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O desvio do olhar: dos asilos aos museus de arte

The deviation of the glance: from the asylums to the art museums

Resumos

A relação entre a arte e a loucura é considerada do ponto de vista da exposição em museus de arte de obras que foram produzidas nos asilos. Nessa transição, são analisadas a situação historicamente determinada da loucura no campo da visualidade e as implicações culturais, psicológicas e estéticas dessa situação, sobretudo após o advento da noção de art brut. Finalmente, é também considerado o impacto da art brut, como prática dos excluídos sociais, sobre o próprio criador marginal e sobre o olhar do espectador.

Arte; Arte bruta; Estética; Exclusão social; Loucura


The relation between art and madness is considered from the point of view of works of art produced in asylums and exhibited in art museums. In this transition, the historically situation of madness is analyzed concerning visual order and it’s cultural, psychological and aesthetic implications in art history, specially after the emergence of the notion of art brut. Finally, it’s also considered the impact of art brut on the outsider artist and on the spectator’s perception.

Art; Art brut; Aesthetics; Social exclusion; Madness


O DESVIO DO OLHAR: DOS ASILOS AOS MUSEUS DE ARTE

João A. Frayze-Pereira1 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900.

Instituto de Psicologia - USP

A relação entre a arte e a loucura é considerada do ponto de vista da exposição em museus de arte de obras que foram produzidas nos asilos. Nessa transição, são analisadas a situação historicamente determinada da loucura no campo da visualidade e as implicações culturais, psicológicas e estéticas dessa situação, sobretudo após o advento da noção de art brut. Finalmente, é também considerado o impacto da art brut, como prática dos excluídos sociais, sobre o próprio criador marginal e sobre o olhar do espectador.

Descritores: Arte. Arte bruta. Estética. Exclusão social. Loucura.

A crítica da produção de artistas profissionais costuma reforçar no público um certo modo de ver que reconhece como arte aquilo que se diz arte, que se mostra em museus e galerias e que opera com códigos e meios de expressão consolidados. Nessa medida, trabalhos que por ingenuidade, ignorância ou resistência obstinada, não recorrem a esses códigos, obras singulares freqüentemente feitas em segredo para encantamento solitário de seus próprios criadores, dispensando o aplauso de qualquer destinatário, ao ocupar lugar de honra num espaço cultural podem, às vezes, despertar no espectador um "olhar condescendente" (a expressão é do pintor Jean Dubuffet) que acaba por lhes conferir o estatuto de arte marginal. No entanto, as coisas não são tão simples. Quando uma "produção desse gênero" migra de um lugar sinistro como o hospício, onde foi gestada durante anos, para o espaço branco de um museu de arte, onde fica exposta à visitação, o espectador poderá se surpreender com o visível se, por acaso, vier a pensar não apenas naquilo que vê mas, sobretudo, no modo como vê.

No Brasil, qualquer um que tenha notícia das exposições de Arthur Bispo do Rosário, que representou o Brasil na Bienal de Veneza (1995) e, antes disso, os trabalhos de pacientes psiquiátricos expostos no Museu de Imagens do Inconsciente (R.J.), nos principais museus de arte do país e na Bienal Internacional de São Paulo (1981), sabe da complexidade que estes apresentam a um trabalho crítico de interpretação. No entanto, dado o espanto inicial, o que se costuma fazer com facilidade é a aproximação dos trabalhos às produções de outros artistas, contemporâneos ou não, mas sempre familiares a nós, seu enquadramento na moldura de uma ou outra teoria, tomadas como paradigmas a fornecer categorias para uma interpretação - como se fosse perfeitamente natural a continuidade entre Bispo e a Arte Contemporânea (moderna/pós-moderna), entre seus vestígios e o que a Cultura já consagrou. Trata-se aí de uma operação fácil cujo sentido a expressão "arte de loucos," tantas vezes evocada nos debates que costumam seguir as exposições, tem por mérito questionar. O que significa tal expressão? O que pode estar significando a palavra "louco" no contexto específico de uma exposição de manifestações de sujeitos determinados que possuem nomes próprios, passageiros em cujas biografias, qualquer que seja a construção psico-sócio-histórica que delas se venha a fazer, necessariamente constará a passagem por uma "instituição total" com todas as implicações que daí são decorrentes? Sabendo que tal instituição não é qualquer, uma vez que traz a marca do asilo psiquiátrico cujo nascimento histórico no Ocidente Moderno possui data conhecida e um contexto originário determinado, a palavra "louco" no contexto de uma exposição desses artistas significa "psiquiatrizado," isto é, "doente mental." Mas será ainda possível manter essa relação de identidade entre a loucura e a doença mental, quase meio século depois dos primeiros movimentos de contestação da Psiquiatria com os antipsiquiatras e da problematização radical da modernidade com a interrogação filosófica de Michel Foucault?

Como sabemos, se a história da loucura é a história da produção de uma entidade - doença mental - ela é, ao mesmo tempo, a da "repressão da loucura como linguagem proibida" (Foucault, 1972, p. 579). "Arqueologia do silêncio," a "História da loucura" é também a recuperação histórica do "campo das linguagens excluídas (grosso modo, o do insensato) "no qual a loucura esteve centrada desde o século XVII (p. 581). Porém, como se configuram essas linguagens interditas? Para além do longo silêncio clássico, quando a loucura chega a se manifestar de modo perceptível - no século XVI de maneira trágica, no século XIX como explosão lírica - essas linguagens são as da arte: pintura e literatura. Assim é que Foucault faz referência à "fulguração" de pensadores, poetas e artistas como Nietzsche, Artaud, Hölderlin, Nerval, Goya, Van Gogh que, de uma certa maneira, escaparam do "gigantesco aprisionamento moral" que engolia os homens e o mundo e entreviram uma experiência fundamental da loucura para além dos limites da sociedade. E, nesse processo, "pouco importa o dia exato do outono de 1888 em que Nietzsche se tornou definitivamente louco, e a partir do qual seus textos não mais expressam filosofia, mas sim psiquiatria" (p. 556). Também "pouco importa saber quando se insinuou na humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura" (p. 557). Os discursos voltados para a demonstração da "sanidade mental" de "loucos famosos"(ou o inverso) são, no mínimo, para usar a expressão de Dorfles (1974, p. 88), "obsoletos." Assim, mais instigante seria pensar os sentidos conseqüentes ao momento em que um tipo qualquer de manifestação não artística (na medida em que é ignorada, esquecida logo que é terminada - seja o de um doente mental, de um criminoso etc.) entra no campo qualificado como artístico. Seguindo Foucault (1972), seria o caso de se perguntar: o que acontecerá nesse campo? E como essa manifestação virá a ser modificada pelo fato de ser reconhecida como artística?

Modernamente, para todos nós é uma evidência que loucura diz respeito à Psiquiatria. Entretanto, menos evidente e de modo não menos essencial, loucura diz respeito também a um certo tipo de experiência que se delineia no campo da Visualidade (Frayze-Pereira, 1995). E são notáveis as implicações, quase sempre sinistras, do primado da visão no tocante à loucura, durante toda a chamada "Idade Clássica."

Com efeito, a constituição da loucura moderna principia com a dissolução da unidade palavra-imagem, unidade presente na Idade Média e no Renascimento e que, ao se desfazer, dará margem à emergência de figuras da loucura desprovidas de toda e qualquer significação escatológica. Escreve Foucault (1972):

entre o verbo e a imagem, entre aquilo que é figurado pela linguagem e aquilo que é dito pela plástica, a bela unidade começa a se desfazer: uma única e mesma significação não lhes é imediatamente comum ... Figura e palavra ilustram ainda a mesma fábula de loucura no mesmo mundo moral; mas logo tomam duas direções diferentes, indicando, numa brecha ainda apenas perceptível, aquela que será a grande linha divisória na experiência ocidental da loucura. ( p. 28)

Nesse sentido, para o espírito clássico, a essência da loucura será a "cegueira," um termo que

fala dessa noite de quase-sono que envolve as imagens da loucura, atribuindo-lhes, em seu isolamento, uma invisível soberania; mas fala também de crenças mal fundamentadas, juízos que se enganam, de todo esse pano de fundo de erros inseparável da loucura. (p. 260)

E assim a loucura é, também, "ofuscamento" que significa

a noite em pleno dia, a obscuridade que reina no próprio centro do que existe de excessivo no brilho da luz ... Dizer que a loucura é ofuscamento é dizer que o louco vê o dia, o mesmo dia que vê o homem de razão (ambos vivem na mesma claridade), mas vendo esse mesmo dia, nada além dele e nada nele, vê-o como vazio, como noite, como nada ... . E, acreditando ver, permite que venham até ele, como realidades, os fantasmas de sua imaginação e todos os habitantes da noite. (Foucault, 1972, p. 262)

Em suma, delírio e ofuscamento formam uma relação que constitui a essência da loucura na mesma medida que o relacionamento verdade-clareza constitui a razão clássica.

Descartes fecha os olhos e tapa os ouvidos para melhor ver a verdadeira claridade do dia essencial; com isso, garante-se contra o ofuscamento do louco que, abrindo os olhos, vê apenas a noite e, nada vendo, acredita ver quando na verdade imagina. (p. 262)

Ora, se o círculo do dia e da noite, como resume Foucault, circunscreve o mundo clássico, o "desatino mantém a mesma relação com a razão que o ofuscamento com o brilho do dia. E isto não é uma metáfora. Estamos no centro da grande cosmologia que anima toda a cultura clássica" (p. 262). Porém, é quando nasce o asilo, entre o fim do século XVIII e o começo do XIX, que a definição visual da loucura se estreita e atinge um limite: no asilo, "a loucura só existe como ser visto ... ." Trata-se de um momento concreto da gênese da loucura moderna, momento que é da "ordem da observação e da classificação." Mas antes disso, há que se considerar o tempo em que a estranheza dos corpos dos internados é oferecida à visão plena de um público burguês ávido de diversão.

Ao longo de quase todo o século XVIII, o hábito de exibir publicamente a loucura em carne e osso tem um caráter quase institucional. Em Paris, por exemplo, Bicêtre chega a receber 2000 pessoas por dia que pagam para ver a loucura configurada em espetáculos nos quais os loucos são "monstros," isto é, "seres ou coisas a serem mostrados." E, nessas exposições, não há o que temer: a visão que deles se tem distrai. Coisa a ser vista, é do outro lado das grades que a loucura é exibida: "animal de estranhos mecanismos, bestialidade da qual o homem, há muito tempo, está abolido" (p. 163). Assim, diante do espectador, a loucura encontra-se do outro lado - ela é uma ausência total de razão. E, sob o seu olhar, o louco é uma individualidade singular cujas características próprias distinguem-se daquilo que é encontrável no não-louco, isto é, no indivíduo razoável que é o seu juiz. Para este, o louco é, portanto, o outro (no sentido da exceção) entre os outros. Com o advento do asilo, o louco e o não-louco encontram-se mais próximos. A barreira das grades é abolida. No entanto, mais do que nunca a loucura adquire o estatuto de algo a olhar-se. Se na loucura (como uma realidade cognoscível) há algo que diz respeito ao indivíduo razoável, não é porque contribui para aquilo que se pode saber do homem. "Não é por acaso ... que o século XIX perguntou inicialmente à patologia da memória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lembrança, do querer e do indivíduo" (p. 481). Isto é, o louco ganhou o estatuto de um documento vivo. Através dele, pode-se chegar a um conhecimento do homem. E essa condição é enigmática, pois ao mesmo tempo que é objeto de conhecimento, a loucura oferece ao homem a possibilidade de um auto-reconhecimento. A contemplação da loucura adquire um novo sentido.

Na época das visitas a Bicêtre ou a Bedlam, ao olhar-se o louco avaliava-se, do exterior, toda a distância que separava a verdade do homem de sua animalidade. Agora, ele é olhado simultaneamente com mais neutralidade e mais paixão. Mais neutralidade, uma vez que nele se descobrirão as verdades profundas do homem, essas formas adormecidas nas quais nasce aquilo que ele é. E mais paixão também, uma vez que não se poderá reconhecê-lo sem reconhecer a si mesmo, sem ouvir subir em si mesmo as mesmas vozes e as mesmas forças, as mesmas estranhas luzes. (p. 537)

Esse olhar que promete a contemplação de uma verdade do homem não pode evitar o espetáculo de um impudor que é o seu próprio: não vê sem ver a si mesmo. E, com isso, o louco fortalece seu poder de atração e fascinação, pois carrega mais verdades do que a sua própria. Contudo, com as promessas de conhecimento e cura que o asilo passou a oferecer, o costume de exibir a loucura em espetáculos públicos gradualmente desapareceu.

Ora, é exatamente nesse contexto asilar que as produções plásticas dos pacientes começam a ser recolhidas pelos médicos como material de pesquisa e diagnóstico. Nos asilos, escondem-se os corpos dos excluídos; ao mesmo tempo, mostram-se as suas formas de expressão. Em 1900, tem lugar a primeira exposição de trabalhos de doentes mentais no Bethlem Royal Hospital de Londres. E é na década de 20 que artistas como, por exemplo, Max Ernst e Paul Klee chegam a manifestar sua fascinação diante da estranheza e da espontaneidade dessas criações que eles próprios procuravam atingir, muitas vezes, por meios artificiais (Starobinski, 1984, p. vii; Thévoz, 1980, p. 16). Mas, é apenas em 1945 que o pintor Jean Dubuffet lança a idéia de "arte bruta," qualificando artisticamente (e pela primeira vez) as criações de não-profissionais, inclusive e sobretudo dos psiquiatrizados, quer dizer, aqueles que as instituições do mundo moderno denunciaram como "associais e desprovidos de cidadania." Em outras palavras, Dubuffet (1971) passa a problematizar o que chamou de "arte culta," ao privilegiar um tipo de produção marginal cujos temas, materiais, técnicas e sistemas de figuração apresentam pouca ou nenhuma relação com a tradição ou com tendências da moda, nenhum compromisso com o mercado ou com os destinatários da produção artística; um modo de produção extraído por seus autores do fundo de seu próprio ser e que plasticamente transgride "as imagens do mundo apresentadas pela cultura" (p. 105). Ora, se o que se espera da arte não é que seja normal, mas, ao contrário, que seja "o mais possível inédita e imprevista, isto é, extremamente imaginativa," as obras de arte bruta são arte nesse sentido. Frutos do sofrimento e da solidão de um puro e autêntico impulso criativo são, segundo Dubuffet (1971), mais preciosas que as produções dos profissionais. Diz ele:

após uma certa familiaridade com essas florações altamente febris, tão total e intensamente vividas por seus autores, não podemos subtrair-nos à sensação de que a arte cultural, ao lado delas, parece, em seu conjunto, fútil jogo de sociedade, falaciosa ostentação. (p. 457)

Entretanto, quando Dubuffet abre a possibilidade desse modo de manifestação vir a se colocar ao lado da arte consagrada, ocupando lugar em museus e galerias (ainda que essa introdução tenha se dado com muita dificuldade), pode-se perguntar o que ocorre ao criador, louco e marginal?

Introduzido nos espaços socialmente destinados aos ritos de celebração da arte, o louco ganha uma nova sacralidade: torna-se artista e, aos olhos do espectador, gênio. Mas, se dessa maneira perde o estigma que há séculos o acompanha, sua obra rompe com a loucura. Na moldura de uma exposição legitimada pela cultura, a "expressão dos loucos" ganha o selo de "obra de arte." E isto significa, como também sabia Foucault, que na sociedade contemporânea o confronto entre a loucura e a obra é o de uma luta mortal: o jogo delas é de vida ou de morte. Em suma, incorporada pela cultura, a loucura é transfigurada pela aura que envolve suas obras. E, dessa maneira, fica exposta aos riscos do silêncio, riscos que dependerão sobretudo da maneira como o espectador vier a se posicionar diante da obra, isto é, da maneira como vier a percebê-la, interpretá-la. Nesse sentido, comentando as obras de uma exposição de 1987, em Washington, Octávio Paz afirmou:

tais obras não fazem pensar nas quatro paredes em que está encerrado o esquizofrênico, nem na galeria de espelhos da paranóia; são ressurreições do mundo perdido de seu passado e os caminhos secretos para chegar a um outro. Que é esse outro mundo? Difícil saber. (Paz, 1987)

São muitos os criadores que afirmam não serem eles próprios os responsáveis por suas obras (o próprio Bispo se acreditava enviado de Deus para recriar - resignificar o mundo); são muitos os que confessaram terem feito o que fizeram sob a égide de espíritos ancestrais, cujas vozes ordenavam cada passo do processo criativo. E isto significa que aos mortos é atribuído um papel fecundo na realização desse processo, projeto que para o criador tem o sentido de um "sagrado ofício." Sendo tais objetos um ponto de viva irrupção dos ancestrais numa sociedade que rompeu toda relação funcional ou simbólica com a morte, a excomunhão social de seus autores encontra aí mais uma justificativa: além da loucura, o vínculo com o além. O que Paz (1987) percebe é que essas obras não são mero conhecimento do homem interior, nem apenas subversão poética, mas algo mais antigo e instintivo: "ícones, talismãs, retábulos, amuletos, efígies, simulacros, fetiches - objetos de adoração e de abominação." Nessa medida, não vê o menor sentido no uso da expressão "arte/loucura." Diz:

em primeiro lugar, não está claro, nem nunca estará, o que se quer dizer com essa expressão. Além do mais, a arte transcende, ou melhor, ignora a diferença entre as frágeis fronteiras da sanidade e da loucura, como ignora a diferença entre primitivos e modernos. Nas composições desses artistas, cujo diagnóstico é freqüentemente sem esperança - esquizofrenia incurável - cumprem-se as duas exigências da arte: ser a destruição da comunicação comum e ser a criação de uma outra comunicação.

Isto é, ser a instauração de uma comunicação incomum.

No entanto, as coisas são ainda mais complexas do que uma comunicação incomum permitiria supor.

Thévoz (1995), conservador chefe do Museu de Arte Bruta de Lausanne, indaga-se em que medida seria possível subsistirem ainda essas personalidades tão singulares, a ponto de inventarem suas próprias mitologias e escrituras figurativas, especialmente nessas duas últimas décadas em que se constata um extraordinário desenvolvimento das técnicas informatizantes, dos meios de uniformização das massas, da pesquisa farmacológica e da conseqüente administração de drogas que docilizam os corpos e espíritos de indivíduos inquietos, potencialmente criadores. Nesse sentido, se as fontes principais de arte bruta deixaram de ser os asilos psiquiátricos, Thévoz reconhece a significação dos asilos para velhos. E, nesse caso, mais do que nunca, a arte bruta se opõem à arte culta, isto é, contemporânea, jovem e anticonformista: "os velhos representam hoje os estrangeiros que não vêm de outro mundo, mas de um outro tempo" (p. 52). Para eles, a proximidade da morte resignifica o passado distante e libera os compromissos com os códigos do presente. Indiferentes à "carreira artística," esses velhos criadores advertem-nos que "a essência da arte se concentra e se esgota no ato criador, no corpo a corpo aventureiro e jubilatório com a folha de papel, a tela ou o tricô" (p. 57). A esse respeito é emblemática a obra de Jacky Garnier, "Tapessaria interrompida ..." (Coleção Art Brut - Lausanne). Iniciada em 1976, atinge vários quilômetros de comprimento, segundo um modo de associação livre, plástico e mental, que questiona radicalmente os meios convencionais de difusão: ela é invendável, irreprodutível, resistente a qualquer tipo de exposição total. Garnier interroga a rede mercantil e os modos de comunicação da arte, vinculando o fim da obra ao de sua própria vida. E com essa imensa passadeira inconclusa, transcende este mundo, tornando a morte não o oposto da vida, mas o que a forra por dentro, um recurso imaginário, uma abertura à "outra cena" (Freud), um "entremundo" ao qual a arte bruta nos introduz de maneira explosiva (Thévoz, 1985).

Todavia, há que se admitir inevitavelmente que ao serem reconhecidos publicamente como artistas, os velhos e os loucos são apanhados pela rede da cultura e trazidos para dentro de sua órbita, ainda que excêntrica. Como diz Starobinski (1984), "ei-los incluídos após terem sido excluídos" (p. xv).

Diante de tudo disso, impõe-se a nós mais algumas interrogações: no tocante à loucura, em que medida a apropriação pela cultura daquilo que se considera a não-cultura não teria, por implicação, exorcizar a potencialidade subversiva das obras? Ou ainda, até que ponto essa incorporação simbólica da arte de oprimidos (loucos e idosos), que transita dos asilos para os museus de arte, nada mais é do que a expressão de uma necessidade ideológica de afirmar publicamente que a opressão social não anula a força da criação?

Neste fim de século, a loucura de um indivíduo como Bispo do Rosário, isto é, o desmoronamento de sua existência individual, o que interrompeu essa existência e motivou sua exclusão radical da órbita da cultura até o momento da velhice e da morte, é exatamente o que a tornou presente para nós. Mas, como "questão sem resposta," como "um tempo de silêncio," como um "dilaceramento sem reconciliação" por intermédio do qual somos obrigados a nos interrogar. "Triunfo da loucura," podemos pensar com Foucault (1972): esse nosso mundo que acredita poder julgá-la, explicá-la através da Psicologia e, por que não, através de certas tendências da Crítica e das Ciências da Arte, é o que deve justificar-se diante dela, uma vez que em seus debates, em seus discursos, é esse mundo que irá se medir por obras desmedidas como as desses loucos. E esse é um momento, talvez o único, em que a loucura, já bem velha, com seus mistérios e sortilégios, silenciosamente sorri; momento em que será preciso calar e escutar para que, rompendo o silêncio, a fala trágica possa precipitar em nossa interioridade a experiência da vertigem e, com ela, o desvio do olhar.

Frayze-Pereira, J. A. (1999). The Deviation of the Glance: from the Asylums to the Art Museums. Psicologia USP 10 (2), 47-58.

Abstract: The relation between art and madness is considered from the point of view of works of art produced in asylums and exhibited in art museums. In this transition, the historically situation of madness is analyzed concerning visual order and it’s cultural, psychological and aesthetic implications in art history, specially after the emergence of the notion of art brut. Finally, it’s also considered the impact of art brut on the outsider artist and on the spectator’s perception.

Index terms: Art. Art brut. Aesthetics. Social exclusion. Madness.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
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