Resumo
Este trabalho pretende identificar pontos de aproximação entre a psicanálise e os estudos sobre a linguagem presentes na obra do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Para tal, parte-se da construção da noção de sintoma, sua definição no campo médico e psiquiátrico até sua demarcação no campo psicanalítico, elemento que só se define por sua relação com as práticas discursivas do sujeito. Ao introduzir a noção de jogos de linguagem, Wittgenstein destaca o caráter pragmático da linguagem: as regras de uso estabelecidas em determinado contexto conferem o significado a uma expressão linguística. Se para a psicanálise o sintoma implica uma articulação simbólica, é na relação entre significantes, própria do jogo linguístico, que se estabelecem as possibilidades de significação do próprio sujeito.
Palavras-chave: linguagem; psicanálise; pragmática; sintoma
Résumé
Cette étude vise à identifier les points de rapprochement entre la psychanalyse et les études sur la langue présentes chez le philosophe autrichien Ludwig Wittgenstein. Pour cela, on part de la construction de la notion de symptôme, sa définition dans le domaine médical et psychiatrique, jusqu’à sa délimitation dans le domaine psychanalytique, un élément qui est seulement défini par sa relation avec les pratiques discursives du sujet. En introduisant le concept des jeux de langage, Wittgenstein souligne le caractère pragmatique de la langue : les règles d’utilisation établies dans un contexte particulier confèrent un sens à une expression linguistique. Si pour la psychanalyse le symptôme implique une articulation symbolique, c’est dans la relation entre signifiants, caractéristique du jeu linguistique, où s’établissent les possibilités de signification du sujet lui-même.
Mots-clés: langue; psychanalyse; pragmatique; symptôme
Resumen
Este estudio tiene como objetivo identificar los puntos de aproximación entre el psicoanálisis y los estudios sobre el lenguaje presente en la obra del filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Para eso, parte desde la construcción de la noción de los síntomas, su definición en el campo médico y psiquiátrico hasta su demarcación en el campo psicoanalítico, elemento que sólo se define por su relación con las prácticas discursivas de la materia. Al introducir el concepto de juegos de lenguaje, Wittgenstein hace hincapié en el carácter pragmático del lenguaje: las normas de uso establecidas en un contexto particular confieren sentido a una expresión lingüística. Si para el psicoanálisis el síntoma implica una articulación simbólica, es la relación entre significantes, del propio juego de lenguaje, en la que se establecen las posibilidades de significado del sujeto.
Palabras clave: lengua; psicoanálisis; pragmática; síntoma
Abstract
This study aims to identify confluences between psychoanalysis and studies on language presented in Austrian philosopher Ludwig Wittgenstein’s work. In order to do so, one starts from the construction of the notion of symptom, its definition in the medical and psychiatric fields, to its demarcation in the psychoanalytical field, where the symptom is only defined by its relationship with the discursive practices of the subject. When introducing the concept of language-game, Wittgenstein emphasizes the pragmatic aspect of language: the rules of use established in a particular context give meaning to a linguistic expression. If, for psychoanalysis, the symptom implies a symbolic articulation, it is in the relationship between signifiers, proper to the language game, that the possibilities of signification of the subject himself are established.
Keywords: language; psychoanalysis; pragmatics; symptom
Tomar em análise um conceito qualquer pressupõe o cuidado de localizá-lo numa teoria ou num contexto efetivo que lhe confira significação particular, estabeleça seu uso, mesmo que ele possa se universalizar posteriormente. Ainda que pareça óbvia, essa visão mais contextualizada da linguagem e sua estreita relação com as formas de conhecimento e produção de saber só parece ser problematizada, de fato, na discussão filosófica, a partir das ideias do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, que ao deslocar a noção essencialista de que há sempre algo na realidade que encontra correspondência na linguagem - marcante em seu Tractatus logico-philosophicus (1921/2001) - para uma concepção construtivista da realidade a partir do campo linguístico desenvolvido na obra Investigações filosóficas (1953/1991), acaba por promover uma grande inversão nas ideias que vigoravam até então.
O ponto de vista de que a linguagem “constitui” a realidade está no sentido contrário da visão postulada pela tradição filosófica ocidental, que concebe as palavras como representantes linguísticos de uma realidade, ainda que esta se refira a uma imagem mental. “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo” (T.L.P 5.6)1. Tal asserção, representante das ideias do que se convencionou chamar de “primeiro Wittgenstein”, estabelece uma espécie de paralelismo entre o mundo dos fatos e a própria estrutura da linguagem, isto é, a combinação dos nomes na sentença figuram a totalidade possível da realidade.
Contudo, é com o segundo Wittgenstein que se rompe o modo tradicional de conceber a linguagem, momento em que a atitude metafísica, essencialista, é substituída pela atitude prática. Segundo a visão pragmática apresentada nas Investigações filosóficas, tudo que nós pensamos como realidade é na verdade um arranjo de nomes e características, ou seja, a realidade é, por si mesma, uma construção chamada linguagem, que funciona em seus usos múltiplos e variados, constituindo aquilo que o autor chamou de verdadeiras “formas de vida”. Ao introduzir a noção de jogos de linguagem2, o segundo Wittgenstein desloca o valor da forma proposicional na produção da significação. Nessa obra, o filósofo austríaco passa a analisar as variadas relações existentes no uso da linguagem falada, de modo a evidenciar a produção de significação como dependente de uma combinação de certas regras, gestos, como num jogo de linguagem. Marcondes (2010), comentando essa segunda perspectiva de Wittgenstein, diz que:
Se adotamos a noção de jogos de linguagem, o significado não é mais estabelecido pela forma da proposição, nem pelo sentido de seus componentes, nem por sua relação com os fatos, mas pelo uso que fazemos das expressões linguísticas nos diferentes contextos ou situações em que a empregamos. (p. 275)
Desse modo, não haveria uma única função ou forma comum da linguagem, mas certas semelhanças entre os segmentos que, em determinada combinação, produziriam arranjos, jogos de linguagem. Nesse ponto, percebemos uma aproximação com o estruturalismo de Saussure, quando este defende que os conceitos são dependentes da relação de diferenças entre palavras, ou, dito de outra maneira, um conceito só pode existir a partir de um sistema simbólico que ampare suas relações de diferenças. Assim, nós não estaríamos sequer aptos a reconhecer uma cadeira como “uma cadeira” e não como uma “mesa”, sem simultaneamente reconhecer que uma cadeira não é todo o resto, ou seja, o conceito é definido por um conjunto de características que se diferencia na relação de alteridade.
De fato, o que está fora da linguagem é por definição incognoscível, sem nome, sem significado e, portanto, não pode entrar na realidade humana sem ser imediatamente articulado pela linguagem. Mas, o que o Wittgenstein das Investigações busca destacar diz respeito ao caráter pragmático que a linguagem possui: são as regras de uso estabelecidas em determinado contexto que conferem significado a uma expressão linguística. Ou seja, para além da semântica proposicional existe um contexto de uso que admite uma série de efeitos discursivos.
Partindo dessa lógica, talvez possamos pensar os diversos campos de saber e suas teorias como jogos de linguagem, ou seja, práticas discursivas que serão dotadas de sentido de acordo com o contexto. No entanto, o que se percebe é que alguns discursos científicos parecem ignorar, ou simplesmente dão pouca importância, à função da linguagem em seu caráter pragmático, quando o que está em jogo é justamente o seu valor prático, sua função nas práticas sociais humanas.
Nesse sentido, pretendemos demarcar algumas diferenças entre o modo como a medicina pensa o conceito de sintoma em oposição à leitura psicanalítica do conceito, na tentativa de demonstrar o quanto o campo médico aproxima-se de uma visão objetivista de linguagem, o que de algum modo repercute em sua práxis; e, por outro lado, problematizar até que ponto podemos aproximar a psicanálise da dimensão pragmática desenvolvida por Wittgenstein.
Tomaremos como ponto inicial a noção de sintoma no campo da medicina, destacando algumas dificuldades da psiquiatria no que se refere a esse limite, até chegarmos à leitura psicanalítica do conceito, no que chamamos aqui de esforço pragmático.
Demarcando a noção de sintoma
A etimologia da palavra sintoma vem do grego σύμπτωμα e significa a incidência de coisas juntas, literalmente coincidência3, daí o uso feito pela medicina quando, na presença de um sintoma, estabelece uma relação causa/efeito entre um sinal e um agente patogênico com o propósito de definir diagnóstico, tratamento, prognóstico etc. De modo geral, sintoma é considerado sinônimo de indício, sinal da existência de algo. No entanto, em medicina parece haver uma distinção entre sinal e sintoma. O primeiro corresponde a um dado objetivo, verificável, como pintas vermelhas espalhadas pelo corpo podem, por exemplo, sinalizar sarampo, enquanto o sintoma é considerado como um dado subjetivado, pois depende da verbalização do paciente, como relato de dor, taquicardia, náuseas etc.
Aqui parece haver um primeiro problema: está claro que o sintoma, enquanto expressão subjetiva, possa - talvez deva - ser compreendido a partir de uma perspectiva construtivista4, como fruto das práticas de linguagem estabelecidas socialmente, já que aprendemos através da linguagem, a reconhecer e expressar dor, tristeza etc. No entanto, quanto ao sinal observável, não podemos dizer ser também uma construção sociolinguística? Em certa medida sim, embora reconheçamos que há diferenças na maneira como aparecem.
Talvez, nesse ponto, Freud tenha dado grandes contribuições, pois ao associar os sinais e sintomas físicos tão comuns na histeria de conversão a algo da ordem psíquica inconsciente, não deixou de considerá-los como construções do sujeito, arranjos de linguagem que poderiam ganhar voz durante o processo analítico, e assim abandonariam sua expressão enquanto sintomas e inibições específicas. Falaremos sobre a leitura psicanalítica do sintoma adiante. O importante neste primeiro momento é demarcar como a medicina se apropria desse conceito, fundamentada, podemos dizer, em uma tradição objetivista, além de apresentar o modo um tanto paradoxal com que a psiquiatria se inclui nesse cenário, para então tratarmos de articular a leitura psicanalítica do sintoma a uma concepção pragmática.
A própria história da medicina nos dá notícias de como o contexto histórico-cultural é determinante e, ao mesmo tempo, permite a transformação dos conceitos, ou melhor, dos usos e significados que convencionamos socialmente. O problema ocorre quando o conceito, no afã de se tornar científico, transforma um processo em coisa, entidade primeira que possui uma realidade em si. É o que parece acontecer ao conceito de sintoma com o advento da medicina científica. Segundo Pimenta e Ferreira (2003),
Na medicina que precedeu o modelo anatomoclínico e que pode ser chamada de pré-científica, o sintoma era a própria expressão da doença, era a forma da doença se apresentar; ele definia a essência da doença. . . . Com o paradigma anatomoclínico o sintoma transforma-se, portanto, em signo, em sinal da doença que adquire sentido para o médico. O sintoma remete a uma realidade, surge como expressão desta realidade, podendo antecipar-se aos sinais detectados diretamente pelo médico. (p. 224)
Essa concepção objetivista do conceito considera o sintoma como expressão de uma realidade a ser investigada: a doença enquanto tal. Nesse sentido, tanto os sintomas quanto o adoecimento são entendidos como processos desarticulados da singularidade do sujeito. Podemos dizer que essa mudança de paradigma e, posteriormente, os avanços da biologia, fisiologia e química nos possibilitaram a acompanhar os mecanismos intermediários da doença, sua evolução, os fenômenos bioquímicos subjacentes, bem como a construção de medidas terapêuticas que permitiram grande avanço interpretativo à própria clínica e que têm repercussões no diagnóstico e no tratamento.
No entanto, perguntamo-nos até que ponto, com essa postura, não se perde a dimensão do sujeito em uma clínica que se define pela lógica da calculabilidade, pela presença ou ausência de sinais a serem averiguados, seja em entrevistas iminentemente investigativas, seja através de exames e instrumentos técnicos. A entidade mórbida, a doença, os sintomas que a definem passam a se sobrepor ao próprio sujeito, à narrativa possível ao seu sofrimento e mesmo à interpretação linguística e cultural do sujeito a respeito do que lhe acontece.
Essa forma de entendimento, como vimos, parece corroborar as ideias do primeiro Wittgenstein quando, segundo Condé (1998), o filósofo considera a teoria da figuração5 e o aspecto descritivo de uma proposição lógica como correspondentes ao “estado de coisas” por ela descrita. Dessa forma, a tentativa de determinar os limites daquilo que pode ser dito através da linguagem revela-se, em última instância, como uma tentativa de definir a essência da proposição. Para a medicina a leitura seria assim: o sintoma, embora compreendido como expressão subjetivada, corresponde ao estado de coisas que define a doença, esta identificada como entidade extra sujeito, algo que acomete o sujeito independente dele, sem que haja qualquer vinculação entre eles.
Nesse sentido, “uma concepção objetivista de linguagem científica está basicamente vinculada à noção de verdade em termos de correspondência com a realidade” (Coutinho, 1996, p. 25). Isso tem consequências determinantes quando pensamos, por exemplo, no efeito de verdade que possui o diagnóstico médico para o sujeito, este se definindo a partir daí pela realidade representada pela doença. Tal posição, se é que podemos forçar uma analogia aqui, parece semelhante à defendida por Wittgenstein no Tractatus. Segundo Condé (1998), para o filósofo austríaco, “avaliar as condições de verdade de uma proposição significa saber o que é o caso (Was der fall ist), isto é, saber efetivamente o que ocorre na realidade” (p. 73).
Quanto à psiquiatria, poderíamos dizer que se configura de modo diferente, afastando-se do objetivismo da medicina? Não seria esse cenário o que temos hoje, quando observamos os avanços das neurociências e pesquisas que não cessam de localizar, descrever o funcionamento bioquímico do cérebro e eleger causas exclusivamente orgânicas (materiais) aos transtornos e alterações psíquicas? A que interesses tal discurso estaria atendendo?
Evidente que essas questões não são facilmente resolvidas, mas o fato de destacarmos, por exemplo, a relação entre o crescimento da indústria farmacêutica e os interesses e exigências do modo de produção capitalista ao qual estamos submetidos - é necessário eliminar as dores e conflitos para produzir mais e melhor - têm sua importância na discussão que propomos sobre o conceito de sintoma. Podemos dizer que a psiquiatria já nasceu com a dificuldade de limitar seu objeto a um sistema, um órgão, como fez a ciência médica ao se fragmentar em especialidades. De acordo com Pimenta e Ferreira (2003),
Não podendo lançar mão da correlação anatomopatológica, muito menos ser auxiliados pelos exames complementares e aparelhos, os psiquiatras se veem na condição do clínico da medicina pré-científica. A psiquiatria clássica descreve exaustivamente os quadros clínicos classificados e sistematizados, que vão constituir sua psicopatologia. Nesta posição, apenas para citar alguns, encontram-se: Kretschmer, Kraepelin e Bleuler pela escola alemã; Morel e Clérambault, pela escola francesa. (p. 225)
Contudo, essa “limitação” é o que talvez permita à psiquiatria não reduzir sua atividade ao puro exercício técnico-científico, admitindo um espaço para que os sujeitos de linguagem - na relação, tão bem assinalada pela psicanálise, médico-paciente - apareçam e sejam considerados nessa prática que não se pode esquecer de ser, antes de tudo, social. Por outro lado, ao que parece, a psiquiatria não resistiu à era da medicina tecnológica e acabou por igualar os sintomas psíquicos ao sintoma médico comum, o que, seguindo essa lógica, a faz aspirar à eliminação dos sintomas pela administração dos psicofármacos, associando-se, assim, a cura psíquica à ausência de sintomas. Nas palavras de Pimenta e Ferreira (2003), “a proposta cientificista, mais uma vez, coloca uma camisa-de-força nas doenças da alma, desta vez de forma tecnológica e sofisticada” (p. 227).
Em que medida a psicanálise pode contribuir para que outra leitura do sintoma possa ser feita? Herdeira do pensamento psiquiátrico moderno, a psicanálise, enquanto saber construído a partir de uma prática que busca privilegiar o sujeito da linguagem através de sua fala, gestos e também de seu silêncio, promove uma série de modificações no campo da compreensão do psiquismo humano. O que entra em jogo, quando do seu surgimento, é o novo olhar sobre o sentido do sintoma psicopatológico. Segundo Figueiredo (2004),
Freud, ao tomar seu rumo na direção do inconsciente, lança a psicanálise numa nova referência que redimensiona o alcance do diagnóstico, indo da descrição à dinâmica; do fenômeno à estrutura (Figueiredo & Machado, 2000). Um novo campo aí se delineia por oposição ao campo fenomênico-descritivo da psiquiatria e da psicopatologia geral, a saber: o campo do inconsciente e suas formações (Freud) ou o campo do Outro (Lacan). (p. 76)
Com Freud, o sintoma passa a ter outro sentido, um sentido que, por se definir como inconsciente, não deixa de ser uma articulação linguística do sujeito. Em razão do conflito psíquico no qual todo sujeito se constitui, a formação sintomática deixa de ser representada pela lógica ausência-presença (saúde-doença) de sintomas, passando a definir o próprio advir do sujeito: não há sujeito fora de um arranjo sintomático, pois o sintoma se constrói na relação de significação, assim como o sujeito se constitui na linguagem, no campo do Outro.
Aqui, se dá uma primeira diferença: o sintoma não vai sem o sujeito, nem o sujeito pode ser pensado sem o seu sintoma. Um constitui o outro, melhor dizendo, um se constitui no outro, o sujeito através do sintoma e vice-versa. Essa relação estreita do sujeito ao sintoma - seja o sintoma neurótico ou as produções psicóticas - por si já marca uma diferença radical com a concepção funcionalista-organicista de uma certa psiquiatria e sua psicopatologia, que se propõe justamente a separar os dois termos, a não estabelecer qualquer ligação entre eles e, portanto, a distinguir ao máximo o diagnóstico do tratamento, tanto no método quanto na dinâmica. (Figueiredo, 2004, p. 76)
O sujeito se expressa através do seu sintoma. Partindo dessa perspectiva, toda descrição objetiva da ciência psiquiátrica sai de cena, abrindo espaço para que seja privilegiada a escuta desse sujeito que, ao falar, significa seu sofrimento. Freud descobre que a fala do sujeito é atravessada por um saber o qual ele mesmo desconhece e que, surpreendido por esse dito que é seu, não deixa de lhe causar estranhamento. A partir da concepção de que o sujeito não se define unicamente pela racionalidade, mas antes se encontra, constantemente, invadido, dividido pela dimensão inconsciente, Freud apresenta o sintoma como uma formação de compromisso, isto é, um acordo entre as moções pulsionais que visam a satisfação (desejos inconscientes) e a censura que se estabelece em virtude das restrições impostas ao sujeito por sua relação com o mundo, com os outros, que procura defender a própria preservação do sujeito, estabelecendo certos limites à satisfação direta e imediata das moções pulsionais.
Nesse sentido, ainda que o sintoma produza sofrimento ao sujeito que dele se queixa, e tantas vezes insiste em se perceber vítima de seu próprio arranjo sintomático, em certa medida o sintoma significa uma solução, precária, porém uma solução que tenta garantir uma certa organização para o sujeito. Segundo Freud (1926/1996), em Inibição, sintoma e angústia, “os sintomas são criados a fim de evitar uma situação de perigo sentida pelo ego. Se se impedir que os sintomas sejam formados, o perigo de fato se concretiza” (p. 142). Isto é, o sujeito se vê em situação de total desamparo. Nessa posição, o sintoma perde sua estruturação simbólica, seu poder de significação, e dá espaço para que a angústia apareça denunciando essa insuficiência simbólica, já que a angústia é aquilo mesmo que não se consegue simbolizar. Sendo assim, podemos dizer que o sintoma tem a função de evitar o perigo da angústia.
Se o sintoma supõe uma articulação simbólica, se se configura a expressão de uma verdade do sujeito, é como enigma significante que ele convoca o sujeito à decifração, à construção de uma significação engendrada na relação de um significante com outro significante. Essa é a construção teórica introduzida por Lacan. Na medida em que ressalta a função da linguagem no discurso analítico, Lacan reconhece que a significação só pode ser dada na relação entre significantes e, portanto, depende de uma fala contextualizada que a defina, de um determinado jogo de linguagem que lhe possibilite significado. Nesse sentido, podemos dizer que a leitura psicanalítica do sintoma se aproxima de uma visão pragmática. Contudo, ao destacar a autonomia do significante em detrimento do significado, Lacan revela ter o significante uma função desconhecida pelos linguistas, função que não é comunicação nem informação, mas sim a indicação da posição do sujeito em relação à verdade do que deseja, ou seja, é no equívoco da língua, ali onde as regras do jogo sofrem alterações, substituições e combinações inusitadas, que o sujeito pode produzir uma significação do seu desejo inconsciente.
Talvez haja aqui uma primeira diferença entre a perspectiva da psicanálise e a pragmática wittgensteiniana, embora, não esqueçamos, estejamos tratando de aproximá-las. Para a pragmática de Wittgenstein, trata-se, no ser falante, da utilização de variados jogos de linguagem, vocalizações, gestos e expressões que, dependendo do contexto, irão produzir sentidos que fujam ao equívoco, ou seja, a práxis comunicativa implica a compreensão de certo jogo de linguagem que está para além da designação de objetos. Em contrapartida, em psicanálise,
trata-se de tornar o equívoco produtivo. O trabalho analítico consiste em desmanchar a forma de significação operante naquele contexto, abrindo novas possibilidades de sentido. . . . Nesse jogo, não se trata de encontrar uma equiparação entre os significados para ambos os falantes, mas de uma disparidade de posições. Não há equivalência entre os parceiros, um fala e outro escuta para além da significação contextual, isso é a forma de vida da psicanálise: a instauração de um jogo de linguagem que passe a ser vigente e válido naquele contexto. A clínica pode então ser considerada como uma especificidade de forma de vida. (D’agord, Binkowski, & Chittoni, 2008, p. 51)
Desse modo, podemos nos arriscar a dizer que o sintoma é uma construção cuja significação depende do contexto: um fenômeno alucinatório, por exemplo, terá significações distintas se pensada por uma comunidade indígena, por religiosos do candomblé, ou ainda pela classe médica. Porém, o que a psicanálise acrescenta a essa perspectiva é que algo próprio da relação do sujeito com a linguagem, dos significantes que o marcam, se articula em seu sintoma como metáfora (Lacan, 1957-58/1999). Ou seja, produz uma nova significação incluindo ali um desejo irreconhecível pelo próprio sujeito, porém articulado como uma satisfação paradoxal (Lacan, 1998).
Nesse ponto, a psicanálise lacaniana parece exceder a concepção pragmática de linguagem de Wittgenstein. A relação do sujeito com a linguagem implicaria outra função que não a do ato de comunicar ou expressar algo. Trata-se, essencialmente - e ao tomarmos a ideia de sintoma no sentido psicanalítico, torna-se mais evidente - de um modo de o sujeito articular tanto um desejo irredutível quanto uma espécie de resto de gozo inabordável pela linguagem. Porém, esse passo em direção a uma clínica do real, daquilo que resiste à significação, refere-se a uma segunda fase do ensino de Lacan que não pretendemos discutir neste momento.
Conclusão
A partir das contribuições da filosofia da linguagem, sobretudo da perspectiva de Wittgenstein, vimos a importância em se considerar a linguagem, as teorias e práticas científicas enquanto construções sociais, saberes que constituem diferentes jogos de linguagem. Com o objetivo de analisar, sob diferentes óticas, o conceito de sintoma, observamos: de um lado, o modo como a medicina toma o sintoma como uma entidade extralinguística, sem articulação ao sujeito, ao contexto em que ele se insere, aproximando-se mais da visão de linguagem que acredita ser representação de uma realidade pré-existente; de modo distinto, a psicanálise encontra no discurso do sujeito a possibilidade de um deslocamento da significação que mantém a formação sintomática, no sentido de que ele possa se modificar e provocar menos sofrimento ao sujeito.
Ainda que a medicina e a psicanálise consistam em pontos de vista completamente distintos, não podemos esquecer que essas práticas revelam a tentativa de construir um sentido sobre algo, uma doença, um afeto ou sensação que, embora seja expressão particular ao modo de funcionamento do sujeito, não está desarticulada do contexto, dos sentidos linguísticos que antecipam e constroem a realidade da doença, do afeto, da sensação.
Seguindo, então, a perspectiva do segundo Wittgenstein quanto ao sintoma, talvez devêssemos nos perguntar de que modo ele funciona, que uso o sujeito faz dele, em que sentido ele revela um desejo do sujeito, pois se estamos tratando da dimensão humana, os jogos de linguagem estão aí para nos dizer que as possibilidades de significação são sempre variadas.
Referências
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1
Ao nos referirmos aos pontos da obra Tractatus logico-philosophicus, utilizaremos a sigla T.L.F. (Wittgenstein, 1921).
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2
No parágrafo 7 das Investigações filosóficas, o autor apresenta alguns exemplos do que chamaria jogos de linguagem: “Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. . . . Pense os vários usos das palavras ao se brincar de roda. Chamarei também de “jogos de linguagem” o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada”. (1991, p. 12).
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3
Ver Safouan, M., 1989.
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4
Entendemos, aqui, como perspectiva construtivista a concepção de que o sujeito humano constrói a realidade e a si mesmo através das relações de linguagem estabelecidas com outros seres e ambiente em que vive. Das teorias da aprendizagem (Piaget e Vygotsky) à teoria social de Bourdieu, veem-se algumas concepções de construtivismo.
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5
“Segundo o Tractatus, ‘a proposição é uma figuração da realidade. A proposição é um modelo da realidade tal como a pensamos (prop. 4.01)’. De acordo com essa concepção, uma proposição desempenha o papel de fornecer um modelo ou uma figuração da realidade.” (Marques, 2005, p. 17).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2017
Histórico
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Recebido
14 Abr 2016 -
Revisado
05 Ago 2016 -
Aceito
12 Ago 2016