Resumos
A consciência é o principal elemento de uma teoria robusta da vida mental. Entendida como artifício evolutivo, pode ter sido a sede de processos de redescrição valorada de atos e percepções presumidos. A consciência que surge da sincronização de módulos neuronais seria, na hipótese desse artigo, algo que emerge de quatro condições necessárias da evolução: o aumento de tecido cerebral (particularmente neocórtex), o surgimento da linguagem, a possibilidade de recombinação de módulos de processamento neuronal através de sincronismos e a necessidade de estabelecimento de um discurso valorado da ação, condição para o surgimento de uma postura ética perante o semelhante.
Consciência; Cognição; Mente; Neurociências; Cultura
Consciousness is the key element of the mental life. It can be understood as an evolutionary tool that scaffolded valorized redescription of presumed acts and perceptions. Consciousness that emerges from the synchronization of neuronal modules would emerge thanks to four necessary conditions: the increase of cerebral tissue (particularly in neocortical areas), the appearance of language, the possibility of recombination of neuronal processing modules through synchronization and the necessity of establishing a valorized discourse of action, the very condition for the appearance of an ethical approach towards the fellow.
Consciousness; Cognition; Mind; Neurosciences; Culture
SINCRONIZAÇÃO E CONSCIÊNCIA: FUNDAMENTOS NATURAIS DA CULTURA OU FUNDAMENTOS CULTURAIS DA NATUREZA? 1 1 O presente texto foi escrito de maneira alegórica, procurando incitar de maneira geral o leitor a percorrer alguns dos pontos fundamentais de uma teoria da consciência. Sugiro que se faça inicialmente uma leitura sem consulta às notas de rodapé. Todas as alegorias e chistes estão explicados nas notas, de tal sorte que o leitor possa situar-se no ambiente metafórico. O estilo é proposital, embora por vezes não compreendido. Acima de tudo a consciência é o palco onde se descortinam capacidades insuspeitadas de significar o que é, até o momento, praticamente impossível de reproduzir em máquinas - a metáfora.
Henrique Schützer Del Nero
Instituto de Estudos Avançados - USP
A consciência é o principal elemento de uma teoria robusta da vida mental. Entendida como artifício evolutivo, pode ter sido a sede de processos de redescrição valorada de atos e percepções presumidos. A consciência que surge da sincronização de módulos neuronais seria, na hipótese desse artigo, algo que emerge de quatro condições necessárias da evolução: o aumento de tecido cerebral (particularmente neocórtex), o surgimento da linguagem, a possibilidade de recombinação de módulos de processamento neuronal através de sincronismos e a necessidade de estabelecimento de um discurso valorado da ação, condição para o surgimento de uma postura ética perante o semelhante.
Descritores: Consciência. Cognição. Mente. Neurociências. Cultura.
Consciência: sincronização e compreensão
Quando o sertão virar mar e o mar virar sertão, o que será da consciência se, reduzida ao cérebro, deixar de ser prudência? O que será da justiça, se a vontade deixar de ser livre e se tornar disparo neuronal?
Reflexões gerais sobre a consciência tenderão sempre a esbarrar em dicotomias. Não é, a consciência, conhecimento? Ou vontade, ou imagem de si? Ou ainda, qualidade que qualifica: o gosto das "madeleines" evocando um passado para um determinado sujeito? Não haveria teoria do passado que explicasse a vinculação entre o gosto e a memória, não fosse a união experiencial das duas séries num amálgama único e indivisível.2 2 Duas ordens de considerações históricas sobre a consciência: a primeira diz respeito à irredutibilidade do significado e da intencionalidade a qualquer linguagem fisicalista. Outra diz respeito ao fenômeno da constituição de uma colagem entre as partes da experiência (interna e externa), resultando numa vivência una e indivisível (o gosto mais o conceito). Quanto à irredutibilidade dos termos mentais, conscientes e intencionais, a qualquer linguagem fisicalista, cf. Fodor (1975, p.1-26).
O discurso científico sobre a consciência rouba-lhe a grandeza. O discurso cultural rouba-lhe o fundamento. Ensaiemos, portanto, ousar uma unificação utópica: a consciência é o mais cultural dos fenômenos naturais; também é o mais natural dos fenômenos da cultura.3 3 A idéia de unificação é justamente a de superar o binômio cultura x natureza, compreensão x explicação (Von Wright, 1971), colocando a consciência como fenômeno biológico que prepara fôrmas para que nelas se depositem as formas e conteúdos mentais, fortemente dependentes da linguagem e da cultura (Del Nero, 1997).
Interpenetram-se duas ordens, antes distintas: cultura, ou mundo do dever, e natureza, ou mundo do ser.4 4 A dicotomia natureza x cultura também assume a distinção entre "ser" e "dever ser", descritivo x normativo. Enquanto o discurso sobre a natureza é descritivo o discurso da ética, do direito e da cultura (num certo sentido) é o discurso do dever ser. A distinção já se encontra na obra do filósofo empirista David Hume no" Treatise on human nature" e assume importância vital na construção do direito positivo do século XX com Hans Kelsen (Kelsen, 1987). Os discursos são rivais, estanques, longínquos. A reconciliação é quase impossível; ou vácua; ou genérica demais.5 5 O problema da generalidade vácua diz respeito ao fato de que, ainda que fizéssemos uma petição de fé monista (cérebro e mente, natureza e cultura, não passam de duas faces de uma mesma moeda que deve ser naturalizada através do operador biológico), não iríamos muito mais longe que a afirmação "Todo produto cultural e mental é fruto de uma máquina biológica, seja o cérebro humano, seja o sistema nervoso genérico na sua marcha de evolução filogenética".
Os estudantes, clivados pela esquizofrenia de nossa incapacidade de dirimir impasses e dicotomias conceituais, quer optam por estudar a mente, quer o cérebro. Pobre da consciência, liame entre os mundos natural e cultural, entre o cérebro e a mente, tramita em julgado, dois departamentos distintos: às vezes é natureza, às vezes é cultura. A consciência, representante legal da mente, faz papel duplo: às vezes é oscilação neural, outras é a sede da pessoa, artifício da constituição da identidade mental e social.6 6 Surge o campo atual de debate entre correntes. A neurociência contemporânea defende a hipótese da consciência surgir da sincronização de população de osciladores neuronais (Koch & Davis, 1994). A consciência fluxo, vivência e sede da pessoa e da subjetividade alavanca de outro lado a idéia de cultura e de individualidade (Arendt, 1978).
Os oponentes se perfilam e debatem. Odeiam e expiam seus ódios sob a forma de argumento. O pobre doente no leito psiquiátrico sofre, enquanto não resolvemos a querela. Coitado, vítima de duas defesas, de duas acusações, faz a marionete epistêmica. Culpa do pai ou culpa do receptor sináptico? Pendularmente, se acusam os dois: o passado e a herança. Medica-se e fala-se. Duas ordens que não se fundem: a palavra vai para a mente; a droga, para o receptor.7 7 Tese central deste artigo, a psiquiatria não pode aceitar qualquer solução dissociacionista de cérebro e mente. A terapêutica psiquiátrica se dá tanto no plano da mente (linguagem), quanto no plano cerebral (drogas que atuam em receptores sinápticos, alterando a taxa de transmissão de impulsos, bem como alterando a afinidade dos neurotransmissores pelos seus receptores pós-sinápticos). Salvo alguns poucos casos em que se consegue atuar apenas no plano verbal-mental, através das chamadas psicoterapias, ou exclusivamente no plano cerebral, através de psicofármacos, a maior parte das patologias requer ambos os tratamentos. Mais ainda, mesmo no caso da terapêutica exclusivamente medicamentosa, faz-se presente a mente e a linguagem como instrumentos de diagnóstico. O acesso à disfunção cerebral se serve da mente, quer como relato subjetivo, quer como instrumento de aferição do estado mental "subjacente".
O indivíduo, cindido entre a natureza e a cultura, chora por um paradigma uno.8 8 O indivíduo que chora é o paciente que não se impressiona com debates epistêmicos e ontológicos. Ainda que mente e cérebro fossem dois, o doente psiquiátrico é um só. Vai daí a necessidade de alguma forma de monismo que fundamente a terapêutica, o diagnóstico e a pesquisa psiquiátrica. Mas, o atrevido que ousar tentá-lo será execrado e chamado de tolo.9 9 O problema da unificação é duplo. De um lado, significa perseguir uma legítima ciência do mental, interdisciplinar e multifacetada, porém com o cuidado da consistência que permita derivar princípios-ponte entre termos e proposições. De outro lado, a unificação monista deve garantir, a um só tempo, que não se empobreça a riqueza da cultura e, de outro, que o fundamento natural e biológico da cultura seja preservado. " Homem de pouca ciência, por que duvidaste da ordem dual do mundo? Da árvore da natureza e da cultura, ninguém provará o fruto". O fruto é a consciência, a seiva é o impulso elétrico, a terra é a história, os galhos somos nós, estranha combinação e contorção, visitando espaço e tempo sem que se possa prever.
Taxonomia do mental
Há uma tendência natural na história do pensamento que recorta, classifica e ordena objetos. A mente não é exceção.
- Divide-se em pensamento, emoção e vontade - sentencia o expositor.10 10 A divisão de mente em pensamento, emoção (sensação) e vontade ou modo cognitivo, emocional e conativo aparece em Ryle (1983, p.61).
- Consciência - diz a velha senhora.11 11 A caracterização de mente enquanto consciência é o cerne deste artigo. Encontra-se em vários autores, particularmente em William James. Mente seria aquilo que é consciente ou que se pode tornar consciente.
- Memória e aprendizado- retrucam outros.12 12 A questão do aprendizado, aliada à razão, é crucial para Charles Darwin quando discorre sobre a evolução da mente humana no livro "The descent of man".
Na batalha dos nomes não há vencedores. Perdem todos.13 13 A crítica aqui se dirige a um tipo de querela vácua acerca das taxonomias. Qualquer taxonomia que apenas troque nomes, sem com isso acrescentar qualquer mecanismo mais profundo que endosse a troca, não terá maior importância. A caracterização da mente enquanto consciência, neste trabalho, se faz através das seguintes etapas: em primeiro lugar, define-se a mente como consciência. Em segundo, supõe-se a oscilação neuronal e o sincronismo de populações de osciladores como base física da consciência. Em terceiro, assevera-se que há pelo menos uma condição física que possibilita o roteamento da informação pré-consciente para a conciência ou para o modo automático. A partição da mente em consciência e não-consciência (ou modo automático), acrescido de uma condição física (e não mental) de roteamento - bifurcações nas equações que descrevem as oscilações -, seria um passo para a unificação parcial das séries mental e cerebral.
Dizia-me, um amigo:
- Na verdade trabalho com memória e aprendizado, mas a ortodoxia me obriga a declarar que sou um neurofisiologista do sistema sensorial. Pobre cientista: censurado, antes nos bancos escolares pelo regime de então, depois pela ignorância dos pares, e agora pela ortodoxia dos nomes.14 14 O cientista em questão, quando aluno, foi bastante cerceado em suas idéias políticas pelo então regime militar vigente. Tempos depois afirma que suas idéias acerca de dinâmica temporal das áreas receptivas no córtex sensorial também encontravam alguma resistência, visto colocarem em xeque o que muito bem nomeia como "nova frenologia". A localização estrita de funções no sistema nervoso é herança do localizacionismo de Gall, encontrando ainda hoje morada na maior parte da comunidade de neurocientistas. O paradigma dinâmico em que, à ordem da localização de funções, se faz substituir por uma ordem temporal de codificação, é a idéia deste artigo. Uma versão mais técnica pode ser encontrada em Del Nero, Maranca e Piqueira (1997).
Consciência é nome. Designa um estado, uma função e um processo. O estado é sensação. O processo é memória recrutada e atualizada num fluxo uno. A função, essa cabe aqui pensar.15 15 Divido a consciência em três grandes eixos: estado, processo e função. O estado consciente é responsável pela vivência subjetiva da consciência. O processo pelo qual se torna possível o surgimento da consciência é, na minha opinião, a sincronização de uma representação não-consciente com uma redescrição dessa representação em porções neocorticais, particularmente em circuitos tálamo- corticais (Del Nero, 1997). A função da consciência, lida do ponto de vista evolutivo, é permitir uma redescrição valorada de planos de ação e de percepção, de tal sorte que ainda haja possibilidade de inibição ou ratificação dos mesmos pelo concurso de mecanismo neural que é interpretado como "vontade". A função desse mecanismo é, entre outras, a de preparar o terreno para uma postura valorada, ética, perante o semelhante. O ser humano, graças à consciência, é capaz de inibir planos imediatos em prol de finalidades mediatas, de inibir a satisfação primária das necessidades animais em prol da consecução de um plano perante os valores e a cultura.
A ordem das coisas impõe que o organismo se adapte. Surgem os cérebros, amontoados de células, que atravessam a informação sensorial convertendo-a em ação.16 16 A idéia do modelo é de que o primeiro nível de intermediação nervosa é o reflexo. A um dado estímulo A segue-se uma resposta B. Em seguida, com a complexificação do sistema nervoso, passa-se a ter " a um dado A segue-se um B ou um C ou um D...". Isto é, já há decisão e variadas alternativas no plano cerebral não-consciente. O terceiro nível é aquele em que há uma ordem de redescrições de A, B, C, D, etc. de tal sorte que o plano da ação e da percepção, eminentemente não-mentais, se faz acrescer de uma interpretação valorada e justificável dessas mesmas ações e percepções. Esse seria o terceiro nível em que realmente ocorre a vida mental entendida precipuamente como consciência (Del Nero 1997). Cérebros atravessadores encarecem o produto, empobrecendo a ciência.17 17 Ainda que tenha havido um desejo de purgação das entidades teóricas pelo behaviorismo filosófico, esse projeto, basicamente capitaneado pelo Círculo de Viena, redundou em fracasso. A mente, ainda que com suas representações e entidades funcionais de natureza teórica, é a forma mais robusta de formulação de uma teoria do comportamento, ampliando o arco do estímulo/resposta/condicionamente para os determinantes centrais cérebro/mentais desses mesmos comportamentos.
Quiseram os behavioristas eliminá-lo18 18 A idéia de intermediação entre estímulo e resposta é vista como proliferação de não-observáveis na tradição científica. Nas versões mais tradicionais do behaviorismo até os anos 50 nota-se a tentativa de eliminar da análise do comportamento as variáveis intermediárias, fossem elas mentais, fossem cerebrais. É comum colocar a ciência cognitiva como uma reação ao behaviorismo. Embora continue a existir uma tradição behaviorista de pesquisa, novamente um problema de nomes que não leva muito longe, o behaviorismo a que se dirige a crítica deste trabalho é aquele que procura esgotar a análise e explicação do comportamento com apelo aos estímulos, respostas e condicionamentos (Del Nero, 1993, p.147-69). ; também a mente; também a profusão dos nomes que não se vêem, sentem ou cheiram. O cérebro e a mente, atravessadores, deixam, para a ordem do sensório e da ação, o elo confiável. Reforços e comportamentos substituem o antes interno, escondido e nebuloso.
- Se são atravessadores, elimine-os, e a ordem causal garantirá a objetividade - proclama o reformista apressado.19 19 Alegoricamente, traduz-se o ideal de causalidade entre o estímulo e a resposta que prescindiria da intermediação. Ora, mas a intermediação não é só necessária como fundante. Ao contrário do mental ser intermediário entre o estímulo e a resposta, é ele quem coordena a percepção e ação. Fundar a análise no comportamento ou no exame do estímulo e da resposta (devidamente formatados por condicionamentos de variados tipos) captura apenas parte da complexidade do problema. Mais ainda, por vezes, pode ensejar análise incorreta do estatuto do cérebro-mente face aos estímulos e às respostas.
Mas o cérebro não é somente atravessador. Se no organismo mais simples liga o estímulo ao impulso, ato reflexo, no organismo complexo pluraliza a ordem das ações possíveis. A cada entrada corresponde mais de uma saída. Inicia-se a lenta gênese de pesar decisões, nem sempre boas ou facilmente julgáveis.
A história do cérebro humano é uma saga de decisões em ambiente complexo. Mato ou morro? Para um dos dois eu fujo, diz piada antiga. Mas, agora o cérebro não só mata ou morre: alia-se; trai; subjuga; tortura; comete crime por motivo vão; namora o seqüestrador; sente-se compelido pelo mal; resigna-se e reprime.
O cérebro definitivamente se tornou complexo. A ação possível é não-explicável na totalidade pelo exame do estímulo na entrada. Mais ainda, de atravessador, passou a gerente; a presidente; a rei; a pontífice de uma visão das coisas. O rei sol se tornou rei cérebro: "O comportamento sou eu". Está declarada a morte da objetividade asséptica dos behavioristas. A ordem do poder e da opinião, de quem antes atravessava reflexos, torna-se agora ponto de inflexão e de sustentação do mundo.20 20 De certa forma essa inversão é semelhante ao debate entre empiristas e racionalistas. "Nada está no intelecto sem que antes tenha estado nos sentidos" declara o empirista. "Salvo pelo próprio intelecto" responde o racionalista." Nada está na mente/cérebro sem que tenha estado antes no estímulo" declararia o behaviorista. "Salvo pelo próprio cérebro/mente que amoldam e determinam a percepção e ação" responde o cognitivista. Se o behaviorismo, de uma certa maneira, revive o ideal empirista, o cognitivismo revive o racionalista. A inversão de polaridade, portanto, é a mesma da revolução galileana. A Terra era centro e o Sol girava em torno dela. O estímulo era centro e o cérebro girava em torno dele. Há que colocar o Sol no centro e a Terra na órbita, como também o complexo cérebro/mente no papel de determinador e o estímulo/reposta/comportamento na sua órbita.
O cérebro agente
Na longa jornada da seleção, vemos uma ordem de estruturas que se superpõem. Antes era o reflexo, depois a complexidade decisória e finalmente o verbo.21 21 Defino três estruturas superponentes e hierarquicamente constituídas: o reflexo, a complexidade cerebral e a consciência. No nível dos reflexos, a uma dada entrada corresponde uma única saída; no nível da complexidade cerebral, iniciam-se os primeiros dilemas decisórios, de tal sorte que, a uma dada entrada, correspondem múltiplas saídas, devendo-se decidir qual será o caso em cada ação particular; a terceira ordem é a da consciência, onde, à decisão, acrescem-se a justificação e o dever - a complexidade decisória cerebral, presente nos animais, é somada à complexidade moral, exclusivamente humana e traço peculiar do que entendo por mente e consciência. A carne se fez verbo e soprou pelo mundo, possibilitando a emancipação do que antes fora animal e agora se tornava" imagem de Deus".22 22 A alegoria bíblica faz menção a um "verbo que se fez carne e habitou em nós". A história evolutiva do surgimento da mente humana é, ao contrário, a história da carne que se fez verbo, erigindo religiões e discorrendo sobre mitos e deuses. A constituição de sociedade e a forja de transcendências com finalidade reguladora do comportamento social é aspecto único e ímpar da mente humana, não encontrando similar, ainda que mitigado, em outros animais. Não mais simples dança de abelha, roteiro de formiga ou careta de macaco. Comunicação, que da carne se fez significado, implica conhecer o que não está dito; perceber o que não é ensinado; desvelar o que já está dormente na história da espécie humana.23 23 " Dormente na história da espécie humana" significa percorrer a filogênese à cata de significados para comportamentos. A idéia é misto platônica, misto lamarckista. A cultura parece ter a propriedade de, por mecanismo não-darwiniano, habilitar o indivíduo a incorporar a priori alguns marcadores culturais, fundamentais para a constituição do mental. Ainda que não se esteja falando de mitemas ou de outras entidades, parece haver incorporação de estruturas básicas da cultura. Isso talvez seja apenas o reflexo de uma série que se inicia com a linguagem e atinge o apogeu com a cultura. A linguagem, capacidade inata, é quem fornece os moldes para a cultura. A incorporação das entidades culturais, tal fosse a priori, pode ser apenas uma atualização do aparato neural que possibilita no ser humano a conquista da linguagem e da comunicação plenas.
Exponho a criança ao mundo da palavra: balbucia sílabas; forma palavras. Duas, três... de repente, sentenças. O salto não é ensinado. Porque constante e previsível, não está na ordem das coisas do mundo, mas na ordem das coisas do cérebro.24 24 O salto das palavras justapostas para a capacidade plena de expressão de sentenças (proposições) é somente explicável pela existência de estrutura prévia no sistema e não por qualquer elemento ambiental de condicionamento ou reforço. A linguagem, nesse sentido, naquilo que tem de capacidade proposicional, é forte argumento contra a posição behaviorista radical de esgotar a totalidade explicativa do mental na ordem das causalidades e reforços ambientais. Nova revolução copernicana: o cérebro humano reinstaura o heliocentrismo da estrutura sobre o geocentrismo do meio. Mas somos meio e história. Somos história de reforços, de traumas e sonhos. Somos amalgamados pela dor, fruto do ventre da mãe genética e do pai circunstância.
Definitivamente, relutam os sistemas de opinião, ainda não ciência, em aceitar que somos determinados antes da determinação.
- Farei da menina selvagem um cidadão ocidental- exclama, em tom de brado, o antropólogo bom.25 25 O papel do meio é exaltado nesse episódio. Um antropólogo adota uma criança oriental, dizendo que o meio lhe dará a característica de um ocidental. Apogeu do papel do meio sobre o que está previamente determinado. Afora a capacidade de se encaixar nas formas e conteúdos culturais, tudo está determinado pelo meio. Porém, as fôrmas que propiciam o encaixe são formas fortemente determinadas a priori, não pela existência de locais de encaixe (frenologia), mas de um código capaz de reproduzir formas e conteúdos mentais-culturais em ambiente cerebral (Del Nero, 1997).
O meio é o artífice da mente, mente que reclama por dignidade e justiça. Não se atrevam as teorias raciais a propor que negros são menos inteligentes que brancos. Podem ter fibras musculares mais próprias para certos esportes olímpicos, mas suas mentes, essas não são da ordem das coisas que se comparam; são folha em branco em que a tirania e a desigualdade formataram a história da diferença.26 26 Recentemente um livro causou extrema polêmica nos EUA ("The bell curve: intelligence and class structure in american life" de Richard Herrnstein e Charles Murray, 1994). A despeito de evidências empíricas para uma pequena diferença de QI médio entre negros e brancos, a grita foi generalizada, tentando calar o fato científico. Aceita-se que os negros podem ter fibras musculares melhor formatadas para esportes olímpicos e não se aceita que possa haver diferença de capacidades mentais. É possível entender a reação e, sobretudo, atemorizar-se diante da onda de racismo que possa provocar. Porém, não é omitindo o dado científico que vamos construir a justiça, fazendo supor ser apenas o meio, que tudo formataria, o artífice dessa diferença. A diferença pode até existir (se é que existe), porém a justiça, que é da ordem dos fatos do mental, como também a razão, nos parecem ensinar que a construção de uma sociedade equilibrada deve passar necessariamente pelo atendimento das minorias e pela valorização das etnias com suas diferenças específicas. Não é calando a razão ou a ciência, fundando no meio a razão da diferença, que seremos justos. Seremos justos tanto mais formos capazes de entender a igualdade entre os seres humanos, homens, mulheres, brancos, negros, amarelos, cristãos, judeus, muçulmanos, etc. como diversidade biocultural, absolutamente necessária, saudável e capaz de enriquecer nossa compreensão do fenômeno humano.
Breve história da ciência cognitiva
Quando morreu o behaviorismo27 27 Novamente - sem fazer menção às formas mitigadas de behaviorismo, não mais de caixa-preta, mas de progressiva abertura da caixa, que constituem direcionamento profícuo de pesquisa - refiro-me aqui a uma forma de behaviorismo radical que pretende esgotar a explicação do comportamento pelo exame da entrada, da saída e dos condicionamentos. Esse behaviorismo-empirista radical se vê derrotado por volta dos anos 50 com trabalhos como os de Newell e Simon, Chomsky, Lashley, etc. Para uma breve história desse acontecimentos, sugiro o livro de Howard Gardner "A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva" (1995). , vítima de seu ideal objetivo, enterrado com o epitáfio de reacionário, veio sua alma gêmea, libertária, clamando por uma história da mente que continua a dever suas mazelas e grandezas à história de seus reforços.28 28 Quando falo de alma gêmea, quero dizer que uma concepção de que a mente tudo pode é tão radical quanto a concepção de que o condicionamento tudo pode. O resgate da noção de mente enquanto aparato de representação, supostamente crucial para o cognitivismo, pode fazer supor que, no plano das representações, há independência suficiente para alcançar qualquer coisa pelo exercício da vontade. Ainda que a mente possa se constituir entidade que se interpõe à ordem do sensório e da ação, também ela está limitada pela coação do sistema físico que lhe dá suporte - o cérebro. Quando digo, em seguida, que uma concepção de mente que pretenda se contrapor ao dado científico de eficácia de eletrochoques em certas condições específicas é tão reacionária quanto outra que supusesse a suficiência do meio para explicar o todo do comportamento, estou dizendo que há erro tanto num empirismo radical de matiz behaviorista, quanto num racionalismo voluntarista que se esquece das limitações que o cérebro impõe à estrutura mental que nele habita.
Não eram mais choques, nem alimento num ambiente experimental. Era o pão da vida, era a educação e a oportunidade, era a repressão e a ganância, era a ausência de oportunidades.
Inconformados com a mente que brotou do cérebro, do cérebro biológico e neuronal, exclamam agora os algozes do behaviorismo:
- Abaixo a tirania do eletrochoque. O coração, pode-se reverter pelo uso da eletricidade. A mente é da ordem das coisas que somente se trata pelo verbo. O choque é coisa de tiranos, de torturadores, de insensatos, de desumanos - completam, em discurso aplaudido por grande parte da nata dita pensante e culta!29 29 O ataque se dirige à "nova classe de teóricos" que se opuseram ao behaviorismo. Se o behaviorismo podia ensejar desconforto pela sua estrutura explicativa de base científica (embora parcial e com alguns vícios de princípio), a "nova mente" não pode, nem por isso, desgarrar-se da ciência, tornando-se novamente um palco de proliferação de hipóteses, tal como foi em outras épocas. De maneira breve: o behaviorismo é filho de uma tradição racional de análise científica do comportamento. Omite a especulação sobre o mental na medida que esse pode fazer proliferar o gosto pela especulação vazia de significado. Embora insuficiente, o behaviorismo se filia a uma tradição racional de boa estirpe. A mente, resgatada enquanto a priori, não deve nem por isso abandonar a consistência, a explicabilidade e refutabilidade das teorias científicas. A ciência cognitiva, em lugar de dar guarida a concepções voluntaristas e a uma doutrina imediatista das faculdades, é uma tentativa de somar ao behaviorismo, naquilo que tem de bom, a noção de a priori cerebral e mental, determinador e não determinado pelo meio, na forja de uma compreensão mais completa dos processos comportamentais.
O behaviorismo se foi, mas deixou sua história gravada nos incautos que agora fizeram da mente arena do verbo, prova do delito das relações e dos regimes. Não se nega que a mente é para servir ao bem comum. A comunicação dotou-a de instrumento de agrupamento. Quando o grupo virou casta e a casta virou classe, a mente perdeu sua vocação unificadora, transformando-se em personalidade e sucesso pessoal.30 30 Defendo que a mente e a consciência foram os artífices da formação da sociedade e cultura, num processo contínuo de retroação em que um alimenta e formata a outra. Porém, a história se incumbiu de dedicar à mente a função de forjadora da diferença em lugar de semeadora da igualdade. Sua vocação ética perante a espécie se fez substituir por uma vocação estético-histérica-amoral de superação do semelhante a qualquer preço. O individualismo se serviu do instrumento mental de constituição da subjetividade para semear a diferença e a injustiça. Verdadeira traição da vocação biológica do mental, o individualismo pode encontrar nas situações limite guarida para suas teses. Essas situações-limite são, a meu ver, o risco de vida em que a animalidade fala mais alto no afã de proteger a prole e o genoma. Porém, em regime de dinâmica social esse comportamento somente dissemina a guerrilha intestina, pondo em risco o grupamento como um todo (Del Nero, 1997).
Claro, há que gritar contra essa visão distorcida de que não temos chance para além da nossa herança. Mais ainda, quando se procura chamar a herança de negra, de judaica, de amarela, de imigrante, de comum. Mas a grita não deve ser tão geral quanto a ignorância. Quando se grita contra o meio, se esquece da ordem neural que vincula e desvela. Para além dela, estão certos os que pedem por carinho, compreensão e justiça. Sem a ordem neural, no entanto, subtrai-se o argumento mor do combate à usura e ao egoísmo: o que a mente uniu o mercado não pode separar!31 31 A idéia de que o meio pode organizar o sistema é filha de um empirismo parcial. É fato que há uma ordem auto-organizada que cresce num sistema complexo à medida que o deixamos à mercê do meio ou do mercado. Porém sem correção de fora, seja de condicionamento na feição behaviorista, seja de correção pelo exame da função primeira da mente (unir os elementos da espécie pela comunicação, propiciando a constituição de sociedades estáveis e portanto justas), não haverá futuro para a espécie. A mente une quando se lembra de sua função, corrigindo os desvios pelo condicionamento para a justiça. O mercado, entendido como instrumento de organização do sistema complexo, só pode criar discrepâncias e absurdos. O laissez-faire, laissez-passer, lido à luz da ciência da complexidade é a fonte de sistemas estáveis porém disfuncionais (e portanto injustos) (Del Nero, 1997; Epstein & Axtell, 1996).
O racionalismo apriorista de base neural e o surgimento da cultura
O cérebro intermediário tornou-se cérebro agente, quer por obra da circunstância (ontogênese), quer por obra da evolução (filogênese).
Esse cérebro mais ainda se investe de uma capacidade de comunicação genuína. É capaz de reconhecer duas ordens paralelas: a ordem da proposição e a ordem da verdade.32 32 Somos capazes de distinguir entre três sentenças: "Paulo é careca", "Paulo é marciano" e "Paulo verde compra legume feliz": a primeira é proposição e é verdadeira; a segunda é proposição e é falsa; a terceira não é proposição. Pois bem, a grande faceta da linguagem é nos tornar capazes (e isso não é condicionável ou aprendido) de reconhecer entre proposições e não proposições (devido à boa construção) e, dentre as proposições, de reconhecer as verdadeiras e as falsas (deviso à correspondência ou não com um estado de coisas no mundo). Se fosse condicionável ou aprendido teria de seguir uma ordem de linearidade sem que o salto se desse de maneira tão estável num certo momento. Poder-se-ia advogar a tese de que, se o sistema que coordena a formação de proposições segue dinâmica não-linear, o salto é explicável pelo condicionamento externo. O debate aqui é muito longo, mas concordo que uma dinâmica não-linear poderia sustentar o argumento behaviorista contrário. Na minha opinião, a função proposicional é de matiz apriorista, enquanto a função de verificação da verdade e falsidade de uma proposição é de matiz ambiental-condicionável. Os mundos possíveis que as proposições falsas nos permitem vislumbrar preparam uma das características fundamentais da mente humana: elaborar hipóteses, lidar com contrafactuais e finalmente forjar uma ordem de inibição de ações imediatas com finalidade mediata (base da moral).
Essa capacidade opera o milagre da comunicação e, porque capaz de gerar infinitas sentenças significativas a partir de regras e símbolos finitos, torna caso único os discursos sobre a história e sobre o indivíduo.
A cultura, doadora das formas e dos conteúdos do mental, surge a reboque, entre outras, de três capacidades básicas:
a) a capacidade de comunicação e transformação do cérebro humano através da linguagem;
b) a capacidade de trabalho com contrafactuais (proposições que dizem respeito a fatos hipotéticos, futuros ou contraintuitivos);
c) a capacidade de um discurso sobre os valores e de uma ação inibitória sobre as paixões com finalidade mediata de resguardo da ordem moral.
A ordem da complexidade cerebral possibilita que surjam, a um só tempo, a linguagem como capacidade inata, e o significado com entidade dinâmica, dependente do contexto. A complexidade do cérebro possibilita o surgimento de uma complexidade de conexão entre os seres da mesma espécie. A complexidade das sentenças permite a criação de um ambiente dinâmico, natural e artificial.
A mente ultrapassa a obra biológica, tornando-se mente também a cultura e qualquer fato inteligível, capaz de ser decodificado pelo agente racional.33 33 O cérebro humano carrega estruturas a priori capazes de agir sobre o meio imprimindo-lhe marcas de sua ação. Essa ação forja a cultura que retroage sobre o cérebro ampliando-lhe as formas e conteúdos mentais. Como, em última análise, todo o processo de construção da mente-consciência advém da capacidade de codificar informação num formato mental, a mente é código e não local onde esse código se realiza ou atualiza. A mente é cérebro porque, até o momento, não conhecemos outras estruturas capazes de realizar a codificação específica. Porém, certamente a mente impregna os fatos culturais, na medida em que há neles uma inteligibilidade mental para qualquer decodificador habilitado. Tanto quanto, de posse dos intrumentos plenos, podemos fazer com que uma mensagem passada num fax prescinda do papel, também a mente, enquanto código, pode prescindir do cérebro e estar presente inteligivelmente nos fatos da cultura (Del Nero, 1997). Assim são a pintura de Picasso, a música de Mozart, os jardins suspensos da Babilônia e o último modelo de" preservativo com chip musical". Mente é produto, a um só tempo, da complexidade dos cérebros em contextos variados e da complexidade de verdades decisórias possíveis. Quando a decisão deixa de ser verdadeira, para ser apenas possível; quando a verdade se torna cenário; quando a ação é tão ampla quanto a ordem das proposições possíveis, então o cérebro lentamente se faz mente.34 34 A complexidade decisória insere porções de "mente" já nos animais não-humanos em graus crescentes de complexidade. Certamente, quando restrinjo a consciência ao ser humano, faço-o imbuído de uma operação conceitual que funda na consciência do dever e da subjetividade a base da moral. Essa me parece ausente em qualquer outro animal. Mente no sentido de complexidade decisória em cenário variado já está presente em outros animais, bem como algum grau de consciência fenomenológica e traços de reconhecimento de subjetividade.
Essa complexidade, ainda que amplificada pela linguagem e pela cultura, pode estar presente no animal rasteiro. Também a raposa avalia as muitas videiras e o melhor meio de alcançá-las. Somente não trata com desdém a uva desejada e não alcançada.35 35 A complexidade decisória pode ser medida no animal como processo de pausa e escolha de solução para um problema. Certamente, o que não está na ordem dos fatos animais, é o desdém da raposa para com a a uva desejada e não obtida, fazendo-se aqui alusão à conhecida fábula da Raposa e das Uvas. Esse traço é exclusivamente humano - o desdém que acoberta a frustração pelo objeto não alcançado. Parte da sublimação no ser humano advém da não consecução de certas metas ou desejos. A complexidade decisória hospeda a tentativa e o desejo. A complexidade mental-consciente hospeda a frustração e as reações que tentam se antepor a ela.
Então, se a mente é apenas a alcunha para a complexidade que abandonou o chão seguro e morno do reflexo e alçou vôo imprevisto, também a lontra, o golfinho e a paca têm mente.
No futuro, se mente for apenas sinônimo de complexidade, será mental também o fóssil marciano, morto na pedra e certamente fruto de uma explosão combinatorial superior à simplicidade do reflexo medular.36 36 Aqui apenas se afirma que a complexidade informacional não é critério para qualificação do mental, porque presente em vários domínios que não o cérebro subjazendo à mente. Não vejo, por outro lado, interesse em chamar de mental aquilo que é destituído de consciência, comunicação e verbalização. Se há mente nos outros animais, no sentido de complexidade decisória, prefiro chamar esse traço mental pré-humano de cerebral, reservando à mente a característica de gerar consciência, comunicação/linguagem e valor.
Definitivamente, embora conceito e portanto impreciso pela traição da tradução, a mente somente é plena, desvinculada da razão processante complexa (essa já presente no animal menor), quando seu discurso, pela mão da linguagem e da moral, replica o ato e funda o valor.
Contextos complexos, há vários: o vôo do pombo desafia nosso conhecimento; também as estruturas embrionárias de hierarquia e altruísmo nos macacos; também a fuga da lebre pela floresta; também Deep Blue quando ganha a partida de xadrez do campeão mundial; também o programa de computador que executa a folha de pagamento de uma grande empresa.
Cérebros precisaram de memória, de motivação, de reforço, de atenção, de aprendizado, de cálculos para decidir em situação complexa; precisaram de ritmos para marcar o tempo; de planos, de afetos, de dor e sentimento, para processar a complexidade do mundo. Se isso já é sublime, nem por isso a mente já está aí.37 37 Reforça-se o argumento de que não há necessidade de chamar de mental toda essa gama de estruturas funcionais. Podem ser apenas o resultado do reagrupamento de módulos neurais nos animais com finalidade de constituir novas esferas de ação. A mente, na minha definição (e, portanto, sujeita a embates nominalistas), somente é mente no seu apogeu quando se agrega ao cerebral complexo e funda através da consciência e linguagem um discurso valorado sobre as ações e percepções possíveis (Del Nero, 1997).
Somente há mente quando essa complexidade precisa ser reescrita, duplicada, não como a fotografia, mas como a versão que permite o contraste e o juízo.
Os modelos do mental
Quando o behaviorismo ruiu, o espólio foi motivo de guerra entre viúvas: umas ficaram com regras, outras com regularidades, outras com uma nova neurofisiologia.38 38 Novamente, o behaviorismo a que me refiro é aquele radical dos anos 50. Pode-se dividir em quatro os modelos que se sucederam no explicar a mente e sua relação com o cérebro: modelos simbolistas e modelos cerebralistas. Os simbolistas se fazem à custa de representações-símbolos mentais. Nos simbolistas estritos (inteligência artificial simbólica, IAS) a norma de conexão entre os símbolos são regras lógicas; nos simbolistas conexionistas (inteligência artificial conexionista, IAC, ou redes neurais) a norma de conexão entre os símbolos, ou subsímbolos, são regularidades dinâmico-estatísticas. Nos modelos cerebralistas distingo os clássicos e os quânticos. Olhando-se para o processamento neural como responsável pela forja de entidades e relações, os modelos clássicos se utilizam da física clássica para analisar o surgimento de funções; os quânticos se utilizam de ferramental da mecânica quântica para fazê-lo (Del Nero, 1997).
Todas (ou quase todas, não sendo citadas as correntes que passaram ao largo dessa versão da história da psicologia e da neurociência deste século) as viúvas brigaram e brigam até hoje pelo sobrenome populista: cognição ou cognitivismo.39 39 Digo" populista" em tom de blague porque o termo cognição ou cognitivo tem povoado um sem-número de escolas ligeiramente rivais: ciência cognitiva, neurociência cognitiva, neurociência computacional, computação cognitiva, etc. Cognição é apenas uma parcela do mental que responde pela função pensamento e inteligência. Há ainda a sensação/emoção (modo afetivo) e a volição (modo conativo). A consciência é, a meu ver, a marca fundamental do mental, abarcando todas as outras. Utilizo ciência cognitiva como qualificador genérico de todo esforço interdisciplinar de base formal que procure modelar a relação entre mente, cérebro e comportamento.
Quem ficou com as regras declarou apressadamente diante do testamenteiro:40 40 Quem fala aqui é o defensor da posição simbolista de tipo IAS que conecta símbolos atráves de regras lógicas.
- A mente que meu marido fez esquecer é processamento de informação. Bem claro: não processamento qualquer, mas sim processamento inteligente e, mais, cálculo computacional baseado em regras e símbolos. As regras são da lógica e os símbolos, sabe Deus de onde vieram.
Retruca a herdeira de alcunha neural:41 41 Quem fala aqui é a IAC ou rede neural, também simbolista no que tange às entidades, porém conectando-as através de regularidades dinâmico-estatísticas.
- Eu diria que a senhora se engana em diversos planos acerca do falecido. Em primeiro lugar não era tão ruim assim, porque a função do meio na geração de associações e a alteração de pesos de conexão, vítimas da experiência e treinamento, não são senão uma herança associacionista que persiste na minha doutrina. Eu, no entanto, me pareço com o cérebro. A senhora, que pretende que a mente é programa e o cérebro placa, não tem a menor idéia de como funciona um cérebro. Não há memória em endereço fixo, nem processador central. Em suma, programa e placa se confundem.
Não satisfeita, dispara a senhora das regras:
- Também a senhora é bastante hábil no esconder que o neurônio de suas redes neurais não tem quase nada que ver com o neurônio real e, mais, sua noção de processamento por regularidades estatísticas apenas quebra parte do elo. Seus elementos ainda são os meus símbolos - frisando, com dedo em riste, a frase final.42 42 Quando falo que aponta "com o dedo em riste", pretendo frisar que, exceto pelo modo de processamento, os símbolos mentais, ou subsímbolos, são os mesmos nas arquiteturas de tipo IAS e IAC.
Após tanta ofensa, deram-se as mãos e saíram do recinto. A morte do behaviorismo fizera surgir dois partidos, brigando pelo espólio, agora devidamente rotulado de" cognitivismo": um afirmando ser a mente mero processamento de símbolos através de regras lógicas; outro, de maneira mais elíptica, afirmando o surgimento da mente a partir da complexidade com que símbolos se relacionam, não por regras lógicas, mas por regularidades estatísticas.43 43 A noção baseada em regras recebe o nome de inteligência artificial tradicional ou simbólica. A noção ligada às regularidades recebe o nome de inteligência artificial conexionista ou redes neurais. As regularidades na verdade são o resultado de um processo matemático de se treinar uma rede para aproximar uma função composta (de maneira não analítica), achando-lhe um ponto de equilíbrio local ou uma solução parcial de convergência.
Parte do espólio do behaviorismo44 44 Por" espólio do behaviorismo", quero dizer que o ideal de construção de uma teoria científica do comportamento, ou da mente + comportamento, persiste nos modelos atuais. O behaviorismo indubitavelmente teria deixado como legado o perseguir uma teoria robusta da função neural/mental na sua expressão comportamental. continua até hoje nos tribunais numa interminável querela entre essas duas senhoras: computação baseada em regras ou baseada em regularidades? Eis a questão.
Porém, ao lado dessas herdeiras, as neurociências preparavam um bote, incorporando a seu ideário a noção de cognição. Noção parcial, vale dizer, porque reduz a mente ao pensamento (modo cognitivo). Os aspectos relacionados às sensações (modo afetivo) e à vontade (modo conativo) ficam esquecidos, bem como o problema da consciência.45 45 Como afirmei em outra nota, a neurociência incorpora a noção de cognitivo, forjando inclusive dissidência de tipo neurociência cognitiva (Gazzaniga, 1995). ,46 46 Como diz o grande neurofisiologista americano Benjamin Libet, a neurociência se recusou quase absolutamente a tratar do problema da consciência, permitindo que apenas alguns poucos ousados o fizessem e, assim mesmo, em textos não técnicos. Muita literatura de neurocientistas sobre consciência até os anos 90 não está em publicações técnicas, mas em livros e meios outros de divulgação.
Acidente? Creio que não. Ao reduzir-se a mente ao pensamento, está-se inexoravelmente retirando a consciência do palco. Ainda que se pretenda recolocá-la, pela qualificação de pensamento consciente ou não-consciente, a estratégia não fará senão imputar ao pensamento uma propriedade que não pertence a ele, mas apenas o qualifica.
As neurociências aparelhadas com o espólio behaviorista se entregam à busca da razão neural que funda o discurso do mental: não a simples correlação função/estrutura, já antiga e cara à neuropsicologia; nem também a simples correlação entre circuitos e comportamentos (essa, herança behaviorista, de estilo caixa-translúcida).47 47 É difícil falar genericamente de neurociência. Há uma tradição que persiste e ainda usa grande parte dos cânones behavioristas no preparo do animal para execução de cada tarefa. De uma certa forma a neurofisiologia que se utiliza desse instrumento poderia ser vista como um behaviorismo que ultrapassou a caixa-preta da mente e do cérebro, descendo ao nível de uma objetividade dos circuitos neurais que medeiam determinadas respostas comportamentais e instanciam determinadas funções como aprendizado, orientação, memória, atenção, etc.
A neurociência que socorre o espólio behaviorista é aquela que fornece quadros para três debates possíveis:
O primeiro se alia à senhora das regras e afirma que o neurônio, sendo máquina digital, é perfeitamente compatível com uma mente que processa sentenças lógicas. O segundo é que se alia à senhora das regularidades, vendo, na complexidade da relação entre os símbolos, a razão fundante do aprendizado, da adaptação e da emergência de padrões novos. Além disso, defende, ainda que um pouco envergonhada, o neurônio artificial das redes neurais como "quase" real.
Tanto na primeira, quanto na segunda, há uma questão que permanece intocada: a dos símbolos. Na primeira, há regras que se debruçam sobre símbolos; na Segunda, há regularidades que aproximam símbolos (ou subsímbolos como alguns amantes dos nomes gostam de chamar).
Todas essas construções apenas servem para se diagnosticar como seria possível pensar a complexidade de ações e reações possíveis não programadas num cérebro. São tão legítimas para a lontra quanto para o ser humano.
O problema da mente reside, tanto no estilo de relação entre os elementos quanto na própria natureza desses elementos (ou símbolos-representações). Uma maneira radical de ver a mente precisa, à par de desvendar as formas de concatenação da razão mental, também desvendar o mecanismo pelo qual a mente gera símbolos.
Símbolos, se reduzidos às formas da sensação (visão, olfato, audição, etc), ou se reduzidos às palavras da língua (gatos, mesas), não se explicam enquanto blocos que surgem dinamicamente no cérebro, sendo então os primeiros elementos para a forja do conhecimento.
Pode-se então licitamente desconfiar que, se as regras que medeiam a relação entre objetos são lógicas ou estatísticas, o modo de formação dos símbolos, esse sim, é genuinamente humano. (Animais usariam sempre os mesmos" símbolos" e processariam uma "mente" que é apenas sistema complexo de relação entre entradas e saídas possíveis. Seres humanos, ao contrário, usariam duas ordens de complexidade: uma que forja símbolos e outra que forja relações entre símbolos).
A terceira corrente da neurociência fornece razão para uma complexidade que, não apenas relaciona, mas também forma dinamicamente símbolos. Chamo-a de topologia neural.48 48 Topologia porque não há localização espacial estrita das funções, o que seria melhor nomeado com o termo "topografia", e sim uma segregação de funções devido ao processamento temporal dos neurônios, separando-se funções de acordo com alterações topológicas no plano qualitativo que descreve as soluções de um sistema de equações diferenciais que descreve aquela população de neurônios (Del Nero, Maranca & Piqueira, 1997).
Brevemente, topologia neural é uma maneira de enxergar a codificação no cérebro através de parâmetros dinâmicos e não espaciais.49 49 Se cada função é definida como um parâmetro de avaliação do mental, podemos encontrar parâmetros fixos na correlação local/função, ou parâmetros dinâmicos, como a alteração topológico/qualitativa no espaço de estados, de tal sorte que se correlacione a função a uma norma temporal qualitativa de evolução do sistema de osciladores neurais. O tempo passa a ser o eixo crítico da codificação. A evolução temporal é feita pela avaliação da distribuição das freqüências em assembléias neurais.
Sincronização e monismo criptográfico
O maior impasse da história do pensamento é a relação entre o cérebro e a mente. Todas as viúvas sérias do behaviorismo professam credo monista.
Monismo significa uma só substância. Mas o que dizer dessa substância, se a matéria cada vez mais evanesce na descoberta de elementos subatômicos não dotados de massa?50 50 Monismo de substância com materialismo estrito. Prefiro dizer fisicalismo estrito, que não necessariamente implica materialismo, que na definição de Feigl diz respeito a um modo de construir sistemas teóricos com base observacional (Feigl, 1958).
Afora qualquer especulação transcendente, cabe salientar ser a mente fenômeno que, pelo artifício da linguagem, transbordou os cérebros, inundando a comunicação interpessoal e os fatos culturais. Há "mente" na música, nos livros, na arte; também numa máquina que instancie o mesmo código e as mesmas interpretações do cérebro humano.51 51 Há mente/consciência em toda e qualquer estrutura que replique o código mental, seja animal, seja máquina, seja objeto cultural, passível de ser decodificado por receptores adequados (Del Nero, 1997).
Portanto, se não há mente no mais baixo animal, ou pelo menos na folha de pagamento da empresa de torneiras, embora todos fenômenos complexos, devemos procurar outra definição para ela.
Se está no cérebro, mas também na máquina e também na cultura (embora ali deva ser decodificada), então é uma abstração que não depende essencialmente do meio físico (e nisso concordo com a tese funcionalista da múltipla instanciabilidade, embora discorde da natureza lógica da linguagem que replique regras e fatos mentais).52 52 A tese da múltipla instanciabilidade afirma que não se pode reduzir/traduzir radicalmente as leis do software em leis do hardware. Um mesmo software pode "rodar" em diferentes hardwares. A mente, enquanto software, não careceria para seu completo exame de um exame das leis do hardware, cérebro. A tese é verdadeira naquilo que afirma uma irredutibilidade parcial da psicologia à neurociência, mas é falsa ao não deixar aberto um caminho que chamo de redução de funções e não de entidades. A díade controle voluntário x automático pode ser, a meu ver, reconhecida no plano do sinal elétrico, precisamente no instante de alteração topológica, o que faria com que tivéssemos uma partição de funções mentais explicada em termos neurais. Isso superaria, em parte, a irredutibilidade e a múltipla instanciabilidade radical (Del Nero, 1997).
É um código e aí está a história da inteligência artificial. Quando as viúvas propõem uma mente que processa informação, estão apenas trazendo a noção de medida informacional para a arena de debate.53 53 Uma das primeiras noções fortes da reação ao behavirismo nos anos 50 coloca a mente como estrutura processadora de informação. Essa noção está estreitamente ligada a uma determinada forma de codificação e de probabilidade de ocorrência de símbolos num determinado conjunto.
A idéia de código é fundamental para que se entendam os conceitos. Os códigos podem estar localizados no espaço: a cada ponto do mundo corresponde um ponto no cérebro. Esta doutrina localizacionista não me parece tão robusta e profícua quanto a codificação temporal. A alternativa à feição localizacionista (nova frenologia) é evanescer o código, de tal sorte a fazer dele uma realização de tabelas de verdade de conectivos lógicos. O que se estará fazendo é justificar booleanamente (através de 0s e 1s e a respectiva álgebra de manipulação) cadeias de sentenças e suas ligações. Porém, se a cadeia de inferências é o fundamento de uma mente lógica, persiste a questão de onde estão as sentenças ou os átomos proposicionais?
A idéia de que haja uma codificação que se utiliza do tempo como parâmetro é uma das portas da neurociência do próximo século.54 54 Isso está bem claro no recente esforço de conjugação de físicos e matemáticos no afã de analisar a dinâmica de sinais no sistema nervoso central (Nunez, 1995). Ao contrário de representar um elemento através de um ponto, represento esse objeto através de uma grandeza que varia temporalmente. Se antes precisava ter o disparo de um neurônio, agora preciso ter uma freqüência de disparos de vários neurônios para codificar um objeto. Isso me garante que o modo como a informação é representada e manipulada no cérebro, será função de uma dinâmica temporal e não de uma dinâmica espacial simplesmente.
A isso chamo de topologia neural. As razões que endossam essa mudança não advêm apenas de descobertas empíricas. Creio serem necessárias, de princípio, porque:
a) o código temporal é mais rico que o código espacial;55 55 Ao contrário de circunscrever, como que numa placa de computador, díades função/local, coloca-se a função variando de acordo com propriedades de codificação da atividade elétrica neuronal no tempo. A inserção do tempo como fonte de codificação aumenta e muito a potencialidade e a plasticidade do sistema nervoso.
b) o código temporal é compatível com a formação dinâmica de símbolos e de conexões entre eles, ao contrário de preconceber símbolos que não sabemos onde estão.56 56 Tanto a IAS quanto a IAC tomam os símbolos mentais como primitivos, buscando na relação entre eles a explicação para a emergência da mente. Em lugar de preconceber, ou tomar símbolos como primitivos, pode-se perguntar pela natureza desses símbolos. Proporei, em seguida, um modelo segundo o qual o mesmo processo oscilação/sincronização é responsável pela formação dos "símbolos" (processo de 1 a ordem), em seguida das relações entre eles (processo de 2 a ordem) e finalmente da consciência de símbolos e relações (processo de 3 a ordem) (Del Nero, 1997).
Basicamente, a idéia que se mostra capaz de justificar um determinado modelo de dinâmica cerebral para a formação da mente é a rápida sincronização entre assembléias neurais.57 57 Por assembléia neural podemos entender a quantidade mínima, contígüa, de neurônios capaz de representar um elemento discreto necessário para a formação de símbolos de 1a ordem. Isso estaria na base dos mecanismos de memória, de percepção de objetos (binding) e da fixação de atenção.
O que está em jogo na sincronização rápida de populações neuronais é a formação de elos de significação, cujo caráter pode ser explicado, tanto pela oscilação de cada população, quanto pela relação entre os dois osciladores.
Seria como colocar uma orquestra para tocar: um violino pode tocar com um piano. Tenho um símbolo formado pelo violino + piano e posso estabelecer uma relação destes com uma viola (outro símbolo) através de uma harmonia (afinação). Assim há afinação na relação de um instrumento consigo, dele com outro e destes blocos com outros blocos.58 58 De maneira sucinta estou descrevendo, através de oscilações que representam átomos mínimos mentais, sincronizações de 1ª ordem que formam objetos, de 2ª ordem que forjam ações e de 3ª ordem que possibilitam a reflexão e valoração. Juntamente com a sincronização de 3ª ordem, pela interferência da linguagem (ela também formada de oscilações e sincronizações) obteria a redescrição valorada da ação, condição para a consciência. Uma primeira oscilação sincroniza com outra formando objetos. Uma segunda sincronização relaciona esses objetos constituindo relação entre eles. Uma terceira classe de sincronização relaciona relações cerebrais com relações na consciência (Del Nero, 1997).
A codificação temporal através da sincronização responderia assim por um processo uno de ligação entre elementos, tanto ligando elementos no afã de formar símbolos quanto ligando símbolos no afã de constituir seqüências.
O monismo dos códigos garante à mente processo de codificação temporal que, se devidamente instanciado, realiza operação similar em cérebros, máquinas e em objetos culturais.
Assim a mente seria fundada pelo código e não pelo ser, seja esse ser o cérebro ou a máquina. Mas, para conhecer o código temporal, e sua natureza não material, o único órgão de que disponho para análise é o cérebro humano.
Seria assim a sincronização fenômeno que subjaz à mente entendida como consciência. Por quê? Simplesmente, porque na querela por achar um código, temos na ordem temporal algo que rebate tantos as críticas à inteligência artificial simbólica quanto à conexionista. Se ambas supõem a existência de símbolos, debatendo como ligá-los, com a idéia de sincronização tenho unificação de forte apelo empírico que se candidata a explicar tanto a forja do símbolo, quanto a forja da relação entre eles.
Não estranhamente, esse fenômeno de sincronização, tão interessante como código temporal, está intimamente relacionado com a consciência (Koch & Davis, 1994). Teríamos assim uma relação parcial entre sincronização, codificação temporal, mente e consciência.
Consciência
Vamos voltar ao problema da mente. Não nos acrescenta muito definí-la como complexidade. Há complexidade tanto na mente de qualquer animal como em diversos outros fenômenos certamente não-mentais. Porém, se a sincronização é fenômeno natural que também não esgotaria o tema da consciência, é fato que, em algumas situações de consciência, parece haver fenômeno de sincronização envolvido.
Quando tentamos nos perguntar pelo cerne da mente, percebemos que o ponto crucial não é o comportamento complexo, nem a qualidade sensorial; mas a consciência enquanto fenômeno com que nos defrontamos diariamente na nossa introspecção.
Minha filha de 6 anos descreveu com sensatez:
- Papai, o que é mente?
Tentei explicar-lhe que, fechando os olhos, continuava a ter uma série de imagens, idéias...
- Ah! já sei, é a televisão que eu tenho na minha cabeça.
Pronto, pela boca da criança está dito o que percebemos de nossa mente.
Outra vez, queixava-se:
- Papai minha cabeça não pára de pensar- ou, quando aprendeu a ler, dizia:
- Não consigo parar de ler.
Esses fenômenos todos são mente, no sentido de serem consciência. Certamente, minha filha não tem aos 6 anos condição de falar sobre aspectos não-conscientes de sua mente.
Por consciente, entendamos aquilo que é consciente (no sentido da vivência subjetiva e fenomenológica) ou que pode se tornar consciente.59 59 A mente de maneira ampla seria a reunião de processos conscientes e não-conscientes, porém, passíveis de serem trazidos, em parte ou totalmente, à consciência.
A consciência seria uma das poucas funções mentais que, de uma certa forma, detêm a primazia sobre as outras. Falar de memória sem consciência não acrescenta, porque posso exibir animais inferiores que têm memória e não têm consciência (pelo menos plena). O mesmo é válido para o aprendizado e para uma série de outras faculdades mentais.
Ora, mas como vimos no início deste artigo, podemos falar de uma consciência estado, de uma consciência processo e de uma consciência função.
O discurso da consciência estado se resume às sensações. O discurso da consciência processo se resume à atualização em fluxo unitário de memórias. A consciência função é que me permite indagar sobre algumas de suas peculiaridades mais básicas.
Acho muito pouco provável que nossa consciência, tão cara, direta, privada e palco de tanta reflexão, fosse sem função básica na nossa economia comportamental.
Se a linguagem é o fato externo mais digno de nota no ser humano, a consciência é o fato interno mais crucial. Haveria relação entre elas? Essa pergunta requer que tenhamos um candidato à função da consciência.
Voltemos ao problema da complexidade. Se os organismos migraram de uma reflexo prévio para uma ponderação complexa de atitudes possíveis, é certo que o ser humano agregou dois outros fatos a essa cadeia evolutiva:
a) tornou as ações e o meio ainda mais complexos;
b) foi, aos poucos, precisando de uma forma de justificação para seus atos, pensamentos e emoções.
À medida que a linguagem se instalou nos cérebros, puderam as ligações se estabelecer de maneira dinâmica e com graus de coesão nunca dantes vistos.
Se animais constituem grupos, certamente não os diferenciam em credos, sociedades anônimas, amigos de bairro, partidos políticos, etc. Essa característica das ligações mediadas pela riqueza da linguagem, e da possibilidade de geração de infinitas seqüências de comportamentos lingüísticos significativos, serve à criação, ao progresso e à formação de sociedades. Isso, ainda, não justificaria a aparição da consciência. Poderíamos pensar nos atos todos e apenas qualificar a série de fenômeno complexo.
Quando falamos, não temos consciência de grande parte dos elementos da linguagem; quando fazemos discursos, quando escrevemos textos, quando decidimos e assim por diante. Fato notável, grande parte do que chamamos de consciente não é senão:
a) monitoramento de estados do corpo (perfeitamente compatíveis com qualquer máquina que não exibisse consciência);
b) sensações subjetivas: o gosto da maçã, o cheiro da rosa. (Parecem-me acidentais e, se dificilmente explicáveis, também desnecessários para uma hipótese sobre a função da consciência);
c) justificativa e paráfrase de estados de decisão que parecem emergir na consciência;
Tanto a quanto b não me parecem vitais para uma teoria da consciência. C, no entanto, parece encerrar fato notável: os juízos e decisões podem não ser fatos conscientes; a justificação dos próprios sempre é consciente.60 60 Esboça-se aqui o argumento de que a capacidade de subsumir um discurso valorado-ético das ações e de inibir pela vontade o reclamo imediato de base infraconsciente é a grande característica da consciência (vida mental) humana. Para isso, a noção de sujeito e de valor devem se agregar à capacidade de elaboração de cenários hipotéticos e de inibição de atos imediatos com finalidade mediata. Diante da ratificação ou inibição de um plano imediato de ação pelo exame do valor perante o outro e perante a sociedade sentimos a sensação de operação sujeita à vontade e à liberdade de escolha (Del Nero, 1997).
Ainda que se pudessem alocar outras funções para a consciência, creio ser o contexto da justificação um deles, senão o principal. Ora, a reunião de indivíduos em sociedade, ainda fenômeno complexo, exigiu uma determinada gama de contratos e de pactos. Muitas vezes o indivíduo é chamado a explicar seus atos, pensamentos, desejos e justificá-los. Como diz um penalista: a ausência de motivos, num crime, é motivo vil.
De uma certa maneira creio haver uma paráfrase da ação, um recontar da ação que a duplica através da linguagem e da memória. É essa paráfrase ou" metáfora encarcerada pela linguagem" que:
a) permite a valoração dos atos (ao contrário da simples ação);
b) sincroniza duas ordens temporais e conceituais (ato e valor).
Assim o fenômeno que me parece fundamental é a existência de três classes de relações:
a) elementos que se relacionam com elementos, formando símbolos;
b) símbolos que se relacionam com símbolos, formando pensamentos ou atos;
c) pensamentos ou atos que se relacionam com redescrições lingüísticas valoradas de pensamentos e de atos, formando consciência.
A sincronização permitiria entender três grandes classes de relações sem que para isso tivéssemos de lançar mão de fenômenos não neurais. Por outro lado, a progressiva ressonância de cadeias de pensamentos, e as redescrições valoradas dos mesmos, atingiria limiares corticais, sem os quais temos apenas formas não-conscientes (ou pré-conscientes) de processamento (priming, etc). Essa ressonância progressiva explicaria o fenômeno crítico da unidade, porque haveria uma atualização breve de grande parte do sistema (há uma onda de sincronização que varre o córtex no sentido ântero-posterior e rostro-caudal).
Essa paráfrase que explicaria a consciência seria a um só tempo:
a) recrutadora de memórias;
b) recrutadora de elementos lingüísticos que descrevessem regularidades com regras lingüísticas, constituindo proposições, cadeias de argumentação, validade, etc.;
c) fortemente ligada à valoração, à justificação e ao abortamento de atos ou cenários complexos (o que de uma maneira geral mostra o quanto a consciência teve função na adaptação do indivíduo ao meio social, às normas, à ética dos valores e da conduta);
d) fortemente ligada a mecanismo de justificação e análise de fins e meios para situações complexas.
Se resolver o problema complexo carecia apenas da ação, agora a valoração recria uma ordem paralela que, quando sincronizada com a primeira, suscita a vivência consciente. Por quê? Porque capaz de sincronizar em hierarquias diversas, criando versões paralelas de atos, a maquinaria cerebral dá condições para o aparecimento de um discurso de responsabilidade, justificação e argumentação, e não apenas de comunicação.
A sociedade somente se ergue, e se mantém, com alguma forma de valor, responsabilidade, norma, sanção e justificação.
Tanto a cultura se serviria da consciência, fazendo dela seu representante natural, quanto a consciência se serviria da sociedade fazendo dela seu representante cultural.
A sincronização não explica a consciência. Mas pode ser mecanismo unificador pleno, permitindo construir uma epistemologia de base neural e planos superpostos que tanto constituem objetos como relações entre eles.
Ao lado disso, percebemos que a consciência parece ser vital para a mente, vital para a sociedade, embora não vital para um sem número de operações complexas (chame-as de mentais ou cerebrais). Nesse sentido, através da sincronização de populações neurais em grau crescente e, finalmente, através de uma paráfrase da ação, que cria uma réplica lingüístico-temporal valorada da ação (para justificar o passado) ou da intenção (para justificar o futuro) temos as condições neurais para implantar sistemas sociais.
Os sistemas sociais terão na arquitetura do cérebro humano, através dos planos progressivos e globais de sincronização, a alavanca natural para poderem exigir uma ética da conduta.
Os conteúdos da consciência terão, na arquitetura da cultura, o fundamento para eleger suas paráfrases argumentativas do porquê da ação ou do plano, podendo haver, no caso futuro, inibição do ato.
A consciência surgiria à medida que o cérebro complexo cria a linguagem; esta cria a ligação social, que cria o valor e as normas; estas voltam ao cérebro e lá encontram mecanismo que permite duplicar a ação: uma será ação (ou idéia de ação) outra será valor da ação. A ressonância entre ambas (ação e valor) permitirá:
a) que se superem limiares locais e se espraie o fenômeno pelo córtex;
b) que se exerça a inibição sobre hierarquias inferiores (o correlato da sanção e da censura no nível interpessoal);
c) que se povoe a consciência de conteúdos da cultura e da linguagem, tais como vontade, liberdade, desejo, crença, temor, misticismo e, sobretudo, norma, lei, valor moral, ético e finalmente teológico (ou no indivíduo comum, místico).
A consciência, não raro, é tão fugidia à ciência, porque teria:
a) parte de sua razão fundante no cérebro humano, porque capaz de criar ordens sucessivas e hierárquicas de oscilações sincrônicas;
b) parte de sua razão fundada na cultura, porque quem a formata pela linguagem e dela exige discurso de justificação para além da mera ação.
Consciência é termo, e não me acusem de amante dos nomes, que aparece na Grécia, quando se quer designar entre os criminosos, quais tinham intenção ou não de cometer o crime; quais tinham conhecimento ou não dos desdobramentos.
A explosão combinatorial evolutiva permitiu ao cérebro humano ser capaz de gerar uma série de fatos que estão na base de qualquer estudo da consciência:
a) permitiu o surgimento da linguagem;
b) das sociedades;
c) da moral, do direito e da religião;
d) e na base de tudo isso, o surgimento de mecanismo neural de duplicação e paráfrase via sincronizações e memórias.
A consciência, não me julguem atrevido, deve estar perto da interface destes elementos todos. Ainda que sublime, e tão pouco propícia a modelos formais, deve ter na topologia neural, e no monismo dos códigos, base epistêmica para nortear uma ciência mais objetiva da mente normal e patológica. Como complemento, pode fornecer ainda alguns argumentos nesse momento em que a mente que foi selecionada para promover a coesão, promove a dissimulação.
Se o semelhante virou nosso predador, então bem-vinda estratégia de sucesso pessoal; se, no entanto, isso é apenas um engano de certos sistemas econômicos e políticos, uma releitura da função biológica da mente e da consciência pode auxiliar no encaminhamento de éticas mais compatíveis com nossa espécie.
Consciência é também, e sobretudo, engajamento moral num ambiente social. Por isso negá-la em sua totalidade ao animal que não o Homem. Por isso tentar fazer de sua história evolutiva e funcional um argumento em favor da igualdade e da justiça para toda a espécie.
DEL NERO, H.S. Synchronization and Consciousness: the Natural Foundations of Culture or the Cultural Foudations of Nature. Psicologia USP, São Paulo, v.8, n.2, p.69-100, 1997.
Abstract: Consciousness is the key element of the mental life. It can be understood as an evolutionary tool that scaffolded valorized redescription of presumed acts and perceptions. Consciousness that emerges from the synchronization of neuronal modules would emerge thanks to four necessary conditions: the increase of cerebral tissue (particularly in neocortical areas), the appearance of language, the possibility of recombination of neuronal processing modules through synchronization and the necessity of establishing a valorized discourse of action, the very condition for the appearance of an ethical approach towards the fellow.
Index terms: Consciousness. Cognition. Mind. Neurosciences. Culture.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 1998 -
Data do Fascículo
1997