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Esclarecimento e indústria cultural: algumas reflexões acerca da neurocultura

Les Lumières et l’industrie culturelle: quelques réflexions sur la neuroculture

Iluminismo e industria cultural: algunas reflexiones acerca de la neurocultura

Resumo

As inovações da neurociência e suas repercussões fizeram do cérebro não apenas um órgão, mas um ator social relevante na contemporaneidade. Tal conjuntura propiciou o advento da neuroascese - isto é, práticas e discursos de ação direta sobre o cérebro no intuito de potencializar seu desempenho -, o que, por sua vez, resultou em uma cultura cerebral (neurocultura). Diante de tal quadro, este estudo adotou como objetivo principal analisar alguns elementos dessa neurocultura por intermédio de referências conceituais advindas da Teoria Crítica da Sociedade, particularmente as noções de Esclarecimento (Aufklärung) e indústria cultural. Em termos conclusivos, identifica na propaganda da neuroascese um esquema de dominação e uniformidade que acaba por reificar as massas segundo critérios que reduzem o sujeito à mera expressão da sua atividade cerebral.

Palavras-chave:
neurocultura; esclarecimento; indústria cultural

Résumé

Les innovations de la neuroscience et ses répercussions ont fait du cerveau pas seulement un organe, mais aussi un acteur social important dans notre contemporanéité. Cette conjoncture a rendu possible l’avènement de la neuroascesis - c’est à dire, des pratiques et des discours d’action directe sur le cerveau avec la finalité de potentialiser sa performance - ce qui, d’autre part, a fini dans une culture cérébrale (neuroculture). Devant ce cadre, cet essai a adopté comme but principal l’analyse de quelques éléments de cette neuroculture par des références conceptuelles de la Théorie Critique de la Société, en particulier des notions de Lumières (Aufklärung) et de l’industrie culturelle. À la fin, on identifie dans la publicité de la neuroascesis un schéma de domination et uniformité, dont le but c’est de réfier les foules en utilisant des critères qui réduisent le sujet à la simple expression de son activité cérébrale.

Mots-clés:
neuroculture; lumières; industrie culturelle

Resumen

Las innovaciones de la neurociencia y su impacto hicieron del cerebro no solo un cuerpo, sino un actor social relevante en el mundo contemporáneo. Esta situación llevó a la llegada de la neuroascesis -es decir, las prácticas de acción directa y discursos sobre el cerebro con el fin de mejorar su rendimiento-, que, a su vez, dio lugar a una cultura del cerebro (neurocultura). Ante esta situación, el presente estudio tiene por objeto examinar algunos elementos de esta neurocultura mediante marcos conceptuales que se derivan de la Teoría Crítica de la Sociedad, especialmente aquellos de Iluminismo (Aufklärung) e industria cultural. En términos concluyentes, se identifica en la publicidad de la neuroascesis un esquema de dominación y uniformidad que termina a cosificar las masas de acuerdo con los criterios que reducen el individuo a una mera expresión de su actividad cerebral.

Palabras clave:
neurocultura; iluminismo; industria cultural

Abstract

Neuroscience innovations and their repercussions have made the brain not only an organ, but a relevant social actor in contemporary times. Such conjuncture led to the advent of neuroascesis - that is, practices and discourses of direct action on the brain in order to enhance its performance - which, in turn, resulted in a brain culture (neuroculture). Given this scenario, this study aimed at analyzing some elements of neuroculture in the light of conceptual references of the Critical Theory of Society, particularly the notions of Enlightenment (Aufklärung) and culture industry. In conclusion, the article identifies in neuroscience propaganda a scheme of domination and uniformity that ends up reifying the masses according to criteria that reduce a person to the mere expression of his/her brain activity.

Keywords:
neuroculture; enlightenment; culture industry

Um olhar atento às inovações da neurociência noticiadas nas últimas décadas pode levar a uma série de impressões instigantes à curiosidade comum. À primeira vista, o destaque conferido ao cérebro e suas potencialidades pode ensejar a opinião de que todo ser humano possui um “superórgão” no qual se situariam todas as qualidades da espécie. Em cada nova descoberta há, aparentemente, um recado implícito: tudo aquilo outrora explicado por meio de noções éticas, religiosas e/ou metafísicas pode passar a ser ressignificado como efeito da atividade cerebral. Torna-se relevante, então, tentar investigar o que essa veiculação de notícias traz de interessante para um debate no campo das humanidades, principalmente se levarmos em conta que o cérebro não mais vem sendo representado apenas como um órgão, mas também como agente social bastante relevante na contemporaneidade de uma “cultura somática”1 1 A cultura somática pode ser definida a partir de um conjunto de enunciados propagados pelo esforço comum das comunidades científicas e dos meios de comunicação de massa, conjunto este em que a própria ideia de coletividade passa a ser construída segundo critérios de saúde, desempenho corporal, longevidade etc. (Ortega, 2009b). Seu efeito direto pode ser medido na crescente procura de produtos como vitaminas e suplementos alimentares, os quais supostamente favorecem a prática de exercícios físicos e comportamentos considerados saudáveis. .

É nesse contexto, em que o cérebro assume uma posição de protagonista na percepção geral sobre a constituição humana, que alcançamos a neurocultura. Esta, por seu turno, diz respeito à valorização dos atributos cerebrais por meio da circulação e disseminação de práticas de neuroascese - isto é, práticas e discursos de ação direta sobre o cérebro no intuito de maximizar seu desempenho, eficiência e potencialidade. Já há algum tempo, tal tendência vem despertando o interesse acadêmico internacional, algo exemplificado pelo debate proposto por Ehrenberg (2004/2009Ehrenberg, A. (2009). O sujeito cerebral (M. T. Oliveira & M. Winograd, trad.). Psicologia Clínica, 21(1), 187-213. (Trabalho original publicado em 2004). doi: 10.1590/S0103-56652009000100013
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), segundo o qual haveria uma evidente divisão de programas e interesses no ramo das neurociências: aquelas de programa “fraco” - isto é, que visam apenas tratar doenças neurológicas e descobrir aspectos neuropatológicos das doenças mentais - em oposição às neurociências de programa “forte”, as quais objetivariam tratar as psicopatologias neuropatologicamente e, a partir daí, intervir de maneira mais eficaz sobre a maquinaria cerebral para aumentar as capacidades de decisão e ação dos indivíduos, agora considerados “sujeitos cerebrais”.

Também no Brasil a questão da neurocultura vem subsidiando debates acadêmicos nos últimos anos. Com efeito, Ortega (2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
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; 2009bOrtega, F. (2009b). Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(3), 247-260. doi: 10.1590/S1414-32832009000400002
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), Ortega e Vidal (2007Ortega, F., & Vidal, F. (2007). Mapeamento do sujeito cerebral na cultura contemporânea. Reciis, 1(2), 257-261. Recuperado de http://bit.ly/2Mgur4u
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), Ortega e Bezerra Jr. (2006Ortega, F., & Bezerra Jr., B. (2006). O sujeito cerebral. Mente Cérebro, 162. Recuperado de http://bit.ly/2IUxuwW
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) e Vidal (2011Vidal, F. (2011). O sujeito cerebral: um esboço histórico e conceitual. Polis e Psique, 1(1), 169-180. doi: 10.22456/2238-152X.25883
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) têm apresentado estudos sobre a neuroascese, a neurocultura e o sujeito cerebral sob uma perspectiva histórico-sociológica que se ocupa do mapeamento do sujeito cerebral tanto na contemporaneidade quanto no desenvolvimento da neuroascese, com suas raízes nas filosofias da identidade pessoal do século XVII.

De posse dessas referências, cabe então salientar que este artigo visa caracterizar alguns dos elementos que compõem a neurocultura e a qualificam como uma tendência dominante de condução de vida na contemporaneidade, sendo o objetivo maior aqui analisar algumas implicações psicossociológicas decorrentes da interpenetração entre racionalidade e irracionalidade que se fazem presentes em práticas neuroascéticas que, embora travestidas de aparente roupagem progressista e/ou libertadora fornecida por um rótulo “científico”, aproximam-se bastante tanto da literatura de autoajuda quanto de teorias e exercícios “neuroeducativos” outros - como aqueles relativos à frenologia e ao double brain -, surgidos e difundidos ainda no século XIX. Assim, utilizaremos sobretudo duas noções específicas e vinculadas ao pensamento de Max Horkheimer e Theodor Adorno - a saber, aquelas de Esclarecimento e de indústria cultural. Aqui, vale a pena acrescentar, respeitando um modus operandi característico da Teoria Crítica da Sociedade, que não se trata de reduzirmos ou congelarmos o fenômeno da neurocultura a partir da ação dos conceitos supramencionados, mas, sim, de os utilizarmos como motores para uma reflexão que mantenha não somente o fenômeno como também as próprias ferramentas conceituais aqui utilizadas em movimento, dentro dos limites e possibilidades oferecidos pela escrita de um artigo.

Para tanto, subdividimos nosso trabalho em três seções principais. Na primeira delas, buscamos apresentar uma genealogia da neuroascese, estabelecendo algumas correspondências entre o ascetismo outrora norteado por noções advindas da frenologia e aquele que agora diz obedecer aos avanços da neurociência. Na segunda, conforme sugerido anteriormente, introduziremos alguns elementos da Teoria Crítica, cujo referencial conceitual adotamos para examinar a ação e a propagação do fenômeno da neurocultura. Em particular, mobilizamos noções como as de Esclarecimento e reificação para um exame de tal “culto ao cérebro” como componente circunscrito no esquema mais amplo da indústria cultural. Por fim, em uma tentativa de aproximar com mais propriedade os dois momentos anteriores, buscamos, em um terceiro momento, repensar a neuroascese a partir dos (des)caminhos da lógica esclarecida - isto é, a partir da (des)razão que lhe é dialeticamente inerente -, utilizando, para tanto, a análise do conteúdo de um livro que, representante da tendência neuroascética supramencionada, obteve há poucos anos considerável difusão e sucesso no mercado editorial brasileiro.

Neuroascese e sujeito cerebral: aspectos históricos e conceituais

A neuroascese é aqui concebida como o conjunto de práticas e discursos de ação direta sobre o cérebro com o intuito de potencializar e maximizar seu desempenho. No entanto, faz-se necessário circunscrever as práticas de neuroascese em contextos socioculturais ainda mais abrangentes. Destarte, não podemos esquecer que a neuroascese tende a ser uma das manifestações condicionadas pela presença de uma cultura somática que organiza a coletividade segundo critérios de saúde e desempenho corporal.

Com efeito, crenças que antes pertenciam aos domínios da moral, religião e outras áreas relativas à vida humana passaram a adquirir um valor aferido de acordo com a sua distância ou proximidade em relação à noção de “qualidade de vida”. Não se trata, porém, de uma ruptura com antigas tradições, mas, sim, de uma retradução de valores para uma visão cientificista da vida. Nestes termos, se antes as práticas buscavam desenvolver qualidades morais e espirituais próximas a um plano mais metafísico, na atualidade a busca por longevidade, saúde e qualidade de vida se secularizou, vinculando-se ao cotidiano de sujeitos que se aproximam de tais práticas ascéticas para fins tão “mundanos” quanto o aprimoramento da sua capacidade de concentração, trabalho e produção (Costa, 2005Costa, J. F. (2005). O Vestígio e a Aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Garamond.).

É justamente nesse contexto que enxergamos a presença cada vez maior da neuroascese no cotidiano das massas como sucedânea do impacto sociocultural das inovações neurocientíficas. Isto por meio de uma ação reiterada de propaganda e divulgação nas mídias de massa. Mediante tais práticas, os sujeitos almejam exercer domínio sobre seu cérebro e, por conseguinte, o controle de si mesmos, respondendo afirmativamente à exortação publicitária que promove o saber neurocientífico como um colaborador direto para o sucesso e bem-estar individuais.

A emergência de uma corrente das neurociências interessada em conferir novos matizes para crenças e noções que antes pertenciam a outros campos de investigação acadêmica é, sem dúvida, um marco importante para a consolidação da neurocultura. Aqui é propagada a ideia de que, por meio do recurso a tecnologias que fornecem imagens cada vez mais precisas da atividade cerebral, seria possível identificar em tempo real os processos cerebrais ocorridos em diversas situações da vida humana, como luto, decisões de compra, situações relacionadas ao amor e à violência etc. A busca pelos fundamentos neurofuncionais de fenômenos tradicionalmente discutidos no campo das ciências humanas é uma das principais tarefas desta corrente das neurociências (Vidal, 2011Vidal, F. (2011). O sujeito cerebral: um esboço histórico e conceitual. Polis e Psique, 1(1), 169-180. doi: 10.22456/2238-152X.25883
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).

Destarte, o interesse pelo cérebro deixa de se limitar aos espaços mais restritos dos consultórios médicos e laboratórios científicos, sendo progressivamente difundido nas mídias de massa e, por conseguinte, no imaginário social mais amplo. Os discursos e práticas neuroascéticos passam a adquirir a função de ressignificar a linguagem com que são representadas as atitudes, pensamentos e emoções humanas, e o vocabulário neuroquímico tende, pois, a tomar o lugar de representações linguísticas outrora relacionadas a noções éticas, morais e ontológicas. Como subproduto dessa teia de discursos e informações, propagou-se no imaginário social a busca por uma construção de si que visa alcançar o “sujeito cerebral”, expressão cunhada por Ehrenberg (2004/2009Ehrenberg, A. (2009). O sujeito cerebral (M. T. Oliveira & M. Winograd, trad.). Psicologia Clínica, 21(1), 187-213. (Trabalho original publicado em 2004). doi: 10.1590/S0103-56652009000100013
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) e que se refere ao sujeito-alvo do discurso neurocientífico, aquele que eleva o cérebro à posição de sede e fundamento da sua subjetividade. A neuroascese, por conseguinte, seria um fator estruturante dessa subjetividade cerebral.

Apesar de a sua relevância se intensificar em conjunto com o recente boom dos avanços da neurociência, a neuroascese é uma prática que se solidifica no século XIX. Neste sentido, é Ortega (2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
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) quem, por meio de minuciosa reconstrução histórica, aponta como o neuroascetismo era comum na Europa novecentista. Lá a frenologia e as teorias sobre o double brain (cérebro duplo) eram discursos vigentes sobre as faculdades mentais, figurando como disciplinas capazes de realizar a “neuroeducação” necessária para o bom convívio em sociedade e o aproveitamento satisfatório dos recursos mentais por meio do cultivo de práticas que permitissem a otimização dos hemisférios cerebrais2 2 A primeira pregava que cada aspecto do caráter humano era sediado em uma região específica do crânio, ao passo que as segundas afirmavam que cada indivíduo: “possuía dois cérebros conscientes, independentes um do outro” (Ortega, 2009a, p. 623). . Em tal contexto, o alcance da saúde mental se daria mediante o treino diário do cérebro, com a ascese frenológica permitindo que, ao mesmo tempo, fossem cultivadas virtudes socialmente aceitas e inibidas as más inclinações da personalidade.

Por meio desse breve histórico, podemos ver que há uma correspondência entre a neuroascese do século XIX, quando o paradigma vigente era a frenologia, e as práticas orientadas pela neurociência contemporânea, aproximação esta anteriormente apontada por Ortega (2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
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). Nesse sentido, intriga-nos que conhecimentos advindos da era da frenologia e do cérebro duplo, supostamente condenados à obsolescência, possam reaparecer na contemporaneidade propulsados justamente por “descobertas” neurocientíficas que, ao menos em tese, deveriam reforçar a sua falta de validade acadêmica. Eis o que nos conduz ao seguinte problema: haveria pontos de ambivalência e indistinção entre aquilo que hoje é (neuro)cientificamente aceito e a suposta cantilena frenológica, considerando-se aí que ambas as tendências pretenderam se lançar ao campo das práticas de neuroascese, estuário para o qual convergiria o bom aproveitamento do cérebro e, por conseguinte, da vida?

Tal dilema parece derivar também do aumento da influência dos meios de comunicação de massa como veículos de promoção de um mercado destinado às práticas de maximização do desempenho cerebral, sendo a quantidade de livros de autoajuda, softwares, revistas e outros tipos de produtos cada vez maior. Cabe, então, a estes meios de comunicação de massa o papel de popularizar e disseminar tais produtos, assim como tornar familiar o vocabulário neuroquímico ao consumidor e despertar nele o interesse por manter uma rotina de educação cerebral.

Conquanto reconheçamos de bom grado o arcabouço que a produção acadêmica existente até agora nos forneceu (reiteremos aqui a importância de trabalhos como os de Ehrenberg, 2009Ehrenberg, A. (2009). O sujeito cerebral (M. T. Oliveira & M. Winograd, trad.). Psicologia Clínica, 21(1), 187-213. (Trabalho original publicado em 2004). doi: 10.1590/S0103-56652009000100013
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; Ortega, 2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
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; 2009bOrtega, F. (2009b). Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(3), 247-260. doi: 10.1590/S1414-32832009000400002
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; Ortega & Bezerra Jr., 2006Ortega, F., & Bezerra Jr., B. (2006). O sujeito cerebral. Mente Cérebro, 162. Recuperado de http://bit.ly/2IUxuwW
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; Ortega & Vidal, 2007Ortega, F., & Vidal, F. (2007). Mapeamento do sujeito cerebral na cultura contemporânea. Reciis, 1(2), 257-261. Recuperado de http://bit.ly/2Mgur4u
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; Vidal, 2011Vidal, F. (2011). O sujeito cerebral: um esboço histórico e conceitual. Polis e Psique, 1(1), 169-180. doi: 10.22456/2238-152X.25883
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), não podemos nos furtar a identificar a insuficiência de investigações mais específicas, por exemplo, sobre o papel dos meios de comunicação de massa na disseminação da neurocultura. É por compreendermos que este e outros aspectos também sejam importantes para este debate que recorreremos agora a algumas contribuições conceituais da Teoria Crítica da Sociedade, expressas, por exemplo, em noções como as de Esclarecimento e indústria cultural. O intuito aqui é sedimentarmos o terreno para uma compreensão mais apropriada das relações que propomos entre a difusão e a prática da neuroascese e o processo de reificação que se estabelece a partir do ideal de uma subjetividade cientificamente erigida.

Teoria Crítica, Esclarecimento e indústria cultural: alguns (breves) comentários

A Teoria Crítica pode ser caracterizada como uma “filosofia social” de cunho interdisciplinar e referente ao trabalho em conjunto realizado por membros do Instituto de Pesquisas Sociais fundado em Frankfurt, Alemanha, em 1924. No escopo da Teoria Crítica, destacamos aqui a parceria intelectual de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, que resultou em uma das obras mais importantes tanto para a própria Teoria Crítica quanto para o pensamento ocidental do século XX: o conjunto de ensaios denominado Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (1947), voltado a uma reflexão sobre os perigos velados do programa do Esclarecimento como espírito conhecedor que emanciparia a humanidade da imaturidade mítica ao desenvolver a razão e a dominação da natureza.

Nesses termos, já o primeiro texto da coletânea, denominado “O conceito de Esclarecimento”, começa em um tom alarmante e profético, salientando que o Iluminismo (Aufklärung), que detinha por objetivo a substituição da imaginação pelo saber por meio da dissolução dos mitos e do desencantamento do mundo, estaria conduzindo o curso da humanidade à barbárie e à autodestruição (Horkheimer & Adorno, 1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).). Ou seja, o progresso alardeado por esse mesmo Esclarecimento não singraria uma vereda que conduz unicamente à liberdade e à maioridade, frustrando, assim, radicalmente a proposição anteriormente advogada pelo famoso texto de Kant (1784/2009Kant, I. (2009). Resposta à questão: o que é o Esclarecimento. In J. Marçal (Org.), Antologia dos textos filosóficos (V. Figueiredo, trad., pp. 406-415). Curitiba, PR: SEED/PR. (Trabalho original publicado em 1784).)3 3 Em termos gerais, para Kant (1784/2009) a filosofia da Ilustração aparece como a saída de uma menoridade pela qual o próprio homem seria responsável, resultante não de uma carência de entendimento, mas de uma falta de ousadia em saber (Sapere aude), servindo-se, para tanto, da própria razão. Neste sentido, aquele que não ousa saber se contentaria em viver uma vida tacanha, pautada pela preguiça e pela covardia, carregando consigo o fardo de ser um indivíduo sem liberdade e autonomia, já que dependente da tutela intelectual alheia. . Para Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).), tanto o horror dos regimes totalitários quanto a fetichização das relações e a decadência ideológica da indústria do entretenimento nas sociedades ditas liberais atestariam o germe regressivo que a Aufklärung traz consigo. Em ambos os casos, as massas não seriam apenas objetos de uma dominação perpetrada por meio da ilusão de progresso, mas principalmente o próprio veículo desta dominação.

Nesse diapasão, Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).) asseveram que os caminhos tomados pelo Esclarecimento resultariam no refino do ímpeto de dominação por ele exercido, sendo o aperfeiçoamento de uma indústria cultural, por exemplo, um passo fundamental para a determinação a priori da percepção das massas sobre os objetos. É nesta esteira que Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).) pontuam que tal lógica de dominação se imprime sobremaneira na cultura contemporânea, ao conferir a tudo um caráter de semelhança e equivalência, algo largamente motivado pela especialização de uma indústria responsável pela produção em massa de bens culturais em um sistema coeso e composto pelos meios de comunicação de massa e pelos detentores do poder político e econômico.

Ainda segundo Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).), ao engendrar produtos supostamente feitos sob medida, a indústria cultural insinua falaciosamente que as massas são o seu principal objeto e motivação quando, na verdade, as massas são a própria ideologia da indústria cultural, porquanto a mentalidade a ser nelas insuflada é a maior finalidade da padronização de todos os bens, em um processo de transformação do banal em mercadoria e de monetização do monótono. Conforme exposto no parágrafo anterior, aqui tudo pode se tornar homogêneo e mercantilizável, inclusive os sujeitos (Adorno, 1963/1986Adorno, T. W. (1986). Indústria cultural. In T. W. Adorno, G. Cohn (Org.) & F. Fernandes (Coord.), Sociologia (A. Cohn, trad., pp. 92-99). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1963).). Por conseguinte, qualquer eventual espontaneidade que surge no seio da massa tende a ser rapidamente mercantilizada, com a indústria cultural sempre em busca de vestes novas para antigos estereótipos - como o novo hit do verão, o novo filme de super-heróis etc.

Então, a partir de um manejo excelso do impulso categorizador realizado pelo Esclarecimento no que se refere aos objetos da natureza, a indústria cultural leva o tino totalitário e predatório da razão esclarecida ao seu paroxismo, tratando todos os indivíduos como equivalentes e impondo a eles necessidades e anseios padronizados, fazendo com que esperem o happy ending da vida do Mickey Mouse e dos astros de cinema em suas vidas cotidianas. Com efeito, seguem Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).), diferentes preços e valores passam a ser atribuídos a produtos culturais distintos não por diferenças ululantes de qualidade artística, mas pela sua utilidade em selecionar e classificar o público consumidor. Uma hierarquia de qualidades é, então, estabelecida para servir a uma quantificação completa dos consumidores, de forma que cada pessoa possa se comportar de acordo com a sua faixa estatística de consumo e também aspirar a uma ascensão para camadas superiores. Portanto, não é nada absurdo afirmar que, ao fim e ao cabo, o sujeito mais e mais é tratado como res (coisa). Em uma palavra, reificado.

Muito bem, mas e o que toda essa discussão tem a ver com a neuroascese e a neurocultura? Ou, dito de maneira distinta, será que tal processo de reificação do sujeito também não pode ser pensado na neuroascese/neurocultura? É o que debateremos a seguir.

Os (des)caminhos do Esclarecimento: a neuroascese sob a lente da Teoria Crítica

A discussão sobre os entrelaçamentos entre neurocultura, Esclarecimento e indústria cultural poderia, eventualmente, tomar o rumo de uma mera demonstração da subsunção do esquema da neurocultura ao projeto da Aufklärung e da indústria cultural. Contudo, tal encaminhamento da discussão teria pouco proveito em termos de profundidade crítica, porquanto dizer que algo funciona segundo o esquema da indústria cultural é um truísmo: a contemporaneidade ressalta cada vez mais o vaticínio de Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).) de que nada escapa ao filtro da indústria da cultura, afinal de contas.

Compreendemos que todo o percurso teórico anteriormente exposto acaba convergindo para uma tentativa de responder à seguinte questão: quais as continuidades e rupturas presentes na relação específica entre neurocultura, Esclarecimento e indústria cultural? Ainda que pretendamos dar conta de propor uma linha argumentativa acerca desse problema, temos antes que reconhecer que alguns “lugares-comuns” acabam por se constituir em premissas básicas da investigação que aqui se segue. Por exemplo, a afirmação de que a neurocultura pode ser concebida como uma atualíssima manifestação da Aufklärung, sendo disseminada e reiterada mediante sua penetração na indústria cultural contemporânea. A mera admissão de tal premissa, entretanto, não traria consigo nenhuma grande novidade.

Uma investigação sobre a questão supracitada tem, pois, o desafio inovador de cotejar e apresentar elementos específicos inerentes à neurocultura/neuroascese, elementos estes aferíveis em alguns exemplos materiais desta tendência e que apareçam disponíveis nas mídias de massa, como livros, matérias de jornal, e-books, audiolivros, sites etc. Com isso, temos uma articulação dos conceitos aqui expostos com objetos disponíveis na realidade social, o que perfaz um esforço complementar entre teoria e prática que é bastante caro aos estudos da Teoria Crítica e, por conseguinte, justifica com mais propriedade este artigo.

Assim, lançaremos mão, nos próximos parágrafos, da análise do conteúdo de trechos do livro de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), intitulado O cérebro de alta performance, disponível em larga escala tanto na internet quanto em várias livrarias pelo Brasil. No processo de seleção desta obra, algo que nos despertou especial atenção foi o fato de ela figurar na relação dos vinte livros mais vendidos do gênero autoajuda em 2013 segundo o site PublishNews4 4 Recuperado de https://www.publishnews.com.br/ , sendo a única na lista a abordar diretamente questões relativas ao cérebro e suas potencialidades. Em acréscimo, o livro em questão também obteve ampla divulgação para além do espaço mais restrito das livrarias, sendo discutido pelo seu autor em palestras e entrevistas concedidas a emissoras de rádio (Jung, 2015Jung, M (2015, 14 de fevereiro). Mundo corporativo: Dr. Luiz Fernando Garcia fala do poder do cérebro [Blog]. Recuperado de http://bit.ly/33wqgqR
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).

Também nos intrigou o fato de O cérebro de alta performance haver sido escrito por alguém que não é “do ramo” das neurociências. Neste sentido, Garcia (2013aGarcia, L. F. (2013a). Conheça Luiz Fernando Garcia. Recuperado de http://bit.ly/2mbeSQX
http://bit.ly/2mbeSQX...
) se apresenta em sua página na internet como um “administrador de empresas, psicólogo e psicanalista em formação com mais de 40 mil horas de atuação transformando a mente empreendedora”. Sua atuação profissional é marcada por palestras e treinamentos que tratam de empreendedorismo, cujo público-alvo se concentra nas empresas, e cursos de formação de executivos. Intrigou-nos, pois, como se daria a abordagem de um tema amplamente estudado por alguém com semelhante trajetória.

Antes de prosseguirmos, contudo, acreditamos ser importante reiterar o quanto, no tipo de produto da neurocultura analisado aqui, é possível observar o ímpeto da técnica ou racionalidade instrumental típicas da Aufklärung, ímpeto este agora ainda mais amplamente devotado à dominação de uma natureza de ordem “interior” - no caso, representada pelo cérebro. Nesse sentido, como vimos anteriormente, o avanço dos estudos sobre esse órgão e suas potencialidades ensejou não só uma nova gama de dados considerados científicos como também a propagação de uma subjetividade cerebral. Ocorre que, embora o interesse dos saberes neuroascéticos “recue” para o que se passa no interior dos sujeitos, os ritos e procedimentos por eles empregados sugerem não haver grande diferença entre o que, em termos de aplicação, deriva-se das supostas “novidades” da neurociência e os antigos conhecimentos das ciências naturais. Nesses termos, ainda prevalece a sanha em obter padrões e estereotipias que possam ser, acima de tudo, transformados em técnicas e práticas, movimento outrora já denunciado por Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).).

Vejamos, então, como a neuroascese, à sua maneira, reedita tal ênfase na repetição de procedimentos e técnicas a partir do seguinte excerto, no qual Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) apresenta a sua proposta acerca do que considera ser um “cérebro de alta performance”:

Depois de anos trabalhando com grupos de empresários e com treinamento de profissionais, consegui comprovar como esse processo de percepções é âncora para atingir resultados concretos. Para isso, é necessário lançar mão de exercícios mentais, estabelecer prioridades para o cérebro, visualizar cenários de modo que o preparem a aprender técnicas para conseguir prever não apenas nossas possíveis reações a situações difíceis, mas a percepção que outras pessoas terão de nós, algo que pode decidir nosso destino em milésimos de segundo. (p. 15)

O trecho acima não deixa dúvidas acerca do valor conferido ao treinamento do cérebro de acordo com prioridades orientadas pela obtenção de “resultados concretos”. Mais ainda, enaltece bastante o quanto esse mesmo cérebro tem de ser capaz de um alto poder de previsão. Ora, a ênfase na previsão e no controle é um dos pilares do método científico tradicional. Logo, se poderia objetar que não há nada demais em advogar tais noções. Mas é precisamente aqui que, mais uma vez, um retorno a Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).) se revela interessante aos nossos propósitos, em particular na ênfase conferida pelos autores sobre o quanto essa busca por previsão, controle e assenhoramento da natureza, supostamente uma demanda “progressista” e racional, já se fazia presente em narrativas míticas milenares na qualidade de reação à condição de refém do homem perante o seu destino. Nesses termos, ao acomodar um novo fato a antigas categorias científicas, também o Esclarecimento reedita a inevitabilidade do “destino” mítico que proclama evitar.

De volta ao texto de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), o autor não economiza nas comparações que tece entre o cérebro e um supercomputador, acrescentando, inclusive, que mediante o recurso a determinados exercícios disponíveis em seu livro, o órgão afinal acederia em cumprir o seu “destino” de ser máquina. Mas qual a motivação de desejar possuir algo como um potente supercomputador dentro de si - motivação esta, lembra-nos Rüdiger (1996Rüdiger, F. (1996). Literatura de auto-ajuda e individualismo. Porto Alegre, RS: Ed. UFRGS.), diretamente associada à promessa de “destravar” e desenvolver poderes que fazem um sujeito se tornar aquilo que sempre quis ser, um dos maiores lugares-comuns da autoajuda tradicional? Será que somente demandas racionais ensejariam tal desejo?

Como vimos em Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).), parece existir aí mais uma demonstração da dialética entre racionalidade e irracionalidade presente tanto no mito quanto na “razão esclarecida”. Afinal, embora com vernizes de cientificidade, a linha de argumentação de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) não se furta a apelar a profundos desejos e necessidades psicológicas - como aqueles relativos ao amor, à segurança e/ou à aceitação social - para conduzir o leitor a entender, por exemplo, como o córtex pré-frontal é o “nosso juiz das decisões executivas” (p. 18) que, caso exercitado, agiria como principal responsável pelo desenvolvimento de habilidades empreendedoras e geradoras de um sucesso ao qual o cérebro poderia se “acostumar”:

Ter sucesso . . . é saber aonde se quer chegar e conseguir se colocar nessa situação. É ter a cena da conquista construída dentro da mente. Assim, vamos acostumando nosso cérebro a agir de acordo com essa circunstância, quanto mais conseguimos visualizar e nos colocar nessa posição, mais perto e natural a situação de conquista nos parece. (Garcia, 2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente., p. 79)

Esse excerto evidencia o quanto, na esteira da Aufklärung, a neuroascese, supostamente fundada sobre os pilares do discurso técnico-científico e derivada de dados das neurociências, pode, sim, abarcar uma considerável gama de irracionalidade, irracionalidade esta manifesta no momento em que Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) edulcora com roupagem “científica” alguns dos mais tradicionais elementos da autoajuda que se coligam à faceta inconsciente do seu leitor. A título de exemplos, podemos citar o apelo direto à emoção, a exercícios de visualização de situações desejadas e a uma retórica do êxito (Pereira & Souza, 2018Pereira, M. A., & Souza, M. R. (2018). Literatura de autoajuda, sugestão e contemporaneidade: uma leitura psicanalítica. Polis e Psique, 8(2), 162-184. doi: 10.22456/2238-152X.80294
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).

Aliás, considerando o teor da nossa discussão até aqui, torna-se digno de nota como algo da irracionalidade há pouco referida é reconhecido pelo próprio Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) no momento em que, ao se remeter a situações em que um estímulo pode despertar a recordação de traumas pretéritos, explicita estar falando desse estímulo em termos do “inconsciente freudiano”. Ocorre que este último é propositalmente tolhido em seu poderio “ameaçador” ou “explosivo”, já que rapidamente traduzido para o vocabulário neurofisiológico. Afinal de contas, no percurso acima mencionado “também há um caminho neural. Ele (o inconsciente) foi processado pelo sistema límbico” (p. 61). E com isso - é o que tentamos demonstrar -, qualquer avaliação mais crítica acerca da evidente interpenetração entre razão instrumental e irracionalidade que se faça presente no texto segue deixada de lado pelo seu autor.

De volta, porém, ao último trecho do livro de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) que destacamos acima, interessa-nos ainda salientar consideráveis implicações presentes na afirmação do autor quanto à necessidade de que, para ser bem-sucedido na vida, seus leitores sustentem cérebros “acostumados” a agir de acordo com uma cena de sucesso previamente mentalizada. E que implicações são essas? Em particular, parece-nos haver aí um movimento de declínio da autonomia em nome da servidão heterônoma aos desígnios de um órgão hipersuficiente em relação ao seu portador. Daí a nossa suspeita de que o “sujeito cerebral” da neurocultura seja, de fato, um sujeito reificado.

É claro que é possível objetar que a recomendação de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) vai no sentido de que é o próprio sujeito, em uma posição de comando, que deve (re)direcionar seu cérebro positivamente, “acostumando-o” a ações mais afirmativas em busca de bem-estar e satisfação. Contudo, dado o enorme valor conferido ao cérebro em si mesmo ao longo do livro (em notório detrimento tanto ao seu portador quanto ao conjunto de demais órgãos que também o caracteriza), não nos parece possível afastar a impressão de que o sujeito da neurocultura ao qual Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) se endereça seja alguém que, acima de tudo, passa a ser objeto dos desígnios de um cérebro quase autônomo, este sim retratado como verdadeiro ator social transformador. E, se é este o caso, cabe então estendermos aquilo que Adorno (1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno, Ensaios sobre Psicologia Social e Psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 295-328). São Paulo, SP: Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1955).) anteriormente observou acerca do psicologismo para o contexto da neurocultura, uma vez que “precisamente a ciência na qual eles esperam se encontrar como sujeitos, transforma-os, de acordo com sua própria forma, em objetos” (p. 87).

Sem embargo, deduzimos daí que o discurso da neurocultura aprofunda a falácia do indivíduo como mônada independente do meio social porquanto usa da rubrica cientificista para proclamar o cérebro como um “pequeno universo” capaz de determinar unilateralmente a maneira como a realidade é percebida e, eventualmente, transformada. Acrescentemos a isso a observação, feita por Ortega (2009bOrtega, F. (2009b). Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(3), 247-260. doi: 10.1590/S1414-32832009000400002
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), de que tais artifícios se tornam sedutores ao perfazerem uma retórica cujas promessas e exortações se direcionam para a perspectiva de moldar o cérebro do consumidor da indústria da neurocultura de maneira semelhante ao cérebro de artistas e/ou grandes empresários. E, em assim procedendo, reproduzem “a lógica do sujeito cerebral e da autoajuda tradicional com roupagem cientificista” (Ortega, 2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
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, p. 635), algo expresso ipsis litteris em uma passagem do livro de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) em que aprendemos que “o gene D4DR é encontrado em artistas, pesquisadores e empreendedores francos (ou seja, as personalidades empreendedoras das quais falamos)” (p. 49).

No fim das contas, tal como exposto no livro de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), o cérebro parece comparável não somente a um supercomputador e suas partes, conforme evidenciamos anteriormente, mas também a uma empresa e sua divisão de trabalho, elidindo a importância das particularidades em nome de um “todo” aferível somente em termos de ações e resultados concretos, o que demonstra uma interessante continuidade do discurso neuroascético em relação à Aufklärung categorizadora e homogeneizante proposta por Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).). Se não, vejamos, ainda na companhia de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), o muito que o funcionamento do cérebro teria a ganhar ao se adequar a estereótipos fornecidos por slogans publicitários e programas de televisão:

Não pense, apenas faça. Lembra-se do lema da marca esportiva Nike? Ele é brilhante: “Just do it”, apenas faça o que precisa ser feito. . . . Recorda que o cérebro responde a novas situações e experiências fazendo conexões e construindo sinapses? Em vez de focalizar o problema, devemos sempre olhar o que ganhamos com isso e, dessa forma, nos orientar para a solução. . . . Diante de uma dificuldade, diante do “dizer não” a uma festa, ou não comprar uma roupa - para guardar dinheiro para viajar -, ou não comer aquele pedaço de cheesecake para emagrecer, devemos sempre nos lembrar da intenção desse momento, tratando-nos como crianças no programa da Supernanny. (p. 165)

Just do it (ou, mais precisamente, “não pense, apenas aja [sem questionar]”). Para Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), uma recomendação mais do que justa, ora, considerando-se o quanto em seu livro o pensamento é tomado na qualidade de uma veleidade que apenas atrapalharia a ação natural de um cérebro cujo alto desempenho se constrói mediante a repetição de ações padronizadas até que tal movimento se automatize diante de novas situações. Perguntamos, porém: tal mandamento não é composto por uma inquietante aporia? Pois para que precisamos de uma máquina tão sofisticada como o cérebro se sua função seria somente a de obedecer a estímulos do meio e responder a eles por meio de ações repetitivas?

Ah, mas é exatamente aí que, conforme sugerimos acima, o recurso às ideias de Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).) nos oferece um campo aberto de interessantes possibilidades de reflexão. E por quê? Bem, porque uma preciosa lição deixada por tais autores é a de que a aparente contradição, presente no texto de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), entre a simultânea adoção de uma imagem do cérebro como órgão de reflexão e repetição medular não precisa necessariamente ser lida como “sim” ou “não”, como mútua exclusão entre “verdade” e “mentira”, “racionalidade” e “irracionalidade”, já que desvela os traços definidores do próprio Esclarecimento. Afinal,

com o abandono do pensamento - que, em sua figura coisificada como matemática, máquina, organização, se vinga dos homens dele esquecidos -, o Esclarecimento abdicou de sua própria realização. Ao disciplinar tudo o que é único e individual, ele permitiu que o todo não compreendido se voltasse, enquanto dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens. (Horkheimer & Adorno, 1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947)., p. 45)

Ou seja, a partir da Teoria Crítica de Horkheimer e Adorno (1947b/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985b). O conceito de esclarecimento. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 19-52). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1947).), torna-se possível vislumbrarmos como na aparente contradição contida na proposta de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) reside um dos pontos fulcrais da dialética do Esclarecimento, dialética expressa quando, no curso incompleto da tentativa de realizar uma dominação da natureza externa e interna, a razão instrumental volve sua força contra os sujeitos que dela se servem, tornando-os ao mesmo tempo senhores e servos de uma natureza agora reduzida ao número, ao processo biológico manipulável e ao cálculo. Em termos do nosso principal interesse aqui - qual seja, identificar e analisar a interpenetração entre racionalidade e irracionalidade contida na falácia “libertadora” presente no discurso pseudocientífico da neurocultura -, isso se reflete quando, na ânsia de se assenhorear de si e do mundo pela via de um “efetivo” manejo do cérebro, o praticante da neuroascese contemporânea se torna seu servo (leia-se: servo da indústria que propaga todo o valor e excepcionalidade desse órgão) e, assim, uma mera expressão da mesma natureza que um dia pretendeu dominar.

No presente caso, a dialética que opera entre “senhor” e “servo” não é aquela celebremente proposta por Hegel (1807/1992Hegel, G. W. F. (1992). Fenomenologia do espírito (P. Meneses, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1807).), mas outra, que não se encaminha diretamente para uma síntese entre os registros que se negam mutuamente (Buck-Morss, 1977Buck-Morss, S. (1977). The origin of negative dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and The Frankfurt Institute. New York, NY: The Free Press.). Ambos se interpenetram, guardam entre si uma contínua tensão, mutilados pela ilusão de dominarem a natureza pela repetição de fórmulas, ilusão que permite que com migalhas o sujeito faça seu banquete. Com a simples repetição de exercícios, julga estar dominando seu cérebro quando, incauto, tornou-se já um objeto na urdidura do capitalismo avançado.

De maneira complementar, como compreender a referência de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) ao programa televisivo Supernanny, também presente no trecho que destacamos anteriormente? Bem, aqui temos outro interessante paradoxo - ou melhor, outra dialética entre racionalidade e irracionalidade presente tanto no Esclarecimento quanto na indústria cultural que o celebra -, pois, logo após asseverar que, diante do que “precisa ser feito”, o sujeito deve atinar ao slogan - ou seja, agir sem questionar, supostamente beneficiando, assim, a si mesmo e a um cérebro que responde a novas situações pela via da construção de sinapses -, o autor incita seu leitor a um pensamento ponderado e analítico segundo qual, como vimos, “em vez de focalizar o problema, devemos sempre olhar o que ganhamos com isso e, dessa forma, nos orientar para a solução” (Garcia, 2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente., p. 165). É exatamente aqui que aparece a referência ao Supernanny, a qual, diante do exposto, pode ser interpretada da seguinte forma: se a “racionalidade” da ordem cerebral defendida por Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) deve ser cumprida pela via da ação irreflexiva, aproximando, portanto, o leitor de um traço eminentemente infantil(izado), isso não significa que se trate de uma criança qualquer, e sim de uma específica e propositalmente tomada como semelhante àquelas difundidas pelo Supernanny: reeducada, policiada e, importante, tolhida.

Em um só parágrafo, Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) recorre a dois exemplos da indústria cultural para incentivar que seus leitores desenvolvam (em seus cérebros) capacidades antinômicas, enaltecendo o status quo do Esclarecimento ao propor um cérebro “ilustrado” que ora deve ser capaz de agir automaticamente, ora deve analisar bem situações, refrear impulsos e, assim, assemelhar-se a uma criança defrontada com os limites da cultura. Em ambos os casos, porém, o resultado último acaba sendo o mesmo: a exaltação de um conformismo diante da ordem existente, exaltação esta já problematizada por Horkheimer e Adorno (1947a/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985a). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer & T. W. Adorno, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947).) há mais de 70 anos:

A indústria cultural tem a tendência de se transformar num conjunto de proposições protocolares e, por isso mesmo, no profeta irrefutável da ordem existente. Ela se esgueira com mestria entre os escolhos da informação ostensivamente falsa e da verdade manifesta, reproduzindo com fidelidade o fenômeno cuja opacidade bloqueia o discernimento e erige em ideal o fenômeno onipresente. A ideologia fica cindida entre a fotografia de uma vida estupidamente monótona e a mentira nua e crua sobre o seu sentido, que não chega a ser proferida, é verdade, mas apenas sugerida e inculcada nas pessoas. Para demonstrar a divindade do real, a indústria cultural limita-se a repeti-lo cinicamente. (p. 122)

Antes de encerrarmos essa análise que, dado o limite imposto pelo espaço de um artigo, propôs-se a ser necessariamente breve, vale destacar o quanto, no sistema da indústria cultural, tanto aquilo que é despudoradamente falso quanto aquilo que se pode tomar como “verdadeiro” podem coexistir e se manifestar nos produtos comercializados. E é assim que Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) retoma e insiste em clichês da autoajuda, cujas fórmulas repetidas passam a ser enaltecidas como virtudes embasadas pelo rótulo de “ciência”. Na qualidade de produtos da indústria cultural, porém, a maior ou menor precisão científica de tais fórmulas não é tão significativa em comparação ao apelo subjetivo que o conteúdo do livro aqui debatido pode despertar. Na verdade, despertou, já que, ao seguir à risca o lema “atualize-se ou morra”, adicionando aí explicações sobre o papel do cérebro e a importância do treinamento desse órgão, Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.) adentrou o hall de autores que, de acordo com Ortega (2009bOrtega, F. (2009b). Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(3), 247-260. doi: 10.1590/S1414-32832009000400002
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), migraram da autoajuda tradicional para o filão da neuroascese, estabelecendo seu nome como um daqueles em mais alta cotação no mercado editorial brasileiro.

Considerações finais

Para encerrarmos, reiteremos rapidamente a discussão aqui proposta, subdividida em três momentos distintos. No primeiro deles, buscamos definir com mais propriedade a noção de neurocultura, resgatando alguns dos seus elementos históricos, desdobrando-a em seus aspectos ascéticos e subjetivos e investigando as correspondências entre si, elementos da autoajuda e teorias outras sobre o cérebro características do século XIX, como a frenologia e o double brain. Em uma segunda etapa, mais especificamente voltada à exposição dos instrumentos conceituais utilizados neste trabalho, tecemos algumas considerações particulares acerca da Teoria Crítica da Sociedade e das noções de Esclarecimento e indústria cultural, tão caras ao pensamento de Horkheimer e Adorno. Por fim, em nossa terceira seção, intentamos conjugar e, ao mesmo tempo, “encarnar” os dois momentos anteriores pela via da análise de um livro como o de Garcia (2013bGarcia, L. F. (2013b). O cérebro de alta performance. São Paulo, SP: Gente.), marcadamente pertencente ao filão mercadológico da “autoajuda cerebral”.

Uma vez realizado esse percurso, destaquemos agora duas observações conclusivas. A primeira delas é a de que, diferentemente de certa ideia costumeiramente difundida no senso comum, as “descobertas” da neurocultura - e, com ela, a vertiginosa profusão de novos produtos, dietas e serviços voltados ao cérebro - não se sedimentam apenas em motivações racionais e calculadas de crescimento pessoal e profissional, motivações estas pretensamente positivas, já que “libertadoras” de uma série de potenciais interiores latentes. Não, também atuam de maneira intensa no mercado da neurocultura e da neuroascese relevantes moções psicológicas inconscientes, como aquelas relativas às necessidades de amor, visibilidade e aceitação social, as quais, costumeiramente associadas à submissão a ideais de eu padronizados e previamente estabelecidos por esse mesmo mercado de bens simbólicos, são por ele utilizadas para a sedimentação de modelos de pensamento e conduta estereotipados e que representam a primazia de uma rejeição à particularidade e à diferença que guarda íntima e imbricada relação com a barbárie “esclarecida”.

Nessa direção, um segundo e último ponto a ser enfatizado aqui é o quanto a neurocultura acaba por promover um sujeito objetificado perante as ações do próprio cérebro para, assim, retirar de si qualquer espontaneidade, transformando-o em objeto mercantilizável e alienado da sua realidade. Em tal contexto, a ideologia promovida por essa mesma neurocultura triunfa pela via já tradicionalmente pavimentada pela indústria cultural, com o juízo sobre o “alto” ou “baixo” desempenho do cérebro se desvencilhando de qualquer consideração mais aprofundada acerca da complexidade e importância da mediação social na formação do humano para ser reduzido ao conformismo de uma experiência social imediata e representada pelo consumo de produtos específicos. E assim, mais uma vez, a razão esclarecida conduz ao mito. Neste caso, ao que parece, a versões contemporâneas, ascéticas e “cerebrais” do velho rei Pigmaleão.

Referências

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  • Buck-Morss, S. (1977). The origin of negative dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin and The Frankfurt Institute. New York, NY: The Free Press.
  • Costa, J. F. (2005). O Vestígio e a Aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Garamond.
  • Ehrenberg, A. (2009). O sujeito cerebral (M. T. Oliveira & M. Winograd, trad.). Psicologia Clínica, 21(1), 187-213. (Trabalho original publicado em 2004). doi: 10.1590/S0103-56652009000100013
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  • 1
    A cultura somática pode ser definida a partir de um conjunto de enunciados propagados pelo esforço comum das comunidades científicas e dos meios de comunicação de massa, conjunto este em que a própria ideia de coletividade passa a ser construída segundo critérios de saúde, desempenho corporal, longevidade etc. (Ortega, 2009bOrtega, F. (2009b). Neurociências, neurocultura e autoajuda cerebral. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 13(3), 247-260. doi: 10.1590/S1414-32832009000400002
    https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900...
    ). Seu efeito direto pode ser medido na crescente procura de produtos como vitaminas e suplementos alimentares, os quais supostamente favorecem a prática de exercícios físicos e comportamentos considerados saudáveis.
  • 2
    A primeira pregava que cada aspecto do caráter humano era sediado em uma região específica do crânio, ao passo que as segundas afirmavam que cada indivíduo: “possuía dois cérebros conscientes, independentes um do outro” (Ortega, 2009aOrtega, F. (2009a). Elementos para uma história da neuroascese. História, Ciência e Saúde-Manguinhos, 16(3), 621-640. doi: 10.1590/S0104-59702009000300003
    https://doi.org/10.1590/S0104-5970200900...
    , p. 623).
  • 3
    Em termos gerais, para Kant (1784/2009Kant, I. (2009). Resposta à questão: o que é o Esclarecimento. In J. Marçal (Org.), Antologia dos textos filosóficos (V. Figueiredo, trad., pp. 406-415). Curitiba, PR: SEED/PR. (Trabalho original publicado em 1784).) a filosofia da Ilustração aparece como a saída de uma menoridade pela qual o próprio homem seria responsável, resultante não de uma carência de entendimento, mas de uma falta de ousadia em saber (Sapere aude), servindo-se, para tanto, da própria razão. Neste sentido, aquele que não ousa saber se contentaria em viver uma vida tacanha, pautada pela preguiça e pela covardia, carregando consigo o fardo de ser um indivíduo sem liberdade e autonomia, já que dependente da tutela intelectual alheia.
  • 4

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2019
  • Aceito
    06 Set 2019
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