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A Leitura Cognitiva da Psicanálise: Problemas e Transformações de Conceitos

Resumos

Problemas conceituais das teorias psicanalíticas a partir do desenvolvimento e descobertas da moderna Psicologia obrigaram-nos a buscar na noção de inconsciente da Psicanálise a possível causa da impossibilidade de uma verdadeira reformulação epistemológica de seus fundamentos, exigida por esses novos conhecimentos. Ligando autores psicanalíticos modernos com as teorias cognitivas, tentamos uma crítica no sentido de esclarecer as origens de tais impasses teóricos e suas possíveis soluções dentro de uma perspectiva cognitivista

Cognição; Desenvolvimento intelectual; Teoria psicanalí-tica; Psicanálise; Epistemologia


Problems referring to psychoanalytical theories, in what concerns a fundamental revision of its concepts, beginning with the development and discoveries of modern Psychology, oblige a search in the psychoanalytic concept of unconsciousness for the possible cause of the impossibility of a true epistemological reformulation of its founding, which is demanded by this new knowledge of Psychology. Linking modern psychoanalytical authors with the cognitive theories, we attempt a criticism in the sense of clarifying the origins of such theoretical impasses and its possible solutions within a cognitive perspective.

Piaget, Jean; 1986-1980; Cognition; Intellectual development; Psychoanalytic theory; Psychoanalysis; Epistemology; Piaget, Jean; 1896-1980


A LEITURA COGNITIVA DA PSICANÁLISE: PROBLEMAS E TRANSFORMAÇÕES DE CONCEITOS

Vera Stela Telles

Instituto de Psicologia - USP

Problemas conceituais das teorias psicanalíticas a partir do desenvolvimento e descobertas da moderna Psicologia obrigaram-nos a buscar na noção de inconsciente da Psicanálise a possível causa da impossibilidade de uma verdadeira reformulação epistemológica de seus fundamentos, exigida por esses novos conhecimentos. Ligando autores psicanalíticos modernos com as teorias cognitivas, tentamos uma crítica no sentido de esclarecer as origens de tais impasses teóricos e suas possíveis soluções dentro de uma perspectiva cognitivista

Descritores: Cognição. Desenvolvimento intelectual. Teoria psicanalítica. Psicanálise. Epistemologia. Piaget, Jean, 1986-1980.

Inscrevendo-se num contexto onde nossa atenção envolvia uma série de preocupações críticas referentes ao trabalho e às teorias psicanalíticas, ouvimos de L. M. Ferrão - um psicanalista que no momento repensava a problemática teórica da Psicanálise dentro de um vértice que ele chamava "psico-ciência" - a seguinte frase: "o paciente não projeta coisa alguma, ele vê desse modo, e só pode ver desse modo, já que se encontra mergulhado em uma memória alucinada". A partir dessa idéia - somada a outras experiências que tivemos a oportunidade de vivenciar com esse mesmo profissional e com autores a que nos referiremos oportunamente - nossas próprias críticas esparsas e desconexas encontraram um referencial mais preciso em torno do qual organizarem-se. Esse trabalho versa sobre a experiência, quase pessoal, de refazer um determinado caminho através do qual, acreditamos, foi possível antever certas saídas para alguns desses impasses teóricos.

Outra vertente importante nessa reformulação de trajeto que se pretendia psicanalítico foram as teorias piagetianas sobre o desenvolvimento da inteligência humana.

Piaget apresenta um modelo de pesquisa em Psicologia que nos fascinou desde nossos primeiros contatos com a autor. A nosso ver Piaget era um cientista na mais profunda acepção do termo. Se entendermos Psicologia como uma ciência do comportamento isso significa que temos de encontrar métodos de pesquisa que permitam estabelecer relações e fundamentos num certo nível de conhecimento, enquanto, diríamos, as" causas últimas" desse comportamento não podem ainda ser estabelecidas.

O estágio atual de desenvolvimento desta ciência obrigaria, mais do que nunca, a priorizar a observação em relação à teorização. Não podemos contar com uma fundamentação mais aprofundada em neurofisiologia, por exemplo. Estudos definitivos sobre a memória são outro exemplo do longo caminho que teremos que percorrer. O estabelecimento de um continuum com a Psicologia animal é mais uma tarefa a ser resolvida.1 1 Mesmo teorias que pretendem ser "mais um golpe" no egocentrismo humano costumam, implicitamente, recolocá-lo em tal posição, reintroduzindo-o, diríamos, pela porta dos fundos. Desenvolve-se atualmente de modo mais sistemático o estudo da senso-percepção precoce - mas não suficientemente no que se refere às reformulações teóricas - etc. Enfim, dada essa falta amplíssima de informações, resta-nos tentar fazer uma ciência daquilo que podemos efetivamente observar - o comportamento, no caso. E observar aqui seria altamente desejável em nosso território de pesquisa.

Piaget foi um mestre nesta arte de "fazer ciência" quase a partir "do nada" - se pensarmos nas modernas possibilidades tecnológicas de pesquisa. Seu segredo, acreditamos, era uma alta competência do observar e daí inferir rigorosamente o que eventualmente pudesse explicar o comportamento. Sua forma de pesquisar o funcionamento, para daí extrair as características necessárias das estruturas determinadoras daquele funcionamento, foi fundamental para delinearmos um ideal pessoal na orientação de trabalho nesse campo. Atualmente reconhecemos que essa proposta manteve-se viva subliminarmente a tudo que tentamos compreender no campo da Psicologia e de nosso trabalho clínico; mais até que o conteúdo de suas idéias, a forma de orientar suas observações permane-ceu como salutar restrição a possíveis saltos teóricos quiméricos.

Se levarmos até o limite a afirmação de Ferrão, cremos que o edifício teórico da Psicanálise deva ser revisto. Tal afirmação implica que o paciente decodificaria a experiência segundo um preciso recorte, uma estrutura estruturadora2 2 Usamos a noção de estrutura estruturadora tentando com ela dar conta de um processo de significação da experiência que vai depender e ser correlata do possível modo com o qual o indivíduo in-forma a experiência e que se transforma com o desenvolvimento. que, por ter determinadas características, conseqüente e necessariamente levaria àqueles resultados observados. Se o indivíduo pôde "ver" daquele modo, tem-se de pensar na forma desse "ver"; e seria tal estrutura que "explicaria" necessariamente as características de seu comportamento. Concebida nestes termos, toda" especificidade" que colocou a Psicanálise num rumo impossível de ser cruzado com outras Psicologias - e delas obter inclusive possíveis fundamentos científicos para suas observações - deixaria de existir. A pretensa essencialidade que a isola e a enclausura num sistema fechado e muitas vezes até mesmo tautológico poderia ser superada, e suas preciosas observações poderiam encontrar fundamentações mais pertinentes e científicas.3 3 Imbasciati (1993): "... Em Freud não era nada clara a distinção entre descoberta e teoria, entendida esta como instrumento de descoberta; existe em Freud uma grande confusão epistemológica, através da qual freqüentemente a teoria é considerada uma descoberta (...) e usada para validar outras descobertas, que, ao invés, são somente pressuposições e, ao contrário, forçam-se novas descobertas dentro da teoria, enquanto considerada ‘descoberta’, antes que usá-las para inventar uma nova teoria que seja instrumento mais eficaz do que aquela velha, para a observação e para novas descobertas. Assim, todo edifício freudiano mostra freqüentemente aspectos que, para a crítica epistemológica das filosofia da ciência da época posterior, aparecem como círculo epistemologicamente vicioso, no qual o explanandum é usado como explanans." (p.21). Mas parece que até o momento não cabe na Psicanálise uma verdadeira incorporação das descobertas de outros setores da Psicologia. Tais descobertas alguns vezes são introduzidas no seu sistema teórico, mas sem que haja uma revisão de conceitos que tal incorporação exigiria. Trata-se mais de uma "justaposição" ao antigo corpo doutrinário do que uma reformulação epistemológica de suas teorias. Por exemplo, o que ela realmente aproveitou das descobertas piagetianas sobre o desenvolvimento da inteligência infantil? Como, por exemplo, teorias do tipo das kleinianas puderam continuar incólumes em suas afirmações imaginosas diante do que se veio a saber sobre a constituição genética das estruturas do pensamento? Por outro lado, muitas observações psicanalíticas poderiam obter dessas mesmas descobertas fundamentações teóricas mais consistentes se não estivessem atadas a exigências teóricas prefixadas (institucionalizadas!).

Há muito a Psicologia abandonou uma posição que concebia a mente como mero instrumento de registro do estímulo que se encontrava "fora" e imprimia-se "dentro" dela. Na própria Biologia, a leitura de Uexküll, por exemplo, pensa o próprio animal como um sujeito, ao invés de uma coisa mecanicamente determinada. Segundo esse autor, através da ação e da percepção o animal realmente constrói um mundo próprio estruturado de acordo com um repertório sensorial que compartilha com sua espécie e somente com ela. Assim, haveria tantos mundos quantas espécies ou possibilidades diferentes de informar os inputs. "Tudo que um sujeito percebe torna-se seu mundo da percepção, tudo que ele faz, seu mundo de ação. Mundo de ação e de percepção formam juntos uma totalidade fechada, o ‘millieu’, o mundo vivido." (Uexküll, 1956, p.14). Pensados como sujeitos é que, segundo o autor, poderemos ter acesso ao seu mundo vivido. É aí, e não para além dele, que está o sentido de suas ações (e, ajuntaríamos, de suas emoções). Isto é, seu mundo será constituído segundo aquilo que seu aparato perceptivo lhe permite e, portanto, nesse sentido, ele próprio irá determinar o estímulo ao qual ele vai" reagir". Aqui temos então ocasião de, a partir de um específico aparato sensório-perceptivo, extrair os modelos ou recortes da realidade decorrentes de tal aparato. Daí, segundo o autor, para penetrarmos no seu mundo vivido, termos acesso ao sentido de suas ações, devemos pensar também o animal como sujeito. Essa perspectiva nos parece altamente desejável tratando-se de tentar compreender o funcionamento da mente humana - pelo menos nesse momento específico de desenvolvimento de nossa ciência.

Cremos que Piaget pode ser um exemplo desse tipo de enfoque. Estudando a inteligência infantil, a partir de observações do comportamento, infere as necessárias estruturas que a fundam e determinam. Conforme a criança cresce, modificam-se suas formas de compreender, ou informar os estímulos, ou melhor, os" estímulos" vão, graças a novas estruturações, sendo configurados de modo diferente. Acontece que à medida que tais "estímulos" vão sendo constituídos, por isso mesmo simultaneamente constitui-se e modifica-se num pólo oposto o eu que assim os in-forma.4 4 Piaget (1975): "... A inteligência não principia, pois, pelo conhecimento do eu nem pelo das coisas como tais, mas pela sua interação; e é orientando-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que a inteligência organiza o mundo, organizando-se a si própria." (p.330). E aqui, as informações e estudos piagetianos necessariamente teriam que cruzar-se com as teorias psicanalíticas.

Tradicionalmente, a Psicanálise constitui-se focalizando seus interesses sobre a vertente afetiva do ser humano, chegando até algumas vezes a colocar o cognitivo em um segundo plano (por exemplo, bloqueios cognitivos explicados pelo afetivo). Mas aparentemente esses aspectos são simultâneos e indissolúveis - a compreensão, o sentido dado a um estímulo, carrega consigo o afeto ou emoção pertinente àquela compreensão e a conseqüente ação do indivíduo. Assim é impossível encarar a afetividade ou a cognição desconectadas uma da outra. Pensar a afetividade remete ao que e ao como um estímulo está sendo significado cognitivamente pelo indivíduo (a clínica é plena de exemplos nesse sentido). Do mesmo modo que o sentido cognitivo carrega com ele a direção da afetividade. Essa dicotomia tem sido modernamente criticada - Piaget inclusive a considera um falso problema.5 5 Piaget (1954, p.67) citado por Décarie (1962, p.190): "Não existem condutas afetivas e condutas cognitivas: elas são sempre uma e outra ao mesmo tempo. Estes dois caracteres não são então distintos senão pela análise, que graças à abstração destinada a estudar seu mecanismo respectivo, mas no real, tudo apresenta simultaneamente os dois aspectos (...) é absolutamente sem sentido perguntar-se qual é, entre eles, a relação de causalidade, ou mesmo a relação de anterioridade: um aspecto não é a causa de um outro aspecto, não é anterior a um outro aspecto, eles são complementares porque um dos dois processos não pode funcionar sem o outro." Nesse sentido não haveria afeto sem sentido nem sentido sem afeto. As teorias cognitivas e alguns psicanalistas modernos que as levam em conta aboliram tal dicotomia pensando e redefinindo o termo cognição como constituído desses dois aspectos inseparáveis.6 6 Imbasciati (1991): "... o estudo das crianças colocou em pleno relevo a limitação e a contingência da diferenciação entre afeto e cognição: as crianças evidenciaram plenamente os afetos (...) mostram que os afetos são a forma da sua cognição do mundo e de si mesmo. Tanto mais quanto mais a criança é de tenra idade. Também os estudos etológicos, além dos psicanalíticos, chegam à mesma conclusão em relação às crianças e aos animais. O afeto é a forma primitiva da cognição. (...) O afeto é um esquema funcional, primitivo da mente, que serve à adaptação e portanto à cognição, que representa a direção mais evoluída da adaptação ..." (p.24-5).

Alguns psicanalistas têm-se preocupado com o problema da constituição das representações do real na mente da criança - como o" mundo" acaba por "fazer parte" da mente - e mais, como representações pertinentes (capazes de possibilitar a troca adaptativa com o meio) podem vir a ser constituídas. Money-Kyrle, por exemplo, afirma que o objetivo da teoria psicanalítica seria tomar em exame e descrever, por assim dizer, do interior, o modo pelo qual a criança descobre e ao mesmo tempo, em certo sentido, cria o mundo onde vive (l979, p.80). Esse autor, criticando o enfoque psicanalítico, diz que

ignorar os primeiros estágios do desenvolvimento intelectual é ... unilateral e pode conduzir a uma enganosa concepção da criança como um ser dotado de emoções primitivas em confronto com uma espécie de mundo intelectual adulto. (p.83).

Relembra as idéias psicanalíticas sobre a não-existência no início da vida da diferença entre sensação, de um lado, e a memória ou fantasia, de outro (entre o que Hume chamou de impressão e idéia). Nesse momento o mundo tem um modelo monista; mais tarde se tornará "realista" e, por fim, dualista (no sentido filosófico dos termos). Como não existe diferença entre idéia e impressão, as idéias não podem ser referidas a impressões. Assim não poderia haver qualquer sentido referente ao passado e ao futuro. Tudo que existe, existe no presente7 7 Perguntamo-nos com freqüência diante do material clínico se aquilo que tomamos como patológico, na produção do paciente, não poderia ser simplesmente o reaparecimento de algo registrado por ele fora de um continuum espaço-temporal (ainda não constituído na época do registro). Se as idéias de Ferrão forem pertinentes (no sentido de serem memórias alucinadas), caso haja qualquer rememoração daqueles registros numa consciência atual, ela será sempre vivida como presente, provocando sérios problemas na leitura do real. Se ao registrar o fenômeno não havia possibilidade de localização que o diferenciasse do presente, caso posteriormente reapareça, terá de ser interpretado como presente. e nada que não seja presente existe. Além do sentido de mudança ou de movimento, o mundo não tem ulterior extensão no tempo (Money-Kyrle, 1979, p.86). Também não foi ainda desenvolvida uma imagem corporal, além de ter perdido, pelo trauma do nascimento, aquela imagem rudimentar já formada no útero (p.87). Desse modo, no início não poderia haver um referencial fixo nem em relação ao mundo nem em relação ao próprio corpo, isso terá de formar-se. A partir desse ponto, a nosso ver, Money-Kyrle vai explicar tal formação atendo-se ao modelo kleiniano. Mais tarde dirá: "Queremos saber como, de flutuantes modelos sensoriais, emerge uma idéia de um objeto permanente, e mais, como certos objetos, i.e., os corpos animados, vêm a ser dotados de mente ou de personalidade." (p.91).

E novamente as respostas vão conformar-se às teorias psicanalíticas vigentes, quando, a nosso ver, já estariam à sua disposição outras possibilidades de respostas muito mais consistentes do ponto de vista científico.

Enfim Décarie (1962) afirma que

a grande maioria dos psicanalistas está de acordo com Piaget em ver na evolução da afetividade uma reestruturação do universo, reestruturação que é efetivamente o produto de uma descentralização, onde processos perceptivos e intelectuais desempenham um papel considerável. (p.190).

Mais do que um "papel considerável", cremos poder dizer que um é função do outro, reciprocamente.

Pensar na afetividade requer antes de mais nada a possibilidade de estabelecimento de uma noção de objeto ou de uma permanência do objeto - o que nos remete ao problema da constituição de uma representação. Mas para haver tal ocorrência, diversas condições têm de ser preenchidas. Piaget, justamente em função do problema da constituição do real na criança, vai condicionar a formação de tal permanência do objeto e futura representação à constituição das noções de tempo, espaço e causalidade (alguns autores, como Décarie, por exemplo, tentam correlacionar experimentalmente as etapas evolutivas da formação do objeto em Piaget com o desenvolvimento das relações objetais segundo o modelo psicanalítico).

A Psicanálise por sua vez prioriza a relação afetiva com a mãe como fundamental na constituição da personalidade do indivíduo. Piaget relembra, com respeito a essa eleição, algo que os psicanalistas não parecem levar em conta nessa avaliação: que além de objeto afetivo, a mãe (ou substituto) é um excelente objeto cognitivo. Piaget (1954, p.66), citado por Décarie (1962, p.200), diz:

A pessoa do outro é um objeto afetivo, bem entendido, em grau supremo, mas é ao mesmo tempo o objeto cognitivo o mais interessante, o mais vivo, o mais imprevisto, a mais instrutivo, e neste nível, objeto, eu repito, que é fonte de percepção, de ações de todo gênero, de imitação, de causalidade, de estruturação espacial. Assim, a pessoa do outro é um objeto que supõe uma multidão de trocas nas quais intervêm fatores cognitivos tanto quanto fatores afetivos, e se é de importância predominante quanto a um destes dois aspectos, ele o é, eu penso, tanto quanto ao outro.

Deixando de lado os aspectos cognitivos que o objeto também representa, a passagem de uma "interioridade" solipsista para uma" exterioridade" de relações fica sem fundamentação compreensiva, o que obrigará que tal fundamentação seja buscada em outras fontes (em geral teóricas) dentro da Psicanálise. Afim de dar conta do jogo dialético que a relação com esse objeto permite, constrói-se toda uma troca teórica (com ele e com a realidade) sobre como essa passagem se dá, toda ela montada sobre uma afetividade já bastante elaborada (de partes "boas" e "más" que se quer conservar como próprias ou não, que são "projetadas" fora, etc.) esquecendo-se da própria observação da Psicanálise sobre a impossibilidade de perceber-se um objeto total no início da vida. Dada a natureza dessa visão parcial deste objeto, constróem-se outras teorias para explicar a sua não integração (ataque ao vínculo, inveja, cisão etc.). Então, mesmo quando as características da situação exigem que se pense cognitivamente sobre o assunto, este necessário ponto de vista é trocado por um enfoque essencialmente afetivo. Diz-se que os psicanalistas concordam com Piaget sobre a necessidade de pensar-se cognitivamente sobre o assunto, mas no limite, ao priorizar o afetivo, mantendo pois a dicotomia, o cognitivo entra apenas como mero coadjuvante, evidenciando que a leitura do problema continua presa a esquemas teóricos prévios, de interpretação dos fatos; e mais, que epistemologicamente falando, fica totalmente neutralizada essa aparente consideração sobre o cognitivo.

Ao contrário então de Piaget, que não faz desse objeto (mãe) algo de natureza diferente - ele é somente um objeto privilegiado em oferecer oportunidades cognitivas - a Psicanálise não dá conta, em sua teoria, da evolução e modificações das representações a partir dos primeiros objetos (bizarros) - portanto não pertinentes a uma adequação ao real. Imbasciati aponta justamente não haver na Psicanálise uma teoria da aprendizagem.8 8 Imbasciati, (1991): "A dificuldade de considerar na psicanálise uma teoria da aprendizagem parece estar ligada ao fato de que o estudo psicanalítico está centrado sobre o inconsciente e o conceito de inconsciente, assim como mais comumente é proposto, parece pouco idôneo aos olhos dos experimentalistas para explicar o processo cognitivo gerado pela experiência ..." (p.88-9). Ao privilegiar o afetivo, mesmo quando parece reconhecer a necessidade de levar em conta os estágios cognitivos precoces, ela retira do continuum evolutivo a própria explicação desse afetivo. Em Klein chega-se, por exemplo, ao absurdo de pensar-se a possibilidade precoce de percepção de um objeto integrado, que por cisão (explicada teoricamente) tornar-se-ia dividido, formando objetos parciais e inadequados para dar conta do real (onde os objetos seriam percebidos como totais, i.e., integrados). Imbasciati vai apontar que, dentro da ordem do cognitivo (ele não o considera fruto da" cisão"), há possibilidade e necessidade de considerar o objeto como não-integrado ao invés de "cindido", como pensa Klein. Wolff (1960) comenta:

... As descobertas de Piaget sublinham assim a possibilidade do papel de adaptação das primeiras fantasias e nos colocam em guarda contra as reconstruções psicanalíticas da vida mental no início da existência, que assumem que o bebê alucina desde então objetos distintos, relações espaciais e causais etc. (p.166).

Assim, não encontramos de fato, dentro do pensamento psicanalítico, mesmo quando afirma a necessidade de levar-se em conta os aspectos cognitivos, uma verdadeira e coerente reformulação de seus conceitos e fundamentações. As novidades apenas convivem sem atrito com o já estabelecido, indicando haver uma aparente barreira impedidora de uma verdadeira crítica dos princípios básicos do sistema.9 9 A. Imbasciati, L’oggetto e le sue vicissitudini, faz interessantíssima leitura cognitiva das características das posições esquizoparanóide e depressiva de M. Klein, explicando inclusive desse modo (cognitivo) a passagem de uma a outra. A nosso ver o empecilho fundamental que caracterizaria tal barreira encontra-se na noção de inconsciente definida pelas teorias psicanalíticas como tendo origem no recalque (único inconsciente passível de operatividade). Esse conceito tornaria impraticável estabelecer correlações criativas e críticas com o resto da Psicologia, mesmo com aquelas partes aparentemente integradas no universo conceitual psicanalítico. Compreendido antes de tudo como um "mecanismo de defesa", tal inconsciente apresenta uma natureza de todo incompatível com a possibilidade de cruzar-se com informações advindas de outras ciências. Ele implica subjetivamente uma noção de ser humano desvinculada de um continuum filogenético. O problema não é apenas de "quantidade", como pode parecer, mas a nosso ver de "qualidade" ou essência. Com isso ela fica impedida de estabelecer correlações com outras áreas que poderiam ser altamente benéficas para a orientação científica da pesquisa psicanalítica.

No intuito de tentar estabelecer as condições de origem da teoria dos mecanismos de defesa em Freud (que configura os fundamentos desse tipo de inconsciente) recorremos ao prefácio que Diatkine faz sobre a noção de recalque encontrada na obra organizada por Grunberger e Chasseguet-Smirgel. Esse autor reafirma ser o conceito de recalque ainda hoje fundamental na teoria psicanalítica, essencial para a compreensão do sintoma neurótico e psicótico. Como Freud o criou?

Sua origem foi concebida como uma forma de explicar as dificuldades de rememoração encontrada por Freud nos processos de cura. Nesse sentido tal conceito vai permitir a Freud explicar o esquecimento. Como durante o tratamento psicanalítico ocorrem rememorações espontâneas das lembranças aparentemente esquecidas, chega-se à conclusão de que elas não estavam apagadas, mas somente armazenadas separadamente da consciência. O conceito de pré-consciente virá completar a explicação como o lugar de tal armazenamento. Outro argumento de inferência será a amnésia infantil - ela também é tomada como ilustração do recalque. Segundo Freud o esquecimento não pode ser explicado por uma imaturidade neurológica da criança. Essa consideração é descartada frente às observações por um lado de que ela tem uma boa capacidade de evocar alguns fenômenos, e por outro que tal esquecimento tem a qualidade de ser seletivo (referir-se essencialmente a um certo número de afetos e representações importantes da criança, ligados principalmente ao período edípico); sendo assim, o esquecimento aqui será compreendido como uma solução de contradições inerentes ao desenvolvimento da sexualidade infantil ligadas ao complexo de Édipo. Um ponto ressaltado por Freud são as alterações surpreendentes de tal esquecimento - este ocorre com apenas alguns meses de diferença da fase em que o fato em questão era perfeitamente lembrado. E acrescenta, como mais um elemento de comprovação, a observação de que este tipo de fenômeno - essa "mutação espantosa" - coincide com a fase de latência. Assim Freud explica o esquecimento pelo processo de recalque diretamente ligado ao declínio do complexo de Édipo e, portanto, como resultado direto de complicações que se desenvolvem em relação à identificação com o pai e a conseqüente rivalidade com o mesmo. O recalque será então a "única saída para esse conflito insolúvel." (Diatkine, 1979, p.12).

Como contraprova dessa teoria do recalque cita-se a rememoração das lembranças esquecidas, uma vez estabelecida a cura psicanalítica. A partir dessas observações Freud chega à conclusão de que o recalque seria um processo ativo destinado a retirar da consciência desejos e representações que estão em contradição com outros movimentos psíquicos, tendo assim a finalidade de afastar os afetos indesejáveis. Afim de representar as contradições do recalque mental, Freud propõe o modelo da segunda tópica - id, ego e super-ego. Seria então a introjeção do super-ego o responsável pelo recalque, iniciando-se assim a fase de latência. Também atribuível ao recalque são as dificuldades que surgem durante o processo da cura psicanalítica. As resistências à cura serão consideradas como resultantes da "força ativa do recalque." (Diatkine, 1979, p.13).

Freud fará a hipótese do recalque primário para edificar uma teoria coerente do recalque secundário; pressupõe a necessidade muito precoce de recalcar uma parte do que é organizado pelo psiquismo humano. Para ele, desde o final do primeiro ano, quando a criança estabelece a possibilidade de formar representação de objeto (mãe), começam os jogos de amor e ódio referentes a ela que serão manejados projetando-se aqueles ligados ao ódio e conservando-se (como próprios) os ligados a afetos amorosos. "Este será o protótipo de um dos processos defensivos dos mais primitivos, justificando a utilização do conceito de recalque primário. M. Klein mostrou as relações do recalque primário com a clivagem do objeto" (Diatkine, 1979, p.14), portanto ainda bem mais precocemente.

Assim, o recalque tenderia a retirar da consciência a representação de desejos incompatíveis. O desejo é considerado na teoria psicanalítica freudiana como representante da pulsão - será então necessário explicar de onde ele retiraria sua energia. O conceito de contra-investimento será o responsável pela explicação da força do recalque, sua intervenção tendo o propósito de diminuir as tensões ligadas ao princípio prazer-desprazer. Na segunda tópica da metapsicologia freudiana os contra-investimentos serão o resultado do conflito entre ego, id e super-ego.

Parece claro nesse resumo de Diatkine que a teoria do recalque e dos mecanismos de defesa é ainda hoje central na Psicanálise, já que define a própria estrutura do inconsciente e, portanto, é essencial na formulação da teoria das neuroses. Porém, a nosso ver, a única observação que poderia fundá-la consistentemente (não na teoria) - o fenômeno do esquecimento - encontra-se ligada a uma teoria sobre o esquecimento. A prova de sua correção, segundo Freud, remete por sua vez à possibilidade de rememoração, quando a cura psicanalítica removeria as resistências.

O primeiro ponto mencionado nos abriga a pensar que Freud imaginou uma teoria do esquecimento em um momento em que uma teoria da memória só poderia ser extremamente primitiva (a neurofisiologia e a Psicologia da época não ofereciam condições para algo mais evoluído). Pode-se então dizer que sem "saber" o que seria a memória (ainda hoje esse estudo encontra-se muito aquém do desenvolvimento desejado10 10 Comentando as idéias de Osmyr Gabbi Júnior, Ades (1993, p.17) pergunta- se "em que medida a memória, tal como (implicitamente) pensada por Freud, poderia ser traduzida (...) nos termos com os quais comumente nos referimos à memória na pesquisa psicológica. Parece-me, de um lado, que o sentido freudiano de ‘memória’ não se sujeita a redução - direta, conceitualmente simples - aos mecanismos que o psicólogo costuma postular (aquisição, retenção, evocação de informação). Há mais na passagem de uma fase libidinal a outra (como pensa Osmyr Gabbi Junior) do que uma questão de lembrar-se e esquecer." ), Freud explica o esquecimento. E esta explicação está na base de sua teoria sobre o funcionamento mental.

O segundo ponto é tomá-lo como explicação da amnésia infantil (descartada a idéia de imaturidade neurológica, ela também é ligada ao recalque). E aqui a problemática torna-se crucial se forem levadas em conta as descobertas da Psicologia genética.11 11 Também torna-se altamente comprometida com relação à possibilidade de compreensão do mesmo assunto dentro da psicologia animal. Tratar-se-ia de duas memórias? Cremos que a possibilidade de configurar o problema dentro do continuum homem-animal deva ser considerado. Como explicar o "esquecimento-recalque" na dimensão do animal? Cabe neste momento a ressalva de que Freud não tinha absolutamente obrigação de antever os problemas implicados em muitas de suas formulações. Suas teorias estavam respaldadas naquilo que as ciências da época tinham a oferecer-lhe. O problema todo está em que noções tão incipientemente baseadas em hipóteses obsoletas (uma Neurologia e uma Psicologia superadas) continuem fundamentando as modernas teorias psicanalíticas, embora encontrem-se à sua disposição conhecimentos que deveriam levar necessariamente a reformulações.

No terreno da amnésia infantil, questões como a formação das noções de tempo, espaço, objeto e causalidade, por exemplo, têm de ser levadas em conta na apreciação do "esquecimento", ou melhor, têm de ser pensadas antes de tudo com relação à possibilidade do próprio fenômeno ligado à época da fixação dos dados. Se o sentido ou o recorte de uma determinada situação depende da estrutura estruturadora própria de determinado momento do desenvolvimento do indivíduo, como ficam as "lembranças" quando tal estruturação da realidade muda drasticamente com a reformulação dessas estruturas, determinada pelo desenvolvimento? Por exemplo, se em determinado momento não houver condições cognitivas que permitam o reconhecimento como único de um objeto estruturado segundo vivências diferentes, qualquer elemento que mude na experiência do sujeito será suscetível de determinar experiências diferentes e conseqüentemente noções de objeto também diferentes. E se tais estruturas estruturadoras modificam-se conforme vão se compondo de novos esquemas - (determinados pelas necessidades constantes de uma acomodação exigida pela realidade externa e por uma assimilação que igualmente modifica os sistema internos de apreensão)? Como pensar antigas significações (provindas de estruturas estruturadoras já superadas) dentro de um contexto novo de recorte da realidade? Que tipo de memória poderia haver sobre algo que tivesse sido armazenado, por exemplo, fora de um continuum espaço-temporal (ainda não formado)? O que poderia aparecer na mente do indivíduo pertencente a estágios mais desenvolvidos se pudesse ocorrer uma rememoração de uma época em que só houvesse o que, de fora, chamaríamos de "presente"?

Enfim, um terceiro ponto sobre a rememoração de fatos" esquecidos": outras técnicas de trabalho terapêutico poderiam dar conta do mesmo fenômeno. No que se refere à nossa própria experiência clínica (onde operamos independentemente das teorias sobre o inconsciente psicanalítico, mecanismos de defesa etc.) também registramos o aparecimento do mesmo fato (rememoração) quando o paciente consegue reorganizar suas representações, tornando-se apto a configurar o antigo de outro modo. Cremos poder tratar-se de uma característica inerente à memória, antes de mais nada. Talvez não estivesse propriamente ligado ao esquecimento (ou recalque), mas a uma possível falta de representação, ou ligada a uma representação inadequada para que o fenômeno possa ser suscetível de um manejo mental atual. Por outro lado, ainda dentro especificamente do campo da memória, a necessidade de pesquisa sobre, por exemplo, o processo de armazenamento é imprescindível para tentarmos compreender a rememoração.

A caracterização do inconsciente como provindo do recalque, como pensa a teoria psicanalítica, seria, como dissemos no início, o ponto crucial que tornaria impossível, mesmo para autores psicanalistas de orientação cognitiva, estabelecer conexões e fazer verdadeiras reformulações a partir de outras tendências e descobertas no campo da Psicologia. Quando essas descobertas são levadas em conta (sensório-percepção precoce, etologia, cognitivismo moderno etc.), o são muito mais como justaposições ao sistema vigente do que como determinantes de revisões básicas no sistema teórico. Por outro lado, se nos detivermos sobre a objetividade da fundamentação do conceito de inconsciente em Freud, cremos poder colocar em dúvida sua necessidade, principalmente no que se refere à origem explicada pelo recalque (ou por qualquer mecanismo de defesa).

Essa noção de inconsciente parece ser necessária para dar conta de uma determinação do comportamento que se verifica completamente desconhecida para o sujeito. Freud conceituará tal determinação como uma defesa - no limite tratar-se-ia de uma recusa em conhecer tal determinação, mais do que uma impossibilidade de fazê-lo. Ora, tal caracterização por si mesma induz a uma série de problemas, aparentemente insolúveis.

Primeiramente, trata-se de uma operação que requer um desenvolvimento cognitivo que a criança ainda não possui. As observações de Piaget de há muito explicitam o fato - as teorias kleinianas são um exemplo de afirmações que seriam impossíveis se fossem levadas em conta as lacunas desse desenvolvimento cognitivo.

Tratar-se-ia também da estranha convivência de um inconsciente que implicaria uma espécie de "consciência", uma vez que para que se possa negar ou "não querer saber", de alguma forma tem-se que "saber"- justamente para poder selecionar-se o que se quer manter como fazendo parte de si ou não.

Mas se nos ativermos apenas à caracterização do inconsciente como um comportamento cuja determinação "não se conhece" (observação ao invés de teoria), a sua explicação poderia ser pensada como tendo origem em algo diferente do recalque.12 12 Imbasciati, (1991): "Freud considera o inconsciente tomando como ponto de partida a consciência: de fato, fornece uma explicação do inconsciente com o conceito de recalque. (...) Eu acredito que de acordo com os desenvolvimentos mais recentes da Psicanálise seja útil considerar o inconsciente prescindindo mais decididamente de uma consideração da consciência, ou melhor, invertendo a pergunta inicial: devemos perguntar não porque existe o inconsciente, mas porque nos processos mentais comparece num certo ponto aquele caráter experimentado como ‘consciente.’ (...) A ótica na qual me movo no presente livro considera o inconsciente como intrínseca ausência de consciência. (...) O inconsciente não é devido a qualquer operação particular, tipo recalque, já que não são ainda diferenciadas aquelas operações e aquelas estruturas operativas que tornariam possíveis tais eventos psíquicos - como o comparecimento do auto-conhecimento do sujeito. (...) Por si mesmos os processos inconscientes quanto mais são primitivos e indiferenciados, mais são a-conscientes, no sentido de não serem aplicáveis a eles os códigos do auto-conhecimento." (p.52-3).

Uexküll (1956), focalizando a adaptação humana e animal ao meio, fala de "imagem e esquema de pesquisa" referindo-se a imagens mentais funcionando como verdadeiras expectativas orientadoras na busca do objeto externo. Essa imagem ou esquema de pesquisa pode chegar a "anular a imagem percebida"; literalmente, suas descobertas revelam um tipo de imagem mental que pode impedir ou mascarar uma percepção, i.e., dada tal expectativa de um objeto (mental, portanto) esta pode funcionar como impedidora da percepção; o objeto real então não teria, diríamos, "lugar" para poder aparecer para a percepção. Nesse caso caberia dizer que houve uma negação (sentido psicanalítico de mecanismo de defesa)?

Cremos ser mais razoável pensar que parece haver tanto no homem como no animal (segundo os exemplos do autor) um processo "inconsciente" determinando ou impedindo a observação do real. Assim sendo, teríamos aqui um exemplo da existência de algo no nível do mental que poderia eventualmente ajudar ou impedir a ocorrência dos processos perceptivos necessários à adaptação ao objeto externo.

Posta nestes termos, a visão do psíquico e da própria patologia poderiam ganhar um vértice de compreensão totalmente diferente: as desadaptações poderiam ser pensadas como provenientes de recortes cognitivos impróprios que o indivíduo faria da realidade; conseqüentemente complica-se a visão da mesma e, como resultado, tem-se "informes" errôneos que levariam a reações não pertinentes a uma adaptação. De há muito sabe-se em Psicanálise que os distúrbios adaptativos são correlatos a dificuldades no pensar.

Considerando os objetos internos primitivos descritos pela Psicanálise, Imbasciati (1991) diz que:

apesar de eles não serem uma representação, strictu sensu, eles servem sempre ao sujeito para representar-se o mundo (...) e (portanto eles são) (...) a unidade operativa da sua cognição (do bebê). (...) O conceito de representação, portanto, entendido em sua acepção moderna (de esquema codificado em símbolos internos, operativos para a interação com a realidade externa) estudada pela Psicologia experimental atual (...) deveria ser referido não só à experiência cognitiva consciente, como na tradição experimental, mas também àquela inconsciente: de fato, é feito nos estudos experimentais modernos. (p.28).

E mais adiante:

Em geral os autores mais modernos, sobretudo de escolas cognitivas americanas, concordam em subentender uma acepção muito extensa do termo representação e em dar ao conceito o significado geral de esquema operativo codificado em memória. (p.30).

A noção de estrutura estruturadora pretende descrever fenômenos que implicam num esquema codificador dos inputs e que transformam-se conforme os diferentes fundamentos das possibilidades de estruturar vão sendo constituídos durante o desenvolvimento do indivíduo. Elas não seriam então nem pré-formadas nem fruto de um simples processo de maturação, mas seriam uma verdadeira construção do sujeito, que no mesmo ato se constitui. Por esse motivo eles vão ser totalmente diferentes conforme a possibilidade do momento vai permitindo a formação dessas estruturas estruturadoras. Correlatamente teremos uma série de "resultados" experienciais que vão divergir radicalmente entre si segundo as estruturas estruturadoras que os configuram. Tais estruturas estruturadoras teriam dois aspectos principais a serem considerados: primeiro, como estruturas formais (sem conteúdo) através das quais estruturam-se, organizam-se as experiências num determinado momento da vida. Num segundo aspecto, teríamos os resultados de tal recorte (os conteúdos) - idéias, representações, teorias, etc. - que necessariamente mudam segundo as transformações sofridas por estas estruturas estruturadoras. Assim poderíamos conceber aqui uma dupla possibilidade de inconsciente; por um lado, aquilo através do qual organizam-se as experiências e que, por isso mesmo, é desconhecido pelo indivíduo que as usa. Sua aplicação é automática (Piaget, 1973a). Por outro lado, os "resultados" oriundos das diferentes organizações das experiências ao longo da vida devem estar primeiro armazenados (atualmente fala-se da possibilidade de memórias muito precoces no indivíduo) no que conhecemos pelo nome de memória.13 13 Experiências clínicas nos fazem pensar ser tal "armazenamento" muito mais amplo do que a precisa "lembrança" que nos foi dado observar. Ele possivelmente constitui um conjunto de lembranças, resultado de tudo que pôde ser registrado pelo indivíduo no momento da fixação - desde o próprio esquema corporal relativo a essa época, até a própria noção de si mesmo (grande ou pequeno), da realidade e, às vezes, pensamos que até o vocabulário relativo àquele momento de registro. Por isso mesmo uma lembrança específica de tal conjunto, além de ser fruto direto da estrutura estruturadora do momento em que foi concebida, poderia eventualmente ser evocada por um desencadeador atual ligado a qualquer parte desse conjunto. Seria impensável que, estando operando desde dentro de um determinado esquema estruturador, o indivíduo conseguisse simultaneamente organizar-se segundo estruturas diferentes. Aliás, quando repentinamente há mudanças nessa estruturação (exemplos da clínica) devido a alterações de ponto de vista que tornam obsoletos os resultados da antiga estruturação, a reação do indivíduo costuma ser de achar graça do absurdo daquilo que até um momento anterior era para ele a realidade. Coerentemente, então, ocorridas alterações na cognição, temos resultados diversificados, muitas vezes determinando uma reação afetiva oposta àquela permitida pela estruturação do momento anterior.14 14 Piaget (1973a): "A tomada de consciência constitui, pois, uma reconstrução no plano superior do que já está organizado, mas de outra maneira, no plano inferior, e as duas perguntas são então a da utilidade funcional dessa reconstrução e a de seu procedimento estrutural." (p.33). E mais: "Do ponto de vista da utilidade funcional, Claparède já tinha observado que a tomada de consciência se produz por ocasião de uma desadaptação, porque quando uma conduta é bem adaptada e funciona sem dificuldades não há razão para procurar analisar conscientemente seus mecanismos." (p.41).

Ora, se nossas considerações tiverem alguma pertinência (obviamente seriam necessárias mais observações e experimentações) poderíamos esperar uma leitura totalmente diferente tanto da "patologia" quanto do" tratamento", i.e., suas implicações sobre a noção de "doença" mental e processos clínicos de diagnóstico e tratamento teriam de ser reformulados.

Se definirmos então uma noção de inconsciente não derivada de qualquer recalque (que, segundo pensamos, é uma teoria específica de explicação do esquecimento)15 15 Piaget pergunta-se: "... por que alguns esquemas sensório-motores se tornam conscientes ... enquanto outros permanecem inconscientes? É porque esses últimos são contraditórios com certas idéias conscientes anteriores (...) e que o esquema sensório-motor utilizado e a idéia preliminar anterior são pois incompatíveis. (...) Encontramo-nos assim numa situação muito comparável à do recalque afetivo: quando um sentimento ou um impulso parecem estar em contradição com sentimentos ou tendências de posição superior (...) eles são eliminados graças a duas espécies de processos: uma repressão consciente ou um recalque inconsciente (comparando com o mecanismo do inconsciente afetivo ele diz). (...) Ora, observamos um mecanismo análogo no terreno cognitivo. (...) Ela (a criança do experimento) afastou, pelo contrário, a tomada de consciência do esquema, quer dizer que ela repeliu o esquema do campo da consciência antes que ele penetrasse sob a forma conceitualizada (e veremos (...) que não há outra possível porque mesmo uma imagem mental se refere a um conceito)." (Piaget, 1973a, p.39-40). seria possível observar por um ângulo diferente do tradicional a problemática da "doença" e do "tratamento" - o que talvez pudesse amenizar as descontinuidades entre os vários setores da Psicologia a que nos referimos no início do trabalho.16 15 Piaget pergunta-se: "... por que alguns esquemas sensório-motores se tornam conscientes ... enquanto outros permanecem inconscientes? É porque esses últimos são contraditórios com certas idéias conscientes anteriores (...) e que o esquema sensório-motor utilizado e a idéia preliminar anterior são pois incompatíveis. (...) Encontramo-nos assim numa situação muito comparável à do recalque afetivo: quando um sentimento ou um impulso parecem estar em contradição com sentimentos ou tendências de posição superior (...) eles são eliminados graças a duas espécies de processos: uma repressão consciente ou um recalque inconsciente (comparando com o mecanismo do inconsciente afetivo ele diz). (...) Ora, observamos um mecanismo análogo no terreno cognitivo. (...) Ela (a criança do experimento) afastou, pelo contrário, a tomada de consciência do esquema, quer dizer que ela repeliu o esquema do campo da consciência antes que ele penetrasse sob a forma conceitualizada (e veremos (...) que não há outra possível porque mesmo uma imagem mental se refere a um conceito)." (Piaget, 1973a, p.39-40).

Focalizando essa problemática no interior das considerações sobre a genética das diferentes possibilidades de estruturação da experiência, e usando (por isso mesmo) uma noção de inconsciente diferente da Psicanálise (como aquilo que pode ter uma eficiência determinadora do comportamento, com a característica de não ser conhecido pelo sujeito) cremos poder aliar possibilidades teóricas e práticas de orientação mais científica do que até então.

O "esquecido" - pedra fundamental na constituição da própria Psicanálise - mesmo que pudesse ter sido uma lembrança de há pouco, poderia ser pensado em termos de mudanças radicais nas estruturas estruturadoras vigentes até o momento e responsáveis pela sua constituição enquanto tal. O próprio Freud coloca o fenômeno desse "esquecimento" seletivo como referido ao aparecimento da fase de latência. Ora, esse é um momento crucial no desenvolvimento das estruturas cognitivas do indivíduo. Segundo Piaget, nesse momento completam-se, na sua formação, as estruturas típicas do período sensório-motor. Com isso, a noção de si mesmo e da realidade apresentam-se completamente diferentes das concepções anteriores.17 17 Piaget (1973a): "Ora, é importante constatar que, por volta dos sete anos, se constitui precisamente uma série destes sistemas de conjunto, que transformam as intuições em operações de todas as espécies. É o que explica as transformações do pensamento... Sobretudo surpreendente ver-se como estes sistemas, por uma espécie de organização total e às vezes muito rápida, se constituem sempre em função da totalidade das operações do mesmo gênero, não existindo nenhuma operação em estado de isolamento." (p.51).

Nestes termos, uma lembrança possível no período anterior poderia, literalmente, não encontrar sentido na nova "cabeça"- tal lembrança seria uma espécie de corpo estranho, já que, decodificado pela nova estrutura, aquele resultado (da anterior) seria impensável. Um exemplo óbvio de uma situação semelhante estaria numa tentativa atual de pensarmos nossas experiências fora da categoria temporal. No entanto, sabemos que houve uma época em que tal categoria encontrava-se ausente da organização de nossas experiências. Assim, uma "lembrança" (que poderia inclusive não remeter a qualquer representação - ainda eventualmente não formada ou não funcionalmente pertinente ao pensar) de uma época antiga, ou pior ainda, uma concepção de algo configurado formalmente segundo moldes antigos, produziria resultados altamente inadequados em relação a uma estruturação atual do sujeito.18 18 Fenomenologicamente falando, cremos que a assim chamada "síndrome do pânico" poderia ser um bom exemplo dessa situação. Aparentemente sem motivos (pertinentes) a pessoa começa a ter idéias que acarretam pânico, com relação a determinada área, enquanto o resto de sua personalidade parece funcionar adaptadamente. No trabalho clínico com tais situações pareceu-nos útil esse enfoque do problema, determinando uma tentativa de recuperação, nessas áreas afetadas, de uma possibilidade de estruturação condizente com a atualidade do indivíduo. Tal resultado seria literalmente a" loucura", ou a "patologia", se quisermos conservar os termos. Porém, poderia também ser interpretado como uma "lembrança" inoportuna, i.e., fora do continuum atual possível de representação do real . Nesse caso, ela em si não seria o "patológico" , mas o obsoleto. Assim, se não houver automaticamente uma correção de acordo com uma forma de pensamento atual (uma estrutura estruturadora atual quando ela existir - o que pode ser percebido observando-se que o indivíduo é capaz, em outras áreas, de uma estruturação pertinente ao seu desenvolvimento), o resultado poderá ser a determinação da significação do atual em termos do passado, acarretando, portanto, desadaptação. Nesse sentido o "patológico" estaria exatamente aí: como um indivíduo que apresenta possibilidade de estruturar suas experiências condizentes com um recorte baseado em estruturas estruturadoras atuais (únicas a permitirem a adaptação do indivíduo dentro de sua específica faixa etária) pode, em outro momento, concebê-las segundo pontos de vista ultrapassados?

A impossibilidade de pensar tem sido uma característica bem observada pela Psicanálise (principalmente por Bion) no funcionamento de neuróticos e psicóticos (correlatamente também verificam-se alterações em relação às categorias de tempo e espaço, por exemplo). O pensamento (tido como forma mais evoluída de adaptação) perde ou tem diminuída sua função de ajuste do indivíduo ao seu meio (interno e externo). Volta (ou não se construiu) a predominar um funcionamento cognitivo onde verificam-se defeitos em algum ponto nas suas estruturas estruturadoras. Um dos mais comuns desses problemas observados na clínica é a famosa onipotência, impedindo um correto posicionamento do sujeito frente à realidade; i.e., o indivíduo funciona através de estruturas estruturadoras onde vigora uma posição egocentrada, que naturalmente tem de ser superada para que a adaptação possa ocorrer. Enfim, o termo onipotência implica e abarca um tipo de condição cognitiva que impede a formação de representações aptas a observar a realidade - daí a desadaptação.19 19 Presenciamos certa vez algo que acreditamos tenha a ver com o problema. Uma pessoa em viagem (pensamos ser esta uma situação que pode provocar desestabilizações nas pessoas), chegando a uma grande avenida ornada de altas palmeiras (2 a 3 metros), cujos troncos apresentavam-se em forma oval e cor amarelada, marchetados por triângulos, resultados de marcas de antigas implatações de folhas, comentou: "Olhem, abacaxis!". Imediatamente notou o absurdo de sua interpretação, levando o grupo a rir muito do "engano". Aqui parece-nos haver um exemplo em que o significado do estímulo apoiou-se simplesmente na concretude da forma geral (dado mais direto da percepção) e deixou-se de fazer a correção necessária, levando-se em conta a relação tamanho-distância, para que o significado fosse "palmeiras" e não" abacaxis". Assim, também os problemas de adaptação mental podem, no limite, ser caracterizados de um ponto de vista de uma cognição deficitária em relação a uma justa e adaptada apreensão do real.

Aqui então o processo de tratamento - se ainda for pertinente tal termo - remete a uma tentativa de restabelecimento (quando existe) do uso da estruturação atual do indivíduo onde ela não aparece. Mais especificamente, seria uma tentativa no sentido de que representações mais condizentes possam aparecer em suas avaliações e, conseqüentemente, interpretações adaptativas possam originar-se dessa mudança de ponto de vista.

Uma das características que tornam o pensamento literalmente" capaz de pensar", i.e., capaz de localizar o indivíduo corretamente diante das exigências adaptativas da vida, é justamente seu poder formal, i.e., não ter conteúdo, permitir in-formar, dar forma, e, portanto, gerar conteúdo. Para exercer tal função, esses conteúdos não podem ser fixos (já que as necessidades adaptativas modificam-se a cada momento). Daí que toda interpretação onipotente, ou melhor, fixa, - digamos colada a ela mesma, sem abertura para transformações, - impede que essa característica de mobilidade necessária à função de pensar possa ocorrer.20 20 Piaget (1973b) "... por causa dessa indissociação primitiva, tudo que é percebido é centralizado sobre a própria atividade. O eu, no início, está no centro da realidade, porque é inconsciente de si mesmo e à medida que se constrói como uma realidade interna ou subjetiva, o mundo exterior vai se objetivando. Em outras palavras, a consciência começa por um egocentrismo inconsciente e integral, até que os progressos da inteligência sensório-motora levem à construção de um universo objetivo, onde o próprio corpo aparece como um elemento entre outros, e ao qual se opõe a vida interior localizada neste corpo." (p.19). Caberia então ao terapeuta o papel de dicotomizar, polarizar esse "único" para que tal mobilidade pudesse surgir e a possibilidade de comparar, para poder pensar, fosse introduzida. Ao terapeuta então estaria reservado o papel de ser uma espécie de cunha de dúvida nessas" certezas" absolutas, que permitisse abrir um espaço, possibilitando que outras interpretações pudessem ocorrer. Caberia a ele, enfim, tentar manter para o paciente o campo de observação em aberto, através do fornecimento de outra representação que problematizasse a única representação concebida por ele. Tal representação fornecida pelo terapeuta teria a qualidade principal de ser outra, mais do que verdadeira. Não se trata, no limite, de trocar uma representação "errônea" por uma outra "verdadeira", mas apenas de, com essa outra, abrir uma fissura em algo que está imobilizado porque coincide consigo mesmo (essa é uma das principais causas do erro no pensamento infantil: enquanto não forem bem estabelecidas as separações entre o eu e o mundo, necessariamente o que aparece na mente do bebê é único e verdadeiro para ele, e inquestionável; aliás, mais do que isso, não existe nem esse "ele" para saber dessas "certezas" - como diz Piaget -" há um narcisismo sem Narciso").

Assim, quando uma outra representação (as observações do terapeuta) desse mesmo puder ser registrada pelo paciente, o campo de possibilidades do pensamento (mais evoluído) também o será. Isto é, a intervenção" terapêutica" teria no limite a característica de introduzir artificialmente as condições para o pensar (a polarização) que se encontram desaparecidas no momento, devido à vigência de uma representação única, absoluta, oriunda de um modo egocentrado de considerar a realidade. Nesse sentido também o tratamento poderia ser compreendido como uma cognição corrigida. O "inconsciente" seria então a forma, ou a teoria advinda dessa forma, que continuaria a informar o real atual através de uma perspectiva obsoleta. E é inconsciente porque, por ser aquilo através do qual se estrutura ou qualifica a experiência do indivíduo, este não tem como percebê-lo.21 21 Piaget (1973a):" Numa palavra a estrutura cognitiva é o sistema de conexões que o indivíduo pode e deve utilizar e não se reduz absolutamente ao conteúdo de seu pensamento consciente, pois é o que lhe impele certas formas mais do que outras. E isso segundo níveis sucessivos de desenvolvimento cuja fonte inconsciente remonta até as coordenações nervosas e orgânicas." (p.37). "O inconsciente cognitivo consiste assim num conjunto de estruturas e de funcionamento ignorados pelo indivíduo, exceto em seus resultados ..." (p.35). Essa ignorância é a condição, diríamos, do uso automático das estruturas estruturadoras - só podemos nos dar conta de tal estruturação quando a focalizamos desde outro ponto de vista (outra estruturação). No caso da "patologia", tal estruturação tornou-se desadaptada à realidade do sujeito, obsoleta, e teria de ser "conscientizada" para que seu nível atual de estruturação percebesse sua falta de sentido. É nesse momento que uma representação diferente, fornecida pelo terapeuta, pode induzir o paciente a perceber a inadequação de seu ponto de vista único e, com isso, tomar consciência de seu próprio e "natural" (segundo sua idade) modo de estruturar a realidade. Ou melhor, que dentro da atualidade de seu pensamento, aquele" resultado" é absurdo.22 22 Piaget (1973a): "A tomada de consciência se produziria por ocasião de uma desadaptação. Quando há adaptação o funcionamento não apresenta dificuldades e portanto não há necessidade de procurar analisar seus mecanismos (...) porque ela é dirigida por regulações sensório-motoras suficientes para poder então se automatizar ..." (p.42).

O somatório de experiências de observação dessas incongruências repetiria possivelmente as condições que ao longo do desenvolvimento permitem o estabelecimento do pensamento próprio à adaptação - só que fornecidos, no caso, pelas peripécias da própria vida, não pelo terapeuta.

O espaço de terapia promoveria assim que a estruturação atual fosse percebida pelo sujeito, i.e., que além de suas formas antigas de pensar-se e à realidade, pudesse aparecer aquela que revelaria sua verdadeira identidade atual. Como se pode ver constantemente na clínica, não basta que o indivíduo seja algo para saber-se ser esse algo (Bion fala em realização). Para fazer parte da sua própria noção de ser, para poder ser incorporada à sua identidade (o que ele de fato é na atualidade), o indivíduo necessita de um espaço de observação através do qual seja revelada sua própria realidade.

TELLES, V.S. The Cognitive Interpretation of Psychoanalysis: Problems and Transformation of Concepts. Psicologia USP, São Paulo, v.8, n.1, p.157-182, 1997.

Abstract: Problems referring to psychoanalytical theories, in what concerns a fundamental revision of its concepts, beginning with the development and discoveries of modern Psychology, oblige a search in the psychoanalytic concept of unconsciousness for the possible cause of the impossibility of a true epistemological reformulation of its founding, which is demanded by this new knowledge of Psychology. Linking modern psychoanalytical authors with the cognitive theories, we attempt a criticism in the sense of clarifying the origins of such theoretical impasses and its possible solutions within a cognitive perspective.

Index terms: Cognition. Intellectual development. Psychoanalytic theory. Psychoanalysis. Epistemology. Piaget, Jean, 1896-1980.

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  • WOLFF, P.H. The developmental psychologies of Jean Piaget and psychoanalysis New York, International Universities Press, 1960. (Psychological Issues, v.2. Monograph 5).
  • 1
    Mesmo teorias que pretendem ser "mais um golpe" no egocentrismo humano costumam, implicitamente, recolocá-lo em tal posição, reintroduzindo-o, diríamos, pela porta dos fundos.
  • 2
    Usamos a noção de estrutura estruturadora tentando com ela dar conta de um processo de significação da experiência que vai depender e ser correlata do possível modo com o qual o indivíduo
    in-forma a experiência e que se transforma com o desenvolvimento.
  • 3
    Imbasciati (1993): "... Em Freud não era nada clara a distinção entre descoberta e teoria, entendida esta como instrumento de descoberta; existe em Freud uma grande confusão epistemológica, através da qual freqüentemente a teoria é considerada uma descoberta (...) e usada para validar outras descobertas, que, ao invés, são somente pressuposições e, ao contrário, forçam-se novas descobertas dentro da teoria, enquanto considerada ‘descoberta’, antes que usá-las para inventar uma nova teoria que seja instrumento mais eficaz do que aquela velha, para a observação e para novas descobertas. Assim, todo edifício freudiano mostra freqüentemente aspectos que, para a crítica epistemológica das filosofia da ciência da época posterior, aparecem como círculo epistemologicamente vicioso, no qual o
    explanandum é usado como
    explanans." (p.21).
  • 4
    Piaget (1975): "... A inteligência não principia, pois, pelo conhecimento do eu nem pelo das coisas como tais, mas pela sua interação; e é orientando-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que a inteligência organiza o mundo, organizando-se a si própria." (p.330).
  • 5
    Piaget (1954, p.67) citado por Décarie (1962, p.190): "Não existem condutas afetivas e condutas cognitivas: elas são sempre uma e outra ao mesmo tempo. Estes dois caracteres não são então distintos senão pela análise, que graças à abstração destinada a estudar seu mecanismo respectivo, mas no real, tudo apresenta simultaneamente os dois aspectos (...) é absolutamente sem sentido perguntar-se qual é, entre eles, a relação de causalidade, ou mesmo a relação de anterioridade: um aspecto não é a causa de um outro aspecto, não é anterior a um outro aspecto, eles são complementares porque um dos dois processos não pode funcionar sem o outro."
  • 6
    Imbasciati (1991): "... o estudo das crianças colocou em pleno relevo a limitação e a contingência da diferenciação entre afeto e cognição: as crianças evidenciaram plenamente os afetos (...) mostram que os afetos são a forma da sua cognição do mundo e de si mesmo. Tanto mais quanto mais a criança é de tenra idade. Também os estudos etológicos, além dos psicanalíticos, chegam à mesma conclusão em relação às crianças e aos animais. O afeto é a forma primitiva da cognição. (...) O afeto é um esquema funcional, primitivo da mente, que serve à adaptação e portanto à cognição, que representa a direção mais evoluída da adaptação ..." (p.24-5).
  • 7
    Perguntamo-nos com freqüência diante do material clínico se aquilo que tomamos como patológico, na produção do paciente, não poderia ser simplesmente o reaparecimento de algo registrado por ele
    fora de um continuum espaço-temporal (ainda não constituído na época do registro). Se as idéias de Ferrão forem pertinentes (no sentido de serem memórias alucinadas), caso haja qualquer rememoração daqueles registros numa consciência atual, ela será sempre vivida como
    presente, provocando sérios problemas na leitura do real. Se ao registrar o fenômeno não havia possibilidade de localização que o diferenciasse do presente, caso posteriormente reapareça, terá de ser interpretado como
    presente.
  • 8
    Imbasciati, (1991): "A dificuldade de considerar na psicanálise uma teoria da aprendizagem parece estar ligada ao fato de que o estudo psicanalítico está centrado sobre o inconsciente e o conceito de inconsciente, assim como mais comumente é proposto, parece pouco idôneo aos olhos dos experimentalistas para explicar o processo cognitivo gerado pela experiência ..." (p.88-9).
  • 9
    A. Imbasciati,
    L’oggetto e le sue vicissitudini, faz interessantíssima leitura cognitiva das características das posições esquizoparanóide e depressiva de M. Klein, explicando inclusive desse modo (cognitivo) a passagem de uma a outra.
  • 10
    Comentando as idéias de Osmyr Gabbi Júnior, Ades (1993, p.17) pergunta- se "em que medida a memória, tal como (implicitamente) pensada por Freud, poderia ser traduzida (...) nos termos com os quais comumente nos referimos à memória na pesquisa psicológica. Parece-me, de um lado, que o sentido freudiano de ‘memória’ não se sujeita a redução - direta, conceitualmente simples - aos mecanismos que o psicólogo costuma postular (aquisição, retenção, evocação de informação). Há mais na passagem de uma fase libidinal a outra (como pensa Osmyr Gabbi Junior) do que uma questão de lembrar-se e esquecer."
  • 11
    Também torna-se altamente comprometida com relação à possibilidade de compreensão do mesmo assunto dentro da psicologia animal. Tratar-se-ia de duas memórias? Cremos que a possibilidade de configurar o problema dentro do
    continuum homem-animal deva ser considerado. Como explicar o "esquecimento-recalque" na dimensão do animal?
  • 12
    Imbasciati, (1991): "Freud considera o inconsciente tomando como ponto de partida a consciência: de fato, fornece uma explicação do inconsciente com o conceito de recalque. (...) Eu acredito que de acordo com os desenvolvimentos mais recentes da Psicanálise seja útil considerar o inconsciente prescindindo mais decididamente de uma consideração da consciência, ou melhor, invertendo a pergunta inicial: devemos perguntar não porque existe o inconsciente, mas porque nos processos mentais comparece num certo ponto aquele caráter experimentado como ‘consciente.’ (...) A ótica na qual me movo no presente livro considera o inconsciente como intrínseca ausência de consciência. (...) O inconsciente não é devido a qualquer operação particular, tipo recalque, já que não são ainda diferenciadas aquelas operações e aquelas estruturas operativas que tornariam possíveis tais eventos psíquicos - como o comparecimento do auto-conhecimento do sujeito. (...) Por si mesmos os processos inconscientes quanto mais são primitivos e indiferenciados, mais são a-conscientes, no sentido de não serem aplicáveis a eles os códigos do auto-conhecimento." (p.52-3).
  • 13
    Experiências clínicas nos fazem pensar ser tal "armazenamento" muito mais amplo do que a precisa "lembrança" que nos foi dado observar. Ele possivelmente constitui um conjunto de lembranças, resultado de
    tudo que pôde ser registrado pelo indivíduo no momento da fixação - desde o próprio esquema corporal relativo a essa época, até a própria noção de si mesmo (grande ou pequeno), da realidade e, às vezes, pensamos que até o vocabulário relativo àquele momento de registro. Por isso mesmo uma lembrança específica de tal conjunto, além de ser fruto direto da estrutura estruturadora do momento em que foi concebida, poderia eventualmente ser evocada por um desencadeador atual ligado a qualquer parte desse conjunto.
  • 14
    Piaget (1973a): "A tomada de consciência constitui, pois, uma reconstrução no plano superior do que já está organizado, mas de outra maneira, no plano inferior, e as duas perguntas são então a da utilidade funcional dessa reconstrução e a de seu procedimento estrutural." (p.33). E mais: "Do ponto de vista da utilidade funcional, Claparède já tinha observado que a tomada de consciência se produz por ocasião de uma desadaptação, porque quando uma conduta é bem adaptada e funciona sem dificuldades não há razão para procurar analisar conscientemente seus mecanismos." (p.41).
  • 15
    Piaget pergunta-se: "... por que alguns esquemas sensório-motores se tornam conscientes ... enquanto outros permanecem inconscientes? É porque esses últimos são contraditórios com certas idéias conscientes anteriores (...) e que o esquema sensório-motor utilizado e a idéia preliminar anterior são pois incompatíveis. (...) Encontramo-nos assim numa situação muito comparável à do recalque afetivo: quando um sentimento ou um impulso parecem estar em contradição com sentimentos ou tendências de posição superior (...) eles são eliminados graças a duas espécies de processos: uma repressão consciente ou um recalque inconsciente (comparando com o mecanismo do inconsciente afetivo ele diz). (...) Ora, observamos um mecanismo análogo no terreno cognitivo. (...) Ela (a criança do experimento) afastou, pelo contrário, a tomada de consciência do esquema, quer dizer que ela repeliu o esquema do campo da consciência antes que ele penetrasse sob a forma conceitualizada (e veremos (...) que não há outra possível porque mesmo uma imagem mental se refere a um conceito)." (Piaget, 1973a, p.39-40).
  • 16
    A. Imbasciati,
    Affetto e rappresentazione, 1991 - Sobre noção de inconsciente diferente da Psicanálise, p.52-3, 56.
  • 17
    Piaget (1973a): "Ora, é importante constatar que, por volta dos sete anos, se constitui precisamente uma série destes sistemas de conjunto, que transformam as intuições em operações de todas as espécies. É o que explica as transformações do pensamento... Sobretudo surpreendente ver-se como estes sistemas, por uma espécie de organização total e às vezes muito rápida, se constituem sempre em função da totalidade das operações do mesmo gênero, não existindo nenhuma operação em estado de isolamento." (p.51).
  • 18
    Fenomenologicamente falando, cremos que a assim chamada "síndrome do pânico" poderia ser um bom exemplo dessa situação. Aparentemente sem motivos (pertinentes) a pessoa começa a ter idéias que acarretam pânico, com relação a determinada área, enquanto o resto de sua personalidade parece funcionar adaptadamente. No trabalho clínico com tais situações pareceu-nos útil esse enfoque do problema, determinando uma tentativa de recuperação, nessas áreas afetadas, de uma possibilidade de estruturação condizente com a atualidade do indivíduo.
  • 19
    Presenciamos certa vez algo que acreditamos tenha a ver com o problema. Uma pessoa em viagem (pensamos ser esta uma situação que pode provocar desestabilizações nas pessoas), chegando a uma grande avenida ornada de altas palmeiras (2 a 3 metros), cujos troncos apresentavam-se em forma oval e cor amarelada, marchetados por triângulos, resultados de marcas de antigas implatações de folhas, comentou: "Olhem, abacaxis!". Imediatamente notou o absurdo de sua interpretação, levando o grupo a rir muito do "engano". Aqui parece-nos haver um exemplo em que o significado do estímulo apoiou-se simplesmente na concretude da forma geral (dado mais direto da percepção) e deixou-se de fazer a correção necessária, levando-se em conta a relação tamanho-distância, para que o significado fosse "palmeiras" e não" abacaxis".
  • 20
    Piaget (1973b) "... por causa dessa indissociação primitiva, tudo que é percebido é centralizado sobre a própria atividade. O eu, no início, está no centro da realidade, porque é inconsciente de si mesmo e à medida que se constrói como uma realidade interna ou subjetiva, o mundo exterior vai se objetivando. Em outras palavras, a consciência começa por um egocentrismo inconsciente e integral, até que os progressos da inteligência sensório-motora levem à construção de um universo objetivo, onde o próprio corpo aparece como um elemento entre outros, e ao qual se opõe a vida interior localizada neste corpo." (p.19).
  • 21
    Piaget (1973a):" Numa palavra a estrutura cognitiva é o sistema de conexões que o indivíduo pode e deve utilizar e não se reduz absolutamente ao conteúdo de seu pensamento consciente, pois é o que lhe impele certas formas mais do que outras. E isso segundo níveis sucessivos de desenvolvimento cuja fonte inconsciente remonta até as coordenações nervosas e orgânicas." (p.37).
    "O inconsciente cognitivo consiste assim num conjunto de estruturas e de funcionamento ignorados pelo indivíduo, exceto em seus resultados ..." (p.35).
  • 22
    Piaget (1973a): "A tomada de consciência se produziria por ocasião de uma desadaptação. Quando há adaptação o funcionamento não apresenta dificuldades e portanto não há necessidade de procurar analisar seus mecanismos (...) porque ela é dirigida por regulações sensório-motoras suficientes para poder então se automatizar ..." (p.42).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1997
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