Acessibilidade / Reportar erro

A crise cultural da atenção: repetição maquinal e choque de imagem

La crise culturelle de l’attention: répétition machinale et choc d’image

La crisis cultural de la atención: repetición maquinal y choque de imagen

Resumo

Elaboramos reflexões acerca do regime de atenção contemporâneo e alguns dos seus principais condicionantes sociais. O foco específico de discussão é a atenção nos sistemas da repetição maquinal e do choque de imagem, que podem ser destacados como eixos básicos para o estudo da experiência sensível sob influência da técnica. Ressaltamos, primeiramente, no contexto dos desdobramentos históricos da revolução industrial, a influência do desenvolvimento da maquinaria e da racionalização do trabalho sobre a atividade perceptiva do trabalhador. Examinamos, em seguida, a estrutura da percepção no contexto do desenvolvimento das máquinas de imagem e dos seus produtos. Circunscrevemos, sob este panorama, a repetição acelerada e a distração como duas modalidades de comportamento social legíveis a partir dos problemas relativos à atenção.

Palavras-chave:
percepção; atenção; modernidade

Résumé

Nous élaborons des réflexions sur le régime d’attention contemporain et certains de ses principaux déterminants sociaux. Le point spécifique de la discussion c’est l’attention dans les systèmes de la répétition machinale et du choc d’image, qui peuvent être relevés comme des axes fondamentaux pour l’étude de l’expérience sensible sous l’influence de la technique. Nous soulignons d’abord, dans le contexte des développements historiques de la révolution industrielle, l’influence du développement de la machinerie et de la rationalisation du travail sur l’activité perceptive de l’ouvrier. Nous examinons ensuite la structure de la perception dans le contexte du développement des machines d’image et ses produits. Sous ce panorama, nous circonscrivons la répétition accélérée et la distraction comme deux modes de comportement social lisibles à partir des problèmes relatifs à l’attention.

Mots-clés:
perception; attention; modernité

Resumen

Elaboramos reflexiones sobre el régimen de atención contemporáneo y algunos de sus principales condicionantes sociales. El foco específico de discusión es la atención en los sistemas de la repetición maquinal y del choque de imagen, que pueden destacarse como ejes básicos para el estudio de la experiencia sensible bajo influencia de la técnica. En el contexto de los desdoblamientos históricos de la Revolución Industrial, resaltamos, en primer lugar, la influencia del desarrollo de la maquinaria y de la racionalización del trabajo sobre la actividad perceptiva del trabajador. En segundo lugar, examinamos la estructura de la percepción en el contexto del desarrollo de las máquinas de imagen y de sus productos. Bajo este panorama, circunscribimos la repetición acelerada y la distracción como dos modalidades de comportamiento social legibles a partir de los problemas relativos a la atención.

Palabras clave:
percepción; atención; modernidad

Abstract

We elaborate reflections about the contemporary regime of attention and some of its main social conditionings. We focus on discussing attention in mechanical repetition and image shock systems, which we highlight as the basic axes of the study of sensory experience to technical influence. First, we emphasize the influence of machinery development and the rationalization of work on the perceptual activity of the worker in the context of the historical developments of the industrial revolution. Then we examine the perception structure under the perspective of imaging machine development and its products. In this context, we found accelerated repetition and distraction as two modalities of social behavior circumscribed in the problems related to attention.

Keywords:
perception; attention; modernity

Introdução

A percepção e, mais especificamente, a atenção vêm sendo objetos de análises nos campos da filosofia, da sociologia, da psicologia social, da análise cultural e da comunicação, que se reportam às influências da modernização na experiência sensível. Este tipo de investigação não é recente; remonta às repercussões dos trabalhos de autores como Georg Simmel, Walter Benjamin e Guy Debord. Nessa área de estudos, dedica-se à compreensão da constituição do sujeito em meio a mudanças sociais, econômicas e estéticas, principalmente na cultura visual e auditiva (Crary, 2013Crary, J. (2013). Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. (T. Montenegro, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.). Sobressai desse âmbito de pesquisas a ideia de uma crise da percepção cuja configuração já se delineava desde meados do século XIX.

Nosso intuito, neste artigo, é apresentar reflexões que, perpassadas pelo pressuposto da crise da percepção e motivadas pela experiência hodierna, se façam mediante a análise teórica intertextual de trabalhos que nos permitam compreender o regime de atenção contemporâneo e alguns dos seus principais condicionantes sociais. O foco específico de discussão é a atenção nos sistemas da repetição maquinal e do choque de imagem, que podem ser destacados como eixos básicos para o estudo da experiência sensível sob influência da técnica (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.). Ressaltamos, primeiramente, no contexto dos desdobramentos históricos da revolução industrial, a influência do desenvolvimento da maquinaria e da racionalização do trabalho sobre a atividade perceptiva do trabalhador. Examinamos, em seguida, a estrutura da percepção no contexto do desenvolvimento das máquinas de imagem e dos seus produtos. Circunscrevemos, sob este panorama, a repetição acelerada e a distração como duas modalidades de comportamento social legíveis a partir dos problemas relativos à atenção. Esperamos que nossas análises possam contribuir para pesquisas que se dediquem à discussão de uma concepção ética da percepção.

Adotamos, neste estudo, uma perspectiva histórica calcada na apreciação da estrutura social do comportamento perceptivo segundo os padrões de modernização em marcha desde o século XIX. Nesta ótica, os processos relativos à organização do trabalho, em que se sobressai a atividade mecanizada, de natureza repetitiva e acelerada, adquirem um caráter paradigmático, com influência no âmbito da relação do sujeito percipiente com as imagens. Cumpre destacar os trabalhos de Simone Weil (1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951), 1988Weil, S. (1988). Oeuvres complètes, tome I : premiers écrits philosophiques. Paris: Gallimard .) e de Walter Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), 1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.) como dispositivos centrais para o desenvolvimento de nossas análises referentes à repetição maquinal e ao choque de imagem, respectivamente, além do apoio em aportes da fenomenologia para a construção da nossa argumentação. As contribuições mais recentes de Crary (2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto ., 2013Crary, J. (2013). Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. (T. Montenegro, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify., 2016Crary, J. (2016). 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo, SP: Ubu Editora.) e de Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.) nos campos dos estudos culturais e da filosofia merecem ser igualmente salientadas.

A repetição maquinal

Começamos pela análise da influência que o desenvolvimento da maquinaria, no contexto da revolução industrial, exerceu sobre a subjetividade e a realidade social. Isso pode ser pensado a partir de seus efeitos sobre o trabalhador. É oportuno reforçar, desde já, que o modelo de trabalho mecanizado e padronizado, que marca as condições de produção a partir do século XIX, repercutiu nos mais diversos setores da vida cultural (Benjamin, 1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)).

Na idade moderna, deu-se a descoberta do autômato. No intervalo de quatro séculos, do XVII ao XX, mediante um processo intenso de transformações no modo de produção da indústria e que reverberou no processo de produção social, especialmente nos meios de transporte e de comunicação, os seres humanos passaram a conviver com máquinas movidas a vapor, a gás e, mais tarde, a energia elétrica, e que se movimentam repetidamente, assumindo atividades humanas. Em vez de caminhar ou de vencer grandes distâncias a cavalo, passou-se a viajar de trem ou de automóvel, em vez de nivelar um objeto com instrumentos manuais, passou-se a inseri-lo em plainas, por exemplo. Cumpre ressaltar, especialmente, as qualidades do maquinário desenvolvido ao longo do século XIX que propiciou as condições para a revolução industrial, e que operava, simultaneamente, um conjunto de ferramentas, enquanto o trabalhador era capaz de manejar uma ferramenta por vez (Marx, 1867/1968Marx, K. (1968). Le capital (Livre I). (M. Rubel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1867); Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.).

Na grande indústria mecanizada da organização social capitalista o ser humano continuava, e continua, sendo necessário. Todavia, no contexto da divisão capitalista do trabalho, que envolve o processo histórico de proletarização, o proletariado assumiu a função de equipamento humano das máquinas. Tem-se, aqui, um princípio dos dispositivos técnicos modernos que adquire realidade com a maquinaria industrial; trata-se de uma inversão, segundo a qual, ao invés do trabalhador utilizar as condições de trabalho, são estas que utilizam o trabalhador (Benjamin, 1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.). Marx (1867/1968Marx, K. (1968). Le capital (Livre I). (M. Rubel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1867)), em O capital, afirma que, na fábrica, o operário “serve a máquina” (p. 503). Ele deve segui-la, enquanto, na manufatura, o movimento do instrumento de trabalho parte do operário. Ocorre que, conforme as palavras de Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.), a “competência das máquinas é uma nova e como que sobre-humana espécie de saber repetir” (p. 27). As máquinas industriais realizam movimentos esquemáticos e programados. Cabe, então, aos operários de fábrica colocar sua corporeidade viva a serviço do movimento esquematizado das máquinas. Sucede-se, de acordo com Marx (1867/1968Marx, K. (1968). Le capital (Livre I). (M. Rubel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1867)), a ligação de “órgãos conscientes” aos “órgãos inconscientes” (p. 500) do maquinário pesado. É preciso manuseá-lo, regulá-lo, alimentá-lo, recolher seus produtos, observá-lo e cuidar do seu funcionamento - operações que não ocorrem sem que os seres humanos se ajustem ao ritmo dos equipamentos manejados, ou mesmo sem que se identifiquem com eles. Dá-se, no final das contas, um processo de incorporação dos operários ao mecanismo. “No trato com a máquina”, afirma Benjamin (1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.), “os operários aprendem a conformar ‘os seus próprios movimentos com o movimento uniformemente constante de um autômato’” (p. 43).

Simone Weil soube explorar as questões referentes à relação dos operários com as máquinas, tendo adotado a atenção como princípio estratégico de crítica ao racionalismo capitalista (Bosi, 1988Bosi, A. (1988). Fenomenologia do olhar. In A. Novaes (Org.), O olhar (pp. 65-87). São Paulo, SP: Companhia das Letras.)1 1 Weil teve experiências marcantes como operária, primeiro nas indústrias Alsthom, em 1934, depois, em 1935, nas usinas J.-J.Carnaud e Forges de Basse-Indre, em Boulogne-Billancourt, e nas linhas de montagem da Renault. Por certo, sua iniciativa de trabalho industrial não revela simples curiosidade, mas, antes, a exigência intelectual de conhecer as condições de trabalho reais dos operários franceses (Janiaud, 2002). . Weil (1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951)) lembra que a racionalização, enquanto processo de aperfeiçoamento da produção, envolveu, num primeiro momento da revolução industrial, a evolução técnica, no sentido de criação de dispositivos mecânicos cada vez mais eficientes à exploração das forças da natureza, e, num segundo momento, a preocupação com “a utilização científica da matéria viva, quer dizer, dos homens” (p. 303). O fundamento da racionalização do trabalho não é, contudo, a submissão dos métodos de produção ao exame da razão, assevera a autora, mas impedir que os operários determinem por si mesmos os procedimentos e o ritmo das suas atividades na indústria, e coagi-los a ceder à usina mecanizada toda sua capacidade de trabalho. A disciplina no trabalho de usina é uma característica básica desse sistema, o motivo pelo qual ele foi inventado, como se verifica nos princípios do taylorismo, analisados minuciosamente por Weil. O sistema de montagem em cadeia consiste, portanto, na substituição de operários qualificados, com significativa base técnica e identificados com a atividade do artífice, por uma mão de obra especializada ao trabalho em série e destinada à execução de gestos mecânicos e constantemente repetidos, adaptados à maquinalidade. O operário é, dessa forma, destituído da inteligência do trabalho, da possibilidade de escolher seu método, cabendo a ele a submissão às injunções dos mecanismos industriais. As peças entram e saem do seu raio de ação à sua revelia, como lembra Benjamin (1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.).

Decorre da cadência programada da atividade industrial em série, acelerada, repetitiva e objetiva, no padrão das máquinas, a monotonia do trabalho. Talvez fosse possível se acostumar a essa monotonia caso se pudesse pensar em outra coisa durante a atividade laboral na indústria, observa Weil (1951/2002). Mas a cadência da produção, que decorre numa sucessão contínua de momentos controlados pelo ritmo das máquinas, demanda atenção. Não é possível ater-se a qualquer coisa distinta do trabalho. Eis aqui o paradoxo de uma atenção que, solicitada de modo constante deve, ao mesmo tempo, manter-se desperta sem ser vivificada (Moinat, 2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.). O objeto da atenção, na organização taylorista das operações de trabalho, é desprovido de interesse. O operário deve concentrar-se, minuto a minuto, em fabricar certa quantidade de peças em determinado período de tempo. Weil (1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951)) refere-se a este gênero de atividade como um “atentado contra a atenção dos trabalhadores” (p. 433). Ela exige, segundo a autora, uma espécie baixa de atenção, que “esvazia a alma de tudo que não seja preocupação com a velocidade” (p. 433). Distrair-se na linha de montagem pode acarretar incidentes que implicam desaceleração da produção, com consequências no pagamento e nas condições de trabalho e de empregabilidade. Os incidentes, que são frequentes no ambiente fabril, não diminuem o peso da monotonia, analisa Weil, mas dissipam o recurso que ela carrega consigo, o de anestesiar o pensamento e a sensibilidade. A combinação de monotonia e de incerteza na fábrica aumenta o efeito da angústia do trabalhador de não ser rápido o suficiente, na medida em que o força a tomar consciência da monotonia. O operário deve ater-se ao seu trabalho; evitando dispersar-se, aproxima-se da condição insípida da sua atividade. Nessa conjuntura os operários deixam, inclusive, de procurar variação em seu ambiente; após certo tempo de trabalho monótono, tornam-se incapazes de fazer outra coisa. Essa é uma das razões, segundo Weil, pelas quais eles resistem às mudanças no trabalho que não raramente lhes são ordenadas2 2 Vale mencionar que as questões referentes às condições do trabalho fabril constituem o ponto central das críticas remetidas por Weil às tradições revolucionárias ligadas à cultura marxista. Weil (1951/2002) distingue o problema da exploração da classe operária, relacionado à propriedade e ao lucro capitalistas, da opressão referente à disciplina industrial, que diz respeito, fundamentalmente, às relações entre o operário e a máquina, e entre o operário e sua chefia. Segundo a autora, a coletivização das usinas e das fábricas deixaria intocada a estrutura de produção, que envolve a presença de homens e mulheres junto às máquinas com o propósito de extrair da linha de montagem o maior número possível de produtos bem feitos e a bom preço, à revelia da satisfação das aspirações mais elevadas dos trabalhadores. Essa contradição pode ser atrelada, de acordo com Weil (1955/2011), a lacunas na própria obra de Marx. A despeito do seu teor de crítica social, o pensamento de Marx demonstra, segundo a autora, apego aos valores “menos fundados da sua época”, como “o culto da produção, o culto da grande indústria, a crença cega no progresso” (Weil, 1955/2011, p. 358). Weil observa que esta dificuldade não solucionada nas teorias de Marx, bem como na tradição marxista, tampouco foi resolvida na ordem dos acontecimentos históricos, dado que os problemas relativos às condições de trabalho dos operários tornaram-se mais agudos na primeira metade do século XX. .

Antes de continuarmos, cabe um apontamento acerca do decurso histórico desse cenário e que deve servir para fortalecer a estratégia arqueológica adotada por nós neste estudo. Estaríamos enganados caso supuséssemos ultrapassadas as análises por parte de Weil acerca da atividade mecanizada do trabalhador de indústria. Segundo Boltanski e Chiapello (2009Boltanski, L., & Chiapello, E. (2009). O novo espírito do capitalismo. (I. Benedetti, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.), as transformações do trabalho no quadro da expansão e das mudanças do capitalismo ao longo do século XX criaram um panorama de contrastes em que a manutenção do taylorismo convive com estratégias de flexibilização que vão de capacitações altamente técnicas à precarização do emprego na forma de trabalhos autônomos, temporários, com horários variáveis, entre outros. Os autores aludem a pesquisas da década de 1990 que apontavam, naquele momento, o aumento de assalariados da indústria, de operários a executivos, que afirmavam sofrer coações referentes ao ritmo de trabalho, seja em consequência da movimentação automática de peças e produtos, seja em decorrência de prazos curtos e de controle permanente por parte da hierarquia. A “carga mental dos trabalhadores” continuava igualmente em questão, com evolução, segundo as mesmas pesquisas, da porcentagem de assalariados que dizem não poder “desviar os olhos do trabalho” (Boltanski & Chiapello, 2009Boltanski, L., & Chiapello, E. (2009). O novo espírito do capitalismo. (I. Benedetti, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 274). A manutenção, no tempo histórico, dos fundamentos da racionalização do trabalho e dos seus efeitos sobre o trabalhador, reforça a sua interpretação como dispositivo comportamental paradigmático, no que diz respeito às práticas sociais que marcam os processos de subjetivação e de dominação social.

O conflito entre a realização de gestos simplificados, operados de modo sucessivo e automático e nos quais, por outro lado, é preciso empregar grande atenção, é um aspecto fundamental do que Moinat (2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.) - para quem Simone Weil serve de base - chama de atenção alienada. A atenção alienada é exaustiva justamente porque é contraditória. Ao mesmo tempo em que deve seguir o curso monótono das tarefas laborais, o operário precisa, como diz Weil (1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951)), “encontrar nele mesmo recursos para remediar o imprevisto” (p. 334). O que se nota na situação do operário descrita e analisada por Weil, e que dá sustentação à caracterização da atenção alienada, é a dissociação entre as dimensões passiva e ativa da atenção, que, além disso, encontram-se sob grande tensão (Moinat, 2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.). No âmbito das forças passivas, observa-se que o trabalhador é receptivo às afecções que emanam do seu ambiente, como, por exemplo, um barulho estranho no maquinário e que exige seu cuidado. Essas afecções passivas encontram-se subordinadas à ordem da usina, ou seja, ao regime de disciplina voltado ao ritmo acelerado de produção. O estado de receptividade do trabalhador a estímulos e ocorrências obedece a esta contextura disciplinar padronizada, motivo pelo qual se distingue mais apropriadamente como uma condição de alerta. Por outro lado, no que diz respeito ao polo ativo da sua atenção, nota-se a necessidade de que o operário, de modo voluntário, invista grande esforço psíquico para se concentrar, dado o traço ligeiro e repetitivo da sua atividade.

Soma-se ao caráter uniforme das tarefas industriais a destituição de sentido frente ao fruto do trabalho. Na passagem do trabalho artesanal, que inclusive pode envolver níveis elevados de planejamento, de fragmentação e de cooperação, ao trabalho fabril em linha, sob a supervisão direta do capitalista, o trabalhador é despojado da liberdade de movimento entre atividades, passando a limitar-se à execução de funções particulares, baseadas em operações elementares. Nesse processo, o trabalhador não conhece o que produz, nem se sente responsável pelo produto final do trabalho. A fábrica produz coisas pretensamente úteis, e não ele. Suas faculdades de pensar, de fazer-se atento, de se mover e de sentir são utilizadas à revelia da constituição plena de sentido (Weil, 1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951); Moinat, 2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.). Podemos entender o referido processo de constituição de sentido numa acepção perceptiva; trata-se da possibilidade de reconhecer algo.

Moinat (2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.) opõe à atenção alienada uma atenção heureuse, ou seja, feliz, satisfeita. Embora tenha um caráter declaradamente “ideal-típico”, quer dizer, baseada num certo nível de abstração dos entrelaços e complexidades que marcam qualquer fenômeno, a definição da atenção heureuse serve para nos dar alguns parâmetros fundamentais sobre a percepção atenta. De acordo com Moinat, a atenção heureuse consegue conservar o dinamismo entre a restrição do campo de consciência sobre um objeto, ou tema, de percepção e a duração da exploração ativa desse objeto. “Ela evita tanto uma consciência dissipada, sacudida por um caos de estímulos, quanto uma consciência inerte fixada sobre um objeto” (Moinat, 2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58., p. 49).

A principal referência de Moinat (2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.) para a consecução dessa definição são os apontamentos de Minkowski (1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne.) sobre a atenção. Para este último, a atenção denota dois fatores básicos, intimamente ligados entre eles. Da perspectiva do sujeito, ela implica a experiência de parada sobre alguma coisa (“un s’arrêter à”). Da perspectiva do objeto, quer dizer, em relação ao aspecto que ele adquire ao tornar-se objeto de percepção atenta, cumpre identificar o seu destacamento, o seu realce, “uma delimitação particular” (Minkowski, 1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne., p. 90) em relação ao plano de fundo no qual se insere, ou ainda, a circunscrição de aspectos específicos do próprio objeto, como a sua cor ou os elementos de que é feito.

De acordo com Minkowski (1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne.), o sentido do ato de parada e do destaque que caracteriza o objeto percebido atentamente apenas pode ser vislumbrado sob a ótica do “contato vital com a realidade” (p. 92-93). Desse ângulo, salienta-se a vitalidade da atenção. Vê-se, então, que, contrariamente a definições psicológicas tradicionais, “a atenção não pode e não deve fixar-se sobre um único objeto” (Minkowski, 1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne., p. 95). Embora ela pressuponha o estreitamento do campo de consciência e de ação, ela evolui e se transforma continuamente, ela progride, e se alimenta daquilo que a envolve, daquilo que se encontra além dos aspectos de mundo expostos a cada momento. Nessa direção, Minkowski (1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne.) afirma: “Ela [a atenção] deve . . ., para subsistir e viver, comportar, de forma contínua, movimentos oscilatórios de distração muito finos” (p. 95). Com esta asserção, o autor registra um dinamismo, no seio da atenção, entre foco e desatenção. “A atenção”, escreve ainda o autor, “para permanecer viva, deve comportar necessariamente uma atividade análoga a ela, mas não-atenta” (Minkowski, 1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne., p. 95, grifo do autor). Sem este movimento, a atenção retirar-se-ia do fluxo da vida.

Os traços da atenção alienada, delineados anteriormente no contexto da indústria, formam claro contraste com estas últimas formulações acerca da atenção. Na usina, encontra-se um ambiente monótono, que impede a evolução interessada da atenção. Ao mesmo tempo, dada a ordem do trabalho fabril, cujo objetivo consiste na produção planejada e acelerada, a atividade mecanizada requer uma concentração rígida. Não há espaço, nesta atmosfera, à flutuação da atenção vitalizada.

As questões em torno da atenção no trabalho fabril permitem destacar, igualmente, elementos concernentes à diferença existente entre o que Crawford (2015Crawford, M. (2015). The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction. New York: Farrar, Straus & Giroux.) chama de trabalho prático e hábil (skilled work) e o trabalho rotinizado. Segundo o autor, um dos aspectos a se ressaltar é que, no trabalho hábil, a atenção é estruturada de modo que as ferramentas necessárias à sua execução sejam incorporadas ao nosso aparato físico-cognitivo, à corporeidade viva. Na psicologia contemporânea isso é chamado de extensão cognitiva. Instrumentos como a bengala, o bisturi, o violão, as diversas ferramentas do ateliê de um marceneiro, são experimentados pelos iniciantes no seu manuseio por meio de certo esforço de interpretação das sensações mediadas pelo instrumento e o objeto com o qual ele se depara ou faz surgir, como o espaço, a madeira ou a música. Na medida do progresso da utilização do instrumento, tem-se a experiência direta de exploração do objeto perceptivo, sem a necessidade de esforço voluntário de adequação do corpo à ferramenta e, mesmo, como se não houvesse mediação do instrumento. Tudo se passa como se este se tornasse transparente, e desaparecesse como foco de atenção, reatando os laços entre a ação e a percepção dos objetos de interesse. Com efeito, quando agimos segundo parâmetros de habilidade mínima, não estamos centrados em nosso corpo, em nossos instrumentos e nos movimentos que devemos realizar, mas naquilo que queremos fazer, pegar, ver.

O próprio espaço de ação pode tornar-se algo como uma extensão da corporeidade na medida em que somos capazes de nos situarmos muito bem nele. É o que se passa no interior de uma marcenaria. O artesão-marceneiro move-se num ambiente que lhe é familiar, sendo desnecessário gastar tempo e energia procurando seus instrumentos e a melhor maneira de utilizá-los. Tudo já se encontra arranjado para que a atenção seja dirigida ao trabalho. Há, portanto, uma estrutura espacial que serve como guia à ação. O que se passa na linha de montagem, analisa Crawford (2015Crawford, M. (2015). The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction. New York: Farrar, Straus & Giroux.), é que o ambiente é elaborado de maneira excessivamente rígida, além de heteronômica, ou seja, por pessoas distintas do próprio trabalhador. Tem-se, neste caso, uma estrutura sobredeterminada, que anula a tensão adequada entre a padronização e a autonomia que marca o trabalho hábil.

A questão do hábito em relação à atenção e às condições da ação bem sucedida, inclusive no âmbito do trabalho, foi bastante enfatizada por Simone Weil (1988Weil, S. (1988). Oeuvres complètes, tome I : premiers écrits philosophiques. Paris: Gallimard .). De acordo com a autora, os signos que ordinariamente são reconhecidos como referências à atenção são, na verdade, signos da paixão e da fascinação. Seu exemplo mais célebre é o dos ciclistas. O ciclista aprendiz é fascinado pelos obstáculos, e, à força de evitá-los reflexivamente, dirige-se justamente para eles. O aprendiz se enrijece a cada movimento, “ele se serve de sua vontade como se ela fosse uma força” (Weil, 1988Weil, S. (1988). Oeuvres complètes, tome I : premiers écrits philosophiques. Paris: Gallimard ., p. 384), e, nessa disposição vigilante, volta sua atenção aos gestos que devem ser evitados. O homem hábil, ao contrário, concentra-se não em si mesmo, mas no seu objeto, como o ciclista habilidoso, que se volta inteiramente às passagens do caminho livres de impedimentos, sem se valer de raciocínio, sem “discurso a si”, sem controle expresso do corpo. É o hábito que, segundo Weil, permite esta ligação direta entre percepção e ação. Na condição do hábito, não se tem o corpo regido pelo pensamento, mas inteiramente perpassado por este último. De outro modo, a ação deve sofrer controle voluntário, e, então, a atenção ao objeto perceptivo fica prejudicada. Nesse caso, ao invés de se atentar ao objeto, atenta-se ao próprio corpo.

O hábito está em jogo nas atividades laborais de todo tipo. Há de se reconhecer, todavia, que, em face do maquinismo, o trabalho ativo e hábil cede espaço à regularidade dos grandes aparatos industriais. Nesse caso, é o “trabalho morto” das máquinas que explora a “força viva” (Marx, 1867/1968Marx, K. (1968). Le capital (Livre I). (M. Rubel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1867), p. 504), e não o homem que se serve de ferramentas. Conforme aponta Benjamin (1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.), que se mantém próximo às formulações de Marx, na manufatura a “experiência” é a forma técnica mais apropriada à realização do trabalho, posto ser aperfeiçoada lentamente. A referência que Benjamin faz à experiência ajusta-se, igualmente, à ideia de hábito weiliana. O exercício de conquista do hábito motor, que abre caminho à atenção, é distinto da aprendizagem do operário para o trabalho na máquina. Neste caso, o operário é mediador entre forças que ultrapassam as proporções e os ritmos do seu corpo, seja porque as máquinas são grandes e complexas demais, seja porque a linha de montagem abarca um conjunto de programas que não podem ser englobados pela experiência do operário. Na medida em que o conjunto das operações não podem se configurar como objeto da sua experiência sensível e ativa, resta-lhe ater-se a pequenas esferas da produção, de forma limitada, repetitiva e acelerada3 3 Benjamin (1980) afirma: “O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo aprendizado da máquina. O seu trabalho é impermeável à experiência. Nele o exercício não tem mais nenhum direito” (p. 44). . É possível constatar, portanto, que, nas atividades industriais, o caráter rotinizado das ações suplanta os aspectos técnicos do trabalho, com implicações no tipo de atenção envolvida nessa situação.

Em resumo, buscamos caracterizar, nesta primeira parte do nosso estudo, aspectos centrais da experiência perceptiva no contexto do trabalho industrial. Interessa-nos, a partir disso, realçar o alcance social e cultural da práxis mecanizada. Com base nos elementos referentes à atenção do operário, discutidos a partir das contribuições de Simone Weil, pudemos, ademais, assentar determinadas qualidades fenomenológicas da atenção ligadas à dinâmica perceptiva e ao papel do hábito na percepção. Tratamos, na seção seguinte, da vida perceptual junto às máquinas de imagem e dos excessos sensíveis a que estão submetidos nossos aparatos físico-cognitivos nesta contextura.

O choque de imagem

Se, por um lado, nos ambientes de trabalho, desde o final do século XIX, instituiu-se e difundiu-se em larga escala uma cultura da repetição acelerada cujo modelo é a atividade industrial, por outro, nossa relação com máquinas de imagem instalou entre nós uma cultura do choque de sensações. Verifica-se, em ambos os processos, o papel da relação humana com aparatos técnicos. Ambos podem, igualmente, ser interpretados pelo viés do tipo de atividade atencional disruptiva que prescrevem, embora seus padrões difiram na forma: de um lado repetição, monotonia e desvitalização, de outro, dispersão e distração.

Um ponto de partida fundamental para a análise da relação contemporânea com a imagem implica, conforme assinalamos anteriormente, reconhecer a penetração, nos mais diversos âmbitos de atividade social, dos imperativos que regem a racionalização do tempo e do movimento na esfera produtiva. Conforme assinala Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)), que contraria o entendimento marxista tradicional acerca da relação direta entre superestrutura e infraestrutura (Schöttker, 2012Schöttker, D. (2012). Comentários sobre Benjamin e “a obra de arte”. In W. Benjamin D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, Trad., pp. 43-172). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto . (Trabalho original publicado em 1955)), há um desnível temporal entre estas instâncias, com as mudanças na superestrutura se mostrando mais lentas do que as da infraestrutura. Foi necessário, segundo o autor, mais tempo para que as mudanças nas condições de produção afetassem os mais diversos terrenos culturais. Na contextura dessa influência, operou-se, do século XIX em diante, a constituição do percipiente. Pode-se constatar, a exemplo do que se passa na produção, que o surgimento do novo observador coincide com o alinhamento do corpo a conjuntos maquinais que, no caso dos aparatos de imagem, advêm de estudos acerca das nossas capacidades perceptivas e das possibilidades de controlá-las.

Crary (2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto ., 2013Crary, J. (2013). Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. (T. Montenegro, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.) apresenta e analisa os aspectos essenciais do cruzamento entre a produtividade fabril, a evolução nos meios de percepção e a ciência da percepção. A psicologia fisiológica, nascida no século XIX, abarcava o estudo quantitativo da percepção, inclusive pelo viés dos problemas relativos à atenção, e investigava aspectos como o tempo de resposta perceptiva, limiares de estimulação e de fadiga. Crary (2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto .) é categórico ao afirmar:

Esses estudos relacionavam-se com a exigência de conhecer a adaptação de um sujeito às tarefas produtivas em que a atenção máxima era indispensável para racionalizar e aumentar a eficiência do trabalho humano. A necessidade econômica da rápida coordenação dos olhos e das mãos na execução de ações repetitivas exigiu um conhecimento preciso das capacidades ópticas e sensoriais do homem. No contexto de novos modelos industriais de produção, a “desatenção” constituiu um sério problema entre os trabalhadores, com consequências econômicas e disciplinares. (p. 87)

Esta articulação da psicologia científica com as demandas sociais e econômicas ligadas à industrialização no século XIX exemplifica o que os historiadores das ciências chamam de condições externalistas do estabelecimento de discursos e práticas científicas (Ferreira, 2007Ferreira, A. (2007). O múltiplo surgimento da Psicologia. In: A. M. Jacó-Vilela, A. Ferreira & F. Portugal (Orgs.), História da psicologia: rumos e percursos (pp. 13-46). Rio de Janeiro: Nau.). Do ponto de vista internalista, demarcado pelas transformações conceituais e metodológicas de uma ciência, é oportuno destacar a importância, nestes estudos, do interesse em investigar o fenômeno da pós-imagem. A pós-imagem refere-se à constatação de presença de sensação na ausência de estímulos, o que reforça, no contexto das pesquisas objetivas acerca dos fenômenos subjetivos, a ideia de uma “visão autônoma”, “produzida pelo e no interior do sujeito” (Crary, 2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto ., p. 99). Fato é que o estudo da pós-imagem acarretou a invenção de diversos aparelhos ópticos, tais como o taumatrópio, que foi criado para ser vendido como peça de entretenimento popular, o fenacistoscópio, o zootrópio, o caleidoscópio e o estereoscópio. Todos se valem da disparidade entre estímulos, de um lado, e sensações e impressões visuais, de outro. Sua obsolescência esteve sempre ligada a insuficiências do efeito fantasmagórico gerado, verificando-se, na evolução desses aparelhos, uma ocultação crescente da produção na aparição externa da imagem. Estes aparatos foram muito populares e faziam-se presentes entre o mobiliário das residências oitocentististas.

Convém assinalar, para arremate dessa discussão em torno das primeiras máquinas de imagem, e ainda com base em Crary (2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto .), a modulação da relação entre o olho e o aparato óptico na passagem dos séculos XVII e XVIII ao século XIX. A câmara escura figurava, entre os seiscentistas e setecentistas, como um dos aparatos visuais fundamentais. O olho e a câmara escura encontravam-se unidos, principalmente, por uma relação conceitual, ou metafórica, sendo a câmara escura um modelo de olho ideal. Já nas práticas e discursos do início do século XIX, é possível constatar uma relação metonímica entre o olho e o aparato óptico, que se supõe agirem no mesmo plano de ação, mas com características variáveis. Nesse caso é esperado que os limites e deficiências de um sejam complementados pelas capacidades do outro. Está em questão aqui o estatuto destes novos aparatos e daqueles que ainda viriam, como a máquina fotográfica, o cinema, a televisão, e até os mais recentes, como o computador e os smartphones. Ao que tudo indica, trata-se não de ferramentas que prolongam a potência do corpo humano, mas de máquinas que usam a vitalidade corpórea humana e recodificam sua função como ferramenta das próprias máquinas.

Cabe, ainda, antes de prosseguirmos, uma observação a respeito da posição a se adotar diante da evolução rápida de dispositivos de imagem. Pode-se argumentar que as novas tecnologias de informação e de comunicação, calcadas em mídias digitais, suplantam todo um conjunto de formas culturais anteriores. Isso exigiria que traçássemos linhas de clivagem, por exemplo, entre experiências sociais e culturais anteriores e posteriores à década de 1990. É possível considerar, contudo, como faz Crary (2016Crary, J. (2016). 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo, SP: Ubu Editora.), que análises centradas nas novidades paradigmáticas implicadas nas mídias mais recentes possam enredar-se no fluxo de transitoriedade dos próprios produtos que surgem e decaem. Preferimos, neste trabalho, centrarmo-nos na discussão da reconfiguração da percepção à luz da lógica da modernização em desenvolvimento desde o final do século XIX e das experiências de aceleração e de choque que acarretam.

É Walter Benjamin quem se refere aos “efeitos de choque” (p. 41) dos aparatos de imagem do início do século XX. Suas análises, no ilustre artigo A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1955/2012), começam pela fotografia. Com a máquina fotográfica, pondera Benjamin, o processo de reprodução de imagens dispensa a mão das tarefas que lhe cabem no desenho e na pintura. O trabalho da reprodução passa a engajar mais simplesmente o olho, que vê através da objetiva. “Como o olho capta com mais rapidez do que a mão é capaz de desenhar, acelerou-se extraordinariamente o processo de reprodução de imagens”, afirma Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), p. 13). Dois elementos destacam-se neste progresso técnico. Primeiramente, dos processos manuais do desenho e da pintura à captação da imagem mediante a relação entre o olho e a objetiva, tem-se uma transformação do vínculo com os instrumentos, na direção do que vimos com Crary (2012Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto .). Trata-se de um vínculo de complementação, característico das máquinas. Além disso, acelera-se o processo de reprodução de imagens, o que, além da rapidez na produção imagética, aponta para o aumento das imagens à disposição no meio cultural.

Mas é a partir da análise do cinema que Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) vislumbra o elemento de choque com o qual passamos a conviver. No cinema, afirma o autor, somos confrontados com constantes “mudanças de locais e de cenários” que atingem o espectador “na forma de choques sucessivos” (Benjamin, 1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), p. 31). Compare-se a tela em que se projeta o filme com a utilizada na pintura. Esta última convida o espectador à contemplação, à associação livre de ideias, enquanto, no cinema, nem bem uma cena é projetada, e uma imagem percebida, e já somos confrontados com outra. “Aí está o efeito de choque do cinema”, analisa Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)), “que, como qualquer choque, exige maior esforço de atenção” (p. 32).

Conforme Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)), na rápida “mudança de locais e de cenários” repousa o elemento de distração do cinema. O choque exige, por outro lado, que realizemos um esforço superior de atenção. É preciso refletir sobre a forma como a atenção aparece nessas formulações. De um lado, ela é captada, atraída, pelos elementos de choque, que nos distraem, de outro, ela reclama uma conversão do olhar capaz, senão de manter a atenção flutuante, de buscar elementos para uma apropriação crítica do produto cultural.

As análises de Waldenfels (2010Waldenfels, B. (2010). Attention suscitée et dirigée. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 33-44.) acerca da atenção podem ser instrutivas para avançarmos aqui. O fenomenólogo trata-a como um acontecimento duplo. É forçoso reconhecer que na percepção atenta algo nos impressiona e prestamos atenção nele. Tem-se, de uma parte, uma dimensão de atenção suscitada e, de outra, uma dimensão de atenção dirigida. Em relação ao primeiro elemento, destaca-se o fato de sermos afetados. Neste sentido o eu é referido como instância concernida, a qual algo acontece, ou aparece. No segundo plano, evidencia-se a resposta que damos ou que nos recusamos a dar àquilo que aparece. Não convém relançar, na direção do que vimos com Moinat (2010Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.), a dicotomia entre passividade e atividade na atenção, mas de realçar que nossa experiência depende daquilo que nos acontece. “Tornamo-nos o que somos sendo afetados e respondendo a isso”, escreve Waldenfels (2010Waldenfels, B. (2010). Attention suscitée et dirigée. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 33-44., p. 36). Esta asserção liga-se ao que afirma Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) sobre a necessidade cotidiana de se submeter a efeitos de choque: ela requer “mudanças profundas no aparato receptivo” (1955/2012, p. 41). Em culturas perpassadas por técnicas de imagens cujos efeitos de choque são atrelados à fascinação diante de uma mobilidade incessante, a dimensão dirigida da atenção adquire contornos de distração.

Para Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)), a recepção no modo distraído é, portanto, um dos principais sintomas referentes às “profundas mudanças na percepção” (p. 34). “O público avalia o filme, mas o faz de forma distraída”, comenta o autor (Benjamin, 1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), p. 34), retornando à análise do cinema. A distração parece mesmo ser um traço essencial dos “grandes perigos existenciais” referidos por Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), p. 41), e “com que se defrontam os homens contemporâneos” (Benjamin, 1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955), p. 41).

Sobre a conversão do olhar, que podemos chamar de atenção crítica, ela parece pressupor o que Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.) denomina receptores ideais. Trata-se daquelas pessoas capazes de contar a outras pessoas, de forma coerente, aquilo que acabaram de ver, de realizar discussões a respeito e, eventualmente, de escrever uma resenha, uma análise, sobre um filme ou outro produto cultural qualquer. Tais atividades se sustentam sobre habilidades aprendidas por meio de jogos, produção de textos, e a observação de diversos gêneros de produtos culturais. Ela pressupõe, em suma, uma educação do olhar. Repousa aqui um importante elemento para uma relação com os estímulos que não apenas ofereça resistência aos seus excessos, mas que configure um espaço de liberdade e de vitalidade no trato com as tecnologias de percepção e as técnicas de administração social atreladas a elas.

Pode ser proveitoso resumir as características atencionais que pudemos identificar até aqui. Se retornarmos às formulações de Minkowski (1936Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne.) acerca da atenção, veremos um padrão cruzado entre o que se passa no regime da repetição maquinal e no choque de imagem. Na produção industrial, a evolução interessada da atenção é impedida pela repetição monótona e acelerada da linha de montagem. Resulta disso a desvitalização da atenção. No choque de imagens, por outro lado, verifica-se a hipertrofia da dinâmica vital da atenção. Esta, conforme Minkowski, pressupõe a parada do olhar, o destacamento do objeto percebido atentamente e o movimento em direção a outros objetos ou a outros aspectos destes. Na miríade de imagens com a qual convivemos e que advém cada vez mais de estratégias de tecnologia social, como a propaganda, somos confrontados com repetidas tentativas imagéticas de captação e de manutenção do olhar mediante estimulação sucessiva. Provém daí a nossa distratibilidade: da descompensação dos movimentos oscilatórios finos de distração, referidos por Minkowski como momentos essenciais à configuração da percepção atenta. A atenção não pode se deter continuamente sobre algo, sem pausas e oscilações. Mas, quando se encontra concentrada, não pode se prender em outras coisas ao mesmo tempo (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.).

Outro aspecto a ser ressaltado na caracterização do percipiente moderno, que se encontra em relação intensificada com o ambiente perceptual, diz respeito ao que Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) chama de declínio da aura dos objetos perceptivos. A aura não é algo que se percebe propriamente, ao menos não no sentido gnosiológico da percepção, que nos permite dizer o que vemos ou ouvimos. A aura é algo que se embrenha em nós. Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) escreve: “Ao contemplar silenciosamente, em uma tarde de verão, a cadeia de montanhas no horizonte ou a ramagem que projeta sombra sobre nós, respiramos a aura dessa montanha, dessa ramagem” (p. 16). O declínio da aura possui seus condicionantes sociais, que, de acordo com o autor, são baseadas em dois pontos: o desejo de chegar o mais perto possível das coisas, assimilando-as, em vez de respeitar sua transcendência, e o desejo de sobrepujar a presença singular das coisas mediante a reprodução das imagens. Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) expressa-se com as seguintes palavras:

Essa descrição nos facilita compreender as condicionantes sociais do atual declínio da aura. Ele se baseia em duas circunstâncias, e ambas se relacionam com a crescente importância das massas na vida atual: ‘Aproximar’ as coisas, espacial e humanamente, é um desejo tão intenso das massas contemporâneas quanto sua tendência a superar o caráter único das coisas, graças à reprodução. A cada dia torna-se mais irrecusável a necessidade de chegar o mais perto possível do objeto por meio de sua imagem, ou melhor ainda, por meio de sua cópia ou reprodução” (p. 16, grifo do autor).

Lembremos da relação desejante implicada na percepção e destacada pela fenomenologia (Barbaras, 2006Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris: Vrin.). Ela está em jogo aqui. Toda aparição reenvia a um sistema de horizontes externos, ou seja, o campo de coisas que circunda o objeto percebido e de horizontes internos que se referem aos aspectos ocultos do próprio objeto percebido. Não podemos ter acesso expositivo a todos os objetos de um campo perceptual ao mesmo tempo, nem a todas as faces de uma coisa qualquer, de uma só vez. Na percepção repousa, portanto, uma dimensão de falta que reclama nossa atividade perceptiva. Para Husserl (1966/1998Husserl, E. (1998). De la synthèse passive: logique transcendantale et constitutions originaires. (B. Bégout & J. Kessler, trad.). Grenoble: Jérôme Millon. (Trabalho original publicado em 1966)) tem-se, nesta conjuntura, uma dinâmica de afecção relativa à atração que os objetos exercem sobre o eu. A demanda afetiva relaciona-se à aspiração por uma percepção que desvele cada vez mais a ipseidade do objeto, e, igualmente, à impossibilidade de se encerrar o circuito desejante. Há sempre mais para ver, sempre algum aspecto oculto, na medida em que a assunção de uma perspectiva encobre outras. Isso porque, na percepção, jamais se desfaz o caráter transcendente do objeto percebido. Ele permanece fora, distinto do sujeito percipiente. Por mais próximo que esteja de nós, permanece havendo uma distância entre o objeto de percepção e o sujeito que percebe. É nessa direção que Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) define a aura igualmente como “a aparição única de algo distante, por mais próximo que esteja” (p. 16). Tudo se passa, no contexto da cultura das imagens, como se o uso dos aparatos de imagem aliado à lógica do consumo de massa buscasse interferir neste circuito, não desfazendo o desejo, posto que não se pode extingui-lo, mas atiçando-o até a fadiga, o descontrole e a angústia, mediante a promessa sempre renovada de um alcance último do objeto.

Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) comenta que não é apenas o modo de existência das coletividades humanas que se transforma no decorrer dos períodos históricos, mas igualmente sua forma de percepção. A estrutura da percepção está atrelada, portanto, à sua natureza e também à história. No âmbito dos estudos históricos da percepção não cabe, por sua vez, tão somente descrever as características formais da percepção de uma época, mas, igualmente, as convulsões sociais que se exprimem nas mudanças de percepção. Ao tratar de perturbações sociais, não há como deixar de mencionar a designação médica, surgida no final da década de 1970, de distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade.

Hoje as telas fazem parte do nosso cenário cotidiano. Estão presentes nos aparelhos de televisão, nos computadores e nos aparelhos celulares. Novos dispositivos de realidade virtual estão por vir, com telas que prometem ocupar todo o campo de visão (Crary, 2016Crary, J. (2016). 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo, SP: Ubu Editora.). Isso torna onipresente a mudança de lugares e de ângulos promovida por suas imagens. Neste contexto, Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.) discrimina três aspectos do choque de imagem a que estamos submetidos hoje: seu poder fisiológico, que atrai o olhar mediante alterações luminosas abruptas; sua fascinação estética, atrelada à promessa constante de apresentação de imagens ainda não vistas; e o seu exercício constante na ubiquidade do mercado mediante técnicas de propaganda. A alta tecnologia propicia um ambiente repleto de estímulos; nele, quem causa maior sensação tem oportunidade de ser percebido.

O resultado é um “regime global de atenção” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 33) insensível diante dessa sobrecarga ininterrupta, ou seja, incapaz de concentrar-se por muito tempo sem ansiar por modificações no campo perceptivo. Os espectadores de televisão podem já não ser capazes de acompanhar emissões mais longas. Até o material escrito é, progressivamente, submetido a este mesmo sistema, revelando-se a necessidade de se impor ao olhar, da mesma forma que a imagem cinematográfica ou televisiva. Preconiza-se a utilização de fotos nos textos, e os jornais buscam ser cada vez mais atrativos. Mesmo os olhares acadêmicos carecem de concentração e resistência para uma leitura longa e pobre em imagens impressas.

Para Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.), estes são sintomas manifestos de déficit de atenção. O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade não é, contudo, uma doença em ambiente saudável, mas um fenômeno que apenas existe numa cultura do déficit de atenção. Seu emblema é a dispersão concentrada, a concentração da atenção sobre o que a desgasta.

Há de se ressaltar, além da repartição da atenção entre os diversos locais e cenários expostos pelas máquinas de imagem, o sentido de repartição da atenção atrelado à experiência social, conjunta e partilhada. Podemos, igualmente, neste contexto, identificar a influência dos aparatos imagéticos. Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.) faz referência à noção de atenção conjunta. Tomasello (1999Tomasello, M. (1999). The cultural origins of human cognition. Cambridge: MIT Press.) fala em “revolução dos nove meses” para designar a adoção, por parte dos bebês, em torno dessa idade, de ações em que não se interage apenas ora com outra pessoa ora com algum objeto, mas nas quais os objetos de interesse são partilhados com outrem, por iniciativa da criança ou do seu parceiro de atividade. Trata-se, nessa nova estrutura de percepção e ação, de desenvolver justamente o que ficou conhecido como a conjugação das atenções. Citton (2014Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris: Éditions du Seuil.) afirma, a propósito da atenção conjunta: “As atenções de vários sujeitos são, pois, ‘conjugadas’ no sentido em que, porque estão atentos uns aos outros, a direção tomada pela atenção de um impele a de outro a se orientar na mesma direção” (p. 126).

Türcke destaca o sentido filogenético que os pesquisadores da atenção conjunta lhe atribuem. Ao ater-se às coisas de modo conjunto e partilhado, o bebê assume um comportamento especificamente humano. Pela atenção partilhada se aprende a forma de comunidade especificamente humana; ao mesmo tempo, não há como aprender a conjugar a atenção senão em comunidade. “Proximidade humana, não apenas físico-emocional, entre os pais e a criança, requer que juntos se voltem para algo que os cative”, afirma Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 72), em referência aos estudos de Tomasello (1999Tomasello, M. (1999). The cultural origins of human cognition. Cambridge: MIT Press.). A partição da atenção com os outros, o fato de se dirigir a própria atenção a um objeto compartilhado, possui um valor constitutivo para a atenção propriamente humana. A coletividade garante não apenas a duração da atenção na forma de persistência sobre algo, de um “momento de dedicação” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 72), mas igualmente a objetividade das coisas, o senso realista daquilo com que nos deparamos (Bimbenet, 2015Bimbenet, E. (2015). L’invention du réalisme. Paris: Les Éditions du Cerf.). Ver junto, escutar junto, implica o reconhecimento de um mundo comum.

Citton (2014Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris: Éditions du Seuil.) acrescenta algumas características que definem mais precisamente a atenção conjunta. Esta se refere a situações marcadas pela coatenção presencial, ou seja, pela consciência de interagir com outrem em tempo real, de partilhar um objeto de atenção comum na presença de um outro. A atenção conjunta pressupõe, além disso, um princípio de reciprocidade. A atenção, nesse caso, circula de forma bidirecional; a criança segue o olhar do adulto e este manifesta o mesmo esforço. Tem-se aqui algo distinto da assimetria a estruturar o fluxo de atenção diante de aparatos midiáticos. Em regime de atenção conjunta, opera, ainda, um esforço de correspondência afetiva (accordage affectif). Dá-se um ajustamento recíproco por parte dos envolvidos na cena perceptiva, com partilha de gestos de, por exemplo, encorajamento, simpatia, preocupação, conforto ou precaução. Decorrem disso as práticas de improvisação características das situações de atenção conjunta. Na interação, não há rotinas programadas de antemão. A ação de um depende da ação do outro, enredando os agentes numa dinâmica de reciprocidade e de autonomia da interação, mais que dos próprios agentes.

É preciso considerar a interferência que a “revolução dos nove meses”, fase-chave do desenvolvimento humano, sofre diante das máquinas de imagens. Conforme Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.), a tela se interpõe entre o adulto e a criança. Ela pode se dar à vista e à escuta como um objeto comum a ambos, adulto e criança, mas, frequentemente, interrompe a atenção partilhada. A criança não sabe o que fazer com as cintilações e os ruídos de uma televisão, mas ela vivencia a absorção da atenção das suas figuras de referência diante daquele objeto luminoso e estrepitoso, bem como a inconsistência do afeto dos pais neste cenário. O aparato televisivo, como outros dispositivos de imagem, “atravessa a atenção comum e sua persistência para as coisas” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 73). Neste cenário, o olhar da mãe ou do pai que vagueia entre a tela e a criança muitas vezes não configura a interação triádica entre adulto, criança e objeto comum, mas cede à irrupção de relações diádicas em um momento que poderia ser de interação recíproca em torno de algo partilhado. Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.) conclui: “os primeiros laços da comunidade qualitativamente nova, laços que a criança está a tecer, passam a ser cortados de modo recorrente” (p. 73). O autor sugere, a partir disso, que aquelas crianças cujo contato com as máquinas de imagens tenha sido percebido como “privação elementar de atenção” (Türcke, 2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 76) são as mais vulneráveis ao seu efeito hipnotizante. Instala-se, segundo ele, uma lógica de repetição traumática, segundo a qual o que eu temo me atrai. “O que me rouba a atenção é o que vai chamar a minha atenção, é para onde eu me dirijo. No que me torna inconstante, é onde vou buscar minha constância”, afirma Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra., p. 77). Não se trata, como assinala Citton (2014Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris: Éditions du Seuil.), de culpabilizar os cuidadores por eventuais perturbações da atenção infantil, mas de apontar a fragilidade da atenção conjunta e de indicar a relação entre assimetrias no ecossistema familiar e os aparatos de imagem que remontam a uma dimensão mais ampla, de atenção coletiva, de massas, regida por formas de influência cada vez mais amparadas em tecnologias sociais voltadas ao consumo.

Em síntese, nossas relações com os aparatos de imagem e seus produtos têm origem em estratégias de produtividade industrial e na dimensão técnica das ciências da percepção. A proliferação das imagens, identificada desde o final do século XIX, está associada ao que Benjamin (1955/2012Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)) chama de efeito de choque e ao declínio da aura dos objetos de percepção. A cultura de multiplicação e de reprodução de imagens possui, ademais, relação com formas de percepção distraída cujas repercussões adquirem contornos de perturbação social.

Considerações finais

Discutimos o regime de atenção contemporâneo à luz da crítica à modernidade capitalista com foco na análise de dois sistemas culturais: a repetição maquinal e o choque de imagem. A repetição desvitalizada e a distração surgiram como modalidades de comportamento social determinados pelo regime de atenção contemporâneo.

Sustentamos a ideia de que, apesar de possuírem características distintas, a repetição maquinal e o choque de imagem são formas culturais entrelaçadas numa relação específica. A cultura contemporânea da imagem reproduz, no campo da percepção, o que a linha de montagem impõe às pessoas no campo da produção (Hansen, 1987/2012Hansen, M. (2012). Benjamin, cinema e experiência: a flor azul na terra da tecnologia. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 223-273). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto . (Trabalho original publicado em 1987)). Nesse entrelaço, a atenção tornou-se um problema cultural na vida moderna (Crawford, 2015Crawford, M. (2015). The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction. New York: Farrar, Straus & Giroux.).

Na primeira parte do trabalho, além de examinar fatores ligados à experiência perceptual no trabalho rotinizado das linhas de montagem, discutimos certos aspectos básicos da percepção atenta calcados na dinâmica entre o fechamento do campo perceptivo e a passagem contínua e fluída a outros elementos do campo, o que compõe o quadro da atenção vitalizada. Com base nisso, pudemos identificar, no trabalho industrial, traços de desvitalização da percepção. Referimo-nos, também, ao papel do hábito na percepção atenta, reforçando a dimensão corpórea da atenção. Na segunda parte do texto, depois de atrelar o surgimento de novos meios de percepção à produtividade industrial e às ciências da percepção, focalizamos o regime de choque de imagens, sugerindo, neste âmbito, a hipertrofia da dinâmica vital da atenção, o que sustentaria a distratibilidade que marca nossa relação com os aparatos de imagem. Ao final, tratamos da distratibilidade no contexto das relações intersubjetivas, unindo as interferências na atenção conjunta ao contexto social mais amplo em que se inserem as relações interpessoais.

É importante lembrar que nossas análises, tanto no que se refere ao regime da repetição maquinal quanto ao regime do choque de imagens, se basearam na distinção entre ferramentas e máquinas. Estas últimas sempre envolvem, em grau elevado, a utilização da corporeidade viva para fins que são heteronômicos em relação ao contato direto com os dispositivos técnicos.

O estudo da vida perceptiva pautada pela técnica permite, em termos gerais, que se examine um novo paradigma de dominação social. Segundo Han (2017Han, B.-C. (2017). Sociedade do cansaço (E. P. Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.), passamos da estrutura da sociedade disciplinar, descrita por Foucault com base na análise de instituições como asilos, hospitais, presídios e fábricas, a uma sociedade do desempenho. Esta transição exige esforços renovados para compreender o sujeito que emerge das condições de maximização da produção. Para Han (2017Han, B.-C. (2017). Sociedade do cansaço (E. P. Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.), as pistas concernentes à nossa disposição sociocultural indicam a conjunção entre uma “agudização hiperativa da atividade” (p. 52) e uma “hiperpassividade” (p. 52) diante da miríade de impulsos e estímulos a que estamos expostos. Estes elementos são compatíveis com os que destacamos na cultura do trabalho e das imagens, e que convergem para formas de coerção introjetadas na forma de uma necessidade contínua de atividade, seja de produção, seja de consumo, inclusive de imagens.

Pode ser oportuna, para finalizar, uma breve consideração sobre uma concepção ética da percepção, a que aludimos na introdução do texto e que serviria, grosso modo, de justificativa a um trabalho como o nosso. Encontramos menções a uma ética da percepção, ou da atenção, em pesquisas como as de Waldenfels (2010Waldenfels, B. (2010). Attention suscitée et dirigée. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 33-44.), Depraz (2014Depraz, N. (2014). Attention et vigilance: à la croisée de la phénoménologie et des sciences cognitives. Paris: PUF.), Citton (2014Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris: Éditions du Seuil.), Laugier (2014Laugier, S. (2014). L’éthique comme attention à ce qui compte. In Y. Citton (Org.), L’économie de l’attention: nouvel horizon du capitalisme? (pp. 252-266). Paris : La Découverte.), Crawford (2015Crawford, M. (2015). The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction. New York: Farrar, Straus & Giroux.) e Türcke (2016Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.). A despeito das variações de um trabalho para outro, talvez se possa assinalar, como ponto de convergência, a indicação de um reenquadramento sociológico e cultural da percepção. Além disso, três níveis de análise são integrados, não apenas entre si, mas, igualmente, ao plano sociocultural da percepção. No plano funcionalista, enfatiza-se a investigação do que se passa quando percebemos, ou quando prestamos atenção. No plano moral, a ênfase recai sobre a distribuição social dos recursos envolvidos na percepção, e no senso de justiça e de injustiça verificado nessa distribuição, com destaque para a possibilidade de análise dos fatores de dominação social envolvidos na experiência perceptiva contemporânea. No plano propriamente ético, estaria em questão a experiência perceptiva à luz da possibilidade de se realizar uma vida boa, equilibrada, além da percepção à luz de uma “ética receptiva” (Depraz, 2014Depraz, N. (2014). Attention et vigilance: à la croisée de la phénoménologie et des sciences cognitives. Paris: PUF., p. 467), que se debruça sobre nossa relação com outrem como aquele a quem respondemos, com quem percebemos conjuntamente, de quem cuidamos e por quem somos cuidados. Estas dimensões da análise psicossocial da percepção confluem para o estabelecimento de uma textura ética da experiência perceptiva capaz de servir à crítica dos problemas culturais contemporâneos.

Referências

  • Barbaras, R. (2006). Le désir et la distance: introduction à une phénoméologie de la perception (2a ed.). Paris: Vrin.
  • Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.
  • Benjamin, W. (2012). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 11-42). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1955)
  • Bimbenet, E. (2015). L’invention du réalisme. Paris: Les Éditions du Cerf.
  • Boltanski, L., & Chiapello, E. (2009). O novo espírito do capitalismo. (I. Benedetti, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Bosi, A. (1988). Fenomenologia do olhar. In A. Novaes (Org.), O olhar (pp. 65-87). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Citton, Y. (2014). Pour une écologie de l’attention. Paris: Éditions du Seuil.
  • Crary, J. (2012). Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto .
  • Crary, J. (2013). Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. (T. Montenegro, trad.). São Paulo, SP: Cosac Naify.
  • Crary, J. (2016). 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (J. Toledo Jr., trad.). São Paulo, SP: Ubu Editora.
  • Crawford, M. (2015). The world beyond your head: on becoming an individual in an age of distraction. New York: Farrar, Straus & Giroux.
  • Depraz, N. (2014). Attention et vigilance: à la croisée de la phénoménologie et des sciences cognitives. Paris: PUF.
  • Ferreira, A. (2007). O múltiplo surgimento da Psicologia. In: A. M. Jacó-Vilela, A. Ferreira & F. Portugal (Orgs.), História da psicologia: rumos e percursos (pp. 13-46). Rio de Janeiro: Nau.
  • Han, B.-C. (2017). Sociedade do cansaço (E. P. Giachini, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Hansen, M. (2012). Benjamin, cinema e experiência: a flor azul na terra da tecnologia. In W. Benjamin, D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, trad., pp. 223-273). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto . (Trabalho original publicado em 1987)
  • Husserl, E. (1998). De la synthèse passive: logique transcendantale et constitutions originaires. (B. Bégout & J. Kessler, trad.). Grenoble: Jérôme Millon. (Trabalho original publicado em 1966)
  • Janiaud, J. (2002). Simone Weil: l’attention et l’action. Paris: PUF .
  • Laugier, S. (2014). L’éthique comme attention à ce qui compte. In Y. Citton (Org.), L’économie de l’attention: nouvel horizon du capitalisme? (pp. 252-266). Paris : La Découverte.
  • Marx, K. (1968). Le capital (Livre I). (M. Rubel, trad.). Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1867)
  • Minkowski, E. (1936). Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Éditions Montaigne.
  • Moinat, F. (2010). Phénoménologie de l’attention aliénée: Edmund Husserl, Bernhard Waldenfels, Simone Weil. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 45-58.
  • Schöttker, D. (2012). Comentários sobre Benjamin e “a obra de arte”. In W. Benjamin D. Schöttker, S. Buck-Morss, & M. Hansen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção (M. Lisboa & V. Ribeiro, Trad., pp. 43-172). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto . (Trabalho original publicado em 1955)
  • Tomasello, M. (1999). The cultural origins of human cognition. Cambridge: MIT Press.
  • Türcke, C. (2016). Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. (J. Antunes, trad.). São Paulo, SP: Paz e Terra.
  • Waldenfels, B. (2010). Attention suscitée et dirigée. Alter: Révue de Phénoménologie, (18), 33-44.
  • Weil, S. (1988). Oeuvres complètes, tome I : premiers écrits philosophiques. Paris: Gallimard .
  • Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951)
  • Weil, S. (2011). Sur les contradictions du marxisme. In F. de Lussy (Org.), Simone Weil: Oeuvres (pp. 355-364). Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1955)
  • 1
    Weil teve experiências marcantes como operária, primeiro nas indústrias Alsthom, em 1934, depois, em 1935, nas usinas J.-J.Carnaud e Forges de Basse-Indre, em Boulogne-Billancourt, e nas linhas de montagem da Renault. Por certo, sua iniciativa de trabalho industrial não revela simples curiosidade, mas, antes, a exigência intelectual de conhecer as condições de trabalho reais dos operários franceses (Janiaud, 2002Janiaud, J. (2002). Simone Weil: l’attention et l’action. Paris: PUF .).
  • 2
    Vale mencionar que as questões referentes às condições do trabalho fabril constituem o ponto central das críticas remetidas por Weil às tradições revolucionárias ligadas à cultura marxista. Weil (1951/2002Weil, S. (2002). La condition ouvrière. Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1951)) distingue o problema da exploração da classe operária, relacionado à propriedade e ao lucro capitalistas, da opressão referente à disciplina industrial, que diz respeito, fundamentalmente, às relações entre o operário e a máquina, e entre o operário e sua chefia. Segundo a autora, a coletivização das usinas e das fábricas deixaria intocada a estrutura de produção, que envolve a presença de homens e mulheres junto às máquinas com o propósito de extrair da linha de montagem o maior número possível de produtos bem feitos e a bom preço, à revelia da satisfação das aspirações mais elevadas dos trabalhadores. Essa contradição pode ser atrelada, de acordo com Weil (1955/2011Weil, S. (2011). Sur les contradictions du marxisme. In F. de Lussy (Org.), Simone Weil: Oeuvres (pp. 355-364). Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1955)), a lacunas na própria obra de Marx. A despeito do seu teor de crítica social, o pensamento de Marx demonstra, segundo a autora, apego aos valores “menos fundados da sua época”, como “o culto da produção, o culto da grande indústria, a crença cega no progresso” (Weil, 1955/2011Weil, S. (2011). Sur les contradictions du marxisme. In F. de Lussy (Org.), Simone Weil: Oeuvres (pp. 355-364). Paris: Gallimard . (Trabalho original publicado em 1955), p. 358). Weil observa que esta dificuldade não solucionada nas teorias de Marx, bem como na tradição marxista, tampouco foi resolvida na ordem dos acontecimentos históricos, dado que os problemas relativos às condições de trabalho dos operários tornaram-se mais agudos na primeira metade do século XX.
  • 3
    Benjamin (1980Benjamin, W. (1980). Sobre alguns temas em Baudelaire. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, & J. Habermas, Textos escolhidos (pp. 29-56). São Paulo, SP: Abril Cultural.) afirma: “O operário não especializado é o mais profundamente degradado pelo aprendizado da máquina. O seu trabalho é impermeável à experiência. Nele o exercício não tem mais nenhum direito” (p. 44).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2018
  • Revisado
    08 Jan 2019
  • Aceito
    04 Set 2019
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br