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Pensando com Winnicott sobre alguns aspectos relevantes ao processo de ensino e aprendizagem

Thinking with Winnicott on some important aspects of the process of teaching and learning

Resumos

Os mecanismos sociais e as práticas educativas produtoras das dificuldades escolares enfrentadas por crianças pobres no Brasil têm sido minuciosamente estudados nas últimas décadas. A partir de observações de cenas escolares e de entrevistas com professores notamos um crescente processo de "coisificação" do professor e do aluno. Quando estes estão destituídos do que lhes é mais pessoal e significativo como seu estilo, ritmo e valores, participam do ritual educativo de forma mecânica, repetitiva e submissa. Refletimos sobre o papel do psicólogo enquanto profissional que pode resgatar, reconhecer e valorizar o indivíduo humano, sua necessidade de se comunicar (ensinar e aprender) e seu potencial para isso, participando da recriação da cultura escolar de forma inovadora e singular.

Interação professor-aluno; Fracasso escolar; Aprendizagem; Criatividade. Ensino público; Crianças; Winnicott, Donald W.


The social mechanisms and the educational practices that lead to school failure have been thoroughly studied in the last decades. Observing schools and interviewing teachers we realized a growing "thing-ification" of the teacher and the student. When they are deprived from what is more personal and meaningful as their style, rythm and values, they take part in the educative process in a mechanical, repetitive and submissive way. We reflect upon the phychologist role as a professional who can rescue, recognize and valorize the individual, his/her communication needes (teach and learn) and his/her potential to it, being part of the re-creation of the school culture in a creative and singular way.

Teacher student interaction; Academic failure; Learning; Creativity; Public school education; Children; Winnicott, Donald, W.


PENSANDO COM WINNICOTT SOBRE ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES AO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM

Cintia Copit Freller1 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail: psa@edu.usp.br

Instituto de Psicologia – USP

Os mecanismos sociais e as práticas educativas produtoras das dificuldades escolares enfrentadas por crianças pobres no Brasil têm sido minuciosamente estudados nas últimas décadas. A partir de observações de cenas escolares e de entrevistas com professores notamos um crescente processo de "coisificação" do professor e do aluno. Quando estes estão destituídos do que lhes é mais pessoal e significativo como seu estilo, ritmo e valores, participam do ritual educativo de forma mecânica, repetitiva e submissa. Refletimos sobre o papel do psicólogo enquanto profissional que pode resgatar, reconhecer e valorizar o indivíduo humano, sua necessidade de se comunicar (ensinar e aprender) e seu potencial para isso, participando da recriação da cultura escolar de forma inovadora e singular.

Descritores: Interação professor-aluno. Fracasso escolar. Aprendizagem. Criatividade. Ensino público. Crianças. Winnicott, Donald W.

Cena I

Observação feita em maio, numa classe de primeira série de uma escola pública, após a queixa da professora Aparecida para a psicóloga: "Muitos alunos não aprendem, são imaturos, dispersos, agitados, não conseguem se concentrar e fazem muita bagunça." Ela é considerada pela escola como uma profissional muito competente, mas sente-se desconfortável lecionando para uma classe de crianças iniciantes, não escolhida por ela.

- Menino, pare quieto. Sente-se na cadeira e faça sua lição, como a professora mandou.

- Menina, guarde este material desnecessário.

- Menino, alinhe sua cadeira com a do colega.

- Menina, pare de conversar com o colega e também de perguntar o que você não entendeu para ele. Pergunte para a professora. Levante a mão e espere.

- Menina, você acabou de voltar do recreio. Não foi ao banheiro por que ficou brincando. Agora vai ter que esperar.

Laura, a menina que pediu para ir ao banheiro, fez xixi na calça. Aparecida, a professora, pediu ajuda para Lucilene, outra professora de primeira série, pois não sabia o que fazer com a menina molhada. Ela não chama seus alunos pelo nome. Também pede aos seus alunos que a chamem de professora, pois é assim que ela se refere à sua pessoa.

Partimos da história dessa professora, exemplar da situação do ensino público e da política educacional no Brasil, em que a técnica e o método são privilegiados em detrimento das relações e idéias, onde o professor perdeu seu valor social e, como afirmou Kupfer (1998, p. 168), "está irremediavelmente sózinho, desarticulado, destacado de uma rede de sustentação que o remeta a uma tradição, que o prestigie e atribua significação a sua prática". O professor não representa mais nada, continua ela, e, como observamos, precisa recorrer a atitudes autoritárias e burocráticas, assim como estabelecer relações impessoais, ritualizadas e robotizadas, para fazer valer sua autoridade. Essencialmente alienado, cumpre sua função de forma desvitalizada, rotineira e mecânica. Não pode enxergar seus alunos como seres humanos singulares, chamá-los pelo nome, ouvir suas necessidades, conhecer seus estilos, suas características.

Vivemos, "professores e alunos, em um mundo fragmentado, desligado do passado, das raízes, um mundo de objetos," como assinalou Kupfer. Os professores comparecem, nos programas de "reciclagem," como objetos descartáveis, depositários e mensageiros das novas metodologias de ensino, administradores e reprodutores acríticos das modificações curriculares e legislativas da política educacional vigente. Como analisou Alves (1984, p. 18), a produção e a função substituíram a pessoa e a identidade, com o objetivo de facilitar o gerenciamento, a medição, o controle e a racionalização. Essa trama, para não falar drama, nos motivou a escrever este texto.

O fracasso escolar no Brasil, especialmente de crianças pobres que freqüentam escolas públicas, tem sido motivo de pesquisa e discussão, há muitas décadas. Os trabalhos de Patto (1987) muito contribuíram para explicitar os processos e práticas educativas que produzem este fracasso e contextuá-los histórica e politicamente. Ela mostrou exemplos contundentes de como a escola pública ensina mal, desqualifica seus usuários, não acredita no potencial para aprender dos alunos e encara suas habilidades e características de forma preconceituosa. Expôs, ainda, o contexto que envolve as instituições educativas, as mazelas da política educacional brasileira, a burocracia envolvida, a desvalorização do professor, a inadequação dos cursos de formação etc.

Neste contexto, dada a gravidade e antecedentes históricos do problema, fica difícil pensar em ações que revertam a situação da educação no Brasil. Dá vontade de apagar tudo e começar novamente. Tentando ser otimista e acreditar que um trabalho miúdo e certeiro, aliado a outros trabalhos, de outros segmentos sociais, pode disparar modificações no panorama da educação, instaurando conflitos e desequilíbrios em seu imobilismo e estereotipia, buscaremos com Winnicott, psicanalista que estuda o homem em relação com o seu meio, acrescentar algumas idéias que contribuam para este movimento.

Como psicólogos, nossa principal contribuição para o ensino talvez seja trabalhar com o professor, especialmente construindo com ele mudanças no modo de olhar para seus alunos, para sua atuação profissional, para as famílias das classes populares. Problematizar sua prática e promover reflexões sobre os fatores que a determinam, sobre sua função social, sobre os efeitos de suas ações e possibilidades de mudanças. Buscar ampliar a sua consciência e acordá-lo para, nas palavras de Alves (1984, p. 22), "uma experiência de amor." Para a possibilidade de resgatar o trabalho como experiência expressiva, lúdica, criadora e retomar os vínculos com o passado que possibilitarão reinaugurar novos mundos.

Alves pergunta-se: como acordar o educador? Quem sabe começando a construir um vínculo de confiança, em que a interlocução seja viável e não persecutória. Partir da experiência do professor e valorizar o seu saber, a sua prática, as suas concepções e seu estilo. Resgatar ambigüidades em seu discurso que revelam aspectos não-alienados de sua prática. Propiciar experiências em que possa retomar a confiança e conquistar a capacidade crítica e o comprometimento político de sua prática, para poder se apropriar de seus recursos, confiar neles e ousar imprimir transformações em suas relações na escola e na sociedade mais ampla.

Por que começar com o professor? Winnicott explica que o acontecer humano depende da intervenção do ambiente. A tendência à integração e ao amadurecimento só se realiza se pessoas significativas facilitarem o desenvolvimento do indivíduo. A facilitação ambiental ocorre através de funções básicas ("segurar, manejar e apresentar objetos") realizadas no momento certo, de forma adequada, respeitando e partindo das características e necessidades do indivíduo. As experiências do indivíduo no mundo possibilitam atualizar potenciais, que sem essas não se realizariam.

Desta concepção sublinhamos três decorrências importantes:

- A tendência ao amadurecimento depende da facilitação ambiental e da não-interrupção da continuidade desse processo.

- Não existe indivíduo desvinculado de seu meio cultural.

- O desenvolvimento do indivíduo ocorre por correlação e não por causalidade. "Não se pode dizer que as árvores florescem porque a primavera chegou" e sim "Como em relação a tudo o que floresce, a partir de si mesmo, é preciso dizer: as árvores florescem pois a primavera chegou." (Oliveira Dias, 1998, p. 94)

Estes princípios reforçam as reflexões feitas por Vygotsky, segundo as quais a aprendizagem não ocorre espontaneamente, mas depende da interferência intencional do professor (ou de um colega, mas sempre permitida, planejada ou proposta pelo professor). Para ele, como demonstrou Oliveira (1997): "O indivíduo é ativo em seu próprio processo de desenvolvimento: nem está sujeito apenas a mecanismos de maturação, nem submetido passivamente a imposições do ambiente" (p. 104).

Destaca ainda a

Importância da atuação de outros membros do grupo social na mediação entre a cultura e o indivíduo e na promoção dos processos interpsicológicos que serão posteriormente internalizados. A intervenção deliberada dos membros mais maduros da cultura no aprendizado das crianças é essencial ao seu processo de desenvolvimento. (p. 105)

A questão que se coloca é como o professor pode realizar essa interferência de forma a ser bem-sucedido na sua função de socializar conteúdos e valores da norma culta, preservando a identidade e a criatividade do seu aluno. Neste ponto, mais uma vez, Vygotsky e Winnicott têm pontos de vista comuns:

Embora Vygotsky enfatize o papel da intervenção no desenvolvimento, seu objetivo é trabalhar com a importância do meio cultural e das relações entre indivíduos na definição de um percurso de desenvolvimento da pessoa humana, e não propor uma pedagogia diretiva, autoritária. Nem seria possível supor, a partir de Vygotsky, um papel de receptor passivo para o educando: Vygotsky trabalha explícita e constantemente com a idéia de reconstrução, de reelaboração, por parte do indivíduo, dos significados que lhe são transmitidos pelo grupo cultural. A consciência individual e os aspectos subjetivos que constituem cada pessoa são, para Vygotsky, elementos essenciais no desenvolvimento da psicologia humana, dos processos psicológicos superiores. A constante recriação da cultura por parte de cada um dos seus membros é a base do processo histórico, sempre em transformação, das sociedades humanas. (Oliveira, 1997, p. 63)

Winnicott trata sempre da abordagem criativa à realidade externa e acredita que só é possível ser original na tradição. Caso contrário, trata-se de submissão, adaptação ou alucinação. A cultura é constitutiva do homem. O ser humano anseia por se desenvolver, por participar e contribuir para o meio social e cultural em que está inserido. Necessita e busca inscrever sua subjetividade na realidade externa, utilizando sua vida imaginativa para transformá-la em objetos significativos. Neste sentido, a aprendizagem escolar e a apropriação de materiais culturais relevantes são experiências buscadas pelo indivíduo. Não se trata de uma imposição do meio social, um corte para os desejos, um mal necessário para produzir o homem civilizado, como pensaram Freud ou Lacan. A cultura, assim como a criatividade que lhe é inerente, é constitutiva e não defensiva e secundária. Ele não compartilha da idéia de que "O esforço de humanização de uma cria humana não se faz sem uma ação exercida pelo adulto sobre a criança, que não seja da ordem de uma imposição, de uma injunção. Portanto, uma ação que merece o qualificativo de violenta" (Kupfer, 1998, p. 130);

Uma violência interpretativa fundante ... caráter necessariamente violento que existe no estabelecimento da lei ... Essa é a violência da Educação, inevitável e estruturante ... A violência simbólica se apresenta ao sujeito a cada instante, a cada passo, em cada situação de aprendizagem, a cada confronto com o limite, com o não, com a morte. (p. 131)

Se considerarmos que a cultura é constitutiva do homem, na sua positividade, e que é ansiada pelo indivíduo, a postura do professor deverá ser diferente da postura daquele que crê que a cultura sempre é imposta ao indivíduo, como uma violência simbólica. Partilhando das concepções winnicottianas sobre o lugar da cultura, refletiremos sobre o papel do professor enquanto facilitador da apropriação criativa da cultura escolar por seu aluno.

Winnicott destaca dois movimentos fundamentais para o ambiente facilitar o encontro do indivíduo com os objetos externos. O primeiro refere-se às funções exercidas pelo meio, que facilitam a construção, pela criança, de um espaço em que pode experimentar brincar e interagir com determinada cultura. Ele denomina "espaço potencial" o lugar de separação potencial entre o mundo externo e o mundo interno, entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva, que pode ser preenchido criativamente.

Na experiência do bebê (da criança pequena, do adolescente e do adulto) mais afortunado, a questão da separação não surge no separar-se, porque, no espaço potencial existente entre o bebê e a mãe, aparece o brincar criativo que se origina naturalmente do estado relaxado. É aqui que se desenvolve o uso de símbolos que representam, a um só e mesmo tempo, os fenômenos do mundo externo e os fenômenos da pessoa individual que está sendo examinada. ... a separação é evitada pelo preenchimento do espaço potencial com o brincar criativo, com o uso de símbolos e com tudo o que acaba por se somar a uma vida cultural. (Winnicott, 1975, p. 151)

A segunda função importante do ambiente é fornecer material cultural relevante para um determinado meio, nas fases apropriadas do desenvolvimento da criança, de acordo com a sua capacidade, idade e necessidades.

Tentaremos refletir, neste texto, sobre como a escola pode desempenhar essas funções em relação ao seu aluno: participar da instauração e ampliação do espaço potencial e apresentar materiais culturais relevantes, de forma que o aluno possa se apropriar deles de forma criativa e singular, preservando sua identidade pessoal e grupal.

Visando discutir a primeira função, referente ao espaço potencial, expomos um resumo do processo de constituição do mesmo, exemplificado através da relação precoce do bebê com sua mãe. Tomamos essa relação como modelo para pensar na relação professor-aluno, que é o foco deste trabalho. Tentaremos, primeiro, desfazer alguns equívocos que uma leitura apressada da obra de Winnicott pode provocar.

A teoria de Winnicott tem sido interpretada erroneamente por aqueles que fazem uma leitura genética, linear e literal de sua obra. Quando ele enfoca a relação mãe-bebê, toma sempre o cuidado de assinalar que o indivíduo está sempre se desenvolvendo e que os processos e mecanismos inerentes às fases primitivas são reeditados nas etapas críticas da vida humana. Os aspectos desenvolvidos podem ser ou não aproveitados nas fases subseqüentes, assim como as experiências que não puderam acontecer precocemente podem, eventualmente, ser experimenta-das em outro momento:

... existe um processo contínuo de desenvolvimento emocional que começa antes do nascimento e prossegue ao longo de toda a vida, até a morte (com sorte) de velhice ... A partir dessa base, podemos estudar as características do processo e os vários estágios em que existe perigo, seja proveniente do interior (instintos), seja do exterior (deficiência ambiental.). (Winnicott, 1987, p. 196)

Como estamos tratando do processo de ensino e aprendizagem, nosso foco será a relação professor-aluno. As abordagens que procuram as causas do fracasso escolar da criança pobre nas suas relações familiares, na carência cultural e no mundo interno da criança foram suficientemente criticadas, não sendo necessário retomarmos essa discussão. Aqueles que, acreditando se basear em Winnicott, culpam a mãe supostamente não "suficientemente boa" da criança pobre estão equivocados. Mais do que um equívoco, é um preconceito que o próprio Winnicott (1975) tratou de desmontar:

Dirigimos nosso olhar em direção à miséria e à pobreza não apenas com horror, mas também com os olhos abertos para a possibilidade de que, para um bebê, ou criança pequena, uma família pobre pode ser mais segura e "melhor" como meio ambiente facilitante do que uma família numa casa encantadora, onde haja ausência das perseguições comuns. (p. 192)

Além disso, a maioria das crianças que fracassam na escola já demonstraram que têm o espaço potencial constituído, são criativas, brincam, dominam com propriedade sua cultura de origem, possuem habilidades e recursos. Suas mães e outras pessoas significativas cumpriram adequadamente o papel de facilitar o acesso à cultura compartilhada por sua família e pelo seu meio. O problema surge quando ingressam na escola e necessitam se familiarizar com a cultura escolar. Várias pesquisas já mostraram a expectativa positiva da criança pobre e de sua família em relação à sua entrada na escola, os projetos e sonhos envolvidos, a esperança de alcançar um lugar social melhor etc. (veja Cruz, 1987).

Retomemos, após as ressalvas necessárias, a discussão sobre as funções ambientais necessárias à constituição e exploração do espaço potencial. Tomemos como exemplo um modelo teórico da relação mãe-bebê nas fases precoces do desenvolvimento, para pensar em semelhanças e diferenças com a relação professor-aluno, em etapas posteriores do amadurecimento do indivíduo.

Pensemos no modelo teórico do bebê que quando nasce ainda não discrimina o mundo externo. Ele sente um desconforto, uma necessidade e encontra o seio, apresentado pela mãe, exatamente no local e no momento em que estava pronto para concebê-lo. Esta experiência lhe proporciona uma ilusão de onipotência. Ele sente que criou o mundo a partir de suas necessidades. É a origem da criatividade e da crença no mundo e em si mesmo. "... Winnicott analisa a passagem das primeiras experiências ilusórias à experiência cultural global em termos de uma teoria do jogo. O futuro da ilusão criadora é a cultura do mundo adulto" (Luz, 1998, p. 162).

Luz mostra como a experiência de ser e criar onipotentemente se passa num espaço de jogo e é uma experiência compartilhada. O ambiente participa da emergência da vida psíquica do bebê ao reconhecê-lo enquanto pessoa. Winnicott utiliza a imagem do rosto da mãe como espelho que reflete o bebê e não suas próprias fantasias. Ainda sobre o brincar no espaço potencial, Luz (1998) acrescenta:

Além disso, a experiência, quando chega a constituir-se, é princípio de singularização - de diferença e de variabilidade - e não de adequação, adaptação, integração ou socialização. A singularidade da experiência se opõe à estrutura generalizante e repetitiva de comportamentos conformistas e autárquicos. (p. 163)

Este artigo nos alerta que somente ao ser criativo o indivíduo pode descobrir a si próprio ao mesmo tempo que descobre o mundo:

... a qualidade potencial do espaço intermediário se manifesta em sua dupla natureza: hiato entre o sujeito e o mundo, constantemente preenchido, porém, pela atividade lúdica. Distância, pois, mas distância percorrida ... A noção de espaço potencial procura dar conta deste movimento de aproximação/distanciamento, união e separação próprio ao jogo e à criação cultural. (Luz, 1998, p. 165)

A característica especial desse lugar em que a brincadeira e a experiência cultural têm uma posição está em que ele depende, para sua existência, de experiências do viver, não de tendências herdadas. Um bebê recebe trato sensível na ocasião em que a mãe está se separando dele, de modo que a área para a brincadeira é imensa; um outro bebê tem uma experiência tão infeliz nessa fase de seu desenvolvimento que lhe dá pouca oportunidade de desenvolver-se, exceto em termos de introversão ou extroversão. (Winnicott, 1975, p. 150)

Partindo destas considerações refletiremos sobre como o professor pode facilitar a interação criativa, e não submissa, do indivíduo com o mundo. Para isso precisa contribuir para ativar, ampliar e explorar o espaço potencial da criança, e até ajudar a constituí-lo, se for preciso. Também deve apresentar ao seu aluno o conhecimento historicamente acumulado, considerado relevante pela escola, no momento e da forma adequada. O professor precisa se preocupar em receber seu aluno, especialmente no início do processo de escolarização e em outras etapas críticas, de forma sensível, preocupado em conhecê-lo melhor e facilitar a transição para a cultura escolar. Falamos de transição, passagem e não de adaptação, submissão e ajuste. Mais do que procurar transmitir conteúdos, impor regras, ajustar a criança à lei da escola, é preciso saber quem é cada aluno. De onde vem? Qual seu ritmo, seu estilo, suas crenças, seus valores, seus hábitos, suas necessidades e concepções? O que já sabe? Como construiu esse saber? Como o utiliza? Onde e como utilizará a cultura escolar? Enfim, olhar para o aluno como um ser humano e não como coisa. Pensar em comunicação entre pessoas e não em transmissão de conhecimento para a recepção passiva do aluno. Procurar investir no espaço potencial entre indivíduo e mundo externo, no processo, na passagem e não valorizar exclusivamente os conteúdos objetivos já construídos. E, principalmente, ouvir seu aluno.

Ao ouvir o aluno, mais do que conhecê-lo melhor, o professor permite que ele se escute, se surpreenda pensando, fazendo, sendo. Facilitar e promover formas variadas de expressão, resgatar a história escolar, fazer perguntas, reconhecer e valorizar o que já foi constituído pelo aluno e identificar os valores e referenciais do seu grupo de origem são funções básicas do professor preocupado com o indivíduo humano (que por ser humano pode e busca aprender). Não estamos propondo nenhuma novidade. Freire falou muito em conhecer e partir da realidade e do referencial do educando. Piaget, Vygotsky, Ferreiro, entre outros, propuseram ao professor partir do conhecimento já consolidado pelo aluno, de suas concepções sobre o conteúdo a ser abordado, para alcançar metas mais complexas.

Com Winnicott falamos que o professor precisa se preocupar em explorar o espaço potencial entre ele e seu aluno, sendo confiável e fidedigno, podendo instaurar um espaço lúdico, relaxado, apresentando informações onde o educando esteja pronto para recriá-las. O paradoxo "criado-encontrado" deve ser contemplado no processo ensino-aprendi-zagem, para que o aluno possa se apropriar de conteúdos relevantes de forma singular e criativa, segundo suas concepções e necessidades. É fundamental que o aluno possa experimentar os conteúdos escolares, inicialmente como objetos subjetivos, criados por ele, para facilitar a transição entre a sua cultura e a cultura escolar. O professor precisa facilitar a transição, ajudá-lo a constituir objetos transicionais com objetos da cultura para depois poder estabelecer uma relação (uso) mais objetiva com a tradição dominante.

Vygotsky afirma: "O único bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento. Os procedimentos regulares que ocorrem na escola - demonstração, assistência, fornecimento de pistas, instruções - são fundamentais na promoção do ‘bom ensino.’" (Citado por Oliveira, 1997, p. 62).

Acreditamos que esse ensino - "demonstração, assistência, fornecimento de pistas" - deve ser apresentado no momento adequado, de forma sensível, contemplando as características singulares e grupais de seu aluno, para se realizar uma aprendizagem significativa e não o ajuste, a submissão, a aquiescência.

Para concluir, traçamos um paralelo com a reflexão de Safra sobre o papel do analista, dizendo que embora este não seja naturalmente devotado, como a mãe comum, está interessado no seu paciente e envolvido com o processo analítico. Esses são os requisitos que o preparam para acompanhar as necessidades e concepções de seus pacientes. Podemos pensar que o professor que pode ver nos seus alunos seres humanos e se interessa por acompanhá-los em seu desenvolvimento, pode movimentar-se em direção a eles e realizar uma comunicação significativa. Cada professor encontrará seu modo de, despido de preconceitos, conhecer seus alunos, oferecer-lhes oportunidades para se expressarem e mostrarem suas necessidades, para ir ao seu encontro.

O professor, ao ler este texto, pode imaginar que desconhecemos a sua realidade, sua classe de 40 alunos, um vasto conteúdo a ser explorado, tarefas burocráticas a serem realizadas, baixos salários, pouco reconhecimento profissional etc. Vivemos, como já assinalamos, em uma realidade social cujo sistema educacional dificulta esse movimento do professor. Insistimos, no entanto, que essa aproximação em relação à rea-lidade do aluno, especialmente no início do processo de escolarização, é possível e desejável. Temos inúmeros exemplos bem-sucedidos de intervenções de professores de escolas públicas brasileiras neste sentido. Além de seu trabalho na sala de aula, no dia-a-dia, para conhecer cada aluno com seu ritmo e estilo, o professor pode contar com inúmeras pesquisas etnográficas sobre a criança pobre. Sabe-se por exemplo, que grande parte dos alunos pobres que freqüentam a escola pública, e nela fracassam, não pertence, originalmente, ao ambiente no qual vivem atual-mente. São migrantes pobres da zona rural nordestina, o que, segundo Oliveira (1983), tem dois aspectos complementares:

de um lado significa ser parte de uma categoria socialmente reconhecida e de outro lado constitui uma dimensão existencial básica para os indivíduos que a carregam consigo, com implicações tanto no nível simbólico como no nível concreto de organização da vida cotidiana. (p. 46)

Além disso, estas pessoas

a orientam suas vidas para atividades conjuntas e interações sociais, e não para projetos individuais. A maioria das soluções para os problemas do cotidiano envolvem outras pessoas e há uma troca permanente de bens entre os indivíduos e as famílias. (p. 46)

Estas e outras informações positivas, conseguidas através de pesquisas etnográficas, em que o pesquisador reconhece, valoriza e participa da construção das habilidades dos indivíduos pesquisados, podem ser úteis ao professor e fazer parte dos seus cursos de formação.

Encerramos lembrando o papel da mãe como espelho que reflete o rosto do bebê, permitindo que este se sinta uma pessoa real, num mundo real, que pode ser mais justo com a sua participação. Para Winnicott, a mãe expressa para o bebê o que ele é e o que ele pode e tem, e não o seu desejo, como diria Lacan. A adaptação da mãe ao ser do bebê instaura sua capacidade de criar, de aperceber o mundo externo e não apenas adaptar-se a ele.

Olhar para o aluno e reconhecer o que ele é, o que ele pode e o que ele já construiu é o primeiro passo que a escola pode realizar no sentido do crescimento e enriquecimento de cada indivíduo e do coletivo. Para que isso possa ocorrer, o professor também precisa ser reconhecido em sua singularidade, portador de características e estilo pessoal. Para respeitar, o professor deve ser respeitado, ter suas necessidades e valores contemplados pela política educacional e voltar a ser valorizado socialmente. E, acima de tudo, precisa ser olhado como pessoa, para poder olhar para os seus alunos também como pessoas. Talvez seja essa a contribuição que o psicólogo pode oferecer à educação.

Freller, C. C. (1999). Thinking with Winnicott on Some Important Aspects of the Process of Teaching and Learning. Psicologia USP, 10 (2), 189-203.

Abstract: The social mechanisms and the educational practices that lead to school failure have been thoroughly studied in the last decades. Observing schools and interviewing teachers we realized a growing "thing-ification" of the teacher and the student. When they are deprived from what is more personal and meaningful as their style, rythm and values, they take part in the educative process in a mechanical, repetitive and submissive way. We reflect upon the phychologist role as a professional who can rescue, recognize and valorize the individual, his/her communication needes (teach and learn) and his/her potential to it, being part of the re-creation of the school culture in a creative and singular way.

Index terms: Teacher student interaction. Academic failure. Learning. Creativity. Public school education. Children. Winnicott, Donald, W.

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    Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
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