol, “O” é possuída pelo comandante e por Sir Stephen. A autora propõe, ainda, dois finais trágicos para a personagem: no primeiro, ela volta para Roissy, onde é abandonada por Sir Stephen; e no outro, percebendo a iminência de ser preterida pelo mestre, ela prefere morrer: ele consente com sua decisão.

A partir da leitura dessas obras, pudemos extrair as seguintes questões: Se, por um lado, Severino nos mostra o paradigma do masoquista, por outro, suspeitamos o fenômeno apresentado pela personagem “O” ultrapassa os ditames persuasivos do masoquista. Seria “O” uma mulher masoquista? Qual a relação da anulação e do aniquilamento apresentado por ela com o feminino? Qual a função da máscara nos casos acima descritos? Como podemos, à luz da teoria psicanalítica, abordar o problema do masoquismo e a sua relação com a noção de máscara, véu e disfarce? O que ultrapassa a vertente da máscara e atinge um ponto de falta de representação onde a função da máscara se esgarça e atinge o “abismo” da devastação?

A metapsicologia do masoquismo

Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1989), o autor nos informa que decidiu lançar mão do termo masoquismo, assim sugerido pelo psiquiatra Krafft-Ebing, pois esse termo, extraído da literatura de Sacher-Masoch, indica não só o prazer na dor, tal qual o termo algolagnia3 2 Seu livro Psicologia de la Mujer (Deutsch, 1947) contém uma série de hipóteses sobre a constituição e o desenvolvimento da sexualidade feminina, nas quais o masoquismo e a passividade são considerados os seus pilares. Vale ressaltar que não é nossa proposta elucidar as teorias formuladas por essa autora, mas apenas apontar sua existência. , mas também o prazer obtido em qualquer forma de sujeição ou humilhação. Nesse artigo, ele anuncia a existência da sexualidade na infância e demonstra que ela se manifesta como perversa e polimorfa. É surpreendente constatar que, ao estudar o masoquismo no âmbito das perversões, Freud depara com a fantasia masoquista inconsciente, característica da neurose. A condição perversa e polimorfa da sexualidade humana é velada pelo recalque, o que faz com que Freud formule a tese de que a neurose é o negativo da perversão4 4 Para um estudo mais aprofundado do tema, cf. Bernardes (2005). . O masoquismo é perverso apenas quando a satisfação pulsional está exclusivamente condicionada à dor física ou psíquica advinda do objeto sexual. Conforme as articulações de Freud, o masoquismo foi relacionado ao feminino, a partir da equivocada consideração de que ambos possuem características passivas. Demonstraremos que tanto o masoquismo como o feminino não podem ser categorizados como passivos, sendo que foi o próprio Freud quem desconstruiu essa concepção num período posterior de sua obra.

Nesse momento da teoria psicanalítica, o sadismo é considerado um fenômeno primário em relação ao masoquismo. A pulsão de domínio pertence às pulsões do eu e é responsável pela posse do objeto; a pulsão sádica é a pulsão de domínio a serviço das pulsões sexuais, o que possibilita afirmar que a crueldade está intimamente vinculada às pulsões sexuais. É válido enfatizar que Freud ainda não faz distinção entre a pulsão sádica e a masoquista, propondo, então, o masoquismo como um fenômeno secundário em relação ao sadismo: o masoquismo seria um retorno do sadismo sobre o próprio corpo em decorrência da consciência de culpa e do complexo de castração.

Em “Os instintos e suas vicissitudes” (Freud, 1915/1974), ao falar do masoquismo, Freud refere-se à neurose, apontando a voz reflexiva média como reveladora do comportamento da pulsão sádica na neurose obsessiva. A voz reflexiva média é uma categoria da gramática grega clássica cuja conjugação expressa um retorno da ação sobre o próprio sujeito, por exemplo: fazer-se apanhar, fazer-se objeto de uma determinada ação ou até mesmo torturar-se. Trata-se de uma posição ativamente passiva, o que leva Freud a esclarecer que é o masoquista quem escreve o texto de seu espancamento: “O desejo de torturar transforma-se em autotortura, não em masoquismo. A voz ativa muda, não para passiva, mas para a voz reflexiva média” (Freud, 1915/1974, p. 149, itálicos nossos). Consideramos o uso da voz reflexiva média como um indicativo da posição ativa do masoquista, apesar do seu véu de passividade, demonstrando que é ele quem procura alguém que fique na posição de torturá-lo.

Para Lacan (1973/1998), a atividade do sujeito relaciona-se ao campo de suas próprias pulsões. A atividade da pulsão consiste em “se fazer”: se fazer ver, no caso da pulsão escópica; se fazer comer, na pulsão oral; e se fazer defecar, na pulsão anal. Ele ressalta que, no domínio pulsional, a distinção entre passividade e atividade é puramente gramatical, mas é essa característica – a de ter uma gramática – que revela como a linguagem altera o instinto, desnaturaliza-o e, assim, define a sexualidade humana. Sua importância encontra-se também no fato de mostrar o movimento circular da pulsão, buscando mais o contorno do que a fixidez do objeto. É possível inferirmos que tanto Freud como Lacan estão tocando em pontos que se equivalem, a saber, a atividade que está implícita na passividade: “De fato, salta aos olhos que, mesmo em sua pretensa fase passiva, o exercício de uma pulsão, masoquista por exemplo, exige que o masoquista, se ouso me exprimir assim, trabalhe feito um burro” (Lacan, 1964/1998, p. 189, itálicos nossos).

Ora, o uso da voz reflexiva média nos remete à vocação pedagógica e persuasiva, sublinhada por Deleuze (1983), como sendo característica dos personagens “masoquistas” de Sacher-Masoch. São eles que, ativamente, convencem a mulher despótica a lhes aplicar crueldades e castigos. Severino não só convence como também doutrina a “Vênus das peles” para que ela seja tão mais atroz e cruel do que ele pode imaginar. A personagem “O” também não é exatamente uma vítima passiva. Sua suposta passividade tem como objetivo uma sedução ativa e obstinada, ela se anula para que seu mestre possa fazer com ela o que bem desejar.

Seguindo as formulações freudianas sobre o masoquismo, encontramos nas fantasias de espancamento uma importância para a constituição do sujeito, pois é na segunda fase da fantasia masoquista, de acordo com Lacan, que o sujeito encontra uma solução para a operação de um ato simbólico. A mensagem que é veiculada não é “meu pai me bate”, mas “o rival não existe, não é nada em absoluto”, o que significa dizer “eu (sujeito da fantasia) existo e sou amado”. A fantasia masoquista permite que aquele sujeito se localize, se inscreva, faça sua marca no mundo simbólico, mas, como essa fantasia não chega ao sujeito, será construída em análise e a única coisa que dela persistirá será o chicote como material significante, que se tornará, então, o pivô da relação do sujeito com o Outro: “o que intervém, acima de tudo, é alguma coisa que risca o sujeito, que o barra, que o abole, alguma coisa de significante” (Lacan, 1998/ 1999, p. 250).

Verificamos, assim, que a criança vê no pequeno rival a possibilidade de erigir-se como sujeito, mesmo que à custa de sua anulação subjetiva, ou seja, pela marca de um traço de subtração. É Lacan quem nos revela a lógica da anulação presente nos suicidas e aponta para o fato de que é pelo próprio aniquilamento que o suicida produz uma marca indelével no mundo simbólico de seus entes.

Quando abole a si mesmo, torna-se mais signo do que nunca. A razão disso é simples: é precisamente a partir do momento em que o sujeito morre que ele se torna, para os outros, um signo eterno e os suicidas mais que os outros. (Lacan, 1958/2003, p. 254)

Ora, essa lógica da anulação como marca da existência adquire sua relevância, na medida em que verificamos que é por meio da anulação que a personagem “O” inscreve a sua marca para os homens que ama. Anulação e aniquilamento são os meios que ela utiliza para se demarcar na vida deles. A personagem “O”, deixando-se marcar com as insígnias de seu mestre, ingressa num processo de anulação gradual e contínua cuja meta final seria reduzir-se a nada para, finalmente, ser amada por Sir Stephen. Observa-se nessa estratégia algo que aponta para um além do princípio de prazer e que ultrapassa os anseios de sedução da personagem, revelando tanto uma ausência de limites no que concerne às concessões que ela faz aos homens como a existência do amor insaciável5 5 Tal característica nos fará supor que há algo da devastação que ultrapassa a vertente da máscara. .

Em 1924, Freud escreve “O Problema econômico do masoquismo”, no qual sua teoria do masoquismo é modificada substancialmente a partir do conceito de pulsão de morte. O masoquismo passa ser considerado um fenômeno primário em relação ao sadismo e é dividido em três formas fenomênicas: masoquismo erógeno ou primário, feminino e moral. O masoquismo erógeno é primário em relação à pulsão sádica, perpassa todas as fases do desenvolvimento da libido e está na base das outras duas formas de manifestação. O masoquismo moral relaciona-se com o supereu, que, com sua ferocidade, acusa o eu e o pune por não ser à imagem e semelhança do ideal. O masoquismo chamado de feminino é uma fantasia do homem, e é assim caracterizado por representar-se por meio de um traço negativo, tal como podemos acompanhar na seguinte citação:

Por essa razão chamei essa forma de masoquismo, a potiori por assim dizer [isto é, com base em seus exemplos extremos], de forma feminina, embora tantas de suas características apontem para a vida infantil. Essa estratificação superposta do infantil e do feminino encontrará posteriormente uma explicação simples. Ser castrado – ou ser cegado, que o representa – com frequência deixa um traço negativo de si próprio nas fantasias, na condição de que nenhum dano deve ocorrer precisamente aos órgãos e aos olhos. (Freud, 1924/ 1976, p. 203, itálicos nossos)

Consideramos possível demonstrar, entretanto, que os elementos encontrados no texto freudiano nos fornecem subsídios para afirmar que o fato de um dos tipos de masoquismo ser por ele nomeado de feminino não significa que se esteja fazendo uma equivalência entre os termos. Se Freud classificou um dos tipos de masoquismo com o atributo de feminino, foi por encontrar nas fantasias masoquistas masculinas os chamados “traços negativos” que indicavam a subtração de alguma parte ou função do corpo que poderia equivaler-se à castração, considerada como uma característica feminina. O texto freudiano nos fornece ainda mais uma pista sobre a relação entre masoquismo e feminino, pois no artigo sobre a “Feminilidade”, de 1933, ele esclarece que:

A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente, favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos masoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas para dentro. Assim, o masoquismo, como dizem as pessoas, é verdadeiramente feminino. (Freud, 1933/1976, p. 143-144, itálicos nossos)

Se “o masoquismo é verdadeiramente feminino”, podemos inferir que, provavelmente, foi a sexualidade feminina que permitiu a Freud o esclarecimento acerca da gênese do masoquismo. Ora, Freud não afirma que o feminino é masoquista, mas que o masoquismo é feminino. Tal afirmação só pode nos conduzir à constituição da sexualidade feminina.

Masoquismo feminino, fantasia masculina

Em seu artigo “Diretrizes para um Congresso sobre sexualidade feminina” (1966/1998), Lacan critica explicitamente a hipótese de um masoquismo da mulher e afirma que os analistas também têm seus preconceitos, mas que é preciso distinguir entre o que é preconceito e o que é uma formação do inconsciente. Formula, então, a seguinte questão: “Será que podemos nos fiar no que a perversão deve à invenção masculina, para concluir que o masoquismo da mulher é uma fantasia do desejo do homem?” (p. 740).

A resposta a essa pergunta foi explicitamente formulada no Seminário – Livro 10: a angústia (1962-1963/2005), no qual ele atesta que o masoquismo feminino é uma fantasia masculina. Lacan indaga aos analistas acerca da sexualidade feminina e formula algumas respostas. Sua premissa é de que uma mulher a priori se interessa pelo desejo do outro, uma vez que “seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo” (p. 202). Essa frouxidão, decorrente da falta fálica, possibilita que ela se desdobre, se transmute e se disfarce para enlaçar o desejo de um homem. Para o homem, a função fálica é marcada por uma falta que, por sua vez, instaura um campo de desejo em que se busca um objeto que faça obstáculo a esse buraco. O homem procura um objeto que tampone essa falta, tal qual um objeto fetichista. Esse objeto tem para o homem a significação do velamento da castração. É por esse motivo que Lacan defende a hipótese de que a impostura perversa é predominantemente masculina.

A causa do desejo masculino seria condicionada por um objeto com a roupagem de um fetiche. É por esse motivo que Lacan denomina a versão masculina do amor de “fetichista”, pois o objeto precisa preencher uma série de condições específicas para se tornar desejável. A mulher desperta a fantasia masculina na medida em que preenche, mesmo que imaginariamente, esses requisitos de estar na posição de objeto, de se fazer objeto causa de desejo para ele.

Já nas mulheres essa operação seguiria outro circuito, pois elas encontram sua satisfação ao capturar o objeto de desejo do homem amado, “o objeto fálico só chega a ela em segundo lugar, e na medida em que desempenha um papel no desejo do Outro” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 202). Dessa forma, Lacan assevera que, quando a perversão ocorre na mulher, trata-se apenas de farsa, de um disfarce, de uma máscara6 6 A noção de máscara nos remeterá à teoria formulada por Joan Riviére – “A feminilidade como máscara” – que será abordada no próximo item. , em que ela encena a “personagem” do que supõe que seja o desejo do Outro. Essa hipótese de Lacan confirma a indicação de Freud de que, para a mulher, importa menos amar do que ser amada. É pelos motivos expostos que a forma do amor feminino é nomeada por Lacan de “erotomaníaca”, sendo um dos indicadores da posição subjetiva que cada um ocupa na partilha entre os sexos. Para ele, o suposto masoquismo feminino seria apenas uma máscara para enlaçar o desejo de um homem.

A feminilidade e o artifício da máscara

A noção de máscara surgiu em 1929, quando Joan Riviere escreveu o artigo “A feminilidade como máscara” (1929/2005) com o intuito de demonstrar, por meio da análise de um caso clínico, que não existe diferença entre a posição feminina e a máscara. Sua tese é de que não existe uma linha divisória entre a feminilidade genuína e a máscara, de modo que a feminilidade só poderia representar-se pelo artifício da máscara cuja função é tanto de encobrir as fantasias de posse do pênis quanto de proteger a mulher de possíveis ataques masculinos como vingança pelo fato de ela ter se apossado do pênis.

Para ratificar essa hipótese, descreve casos nos quais a máscara da feminilidade se apresenta com formas distintas e singulares, dentre as quais destaca o de uma mulher com uma excelente relação conjugal tanto no aspecto da ligação afetuosa como na esfera sexual e que, além disso, exercia sua carreira profissional com êxito e tinha orgulho de sua eficácia nos trabalhos domésticos. Não obstante, apresentava um quadro de angústia que a motivou a procurar análise. A angústia estava relacionada com a necessidade de reconhecimento que sentia em momento posterior às apresentações públicas que eram exigidas por seu ofício, como após falar para uma audiência. Nesses momentos, ela procurava o reconhecimento por parte de homens que poderiam ser considerados substitutos da figura paterna, ou seja, intelectuais que pudessem lhe ofertar tanto um elogio concernente a sua boa atuação profissional quanto demonstrar-lhe interesse sexual, o que reforçaria sua posição feminina.

Para ela, sua paciente disfarçava-se de mulher por meio de uma máscara da feminilidade que era utilizada com o objetivo de disfarçar suas insígnias masculinas e o seu poder fálico, em decorrência do medo de que fossem reconhecidas e retaliadas. Para apaziguar a suposta vingança, ela se oferecia como objeto sexual para aqueles a quem temia. Todavia, disfarçar-se de mulher pode ser uma maneira desviada de afirmar a sua masculinidade fálica?

Esclarecendo o que estava em jogo para essa mulher, Lacan assinala que as qualificações de perfeição atribuídas às várias esferas da vida da referida paciente manifestavam somente “uma assunção de todas as funções masculinas” (Lacan, 1958/1999, p. 264) e a sua angústia frente ao êxito expressava, ainda que de maneira mascarada, que se tratava de um caso de neurose obsessiva. Suas atitudes não manifestavam nem a famosa inveja do pênis, tampouco a reivindicação do falo; ao contrário, o que se ocultava aos olhos da analista, ainda segundo Lacan, é que sua paciente obsessiva demandava ser reconhecida como uma mulher:

Toda vez, com efeito, que essa mulher dava mostra de sua potência fálica, ela se precipitava numa série de providências, fosse de sedução, fosse até de um processo sacrificial – fazer tudo para os outros –, nisso adotando, aparentemente, as formas mais elevadas da dedicação feminina, como se ela dissesse: – Vejam bem, eu não tenho falo, sou mulher, e puramente mulher. (Lacan, 1958/ 1999, p. 265, itálicos do autor)

A máscara da feminilidade era utilizada tanto com o objetivo de disfarçar suas habilidades masculinas como para afirmá-las. Entretanto, nesse jogo de velar e desvelar, o surgimento da angústia indicava a necessidade da paciente em ser reconhecida, não como detentora do falo, mas de ser reconhecida como uma mulher. Pode-se extrair de sua manobra uma dupla função: primeiro, ela visa afirmar a sua masculinidade para, num segundo momento, apresentar-se como feminina, ainda que pela vertente fálica. A máscara teria, assim, a função de acalmar essa angústia, não de uma possível retaliação masculina, mas de não conseguir se localizar como mulher.

Sabemos que, de acordo com Freud, existe uma primazia do falo para ambos os sexos. Lacan, ao propor uma releitura da teoria freudiana, depreende que não existe um significante no inconsciente que abarque o que é o feminino, sendo possível supor que foi por esse motivo que Lacan criou o polêmico axioma no qual afirma que “Não há A mulher, artigo definido para designar o universal” (Lacan, 1975/1982, p. 98, itálico do autor), ou seja, não existe nenhuma representação psíquica para o feminino, visto que no inconsciente só existe a representação fálica. Assim sendo, não tendo um significante que o represente, o feminino encontra seu refúgio no artifício da máscara: “O fato de a feminilidade encontrar seu refúgio nessa máscara, em virtude da verdrängung7 7 Segundo Hanns, (1996) o termo verdrängung pode ser traduzido por recalque ou repressão. Genericamente o verbo verdrängen tem o sentido de desalojar e empurrar para o lado. inerente à marca fálica do desejo, tem a curiosa consequência de fazer com que, no ser humano, a própria ostentação viril pareça feminina” (Lacan, 1958/ 2003, p. 702)8 8 Zalcberg (2007), remetendo-se aos modos pelos quais um pavão macho conquista a sua fêmea, nos adverte sobre o paradoxo implícito no uso da máscara, já que “a própria recorrência à ostentação viril feminiza porque pressupõe um refúgio na máscara que é um recurso feminino” (p. 63). .

Dessa forma, se não podemos localizar nenhum significante que especifique o que é a mulher, consideramos que a hipótese de Joan Riviere tem grande relevância, pois ela demonstra que a máscara é um artifício utilizado para se apresentar o feminino. Como não se pode apresentá-lo todo, só é possível fazê-lo pela vertente fálica. Esse artifício pode se delinear pela vertente da encenação imaginária da mulher castrada, pela via do sacrifício ou, até mesmo, pelo viés do suposto masoquismo feminino.

O masoquismo da mulher seria, portanto, uma das máscaras a serem utilizadas para ser reconhecida como mulher, para adquirir “ares de mulher”, como nos indica Colette Soler: “Digamos de forma condensada, que a mulher às vezes assume ares de masoquista, mas para se dar ares de mulher, sendo a mulher de um homem, na impossibilidade de ser A mulher” (Soler, 2005, p. 66).

A dupla face da sexualidade feminina

Se, por um lado, Lacan aponta que, ao se mascarar, a mulher encontra uma solução para a falta de identidade feminina, enfatizando que a máscara é um artifício relacionado ao falo e ao recurso simbólico, por outro, ele nos indica que “a mulher é não toda”, ou seja, apesar de regida pelo primado do falo, não é toda perpassada pela lógica fálica. Nas suas palavras: “a mulher se define por uma posição que apontei como o não todo no que se refere ao gozo fálico” (Lacan, 1975/1982, p. 15, itálicos do autor). Tal proposição não indica que Lacan discorda da elaboração freudiana acerca da primazia do falo, mas que a teoria freudiana9 9 O próprio Freud atesta esse limite ao afirmar, em 1932, que para compreendermos melhor a feminilidade teríamos que indagar a própria experiência ou consultarmos os poetas (Freud, 1933/1976, p. 165).. não abarcava a complexidade do universo feminino, pois não ultrapassou a lógica fálica.

As fórmulas da sexuação mostram uma dupla face da sexualidade feminina: uma relacionada ao falo, que Lacan nomeia de gozo fálico, e outra, cuja lógica transcende o falo, que refere-se ao que Lacan chama de gozo Outro. Lacan aponta para um buraco na linguagem, um ponto sobre o qual não existe representação possível: “Esse não se pode dizer. Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com S(), e já é nisso que ela se duplica, que ela não é toda, por outro lado, ela pode ter relação com ֔ (Lacan, 1975/1982, p. 109, itálicos nossos).

Ora, esse aspecto do feminino que é não todo perpassado pela lógica fálica nos interessa na medida em que consideramos ser possível contemplá-lo na personagem “O”. Se, por um lado, ela se disfarça de masoquista para capturar a fantasia dos homens almejados, por outro, essas concessões não têm medida e são levadas às últimas consequências, demonstrando, assim, um transbordamento, um tipo de gozo que não se exprime por meio do recurso simbólico. Se “ela se duplica”, conforme citado logo acima, é possível supor a existência de uma dupla face de sua posição: a máscara na vertente do falo, do gozo fálico e a falta de limites desse amor enlouquecido, do lado do S (), isto é, do gozo Outro. A posição delas extrapola o artifício da máscara e aponta para o “gozo Outro” cujo paradigma destacado por Lacan seria o gozo místico, aquele sobre o qual nada se pode dizer.

Soler (2005), seguindo algumas pistas deixadas por Lacan, formula uma hipótese acerca de uma manifestação do feminino cuja característica transpõe o registro fálico. Tratar-se-ia de uma manifestação que tangencia o registro do não todo fálico. Para ela, desde que Lacan abordou o gozo místico como uma das expressões do gozo feminino, muito pouco foi acrescentado pelos analistas. Seguindo algumas pistas deixadas na obra de Lacan, ela identifica o aniquilamento como sendo uma das manifestações possíveis do gozo Outro. Não se trata de um amor místico, mas de uma “mística do amor” (Soler, 2005, p. 25) que se inscreve sob os moldes de um aniquilamento. Trata-se, portanto, de um amor inefável, de um afeto que transborda as palavras e ultrapassa os limites da lógica fálica.

Ora, tal consideração nos interessa por ser esse tipo de amor, ou melhor, essa mística de amor que encontramos na personagem “O”, que “se perdia numa delirante ausência de si mesma que a entregava ao amor e aproximava-a da morte” (Réage, 1954/2005, p. 69), cujo fim último era reduzir-se a nada para, dessa forma, alcançar o amor daquele de quem sofria humilhações. Nessa busca de um amor inefável, ela abandona-se de si e, reduzindo-se mesmo a nada, alcança o silêncio da morte. Ao se mascarar para satisfazer a fantasia de seus amantes, ocorre um transbordamento, um excesso, que a lança para fora dos limites da vida.

Brousse (2004) nos dá uma indicação que desvela que o artifício da máscara é insuficiente para localizar os fenômenos apresentados pela personagem “O”, quando afirma que “a devastação acha-se no ponto em que o semblante fracassa” (p. 67). Nesse sentido é possível inferir que quando se mascara de masoquista para enlaçar o desejo de seu amante, a personagem ainda está regida pela lógica fálica, pelo princípio do prazer e pelo jogo dos semblantes. Não obstante, essa parceria se revela devastadora, na medida em que o jogo dos semblantes fracassa e que algo extrapola a lógica regida pelo falo, apontando para esse gozo outro em que “o sujeito é despossuído de seu lugar” (p. 65).

Esse lugar que não existe mais pode ser declinado como fala, o sujeito sendo então reduzido ao “silêncio”; como corpo, e o sujeito não passa de um “corpo em excesso”, ou uma carne desfalicizada que é um “buraco negro”; como errância, fenômeno de despersolização e autoeliminação. (Brousse, 2004, p. 65, itálicos nossos)

Considerações Finais

Consideramos, entretanto, que, se por um lado, os personagens extraídos da literatura nos forneceram material para esboçarmos uma distinção entre a posição masoquista e o masoquismo como máscara do feminino, por outro, novas encruzilhadas se interpuseram em nosso caminho, indicando pontos que excedem e ultrapassam o recurso da máscara.

Se inicialmente supúnhamos que a personagem “O” se mascarava de masoquista para fisgar os seus amantes e, assim, circunscrevia-se como mulher, é possível perceber que a concepção de máscara foi insuficiente para abranger os fenômenos apresentados pela personagem, pois, ao longo da narrativa, o recurso da máscara vai se esgarçando e também se reduz a nada. Há nessa personagem um fenômeno que ultrapassa a máscara, algo que acossa o horror e que atinge a radicalidade do aniquilamento. Anulação que, segundo as nossas hipóteses, tem como objetivo inscrever a sua marca de mulher, ainda que o preço a ser pago fosse a sua própria existência. Tal qual uma mascarada, “O” faz qualquer coisa para obter o amor de um homem, mas, no seu caso, “qualquer coisa” implica reduzir-se a nada, o que nos dá indícios para supormos que ela buscava um gozo absoluto, uma completude só atingida pelo silêncio da morte. Na tentativa de localizar-se como “a” mulher, ela acabou aniquilando os seus desejos, a sua singularidade, a sua vida profissional e, finalmente, a própria existência. Dessa maneira, vale retomar o que Lacan assinala sobre uma forma de amor que pode ignorar o desejo: “e que o amor, se aí está uma paixão que pode ser a ignorância do desejo.... Quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações” (Lacan, 1975/1982, p. 12, itálicos nossos).

Curiosamente, o percurso nos fez suspeitar de que a radicalidade apresentada pela personagem pudesse nos levar à conclusão de que o ponto que transborda a máscara é a própria devastação. É possível supormos que “O” foi devastada pelos efeitos desse amor que é a ignorância do desejo, amor que aponta mais para o gozo do que para a castração, visto que, em sua abnegação, ela atende incondicionalmente à vontade de gozo do seu amante. Mesmo quando afirma que não quer morrer, ela já descortina como suas concessões margeavam um gozo mortífero.

Se ela almejava localizar-se como mulher por meio de uma parceria com um homem, podemos perceber que se tratava de um “parceiro-devastação”, conforme o termo proposto por Miller, que esclarece: “Falamos de devastação quando há uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece limites, e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro-devastação de uma mulher, para o melhor e para o pior” (Miller, 1998, p. 115, itálicos nossos). Com efeito, se os suplícios sofridos por ela não conheciam limites, ousamos presumir que é por haver indícios de um amor cujos efeitos foram devastadores que a personagem “O” encontrou “o pior”.

Avaliamos que, acrescida à suposição de que “O” vivencia um amor que a devasta, cabe questionar a relação da devastação com o feminino. Seria a devastação um efeito do modo de amar feminino, visto que se almeja encontrar a bússola do desejo do Outro? Se essa hipótese for verdadeira, a devastação ocorreria na medida em que essa meta se torna infinita no deslizamento característico do desejo. Como pudemos contemplar, “O” encarna o objeto que preenche o desejo de seus amantes e, para satisfazê-los, não encontra limites nem no próprio corpo.

Observamos, ainda, que é possível extrair dos textos literários problemas que nos lançam a pesquisar e a promover um avanço da teoria psicanalítica. Se sobre o gozo feminino pouco se tem a dizer, acreditamos que a literatura teria o efeito de descortinar o que estava silenciado, já que encontramos nessas narrativas “uma mulher que confessa”10 10 Conforme explicitado no primeiro capítulo, Jean Paulhan foi amante da escritora e escreveu o prefácio do livro. Essa afirmação pode ser encontrada em Réage (1954/2005, p. 13). , parafraseando Jean Paulhan no prefácio da História de O. Reafirmamos, ainda, que nossa proposta não implica um esgotamento de possibilidades, pois, a cada leitura, novas questões emergem e nos remetem a outros pontos de pesquisa.

Recebido em: 13/06/2011

Aceito em: 26/11/2011

Carolina Nassau Ribeiro, psicanalista, membro do ALEPH – Escola de Psicanálise. Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Endereço para correspondência: Av. Brasil, 1831, sala 905, Funcionários. CEP: 30140-002. Belo Horizonte, MG, Brasil. Endereço eletrônico: carolnassau@yahoo.com.br

Jeferson Machado Pinto, psicanalista, psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Psicologia (USP) com Pós-doutorado em Psicanálise e Conexões (USP). É Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Endereço para correspondência: Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha. CEP: 31270-901. Belo Horizonte, MG. Endereço eletrônico: jmachadopinto@gmail.com

  • Bernardes, W. S. (2005). A concepçăo freudiana do caráter Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  • Brousse, M.-H. (2004). Uma dificuldade na análise das mulheres. In J.-A. Miller (Org.), Ornicar?: 1. De Jacques Lacan a Lewis Carroll (pp. 57-67). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Deleuze, G. (1983). Apresentaçăo de Sacher-Masoch Rio de Janeiro: Taurus
  • Deutsch, H. (1947). La psicología de La mujer Buenos Aires : Editorial Losa.
  • Freud, S. (1974). Os instintos e suas vicissitudes. In S. Freud, Ediçăo standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomăo, trad., Vol. 14, pp. 129-162). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915).
  • Freud, S. (1976a). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Ediçăo standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomăo, trad., Vol. 19, pp. 197-212). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924).
  • Freud, S. (1976b). A dissoluçăo do complexo de Édipo. In S. Freud, Ediçăo standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomăo, trad., Vol. 19, pp. 215-224). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924).
  • Freud, S. (1976). Conferęncia XXXIII: Feminilidade. In S. Freud, Ediçăo standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomăo, trad., Vol. 22, pp. 139-165). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933).
  • Freud, S. (1989). Tręs ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Ediçăo standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomăo, trad., Vol. 7, pp. 118-228). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905).
  • Hanns, L. (1996). Dicionário comentado do alemăo de Freud Rio de Janeiro: Imago.
  • Lacan, J. (1982). O Seminário. Livro 20: mais, ainda (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975. Título original: Le Séminaire de Jacques Lacan Livre XX: Encore 1972-1973)
  • Lacan, J. (1998). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1973. Título original: Le Semináire de Jacques Lacan Livre XI: Les quatre concepts foundamentaux de La psychanalyse 1964).
  • Lacan, J. (1998). Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 734-745). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
  • Lacan, J. (1999). O Seminário. Livro 5: as formaçőes do inconsciente (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1998. Título original: Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre V: Les formations de linconscient 1957-1958).
  • Lacan, J. (2005). O Seminário. Livro 10: a angústia (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1962-1963. Título original: Le Semináire de Jacques Lacan. Livre X: LAngoisse).
  • Michel, B. (1992). Sacher-Masoch (1836-1895). Rio de Janeiro, Rocco.
  • Miller, J.-A. (1998). O osso de uma análise Salvador: Biblioteca-agente da Escola Brasileira de Psicanálise.
  • Réage, P. (2005). História de O. (H. S. Lencastre, trad.). Rio de Janeiro: Ediouro. (Trabalho original publicado em 1954. Título original: Histoire dO)
  • Riviere, J. (2005). A feminilidade como máscara. Psychę: Revista de Psicanálise, 16, 13-24. (Trabalho original publicado em 1929).
  • Soler, C. (2005). O que Lacan dizia das mulheres Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Zalcberg, M. (2007). Amor paixăo feminina Rio de Janeiro: Elsevier.
  • 1
    O presente artigo foi extraído da dissertação de mestrado homônima de Carolina Nassau Ribeiro, orientada pelo Prof. Dr. Jeferson Machado Pinto, e defendida em agosto de 2008 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais.
  • 2
    Seu livro
    Psicologia de la Mujer (Deutsch, 1947) contém uma série de hipóteses sobre a constituição e o desenvolvimento da sexualidade feminina, nas quais o masoquismo e a passividade são considerados os seus pilares. Vale ressaltar que não é nossa proposta elucidar as teorias formuladas por essa autora, mas apenas apontar sua existência.
  • 3
    Freud (1905/1989) indica que extraiu o termo algolagnia de um autor chamado Schrenck-Notzing cujo artigo sobre o assunto foi publicado em 1899.
  • 4
    Para um estudo mais aprofundado do tema, cf. Bernardes (2005).
  • 5
    Tal característica nos fará supor que há algo da devastação que ultrapassa a vertente da máscara.
  • 6
    A noção de máscara nos remeterá à teoria formulada por Joan Riviére – “A feminilidade como máscara” – que será abordada no próximo item.
  • 7
    Segundo Hanns, (1996) o termo
    verdrängung pode ser traduzido por recalque ou repressão. Genericamente o verbo verdrängen tem o sentido de desalojar e empurrar para o lado.
  • 8
    Zalcberg (2007), remetendo-se aos modos pelos quais um pavão macho conquista a sua fêmea, nos adverte sobre o paradoxo implícito no uso da máscara, já que “a própria recorrência à ostentação viril feminiza porque pressupõe um refúgio na máscara que é um recurso feminino” (p. 63).
  • 9
    O próprio Freud atesta esse limite ao afirmar, em 1932, que para compreendermos melhor a feminilidade teríamos que indagar a própria experiência ou consultarmos os poetas (Freud, 1933/1976, p. 165)..
  • 10
    Conforme explicitado no primeiro capítulo, Jean Paulhan foi amante da escritora e escreveu o prefácio do livro. Essa afirmação pode ser encontrada em Réage (1954/2005, p. 13).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      13 Jun 2011
    • Aceito
      26 Nov 2011
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revpsico@usp.br