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Processo artístico e processo psicanalítico: pensando com Morgan, Warhol, Herrmann e Freud

Processus artistiques et psychanalytiques : Morgan, Warhol, Herrmann et Freud

Proceso artístico y proceso psicoanalítico: Morgan, Warhol, Herrmann y Freud

Resumo

Há processos artísticos análogos a interpretações psicanalíticas? Para pensar esta questão, tomo séries fotográficas sobre dança produzidas por Barbara Morgan, depois apropriadas por Andy Warhol em serigrafias, e as considero como um único “caso clínico”. A análise desses processos artísticos, tomados em conjunto, dispara uma discussão sobre suas semelhanças com o processo interpretativo de uma psicanálise, instigando o pensamento sobre como e por que a disciplina psicanalítica é relevante para o campo das artes, para a crítica de arte e possivelmente também para as ciências sociais e humanas. Esta ideia é muito diferente daquela mais comum que se tem de “aplicar” as teorias psicanalíticas conhecidas ao estudo de obras de arte (entre outras relações que são feitas entre as duas áreas, mas que me parecem simplistas e metodologicamente incompatíveis). Apontam para esta articulação as conceituações dos psicanalistas brasileiros Fabio Herrmann e João Frayze-Pereira, entre outros autores.

Palavras-chave:
psicanálise; interpretação; arte; fotografia; psicanálise brasileira

Résumé

Les processus artistiques peuvent-ils être analogues à une interprétation psychanalytique ? Pour réfléchir à cette question, je considère les séries photographiques de danse produites par Barbara Morgan, puis appropriées para Andy Warhol dans ses sérigraphies, et je les considère comme un seul « cas clinique.» L’analyse de cet ensemble de processus artistiques se développe dans une discussion sur leurs similarités avec le processus interprétatif de la Psychanalyse, en incitant à réfléchir comme et pourquoi la discipline psychanalytique est pertinente pour le domaine artistique, pour la critique d’art, et possiblement aussi pour les sciences sociales et humaines. Cette idée est très différente de celle plus courante « d’appliquer » des théories psychanalytiques connues à l’étude des œuvres d’art (entre autres relations simplistes et méthodologiquement incohérentes qui sont faites entre les deux domaines). Les contributions conceptuelles des psychanalystes brésiliens Fabio Herrmann et João Frayze-Pereira, bien comme d’autres auteures, soulignent cette articulation.

Mots-clés:
psychanalyse; interprétation; art; photographie; psychanalyse brésilienne

Resumen

Existen procesos artísticos análogos a la interpretación psicoanalítica? Para pensar sobre esta cuestión, considero las series fotográficas de danza producidas por Barbara Morgan, y después apropiadas como serigrafías por Andy Warhol, y las tomo como un “caso clínico” único. El análisis de ese par de procesos artísticos plantea una discusión sobre las semejanzas con el proceso interpretativo del Psicoanálisis, que instiga a desarrollar sobre cómo y porqué la disciplina psicoanalítica es relevante para el campo artístico, para la crítica de arte y posiblemente para las ciencias sociales y humanas. Esta idea es muy diferente de la idea más común de “aplicar” teorías psicoanalíticas conocidas a obras de arte (entre otras relaciones simplistas y metodológicamente incompatibles que se formulan frecuentemente entre las dos áreas). Se utilizan en esta investigación conceptualizaciones de los psicoanalistas brasileros Fabio Herrmann y João Frayze-Pereira, además de otros autores.

Palabras clave:
psicoanálisis; interpretación; arte; fotografía; psicoanálisis brasilero

Abstract

Can an artistic project be treated as analogous to a psychoanalytic interpretation? To explore this question, this article considers Morgan’s series of dance photographs, later appropriated by Andy Warhol as silkscreen prints, as a single “case study.” The analysis of this pair of artistic processes develops into a discussion of their similarities with a psychoanalytic interpretive process, thus serving as a “testing ground” to consider how analytic interpretation may prove relevant to artists and art critics. This differs from the more common idea of incorporating psychoanalytic theories into the analysis of art (among other simplistic and methodologically incoherent applications of one of these fields to the other). The article draws upon the theoretical contributions of Fabio Herrmann. João Frayze-Pereira’s ideas of the intrinsic relationship between Art and Psychoanalysis are implied.

Keywords:
psychoanalysis; interpretation; art; photography; Brazilian psychoanalysis

Processo artístico e processo psicanalítico: Morgan, Warhol, Herrmann e Freud

Podem alguns processos artísticos ser considerados como interpretativos, no sentido psicanalítico do termo? Estou pensando interpretação como processo de investigação e cura da psique do homem e do mundo, não como as falas de um analista trabalhando com seu paciente no consultório. Estas, que o autor brasileiro Fabio Herrmann jocosamente chamou de sentenças interpretativas, fazem parte do processo mas são seu resultado: não são o motor do processo. Esclareço este ponto já de início, posto que se trata de uma confusão frequente. Para considerar a possibilidade dessa analogia entre processo artístico e interpretação psicanalítica, analisarei um caso do campo da arte que tomo como “caso clínico”, no sentido de compor o “outro” com que pude “dialogar” nesta teorização. Claro que processos artísticos tornados obra não “falam”, como faz um paciente no consultório, mas possuem história e o registro dessa história, e foram esses indícios que permitiram trabalhar interpretativamente com o “caso”: seus indícios são sua maneira de “falar”.

O caso em questão está composto das séries fotográficas da dança de Barbara Morgan, produzidas entre 1935 e 1940, que têm como tema as danças da norte-americana Martha Graham e seu grupo, e as serigrafias de Andy Warhol de 1986Warhol, A. (1986). Letter to the world (The Kick), from the Martha Graham Series. Pittsburg: The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc., criadas a partir das fotografias e conhecidas como Martha Graham Series (Figuras 1 e 2). Eis um famoso exemplo de fotografia de Morgan, seguida da serigrafia de Warhol, para que o leitor possa melhor visualizar o “caso clínico” em questão:

Figura 1
Barbara e Willard Morgan, fotografias e documentos

Figura 2
Arte e Imagem

Adianto desde já que as séries fotográficas de Morgan investigam os sentidos das danças de Graham. Já Warhol evidencia um projeto que se opõe ao de Morgan, inclusive no título da sua série: não menciona Morgan, mas sim a artista fotografada, como que “apagando” o ato fotográfico e promovendo uma indistinção entre a dançarina e sua imagem; é o caminho da iconização da artista da dança. Vale lembrar também do efeito paradoxal da serigrafia de Warhol nos anos 1960: ao levar a repetição ao extremo, produziu novidade, e sua técnica é considerada como revolucionária no campo das artes do século XX. Entretanto, o Martha Graham Series de 1986 é representativo não de seu ato revolucionário, mas do momento em que ele retorna à técnica criada nos anos 1960, uma repetição da repetição, o que também dará o que pensar. Em minha análise, levarei em consideração tanto os processos criativos dos dois artistas individualmente - descritos em entrevistas que eles deram muitos anos depois e também pela crítica de arte - quanto os resultados desses processos, que são as obras de arte propriamente ditas, embora esses dois momentos não devam ser confundidos.

Essas duas obras dos respectivos artistas, pensadas em conjunto, instigam o pensamento acerca das semelhanças com a interpretação psicanalítica entendida como processo e, apenas em menor medida, como produto. Este “caso clínico” serve para analisar uma das maneiras pelas quais a interpretação psicanalítica é relevante para a Arte, diferente da ideia mais comum que se tem de uma aplicação das teorias psicanalíticas conhecidas às obras de arte: ao contrário, nesta comparação é a arte e os processos artísticos que informam o fazer da Psicanálise. Primeiro, detalharei um pouco mais o que quero dizer com intepretação psicanalítica, explicando a diferença com outras maneiras comuns de entender o que é uma psicanálise; 1 1 Como Herrmann, tenho escrito Psicanálise com p maiúscula para me referir da ciência futura ou da disciplina psicanalítica; tenho usado a p minúscula para falar de psicanálises como casos clínicos ou da forma adjetivada desse termo. depois disso, retornarei aos processos artísticos em questão para pensá-los paralelamente ao fazer clínico do psicanalista que, assim como os artistas, também se propõe a encontrar (ou produzir) os sentidos do homem e do mundo.2 2 Destaco que minha formação como pesquisadora no campo da interpretação psicanalítica da arte bebeu dos textos de João Frayze-Pereira (2004, 2007 e 2009), particularmente de sua ideia de uma psicanálise implicada. Também fui influenciada pela minha relação pessoal com esse autor, que foi meu orientando no doutorado e meu supervisor no pós-doutorado. Nossa relação, portanto, conta mais de dez anos. Como se sabe, Frayze-Pereira é especialista em nosso meio no pensamento sobre Arte e Psicanálise. Já para pensar o que é psicanálise, apoio-me nas definições de interpretação psicanalítica e de método psicanalítico de Fabio Herrmann (1979/2001 e 2001), que tomando a Psicanálise como ciência artística, sustenta uma relação de imbricamento entre arte e Psicanálise. Dessa forma, não identifico as ideias de método e processo artístico, mas trabalho proximamente com ambas. Ressalto que as formas de pensar de Frayze-Pereira e de Herrmann terminaram também por imbricar-se nos meus textos.

Interpretação psicanalítica

Em um estudo como este, vale pensar o que a Psicanálise não é? Entendidas frequentemente, por exemplo, como coleção de “teorias prontas”3 3 Coloco entre aspas para enfatizar que entendo como equívoca esta maneira de conceber o que é uma teoria. criadas por Freud, Klein, Bion, Winnicott, e/ou Lacan, entre outros - dentro e fora da Psicanálise -, tais teorias são tomadas como esquemas interpretativos, às vezes como dogmas. Entretanto, esse entendimento parece-me autocontraditório. Uma consulta rápida a qualquer dicionário revela que a definição de teoria não compreende fatos inalteráveis.

Neste estudo, considerarei o que é uma psicanálise de outro ângulo - como um método, no sentido desvelado pelo psicanalista brasileiro Fabio Herrmann (l979/2001Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.)4 4 Fabio Herrmann (1944-2006) foi psiquiatra, psicanalista, autor e pensador brasileiro. a partir de Freud (1924/2011Freud, S. (2011). Resumo da Psicanálise. In Obras Completas Sigmund Freud (P. C. D. Souza, trad., Vol. 16, pp. 222-251). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)) - e as psicanálises como processos. Esta compreensão enfatiza o que acontece numa relação analítica com paciente(s) e/ou com aspectos do mundo em estudo5 5 Análises não se limitam a processos interpretativos com pacientes (pessoas). Desde Freud, não é assim. Embora uma fração considerável dos textos freudianos seja de casos clínicos com pacientes, mais da metade de seus textos investiga objetos variados, como a religião, o cotidiano, os textos literários e as obras de artes, entre outros. . É certo que processos interpretativos podem desenvolver-se em teorias6 6 Ou prototeorias, conforme o termo de Fabio Herrmann (2001, p. 80). , hipóteses que auxiliam no entendimento de situações específicas. Mas tais hipóteses não podem ser tomadas como fatos. São provisórias, e estão sempre em risco de se perder ou de, no transcurso do próprio processo, serem substituídas. Eis uma característica central da Psicanálise, nos diz a Teoria dos Campos (nome pelo qual ficou conhecido o pensamento de Fabio Herrmann). Daí: processo interpretativo, não sistema de correspondências.

Neste sentido, uma psicanálise é o processo por meio do qual se obtém resultados, não os próprios resultados obtidos. Ela é viva, um fazer em andamento, diferente das palavras que o analista usa ao explicar uma ideia, geralmente a um paciente, mas também aos seus pares, num livro, ou para si mesmo, etc.7 7 Para complicar um pouco mais, é comum os psicanalistas usarem o termo interpretações para falar do produto delas. Mas a ideia é lembrarmos que esta é uma acepção menor do termo. Estas palavras, que o psicanalista usa, ou o produto do processo interpretativo, o sempre irruptivo Fabio Herrmann (2001Herrmann, F. (2001). Andaimes do Real: o método da Psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1979)) designou sentenças interpretativas. Irônico, como era seu costume, com esse nome o autor, sem dizê-lo explicitamente, aproxima as falas do analista de uma sentença de morte. De fato, tais falas podem assim ser caracterizadas sempre que denotem o contrário de uma pesquisa viva.8 8 Marilsa Taffarel (2005), por exemplo, baseia-se em Herrmann ao falar da importância das sentenças interpretativas para sustentar as representações do paciente quando, por exemplo, advém uma desestabilizadora ruptura de campo, momento central do processo interpretativo, em que as antigas representações do paciente são abaladas e as novas ainda não se assentaram, produzindo-se um vórtice nas representações do paciente, isto é, na maneira como ele está no mundo. Entretanto, advertira Herrmann em 2003, numa fala sobre a clínica extensa publicada em 2005: tal segurança é muitas vezes falsa. No caso da clínica padrão, de teorias prontas, em que o psicanalista pode sentir-se relativamente confortável, ele se assemelha ao marinheiro que durante um naufrágio, na tentativa de segurar-se em qualquer coisa, agarra-se a uma âncora, e acaba por se fixar no fundo do mar.

Esta maneira de entender a interpretação analítica não é sem precedentes. Ela está alinhada com a definição de Freud de 1924: a Psicanálise como investigação clínica e, simultaneamente, como cura a que se chega através de um processo intangível. Freud assim definiu a Psicanálise; entretanto, sendo o autor prolífico que era, também a definiu de outras maneiras. Ao aproximar-se do problema da interpretação por diversos ângulos, Freud ofereceu diferentes versões do que é uma interpretação. A acepção com que estou trabalhando não é, portanto, a única explorada por ele; talvez por isso muitos psicanalistas e estudiosos da Psicanálise, ou mesmo leigos, confundem interpretação, enquanto processo vivo, com os processos interpretativos já concluídos, que já se deram; isto é, com as falas do analista ou com as teorias de autores psicanalíticos consagrados.

Herrmann seguiu especificamente nesta linha da teorização freudiana, que pensa a interpretação como uma “inusual combinação” que “servia simultaneamente à pesquisa e à eliminação da enfermidade” (Freud, 1924/2011Freud, S. (2011). Resumo da Psicanálise. In Obras Completas Sigmund Freud (P. C. D. Souza, trad., Vol. 16, pp. 222-251). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924), p. 227)9 9 Em sua tese de doutorado, Taffarel (2005) delonga-se nesta explanação. . Dedicou mais de trinta anos de sua carreira, dez livros e centenas de artigos, a pôr em palavras o que a interpretação psicanalítica é, como ela funciona e a descrever a cura10 10 Herrmann toma o termo a partir de Heidegger, para quem cura tinha o sentido de preocupação ou cuidado, do alemão die sorge. (Herrmann, 2001, p. 177) possível pelo processo interpretativo. Embora Herrmann tenha discutido constantemente nesse período (e, aliás, textos inéditos seus continuam a ser publicados11 11 Nesse sentido, estou traduzindo e organizando seu livro mais popular e introdutório, a ser publicado pela State University of New York Press em 2020. Também conterá uma antologia de seus artigos, em sua maioria inéditos inclusive em língua portuguesa. ), o problema da interpretação, o miolo de sua conceituação, não se alterou ao longo das décadas, e tampouco ela se tornou contraditória no transcorrer da obra. Na verdade, seus conceitos se desenvolvem ou se abrem como “galhos de uma árvore” (L. Herrmann, 2004/2007Herrmann, L. (2007). Andaimes do Real: a construção de um pensamento. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 2004), pp. 11-24), na metáfora escolhida por sua herdeira intelectual, Leda Herrmann. Novos ângulos são examinados nos diversos livros do autor. São oferecidos outros exemplos e reexaminados antigos, mas o autor não oferece possibilidades incompatíveis - diferente do que acontece, por exemplo, na obra de Freud.

Numa tentativa de resumir as ideias de Herrmann sobre o processo interpretativo, cito seu “Da interpretação na Teoria dos Campos: condições e consequências”, de 1994, publicado como capítulo de livro em 1995. O texto, assinado por Herrmann e Leda12 12 Tenho optado por utilizar o primeiro nome de Leda e reservar o sobrenome Herrmann para me referir ao marido. , fala das maiores dificuldades do analista em descrever o processo interpretativo. Afinal, como a interpretação desvela sentidos inconscientes? Esta é uma dúvida que um estudioso da Psicanálise pode exigir esclarecer. E ainda: sendo que as interpretações se referem a material não observável - porque inconsciente - como saber se uma interpretação está “correta”?

O caminho trilhado por Herrmann, em sua obra, é o de desenvolver conceitos psíquicos que funcionam logicamente, embora sejam necessariamente intangíveis, inobserváveis empiricamente. Seus resultados podem muitas vezes ser verificados na clínica, mas o método em si não é diretamente observável. Os conceitos auxiliam na imaginação de como um processo psíquico opera, e os efeitos do ato interpretativo podem ser observados no trabalho clínico, principalmente com pacientes em consultório. Nas palavras de Herrmann e Leda (1994/1995Herrmann, F. & Herrmann, L. (1995). Da interpretação na Teoria dos Campos: condições e consequências. In J. O. Outeiral & T. Thomas (Orgs.), Psicanálise brasileira: brasileiros pensando a Psicanálise (pp. 30-39). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1994)):

A interpretação é o centro de nosso ofício; todavia, como todo centro e toda essência, uma espécie de deslizamento ou fuga afeta a interpretação psicanalítica. Estamos sempre tentados a fazer outra coisa, por um lado, e, por outro, nada é mais obscuro em nossa técnica que determinar o ponto exato onde operou uma interpretação: que palavras, que reticência, até mesmo que silêncio a pode ter desencadeado. A Teoria dos Campos tem procurado determinar o mecanismo metodológico da interpretação, superando a solução simples, porém precária, que consiste em confundir o ato interpretativo com uma sentença explicativa que, à sua vontade, o analista pode interpolar no discurso do paciente. … Sintetizar as contribuições da Teoria dos Campos à interpretação psicanalítica mostrou-se para nós, entretanto, tarefa mais difícil do que inicialmente parecia. . . . [E] o que é mais sério: a Teoria dos Campos, para nós, é antes de mais nada uma forma de pensar, e só muito mais remotamente o conjunto de conceitos que exprimem esta forma. (pp.l 30-31)

Certamente que interpretações são verdades, mas apenas relativamente ao processo que as engendrou. Na tensão entre invenção e descoberta - diz Herrmann (2012Herrmann, F. & Herrmann, L. (2012). Sobre a verdade como tensão entre invenção e descoberta (I//V//D). Revista Brasileira de Psicanálise, 46(3), 65-77.), num texto publicado postumamente - as verdades interpretativas apresentam algo da relação do par analítico, especificamente sobre o momento em que o processo analítico se encontra, embora esta relação tenda a se transformar ao longo do tempo.

Estas descrições do que é e como funciona a interpretação psicanalítica podem tornar intuitiva uma analogia entre o processo psicanalítico e alguns fazeres artísticos. Afinal, tanto processos da arte como da Psicanálise dizem respeito ao homem no mundo. Se tal analogia se verificar, é provável que algumas colaborações artísticas sejam mais comparáveis ao processo analítico que outras. Pesquisei essa hipótese a partir das fotografias sobre dança de Barbara Morgan, apropriadas artisticamente por Warhol, como destaquei anteriormente. Tomando o livro Martha Graham: sixteen dances in photographs by Barbara Morgan [Martha Graham: dezesseis danças em fotografias de Barbara Morgan], de 1941, que depois foi revisado, expandido e republicado em 1980, e as serigrafias Andy Warhol produzidas em 1986, investiguei se esses processos artísticos são semelhantes a um processo psicanalítico e em que medida isso é verdade (ou vice-versa, sendo o processo artístico muito mais antigo que o psicanalítico).

Poéticas

Barbara Morgan fotografou Martha Graham e seu grupo de dança durante cinco anos com o intuito de produzir narrativas visuais. Desenvolveu uma metodologia meticulosa para seus ensaios, tendo nesse tempo a fotografia como meio. Ela explica numa entrevista concedida em 1978 que objetivava desvelar o que chamou de essência de cada dança (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York., p. 45). Essa essência é que pensaremos se se assemelha a uma interpretação criada com as dançarinas, produzindo sequências fotográficas representativas de cada dança.

Pouco antes de ser lançada a segunda edição de seu livro de fotografia da dança - mais precisamente em 1978 e, depois, em por volta de 1980 - Morgan deu dois testemunhos descrevendo como obteve seus resultados fotográficos e qual a natureza de sua colaboração com Graham e seu grupo para produzir as séries. Um desses depoimentos, a entrevista de 1978, foi transcrita em 91 páginas e está guardada como arquivo único, que não circula, no Columbia Center for Oral History, na Universidade de Columbia, conforme a solicitação da própria Morgan e de sua família. A ideia era que a transcrição contribuísse para o que se tornaria o Bennington Summer School of the Dance Project, que resultaria num livro sobre a história das danças moderna e pós-moderna americanas, mas o projeto jamais se concretizou13 13 A historiadora da dança e professora Lynn Garafola me passou esta informação na Universidade de Columbia em 2016. . O segundo testemunho foi comercializado, mas limitadamente. Trata-se de um documentário produzido pela Checkerboard Foundation, uma pequena produtora independente, cujo nicho de pesquisa são as artes dos EUA. O documentário intitula-se Barbara Morgan: everything is dancing e contém uma sucinta entrevista com Morgan.

Comparados os dois depoimentos, nota-se que no filme e na entrevista transcrita frases de Morgan se repetem. De fato, são quase idênticas. Sendo improvável que os editores do filme e os transcritores da entrevista estivessem em contato - já que, além de Morgan, não eram as mesmas pessoas que estavam envolvidas nos dois projetos -, essa simetria parece indicar que os documentos podem ser tomados praticamente como fontes primárias, que reproduzem o que a artista de fato disse14 14 Também atesta a autenticidade da transcrição o fato de terem sido anotados inclusive detalhes como “preparou um chá”. Além disso, o documentário é um pouco posterior e a transcrição não circula. .

É com base no que ela explica nessas entrevistas, além da análise das obras, que se nota a meticulosidade da metodologia de produção das imagens que Morgan utilizou para chegar nas suas condensações representativas das danças. Em síntese, ela assistia repetidamente os ensaios e apresentações de dança, testando fotografias aqui e ali, um tanto quanto intuitivamente. Ao fazê-lo, há evidências tanto na autobiografia de Graham (1991Graham, M. (1991). Blood memory: an autobiography. New York: Doubleday.) como no depoimento de Morgan (1978) de que ela, mesmo que não intencionalmente, contribuía como o processo coreográfico da dançarina.

O segundo passo desse processo se gerava durante o primeiro. Ao assistir as coreografias e ensaiar as fotografias, surgia para Morgan uma ideia sintética, um germe dos sentidos que ela buscaria apreender nas sequências fotográficas de cada dança. Até as imagens mentais se formarem, a fotógrafa explica que ela observava a dançarina, o grupo, a coreografia sendo criada e aguentava firme. Nas palavras dela: “fazia nada” esperando que “as memórias flutuassem em sua memória” (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York., p. 52) Morgan permitia que se formasse uma ideia clara em sua mente, uma interpretação visual. E ela complementa, “Eu não era intelectual naquele momento”; uma imagem condensada se formava em sua mente, que ela então buscaria capturar usando uma máquina fotográfica. Morgan explica que se inspirava no que se repetia na dança, nos movimentos que se repetiam na coreografia, assim começando a traduzir dança em fotografia. Morgan era receptora da dança, no sentido dado por Iser.15 15 De acordo com a teoria da recepção, a obra de arte requer um receptor que se dirija a ela, que a interrogue, que a explique. Não porque a sua será uma interpretação última, mas porque poderá revelar-se como uma interpretação possível. Principalmente, porque a sua elucidação será um germe de comunicação entre receptor e obra, sem o qual ela poderia ser relegada, inclusive esquecida, como a odradek kafkiana. As obras de Herrmann requerem recepção: de um lado, justamente para prevenir tal esquecimento e, de outro, para concretizá-la (konkretisiert), no sentido dado pela Escola de Constância. É certo que a Escola de Constância referiu-se à arte literária, mas a ideia lançada é facilmente traduzível para as artes plásticas. Nas palavras de Wolfgang Iser, “The reading process: a phenomenological approach”, o texto: “. . . só adquire vida quando é concretizado. . . . A convergência entre o texto e o leitor traz a obra literária à existência” (p. 279, itálicos meus). Ela produzia o que, segundo sua recepção, era a essência da dança.

Com uma imagem em mente, Morgan voltava ao estúdio fotográfico tendo as dançarinas agora como modelos, e trabalhava para representar suas imagens mentais como séries fotográficas. Experimentava com a luz e o cenário até produzir artificialmente o efeito desejado: isto é, para criar a imagem que se formara para ela no seu contato com a dança. Claro que esta, como todas as anteriores, também era uma fase experimental, assim como a observação e o encontro da “essência” daquela dança. Morgan não sabia exatamente como a imagem que ela criara mentalmente seria representada no estúdio, ou se seria uma imagem viável como fotografia. Podia acontecer algo bastante diferente na prática. Por fim, o resultado como fotografia revelada também guardava surpresas.

Ao trabalhar no estúdio, Morgan pesquisava exaustivamente as possibilidades técnicas para cada imagem e, principalmente, as diferentes conotações das direções da luz e suas intensidades. Nas palavras do pesquisador da arte especializado em Barbara Morgan, Brett Knappe (2008Knappe, B. (2008). Barbara Morgan’s photographic interpretation of American culture. Tese de doutorado, Department of the History of Art, University of Kansas, Kansas., pp. 42-44), ela usava a luz para criar alegoricamente um sentido. Morgan não descreveu seu trabalho como interpretativo nem na transcrição da longa entrevista nem no documentário curto, mas frequentemente se referia às suas fotografias como “poemas visuais” ou “meus poemas” (Knappe, 2008Knappe, B. (2008). Barbara Morgan’s photographic interpretation of American culture. Tese de doutorado, Department of the History of Art, University of Kansas, Kansas.; Morgan, 1978; Patnaik, 1999Patnaik, D. (1999). Barbara Morgan. In Barbara Morgan: Master of Photography series (Aperture Masters of Photography, pp. 5-10). New York: Aperture.); seu envolvimento emocional no projeto de fotografar a dança é, para mim, muito claro.

Nesse sentido, não é à toa que Morgan fotografava em preto e branco. Ela explica que fazia isso para que seu produto tivesse mais durabilidade (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York.); afinal, seu propósito era preservar as imagens da dança efêmera de Graham. “Fotografias coloridas desbotariam muito mais rapidamente” (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York., p. 46), diz ela. Se nos anos 1930, Morgan tivesse a tecnologia disponível em 1978, ela explica que teria feito imagens coloridas (1978, p. 48). Claro que, nesse caso, o resultado seria completamente outro, que só poderíamos analisar se tivesse acontecido.

Morgan, no entanto, além dessa explicação, oferece outro motivo para ter optado pelo branco e preto: diz que enfatizava o que chama de essência das danças - em contraposição, por exemplo, à apresentação de detalhes das vestimentas ou da cenografia - ao permitir o jogo com luz e sombras. Em suma, parece-me evidente tanto do ponto de vista das explicações quanto das séries fotográficas de Morgan como produto de seu processo, que ela cria imagens interpretativas da dança, além de produzir imagens que têm interesse para a história dessa arte.

O processo de produção artística de Andy Warhol, por sua vez, caracteriza-se pela rapidez com que trabalhava a iconização do assunto representado, isto é, a transformação do tema, frequentemente pessoas célebres, em imagens dessubstancializadas. Na Martha Graham Series, o assunto deixa de ser a dança como narrativa, estudada por Morgan nas imagens de que Warhol se apropria, e se torna a dançarina Martha Graham tomada como ícone. E mais: tendo essa série sido produzida muito depois da reviravolta warholiana dos anos 1960, quando o projeto de incorporar o industrial à arte e à alta cultura já havia se exaurido, o trabalho, visto como objeto de arte, já não era inovador.

Assim como nas serigrafias dos anos 1960, na Martha Graham Series Warhol persegue o objetivo paradoxal de fazer produção em massa. Paradoxal porque, ao mesmo tempo que Warhol se mantém artista - e não qualquer um, mas um dos maiores do Estados Unidos no século XX. Mas ao mesmo tempo ele explica que queria que sua arte se tornasse tediosa (boring) (Foster, 2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP., p. 110, tradução nossa). E diz almejar que ela fosse facilmente reproduzível. Em suas palavras: “Não quero que [minhas serigrafias] sejam essencialmente iguais - quero que sejam exatamente iguais. Porque quanto mais se olha a mesma coisa, mais o sentido se esvaece e você vai se sentindo cada vez mais vazio e cada vez melhor” (Foster, 2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP., p. 110). E ele diz ainda: “Gosto de coisas que entediam” (Foster, 2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP., p. 110).

Foster está citando uma famosa entrevista que aparecera no ARTnews, divida em duas partes. A primeira foi publicada em novembro de 1963 e a segunda em fevereiro de 1964. Em 2018, a doutoranda Jennifer Sichel da Universidade de Chicago publicou uma nova transcrição da entrevista, na íntegra, valendo-se para isso das fitas cassetes originais, segundo ela explica. Ela diz que os artigos dos anos sessenta, publicados na ARTnews, estavam cheios de erros. Traduzo, portanto, um trecho da transcrição dela, em que se lê “todo mundo devia ser uma máquina. . . . Seria maravilhoso se as pessoas fizessem silkscreens e, como resultado, ninguém mais soubesse quais imagens são minhas e quais de qualquer outra pessoa” (Warhol, 1963/2018, pp. 4, 13). A entrevista, em seu todo, é esclarecedora. Em si, o simples uso que Warhol fez da técnica de impressão em serigrafia já escancara seu objetivo de trazer algo do industrial e reiterativo à pintura. Embora se trate de um processo manual, a serigrafia é uma técnica de reprodução de imagens. Tanto era esta sua intenção que entre 1962 e 1984, por exemplo, em vez de se referir ao seu ambiente de trabalho como ateliê, Warhol dizia que trabalhava numa fábrica.

O Martha Graham Series foi produzido pouco antes do falecimento de Warhol. A essa altura, embora continuasse a produzir serigrafias por encomenda, já fazia muito tempo que ele perseguia novos objetivos artísticos. Veremos que o lugar que o Martha Graham Series ocupa na sua obra é inteiramente outro: nem encomenda, nem parte da revolução artística. Não por acaso, a série Martha Graham recebeu pouca atenção da crítica e dos historiadores de artes; raramente ela é mencionada nos textos críticos e acadêmicos: é considerada uma obra menor. De fato, a impressão que se tem é de um trabalho produzido às pressas e, certamente, descontextualizado do conjunto da obra desse artista.

Comparando as duas poéticas, vê-se que, enquanto Morgan usou o meio fotográfico para encontrar o sentido e/ou produzi-lo - muito embora esse meio artístico tenha sido frequentemente definido, por exemplo por Benjamin (1935/1969Benjamin, W. (1969). The work of art in the age of mechanical reproduction. In W. Benjamin, Illuminations: essays and reflections (H. Zohn, trad.). New York, NY: Schocken. (Trabalho original publicado em 1935)), como o meio da repetição -, Warhol se mantém num meio tradicional da história da arte, a pintura, e incorpora a ela o padrão industrial, a repetição quase idêntica que, ao duplicar, virtualiza a imagem. Cria segundo Foster (2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP.) e Krauss (1985Krauss, R. e Livingston, J. (1985). L’amour fou: photography and surrealism. New York, NY: Abberville.) o estranho, pois a imagem já não se assemelha à realidade.

Também é possível dizer que, enquanto Morgan perseguiu e recriou os sentidos de cada dança, Warhol os apagou. Morgan usa o processo fotográfico para captar o que ela chama de “essência” de cada dança e para transmiti-la por meio de séries de imagens. Já Warhol usa a pintura, tradicionalmente dissociada da reprodução mecânica e nela introduz a técnica da serigrafia, mecânica e automática. Ao fazê-lo, utiliza um meio artístico para problematizar a mesmice da vida contemporânea.

Hal Foster (2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP.) descreve o que ele chama uma “multiplicidade do sem afeto” nas obras de Warhol, que cria personagens, porém enquanto ícones não mais inteiramente humanos:

A multiplicidade cria o paradoxo warholiano não apenas nas suas imagens, que são tanto afetivas como sem afeto. Cria-o também no observador, que não se sente nem inteiro, como é o ideal da maioria das estéticas modernas (o sujeito se torna inteiro pela contemplação), nem tampouco dissolvido, como acontece por efeito da cultura popular [americana] (em que o sujeito vê-se entregue às intensidades esquizoides do espetáculo). (p. 120)

Enquanto o projeto de Morgan persegue a essência de cada dança, dando ou criando sentido, Warhol chega a esse paradoxo do vazio na vida e na arte.

As fotografias

Vimos que o projeto inicial de Morgan, de que as séries de imagens fossem representativas de cada dança, como acontece no trabalho Martha Graham: sixteen dancces in photographs by Barbara Morgan, foi transformado deliberadamente por Warhol em uma série de ícones. Qual é o sentido dessa transformação?

Discutirei esta questão com base em algumas fotografias de Morgan e nas serigrafias feitas por Warhol a partir delas. Por uma questão financeira e também de espaço no artigo, não pude reproduzir na íntegra as séries fotográficas de Morgan. É irônico porque o trabalho de Warhol propicia justamente a “commoditização” da imagem de Graham, em detrimento da reprodução das narrativas da dança pretendida por Morgan nos anos 1930. De qualquer maneira, incentivo o leitor a procurar o livro de Barbara Morgan e percorrer com ela essas narrativas visuais. Minhas reproduções, na verdade, servem apenas para ver como Warhol modificou imagens específicas de Morgan.

Retomemos as imagens já reproduzidas neste artigo. Trata-se das imagens mais icônicas de Morgan. A fotografia de Morgan representa a dança Letter to the World, que estreou em 1940 (Figura 1). Em seguida, a serigrafia de Warhol feita a partir da fotografia de Morgan (Figura 2).

Morgan usa os efeitos dramáticos da luz e do cenário para contribuir com sua narrativa nessa imagem. Já a serigrafia de Warhol é plana, sem profundidade. É “estranha”, como qualificada anteriormente, porque suscita a seguinte indagação: o ícone é mulher ou é imagem? Já era imagem na fotografia de Morgan, é bem verdade, mas a obra de Warhol escancara esta problemática. A representação16 16 Sendo representação um conceito psicanalítico amplamente discutido por Herrmann, quando refiro-me a fotografias prefiro o termo metarepresentaçãos, isto é, imagens visuais de representações humanas, no caso da cena artística (Sofio, no preloa). parece ter se transformado em pura imagem, ressurge como que descarnada. Além disso, retirada de seu contexto original, que era a série fotográfica, certamente a imagem deixou de representar um momento de uma dança, que necessitava das outras imagens da mesma série para ser contextualizada. A Martha Graham Series aglomera cenas de diferentes danças, sem discriminar qualquer contexto.

Além disso, ao contrário do preto e branco e o jogo de luzes que descrevíamos, as cores de Warhol são artificiais e quase florescentes. A imagem de Warhol foi editada a partir da fotografia original, simplificada antes de se tornar serigrafia. A dançarina, por exemplo, aparece em zoom, e foi eliminado o efeito dramático da luz e do cenário, presentes na fotografia original. Os tons elétricos e a pincelada sem densidade lembram tiras de quadrinhos, e Graham foi transformada num objeto-commodity.

O mais significativo talvez seja que Morgan não incluiu esta imagem em seu livro de 1941, como bem assinala Brett Knappe (2008Knappe, B. (2008). Barbara Morgan’s photographic interpretation of American culture. Tese de doutorado, Department of the History of Art, University of Kansas, Kansas.). Penso que isso aconteceu porque ela não cabia na narrativa da dança que a fotógrafa estava criando, que precedia o que, a partir de Warhol, entendemos como ícone. A narrativa era a realidade, não o ícone. Entretanto, tendo sido iconizada em nossa sociedade capitalista, diria Warhol, essa fotografia é incluída na edição do livro de Morgan de 1980 - edição quase idêntica à de 1941, mas que traz um novo depoimento de Graham, muito mais ciente do sucesso, seu e de Morgan, e agora inclui as fotos do Letter to the World. Ou seja, o processo de iconização da dançarina aconteceu entre as duas versões do livro. Em 1986, Warhol apercebe-se disso e contribui para que o processo se acentue.

Vejamos outras transformações de imagens. Seguem duas fotografias de Morgan que representam a dança Satyric Festival Song (Figura 3), estreada em 1932, e em seguida as serigrafias de Warhol, feitas a partir dessas fotografias (Figura 4):

Figura 3
Barbara e Willard Morgan, fotografias e documentos

Figura 4
Arte e Imagem

Aqui também se vê que o artista editou bastante antes de criar a imagem serigráfica. No primeiro trabalho, duplicou uma das imagens da dançarina e, no outro, juntou duas fotos dela. Em ambos os casos, o resultado é semelhante: ao se transformar em duas, um duplo de si mesma, Graham torna-se menos encarnada e mais um símbolo (ou ícone). Como era de se esperar, essas imagens tampouco indicam de que danças foram retiradas. O nome da fotógrafa aparece no rodapé, talvez contra a intenção do artista; afinal, pude ver estas imagens ao vivo em bibliotecas americanas e fica a dúvida se sua catalogação é trabalho da biblioteca ou desejo do artista. Em suma: quem catalogou essas obras? Não me espantaria se tivesse sido justamente a biblioteca.

Enquanto ícone, Graham aparece sem contexto ou história. Plana, pintada em cores artificiais, ela é novamente representada como commodity, que é o contrário da proposta de Morgan: não mais é a dança no corpo de Graham que está sendo representada. Espécie de carimbos industriais, as serigrafias de Warhol deixaram de ser imagens da dança. Clichê gráfico é o nome dado a esse tipo de trabalho pelo crítico e especialista em Andy Warhol, Thiago Mesquita (2009Mesquita, T.S. (2009). Através do espelho: a constituição da pintura inicial de Andy Warhol (1956-1968). Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Além do caráter industrial, a reiteração ganha, a partir de Foster (2012Foster, H. (2012). The first Pop Age: painting and subjectivity in the art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton: Princeton UP.), um caráter melancólico:

As operações [de Andy Warhol] sugerem uma fixação obsessiva no objeto melancólico perdido, ou uma compulsão à repetição de um evento traumático, não uma liberação desse objeto ou evento. . . . [A] repetição em Warhol não apenas reproduz momentos traumáticos; frequentemente os produz também. . . . Nessas repetições, portanto, diversos efeitos contraditórios podem acontecer ao mesmo tempo: . . . . uma abertura à significação traumática, uma defesa contra o efeito traumático e ao mesmo tempo sua produção. (pp. 111-113)

Por esse motivo, Warhol escolhia “modelos” que remetessem à melancolia. De fato, a escolha de representar Graham se enquadra nesse projeto se pensarmos na Graham dos anos 1960, por exemplo, época em que ela se sentia pouco gloriosa, como lemos em sua biografia. Com a idade e as transformações do corpo, levou anos para se reinventar, para descobrir que embora seu corpo já não dançasse como antes, sua pesquisa da dança no corpo das dançarinas mais jovens certamente ainda podia frutificar. Quando descobre isso, Graham volta ao mundo da dança, onde permanece por mais dezenove anos, período em que pesquisa principalmente frases coreográficas escritas pelos corpos de outros dançarinos, e fica fascinada com a diversidade de possibilidades descoberta nesses diferentes corpos (Graham, 1991Graham, M. (1991). Blood memory: an autobiography. New York: Doubleday.).

Outro aspecto melancólico: a dança é provavelmente a arte menos lucrativa, talvez a menos valorizada entre as artes. Ao lado da glória e do glamour de Martha Graham, que tendemos a associar a ela e de que ela tanto gostava, certamente houve uma vida de muitos sacrifícios. O mais duro deles provavelmente foi a perda do amor, conforme bem documentou Mark Franko (2012Franko, M. (2012). Martha Graham in love and war: the life in the work. Oxford: Oxford UP.). Em sua fase mais difícil, desgostosa com a passagem do tempo e o envelhecimento, sofreu de alcoolismo por um longo período (até se reinventar como coreógrafa em 1972).

A última fotografia que reproduzo para o leitor é uma representação da dança Lamentation, estreada em 1930 (Figura 5). Também transformada em serigrafia por Warhol, na sua Martha Graham Series (Figura 6):

Figura 5
Barbara e Willard Morgan, fotografias e documentos

Figura 6
Martha Graham Series

Novamente, vê-se o uso que Warhol faz do recorte e do zoom. A serigrafia é um retrato do mundo em que vivemos, ou melhor, daquele vivido por seu autor: no mundo warholiano as pessoas e as coisas não têm substância, ou a perderam, e persistem como superfícies, produtos comerciais. O projeto documental e interpretativo de Morgan, suas narrativas visuais, desapareceram na obra de Warhol.

Contexto histórico e o legado

Antes de se tornar fotógrafa, Morgan foi pintora. Nessa época, entendia a fotografia como “roubar da natureza” (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York., p. 15), como um fazer que requer pouca criatividade e de reduzido valor artístico. Entretanto, ela acaba por adotar a fotografia, aceitando a sugestão do marido e também do famoso fotógrafo Edward Weston, que ela conheceu por acaso no ateliê onde trabalhava. Inicialmente, produzia foto-colagens e light drawnings17 17 O light drawing, ou fisiograma, é uma técnica fotográfica que implica mover uma fonte de luz enquanto se toma uma fotografia de longa exposição. Trata-se de uma técnica utilizada tanto na arte como na ciência desde os anos 1880. , técnicas que ela entendia como uma solução de compromisso: criativas, porquanto usassem artisticamente a fotografia. Com o passar do tempo, Morgan se interessou pela fotografia “sem maquiagens”, na expressão dela. Foi deixando de lado a foto-colagem, a fotomontagem e os light drawnings (embora continuasse a experimentar essas técnicas de vez em quando) e passou a fazer uso de uma fotografia mais realista, até começar a criar intuitivamente a metodologia de fotografia da dança descrita anteriormente. Ou seja, é curiosamente nesse momento em que, ao que me parece, ela transforma o processo fotográfico em um fazer interpretativo (e não quando ela procurava artificialmente produzir uma fotografia “artística”).

Isto aconteceu porque Morgan sentiu uma necessidade histórica, espécie de missão. Na segunda metade da década de 1930, quando a aura nova iorquina era lúgubre e a perspectiva de uma segunda guerra mundial começava a se anunciar, Morgan estava convencida da importância de seu projeto. De fato, para produzir as imagens de Graham, ela trabalhou cinco anos sem cobrar cachê, uma vez que se sentia incumbida da tarefa de auxiliar o público americano a resistir a esse tempo sombrio. Sua contribuição viria por meio da arte: preservaria a obra de outros artistas, particularmente de dançarinos, que se caracterizam pela efemeridade. Fascinou-se especialmente pelo trabalho de Martha Graham.

Morgan explica que, logo de cara, entendeu que, durante aqueles tempos de turbulência social e econômica, as danças criadas por Graham devolviam aos americanos o sentido de identidade. A força de Graham servia-lhe de inspiração. Isso justificava para Morgan sua autodeclarada missão de preservar as danças como imagens para a posteridade: era uma aposta no futuro.

Duas mulheres fortes se encontravam. A fotógrafa pode ser descrita como amadora, apenas no sentido dado por Alfred Stieglitz (1899/1980Stieglitz, A. (1980). Pictorial Photography. In Classic essays on photography (pp. 115-124). Connecticut: Leete’s Island Books. (Trabalho original publicado em 1899)) de alguém que trabalha por amor:

Aqui chamo a atenção para um dos erros mais universalmente cometidos relacionados à fotografia - aquele de classificar como supostamente excelente o trabalho profissional e usar o termo ‘amador’ para transmitir a ideia de uma produção imatura e avalizar fotografias terrivelmente pobres. O fato é que praticamente todos os grandes trabalhos sendo produzidos, assim como os que sempre foram, são de autoria daqueles que seguem a fotografia por amor, não simplesmente por razões financeiras. Como implica esse nome, o amador é aquele que trabalha por amor; tomada esta perspectiva, evidencia-se prontamente o equívoco popular. (p. 117)

Conforme declarou Martha Hill, que estava presente na entrevista com Morgan em 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York.: “Estávamos por cima do dinheiro naquele tempo. Não tínhamos dinheiro e havíamos superado a uqestão” (Morgan, 1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York., p. 63). Isto é, Morgan entendia seu próprio trabalho como uma necessidade histórica18 18 Não vou enveredar pelo argumento feminista, embora ele seja verdadeiro, de que as artistas eram quase sempre “amadoras” também no sentido de que sua arte não era levada a sério. Era entendido como mero passatempo feminino. Levou décadas para que essa concepção mudasse, e ainda há um longo caminho a se percorrer nesse sentido. Por um lado, não sendo entendido como arte, o trabalho fotográfico não era valorizado; por outro, permitia-se que a mulher o empreendesse, precisamente porque não se entendia aquele trabalho como tal. . À época em que foi lançada a segunda edição de seu livro, tanto Graham como essas fotografias haviam se tornado muito mais populares do que haviam sido nos anos 1930, principalmente em Nova York. Mas, como vimos, as fotografias são hoje muito mais apreciadas por seu potencial icônico do que como narrativas que interpretam a dança. Afinal, o que de fato transmitiu de geração a geração as danças de Graham foi sua continuidade em repertório na Martha Graham Company e na Martha Graham School of Contemporary Dance em Nova York19 19 Claro que isso não existia da mesma maneira quando Morgan publicou seu livro. A companhia, embora fundada em 1926, tinha uma estrutura pequena, que nas próximas décadas foi se desenvolvendo como escola e companhia. .

Como a obra de Warhol em geral, o legado do Martha Graham Series também se caracteriza pelo que tem de paradoxal. Suas imagens de fato tornaram-se icônicas, contribuindo para a tendência que ele certamente diagnosticara. Mais irônico ainda: elas circulam principalmente no meio da dança: são os próprios amantes dessa arte que contribuem para sua iconização que, por um lado, ameaça perigosamente provocar a perda da história dessas narrativas e, por outro, permite o aproveitamento do benefício financeiro que isso pode trazer. Ou seja, embora essa série tenha tido pouca relevância na carreira de Warhol, ela trouxe recursos para Graham e sua companhia. Deificadas, as danças de Graham - ao mesmo tempo em que correram o risco de ver desaparecer sua história e seu contexto - permitiram à companhia se reerguer. Eis a concretização, em alguma medida, do paradoxal projeto artístico de Warhol. Ele, é claro, entendia muito bem esta propensão: ao tornar-se um ícone, Graham (e sua dança) teriam benefícios e, simultaneamente, seriam esvaziadas, aplanadas e até privadas de sua humanidade e de sua história20 20 “Aconteceu no Whitney Museum em Nova York, de novembro de 2018 a março de 2019, uma ambiciosa exposição que tinha como objetivo analisar o todo da obra warholiana. Um dos artigos do catálogo da exposição se chama “The factory of self” e discute justamente o aspecto da replicação e perda de sentido nos autorretratos criados por Warhol. No artigo, o curador do Museu de Arte Moderna e Contemporânea do Art Institute em Chicago, Hendrik Folkerts, escreve: “. . . . dificilmente haverá um artista que queira maior controle da produção pública e distribuição de si mesmo que Warhol. . . . Replicada ad infinitum, a fisionomia de Warhol perdeu qualquer sentido. . . . Paradoxalmente, dificilmente haverá um artista cuja vida tenha afetado a leitura e, talvez, a criação da arte tão dramaticamente quanto Warhol”. É nesse contexto que Folkerts descreve: “o apelo da cabine fotográfica, mecanismo de padronização e desmistificação do processo do retrato. . . .” .

Nesse sentido, Warhol foi descrito pela crítica não apenas como artista, mas como “empreendedor visionário” (Green & Unruh, 2010Green, S. U. & Unruh, A (Orgs.). (2010). Andy Warhol enterprises. Indianapolis: Indianapolis Art Museum., p. 11). Sua fortuna foi estimada em US$228 milhões (Wrbican, 2010Wrbican, M. (2010). Fabulous Moolah: Andy Warhol and Money. In S. U. Green & A. Unruh (Orgs.), Andy Warhol enterprises (pp. 115-122). Indianapolis: Indianapolis Art Museum., p. 117)! Mesmo assim, embora trabalhasse principalmente por comissão nos anos 1980, deixando de lado a aspiração revolucionária dos anos 1960, reza a lenda que as imagens que apropriou de Morgan nessa época foram produzidas por um motivo diferente: quando ele assistiu a um espetáculo da companhia de Graham, ficou emocionado com o trabalho de sua conterrânea de Pittsburgh e decidiu auxiliá-la financeiramente. Em suas imagens, já vimos, Warhol trata Graham como ícone, mas ironicamente o faz devido ao quanto sua arte o tocou. O mundo de Warhol é vazio e sem sentido, conforme se vê em sua arte, mas a expressividade da dançarina e suas narrativas pelo corpo o mobilizam em alguma medida. Warhol falece pouco tempo depois, em fevereiro de 1987.

É interpretação?

O que entendo ser um caráter interpretativo do processo artístico de Morgan evidencia-se em diversos momentos. Por exemplo, no fato de tanto Graham (1991Graham, M. (1991). Blood memory: an autobiography. New York: Doubleday.) como Morgan (1978Morgan, B. (1978). Oral history interview with Barbara Brooks Morgan, 1978. Columbia Center for Oral History, University of Columbia, New York.) destacarem que saíram modificadas da experiência conjunta. Mesmo que não intencionalmente, até o processo coreográfico da dançarina foi influenciado pela fotógrafa. Sob esse aspecto, Morgan é como o analista, que acompanha um processo e interfere nele, mas está tão dentro do próprio processo, que não mais distingue com precisão qual foi o seu papel ou como o influenciou.

Além disso, a ideia de que Morgan esperava que algo acontecesse e uma imagem da dança de formasse para ela assemelha-se muito ao que acontece em uma ruptura de campo, cerne do processo psicanalítico. Herrmann descreveu a ruptura de campo como ação que define a interpretação e que, ao mesmo tempo, resulta dela. Implica uma ruptura na rede de sentidos que vigora na comunicação humana, o que Herrmann (2001Herrmann, F. (2001). Andaimes do Real: o método da Psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1979)) considera “a forma mesma de todo conhecimento legítimo” (p. 59). Por fim, a “sentença interpretativa”: Morgan pergunta a Graham se as repetições nas coreografias estão lá para que o público leve consigo essas frases coreográficas, espécie de substrato da dança como um todo, e Graham diz que sim. O fundamental do processo é a ruptura de campo, mas a sentença interpretativa explica o que foi feito, tanto para a dançarina como para a própria fotógrafa que chegou a esta explicação.

Já o diagnóstico de Warhol diz respeito à “commoditização” das coisas do mundo, a ponto de as pessoas serem commodities. Não há espaço para uma arte efêmera como a dança: o ícone é a dançarina. Trata-se de uma interpretação do mundo em que vivemos, não de uma transformação das danças de Graham em obra. Tanto um processo como o outro parecem produzir rupturas de campo. É nesse sentido que entendo ser comparável o processo artístico ao psicanalítico. Ou melhor, o processo psicanalítico ao artístico.

Em suma: transformações artísticas, como as fotografias da dança feitas por Morgan e as serigrafias elaboradas por Warhol a partir dessas fotografias, puderam ser pensadas analogamente à interpretação psicanalítica, particularmente como definida por Fabio Herrmann, a partir de Freud. As séries fotográficas de Morgan foram pensadas como análogas a um processo interpretativo, em que o sentido é criado numa colaboração próxima. Já o projeto de Warhol é paradoxal: sua arte toma a repetição como um tema e o leva ao extremo, criando assim algo novo: sua reviravolta no campo artístico dos anos 1960 é considerada revolucionária.

Tomados como caso “clínico único”, esses dois trabalhos serviram para pensar as semelhanças com um processo interpretativo psicanalítico. Entretanto, este é apenas um exemplo de como a interpretação psicanalítica é relevante para se pensar a Arte, de maneira diferente da ideia comum, de se aplicar teorias psicanalíticas às obras de arte. Entender psicanálises como processos interpretativos demostrou ser produtivo para além de qualquer esfera “pura” ou exclusivamente psicanalítica.

Mais um caso: o trabalho da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz com a artista Adriana Varejão, em que, juntas, criaram o livro Pérola imperfeita (2014Schwarcz, L. & Varejão, A. (2014). Pérola imperfeita: a história e as histórias na obra de Adriana Varejão. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), e cada uma foi transformada pelo trabalho em conjunto, pela experiência estética da dupla. Nem Schwarcz nem Varejão são psicanalistas; bem longe disso. Entretanto, a transformação que o processo promoveu em cada uma e na dupla indica a possibilidade de se pensar nele analogamente a um processo interpretativo psicanalítico. De fato, na Universidade de Princeton, quando perguntei à historiadora se esta ideia tinha qualquer parentesco com a experiência, ela confirmou minha hipótese. Este caso mereceria, eventualmente, uma análise mais detalhada. Por ora, o que nos interessa é pensar que de fato parece haver situações em que um processo artístico é muito parecido com um processo psicanalítico, e eventualmente poderia ser confundido com ele. De fato, parece que processos interpretativos semelhantes ao psicanalítico se observam em diversos projetos nas Ciências Humanas e Sociais e também nas Artes. As contribuições de Fabio Herrmann assim como suas implicações para pensarmos o que é interpretação na Psicanálise têm um papel crucial, senão revolucionário, nesta discussão.

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  • Taffarel, M. (2005). O método psicanalítico - sua identificação desde a história da Psicanálise e sua relação com o método nas ciências. Tese de doutorado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Theory. In Merriam-Webster’s online dictionary (11th ed.). Recuperado de: https://www.merriam-webster.com/dictionary/theory
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  • Warhol, A. (1986). Letter to the world (The Kick), from the Martha Graham Series. Pittsburg: The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc.
  • Warhol, A. & Swenson, G. (2003). Andy Warhol (1930-1987) Interview with Gene Swenson. In C. Harrison & P. Wood (Orgs.), Art in theory, 1900-2000 - an anthology of changing ideas (pp. 747-749). Malden, MA: Blackwell. (Trabalho original publicado em 1963)
  • Wrbican, M. (2010). Fabulous Moolah: Andy Warhol and Money. In S. U. Green & A. Unruh (Orgs.), Andy Warhol enterprises (pp. 115-122). Indianapolis: Indianapolis Art Museum.
  • 1
    Como Herrmann, tenho escrito Psicanálise com p maiúscula para me referir da ciência futura ou da disciplina psicanalítica; tenho usado a p minúscula para falar de psicanálises como casos clínicos ou da forma adjetivada desse termo.
  • 2
    Destaco que minha formação como pesquisadora no campo da interpretação psicanalítica da arte bebeu dos textos de João Frayze-Pereira (2004Frayze, J. A. (2004). Estética, psicanálise implicada e crítica de arte. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(2), 443-452., 2007Frayze, J. A. (2007). Da arte de interpretar o paciente como obra de arte. Jornal de Psicanálise, 40(73), 133-144. e Frayze, J. A. (2009). Grete e Freud: Fotografia e psicanálise, sonho e interpretação. In Os Sonhos de Grete Stern: Fotomontagens (pp. 38-49). São Paulo, SP: Museu Lasar Segall; Instituto Moreira Salles; Imprensa Oficial.2009), particularmente de sua ideia de uma psicanálise implicada. Também fui influenciada pela minha relação pessoal com esse autor, que foi meu orientando no doutorado e meu supervisor no pós-doutorado. Nossa relação, portanto, conta mais de dez anos. Como se sabe, Frayze-Pereira é especialista em nosso meio no pensamento sobre Arte e Psicanálise. Já para pensar o que é psicanálise, apoio-me nas definições de interpretação psicanalítica e de método psicanalítico de Fabio Herrmann (1979/2001Herrmann, F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. e 2001Herrmann, F. (2001). Andaimes do Real: o método da Psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1979)), que tomando a Psicanálise como ciência artística, sustenta uma relação de imbricamento entre arte e Psicanálise. Dessa forma, não identifico as ideias de método e processo artístico, mas trabalho proximamente com ambas. Ressalto que as formas de pensar de Frayze-Pereira e de Herrmann terminaram também por imbricar-se nos meus textos.
  • 3
    Coloco entre aspas para enfatizar que entendo como equívoca esta maneira de conceber o que é uma teoria.
  • 4
    Fabio Herrmann (1944-2006) foi psiquiatra, psicanalista, autor e pensador brasileiro.
  • 5
    Análises não se limitam a processos interpretativos com pacientes (pessoas). Desde Freud, não é assim. Embora uma fração considerável dos textos freudianos seja de casos clínicos com pacientes, mais da metade de seus textos investiga objetos variados, como a religião, o cotidiano, os textos literários e as obras de artes, entre outros.
  • 6
    Ou prototeorias, conforme o termo de Fabio Herrmann (2001Herrmann, F. (2001). Andaimes do Real: o método da Psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1979), p. 80).
  • 7
    Para complicar um pouco mais, é comum os psicanalistas usarem o termo interpretações para falar do produto delas. Mas a ideia é lembrarmos que esta é uma acepção menor do termo.
  • 8
    Marilsa Taffarel (2005Taffarel, M. (2005). O método psicanalítico - sua identificação desde a história da Psicanálise e sua relação com o método nas ciências. Tese de doutorado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.), por exemplo, baseia-se em Herrmann ao falar da importância das sentenças interpretativas para sustentar as representações do paciente quando, por exemplo, advém uma desestabilizadora ruptura de campo, momento central do processo interpretativo, em que as antigas representações do paciente são abaladas e as novas ainda não se assentaram, produzindo-se um vórtice nas representações do paciente, isto é, na maneira como ele está no mundo. Entretanto, advertira Herrmann em 2003, numa fala sobre a clínica extensa publicada em 2005: tal segurança é muitas vezes falsa. No caso da clínica padrão, de teorias prontas, em que o psicanalista pode sentir-se relativamente confortável, ele se assemelha ao marinheiro que durante um naufrágio, na tentativa de segurar-se em qualquer coisa, agarra-se a uma âncora, e acaba por se fixar no fundo do mar.
  • 9
    Em sua tese de doutorado, Taffarel (2005Taffarel, M. (2005). O método psicanalítico - sua identificação desde a história da Psicanálise e sua relação com o método nas ciências. Tese de doutorado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.) delonga-se nesta explanação.
  • 10
    Herrmann toma o termo a partir de Heidegger, para quem cura tinha o sentido de preocupação ou cuidado, do alemão die sorge. (Herrmann, 2001Herrmann, F. (2001). Andaimes do Real: o método da Psicanálise. São Paulo, SP: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1979), p. 177)
  • 11
    Nesse sentido, estou traduzindo e organizando seu livro mais popular e introdutório, a ser publicado pela State University of New York Press em 2020. Também conterá uma antologia de seus artigos, em sua maioria inéditos inclusive em língua portuguesa.
  • 12
    Tenho optado por utilizar o primeiro nome de Leda e reservar o sobrenome Herrmann para me referir ao marido.
  • 13
    A historiadora da dança e professora Lynn Garafola me passou esta informação na Universidade de Columbia em 2016.
  • 14
    Também atesta a autenticidade da transcrição o fato de terem sido anotados inclusive detalhes como “preparou um chá”. Além disso, o documentário é um pouco posterior e a transcrição não circula.
  • 15
    De acordo com a teoria da recepção, a obra de arte requer um receptor que se dirija a ela, que a interrogue, que a explique. Não porque a sua será uma interpretação última, mas porque poderá revelar-se como uma interpretação possível. Principalmente, porque a sua elucidação será um germe de comunicação entre receptor e obra, sem o qual ela poderia ser relegada, inclusive esquecida, como a odradek kafkiana. As obras de Herrmann requerem recepção: de um lado, justamente para prevenir tal esquecimento e, de outro, para concretizá-la (konkretisiert), no sentido dado pela Escola de Constância. É certo que a Escola de Constância referiu-se à arte literária, mas a ideia lançada é facilmente traduzível para as artes plásticas. Nas palavras de Wolfgang Iser, “The reading process: a phenomenological approach”, o texto: “. . . só adquire vida quando é concretizado. . . . A convergência entre o texto e o leitor traz a obra literária à existência” (p. 279, itálicos meus).
  • 16
    Sendo representação um conceito psicanalítico amplamente discutido por Herrmann, quando refiro-me a fotografias prefiro o termo metarepresentaçãos, isto é, imagens visuais de representações humanas, no caso da cena artística (Sofio, no preloa).
  • 17
    O light drawing, ou fisiograma, é uma técnica fotográfica que implica mover uma fonte de luz enquanto se toma uma fotografia de longa exposição. Trata-se de uma técnica utilizada tanto na arte como na ciência desde os anos 1880.
  • 18
    Não vou enveredar pelo argumento feminista, embora ele seja verdadeiro, de que as artistas eram quase sempre “amadoras” também no sentido de que sua arte não era levada a sério. Era entendido como mero passatempo feminino. Levou décadas para que essa concepção mudasse, e ainda há um longo caminho a se percorrer nesse sentido. Por um lado, não sendo entendido como arte, o trabalho fotográfico não era valorizado; por outro, permitia-se que a mulher o empreendesse, precisamente porque não se entendia aquele trabalho como tal.
  • 19
    Claro que isso não existia da mesma maneira quando Morgan publicou seu livro. A companhia, embora fundada em 1926, tinha uma estrutura pequena, que nas próximas décadas foi se desenvolvendo como escola e companhia.
  • 20
    “Aconteceu no Whitney Museum em Nova York, de novembro de 2018 a março de 2019, uma ambiciosa exposição que tinha como objetivo analisar o todo da obra warholiana. Um dos artigos do catálogo da exposição se chama “The factory of self” e discute justamente o aspecto da replicação e perda de sentido nos autorretratos criados por Warhol. No artigo, o curador do Museu de Arte Moderna e Contemporânea do Art Institute em Chicago, Hendrik Folkerts, escreve: “. . . . dificilmente haverá um artista que queira maior controle da produção pública e distribuição de si mesmo que Warhol. . . . Replicada ad infinitum, a fisionomia de Warhol perdeu qualquer sentido. . . . Paradoxalmente, dificilmente haverá um artista cuja vida tenha afetado a leitura e, talvez, a criação da arte tão dramaticamente quanto Warhol”. É nesse contexto que Folkerts descreve: “o apelo da cabine fotográfica, mecanismo de padronização e desmistificação do processo do retrato. . . .”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2019
  • Aceito
    23 Jan 2019
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