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A Estratégia do Crime

PONTO DE VISTA

A Estratégia do Crime

Adriano Schwartz1 1 Adriano Schwartz é editor do Caderno Mais! ( Folha de São Paulo) e doutor em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O artigo acima foi publicado, originalmente, no Mais!, em 8 de fevereiro de 2004. Endereço eletrônico: aschwart@uol.com.br

Folha de São Paulo

O escritor Ricardo Piglia já disse mais de uma vez que não há nada além de livros de viagens ou histórias policiais. "Narra-se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar?". A afirmação é intensificada em "Formas Breves", há pouco lançado no Brasil, no qual ele diz que "o gênero policial é o grande gênero moderno (...), inunda o mundo contemporâneo".

Ao contrário do que normalmente se pensa, então, os herdeiros de investigação de Dupin, Sherlock Holmes, padre Brown, Maigret, Poirot, Marlowe, Spade ocupariam um lugar nobre numa potencial e sempre controversa hierarquia do valor literário.

A própria produção do autor argentino - textos como "Respiração Artificial" ou "Nome Falso"- confirma que a hipótese pode ser correta. Os inúmeros títulos policiais de qualidade bastante questionável publicados mensalmente, infestados de convenções e temas estereotipados, parecem desmenti-la.

Como a intenção aqui não é criar um enigma insolúvel à espera de mais um improvável detetive, e sim tentar entender um pouco melhor o papel que esse tipo de narrativa exerce atualmente - e por que ele, ao mesmo tempo, consegue ser atacado e defendido de modos tão peremptórios -, vale a pena retomar brevemente a sua origem e lembrar algumas das modificações pelas quais passou.

O norte-americano Edgar Allan Poe, com Auguste Dupin, personagem de três de seus contos, cria na primeira metade do século 19 (em 1841, com "Os Crimes da Rua Morgue") o primeiro detetive de fato da literatura policial e estabelece alguns padrões que foram seguidos por vários autores: o narrador é um amigo/discípulo do investigador; a reflexão predomina sobre a ação; o final precisa surpreender o leitor.

Inventado pelo inglês Conan Doyle, Sherlock Holmes, o mais famoso dos detetives, segue a fórmula. Suas histórias são contadas por um médico e admirador, o dr. Watson, e ele se vale de sua mente poderosa e de uma minuciosa busca de indícios e pistas que a outros haviam passado despercebidos para solucionar os mais difíceis crimes, sempre de modo inesperado. E também, para muitos, de modo irritante, uma vez que muitas das conclusões de Holmes são extraídas esotericamente, sem que o texto tivesse possibilitado ao leitor chegar à mesma solução por sua conta: é como se a narrativa fosse "desonesta".

Segundo Jorge Luis Borges, grande admirador, crítico e autor do gênero policial, essa é uma falha inaceitável. "Declaração de todos os termos do problema: se a memória não me engana (ou sua falta), a variada infração dessa lei é o defeito preferido de Conan Doyle", afirma o autor em um de seus "mandamentos da narração policial". Raymond Chandler reafirmaria o argumento, em suas "regras para histórias de mistério": "Elas precisam ser honestas com o leitor. Isso é sempre dito, mas o que a frase implica freqüentemente não é levado em conta".

De falha desse tipo sofrem muitos dos desfechos dos casos do padre Brown, de Chesterton, apesar de este ser sempre muito elogiado por Borges. Para ele, o inglês dominava a técnica de transmitir a impressão de que havia algo de irreal por trás do acontecimento criminoso, para logo apresentar uma solução totalmente racional. O método de Brown? Colocar-se no lugar do adversário, transformar-se no adversário. Ainda assim, é muito difícil assimilar sem uma ponta de incredulidade a resolução de "O Homem Invisível", para citar um dos contos mais famosos do autor. O mesmo ocorre com as histórias de dois dos mais prolíficos autores policiais, George Simenon e Agatha Christie.

No final dos anos 20, nos EUA, acontece uma guinada no perfil da ficção policial. Dashiell Hammett cria a figura do detetive durão, mulherengo, de humor corrosivo e moral menos rígida, em textos escritos de modo seco e ambientados muitas vezes nos recantos mais pobres e violentos da cidade. Os contos e cinco romances - principalmente "O Falcão Maltês" e Sam Spade, seu protagonista - mostram que o universo do crime pode ser sujo.

Muitos críticos acreditam que, em decorrência das diferenças entre essa tradição "dura" e a anterior, elas não devam ser misturadas. O fato é que Raymond Chandler, talvez o principal autor dessa segunda linhagem, ataca com insistência predecessores e contemporâneos - Agatha Christie, com especial prazer ("você não engana o leitor escondendo pistas ou tornando falso um personagem, como Christie...") - em seus ensaios.

É com esses escritores que o criador de Philip Marlowe duela: o atrito não significa, portanto, ruptura, e sim modificação. Trata-se ainda de crime, investigação e solução. Só que agora com dúvidas, sexo, dinheiro, fracasso, sangue, morte. Com variações maiores ou menores, é o tipo de narrativa desenvolvida por Hammett e Chandler que predomina na maior parte dos romances policiais "criminosos" que vendem milhares de exemplares anualmente ao redor do planeta.

Do ponto de vista da técnica, a solução apresentada por Poe é das mais seguras. Ao centrar o foco narrativo em um personagem secundário, que acompanha a seqüência de eventos e reflexões do detetive, ele simula a colocação de uma câmera que acompanha por trás os passos do detetive e registra os acontecimentos e discussões, dando ao leitor a sensação de que está "jogando limpo" e de que a resolução do problema estaria também ao alcance dele.

Outra via possível, a de Chandler por exemplo, é deixar o investigador contar a própria história. O leitor vê o que ele vê: acrescenta-se aí a uma percepção semelhante de "honestidade" o conhecimento da subjetividade do personagem, de suas impressões, temores, riscos.

"Vida Pregressa", segundo romance de Joaquim Nogueira, lançado há pouco, utiliza esse padrão. O mérito do autor é torná-lo atrativo pelo uso de um procedimento de reiteração aparentemente banal. O detetive Venício resolve investigar a morte de um homem. Cada pista que ele descobre o leva a uma nova pessoa. Para cada "elemento" interrogado, o personagem explica como chegou até ele, repetindo os passos prévios de sua busca. A narrativa cria assim um efeito de eco distorcido, que vai se amplificando de modo a acompanhar a progressiva complexificação da intriga, ao mesmo tempo em que o espaço geográfico da trama, a cidade de São Paulo, também vai se tornando mais abrangente.

A opção mais comum, mais fácil e mais problemática, no entanto, é a do narrador onisciente. Como apresentar no início da história os pensamentos do personagem que, se saberá ao final, era o misterioso culpado? Talvez a saída mais eficaz para esse dilema seja a de Hammett em "O Falcão Maltês". Apesar de o livro ser narrado em terceira pessoa, o protagonista Sam Spade está sempre em primeiro plano - não há nenhuma cena do romance em que ele não apareça - e, além disso, em momento nenhum penetra-se no "interior" de qualquer personagem: o leitor, assim, toma conhecimento apenas do que o detetive vê ou ouve. Com isso, o autor inclusive aumenta o suspense, já que nunca se sabe como Spade reagirá aos eventos.

Ainda onisciente, mas em muitos trechos de maneira seletiva, alternando personagens, é o narrador de "O Caso dos Dez Negrinhos", o romance mais conhecido de Agatha Christie. O livro provoca admiração pela engenhosidade da autora, em uma primeira leitura, e incômodo na releitura. Nela, ficam evidentes pensamentos do "vilão" claramente incompatíveis com a premissa básica de que, desde o começo, ele já era o responsável por tudo o que ocorreria.

É essa também a técnica de Luiz Alfredo Garcia-Roza em "Perseguido", a mais recente aventura do delegado Espinosa. O investigador divide a cena com a família do psiquiatra Arthur Nesse - mulher e duas filhas - e com o seu paciente, borgianamente denominado Isidoro Cruz, apesar de ele só aceitar ser chamado de Jonas. Calculada ou não - e esse é um dos fulcros do enredo -, a "imposição" desse segundo nome pelo jovem já indica que, nesta obra, tudo será mais complicado.

Para não estragar o prazer dos muitos leitores que o livro ainda terá, não cabe aqui discutir detalhes do enredo e da labiríntica tematização da paranóia que ele propõe. É necessário dizer, no entanto, que, muito por conta da alternância do foco narrativo, se as "conclusões" de Espinosa no desfecho do texto estivessem corretas, o romance - pelo menos em seu aspecto "policial" - não se sustentaria. O "erro" do detetive, contudo, faz parte do jogo, engrandece-o. Uma das mais impressionantes características de um texto literário é que apenas ele, em sua totalidade, pode desmentir um personagem, um narrador e até mesmo um autor (bem como, aliás, ele pode posteriormente desmentir o desmentido...). Em "Perseguido", Garcia-Roza parece estar brincando com a lembrança que um memorialista em um conto de Borges tem de um dos projetos de um peculiar escritor, Herbert Quain: "... o leitor, inquieto, procura nos capítulos pertinentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor deste livro singular é mais perspicaz que o detetive".

Percebe-se que a suposta contradição entre "convenção" e "grandeza" apontada no início deste texto, a partir do comentário de Piglia, não é irremediável. Na verdade, ela vem sendo contornada há bastante tempo.

Em 1955, a norte-americana Patricia Highsmith publica a primeira história da série "Ripley": "O Talentoso Ripley". Qualquer romance policial se equilibra sobre um fato mínimo - o crime - e três decorrências lógicas - o investigador, o criminoso e a vítima. Uma das estratégias da autora para manipular a convenção é girar o triângulo e centrar a narrativa na segunda delas, em vez de na primeira. Com isso, ela minimiza o suspense e destaca as "motivações" de seu anti-herói e as "conseqüências" de seus atos.

Ainda mais cedo, em 1941, Borges concebe o primeiro de seus três contos policiais que remetem genialmente aos três contos de Poe. Exatos cem anos após o início da publicação de "Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistério de Marie Roget" e "A Carta Roubada", o autor argentino começa sua "homenagem" com "Os Jardins dos Caminhos Que Se Bifurcam". Os outros dois contos, escritos nos anos seguintes, são "A Morte e a Bússola" e "Abenjacan, o Bokari, Morto em Seu Labirinto". O último não é tão excepcional quanto os predecessores, mas é nele que se lê que "a solução do mistério é sempre inferior ao mistério".

"Os Jardins..." e "A Morte e a Bússola" mostram que a frase nem sempre é verdadeira, uma vez que Borges dinamita ainda mais as convenções do gênero e faz com que o leitor ora pense estar lendo uma trama centrada na figura do investigador, ora na do criminoso, para, ao final, descobrir que de fato estivera acompanhando, desde o início, as vítimas. O desfecho surpreendente - outro dos "mandamentos" do autor - acontece e é duplicado. Não é à toa que Piglia considera o segundo texto o "Ulisses do conto policial". Aquele outro "mandamento" borgiano, o da "declaração de todos os termos do problema", por exemplo, é cumprido de modo quase maníaco: absolutamente tudo o que é dito na narrativa exerce um papel preciso e fundamental, e não há nenhum evento ou dedução que não tenha uma justificativa previamente introduzida.

Para terminar, deve-se notar que, na literatura atual, a contradição mencionada acima é muitas vezes resolvida com o ocultamento dos termos que geram a "convenção". Assim, em vez de alternar o ângulo de abordagem daquele triângulo - investigador, criminoso e vítima -, o autor esconde ou mascara o próprio fato causador, o crime, que se torna não mais um componente do enredo, e sim um elemento constitutivo da forma narrativa. É o que ocorre nos já citados textos de Piglia ou, para lembrar de outro argentino, nos romances de Juan José Saer. Talvez seja por isso que, para lidar com esse gênero que "inunda o mundo contemporâneo", o autor de "Nome Falso" já tenha afirmado que, "em mais de um sentido, o crítico é o investigador, e o escritor é o criminoso", ou, de outro modo, discutido "a representação paranóica do escritor que apaga suas pegadas e cifra seus crimes, perseguido pelo crítico, decifrador de enigmas".

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    Adriano Schwartz é editor do Caderno
    Mais! (
    Folha de São Paulo) e doutor em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O artigo acima foi publicado, originalmente, no
    Mais!, em 8 de fevereiro de 2004. Endereço eletrônico:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      2003
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