Open-access Sentidos sobre o adoecer por câncer no filme Aquarius

Meanings about cancer in the movie Aquarius

Significations du cancer dans le film Aquarius

Sentidos sobre el cáncer en la película Aquarius

Resumo

A linguagem fílmica constitui um importante recurso para o ensino-aprendizagem no campo da saúde. Para trabalhar a temática do adoecimento por câncer, diversos filmes têm sido empregados como disparadores de reflexões necessárias à formação de profissionais de saúde capazes de uma atuação mais empática, sensível e humanizada. Para contribuir com esse cenário, o presente estudo teve por objetivo discutir os sentidos sobre o adoecimento pelo câncer a partir da análise do filme Aquarius. Os sentidos predominantes neste filme referem-se ao câncer como uma invasão do corpo sadio e como roubo de algo importante ao sujeito. As temáticas da sexualidade e do protagonismo feminino entrelaçam-se na costura de um filme que metaforiza o câncer em suas múltiplas representações sociais, abrindo espaço para o sentido de potência, rompendo com estereótipos negativos predominantes nas demais linguagens.

Palavras-chave: neoplasias da mama; saúde da mulher; sexualidade; filmes cinematográficos; educação em saúde

Abstract

Film language is an important resource for health teaching-learning. Discussions on cancer and its illness process have used several movies to trigger reflections necessary for a more empathic, sensitive and humanized health care performance. Seeking to contribute to this scenario, this study investigates the meanings around cancer mobilized by the movie Aquarius. The narrative portrays cancer as an invasion against the healthy body and as theft of one’s life. Sexuality and female empowerment are intertwined in this film that metaphorizes cancer in its multiple social representations, opening up space for a sense of power and breaking with negative stereotypes prevalent in other languages.

Keywords: breast neoplasms; women’s health; sexuality; motion pictures; health education

Résumé

Le langage cinématographique est une ressource importante pour l’enseignement et l’apprentissage dans le domaine de la santé. Les discussions sur le cancer et sont processus de maladie ont utilisés plusieurs films pour déclencher les réflexions nécessaires à une performance professionnelle plus empathique, sensible et humanisée. Cherchant à contribuer à ce scénario, cette étude examine les significations au tour du cancer mobilisées par le film Aquarius. Le récit dépeint le cancer comme une invasion du corps sain et comme le vol de la vie. La sexualité et le protagonisme féminin sont entrelacés dans ce film qui métaphorise le cancer dans ses multiples représentations sociales, ouvrant un espace pour un sentiment de pouvoir et rompant avec les stéréotypes négatifs prévalant dans d’autres langues.

Mots-clés : néoplasmes mammaires; santé des femmes; sexualité; films cinématographiques; Éducation à la santé

Resumen

El lenguaje cinematográfico es un recurso importante para la enseñanza-aprendizaje en el campo de la salud. Para trabajar sobre el tema del cáncer, se han utilizado de películas como desencadenantes de reflexiones necesarias para la formación de profesionales de la salud capaces de un desempeño más sensible y humanizado. Para contribuir a este escenario, el presente estudio tuvo como objetivo discutir los significados sobre el cáncer con base en el análisis de la película Aquarius. Los significados predominantes en esta película se refieren al cáncer como una invasión del cuerpo y como el robo de algo importante para el sujeto. Los temas de la sexualidad y el protagonismo femenino se entrelazan en la creación de una película que metaforiza el cáncer en sus múltiples representaciones sociales, abriendo espacio para la sensación de poder, rompiendo con los estereotipos negativos que prevalecen en otros idiomas.

Palabras clave: neoplasias de la mama; salud de la mujer; sexualidad; películas cinematográficas; educación en salud

Hoje trago em meu corpo as marcas do meu tempo Meu desespero, a vida num momento A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo. (“Hoje”, Taiguara)

O câncer tem sido evidenciado como um problema de saúde pública ao longo dos anos pelas estatísticas globais, sendo uma das principais enfermidades que acometem as pessoas ao longo do curso de vida. O número de casos de câncer continua a crescer globalmente, exercendo pressão física, emocional e financeira sobre indivíduos, famílias, comunidades e sistemas de saúde, sendo que muitos pacientes em todo o mundo não têm acesso a diagnóstico e tratamento de qualidade oportunos (World Health Organization [WHO], 2020a).

A magnitude crescente do câncer tem sido descrita como consequência do aumento populacional, do envelhecimento, das mudanças sociais, econômicas e de estilo de vida, sendo provável que expanda ainda mais a escala nas próximas décadas (Fidler, Bray, & Soerjomataram, 2017). Além disso, os índices de incidência e mortalidade por câncer estão crescendo rapidamente em todo o mundo (Bray et al., 2018), indicando a problemática dessa forma de adoecimento na atualidade.

Nas últimas décadas, progressos significativos em termos de tratamento, surgimento de novas tecnologias e medicamentos auxiliaram para que os índices de cura dessa doença tivessem uma melhora significativa. Contudo, essa doença ainda é uma das principais causas de morte de pessoas. Estimativas apontam o câncer como a segunda principal causa de morte no mundo, responsável por cerca de 9,6 milhões de mortes em 2018, sendo que globalmente cerca de uma em cada seis mortes ocorre devido a essa doença (WHO, 2018).

No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) estimou para cada ano do triênio 2020-2022 a ocorrência de 625 mil casos novos de câncer, sendo o câncer de pele não melanoma o mais incidente, seguido pelo câncer de mama em mulheres e o de próstata em homens (INCA, 2020). Esses dados evidenciam a magnitude dessa forma de adoecimento na população brasileira e fornecem subsídios para compreender as implicações e dimensões dessa doença na vida das pessoas e no sistema público de saúde do contexto nacional.

As implicações do adoecimento por câncer na vida das pessoas criaram um imaginário social relacionado à doença associando-a a uma enfermidade perigosa, ligada à morte e que traz sofrimento para a pessoa adoecida. O estigma relacionado a essa doença faz com que ela seja vista e tratada em muitas situações como um tabu que precisa ser evitado tanto em falar sobre, como em revelar sua existência. Pesquisa desenvolvida por Cho et al. (2013), cujo objetivo foi avaliar as atitudes do público em relação ao câncer e a disposição das pessoas em divulgar o diagnóstico da doença, demonstrou que os participantes percebiam o câncer como intratável e consideravam os sobreviventes como pessoas com deficiência física e social, além de descreverem que não divulgariam um diagnóstico para familiares, amigos, vizinhos e colegas de trabalho.

Do mesmo modo que socialmente pairam diversas fantasias e dificuldades relacionadas a esse tipo de adoecimento, na formação em saúde esses aspectos mostram-se presentes no modo como os estudantes apresentam-se diante desses conteúdos, muitas vezes com questionamentos teóricos/científicos e também em relação a experiências familiares e interpessoais (Rossato, Panobianco, & Scorsolini-Comin, 2020). Desse modo, trabalhar a temática do adoecimento por câncer constitui um desafio em toda a formação no campo da saúde. Nessa área predominam as estratégias de ensino-aprendizagem focadas na divulgação e compreensão das evidências relacionadas a esse tipo de adoecimento em busca das melhores práticas relacionadas, por exemplo, ao diagnóstico, ao tratamento e ao curso bem-sucedido dessa experiência frequentemente dolorosa (Epner & Baile, 2014; Pavlidis et al., 2020).

Visando a possibilitar aos estudantes uma discussão a respeito do câncer que ultrapasse a assimilação de conteúdos e também abrir espaço para que as vivências pessoais possam ser trabalhadas e discutidas, a linguagem fílmica tem se mostrado um recurso importante para disparar tais reflexões (Scorsolini-Comin & Santos, 2013). O filme, considerado uma linguagem mais próxima dos estudantes e também um recurso lúdico, pode ser útil no sentido de introduzir uma temática considerada complexa e permitir uma aproximação do tema.

Quando buscamos por filmes que abordam a temática do câncer, importantes produções podem ser referenciadas, tais como: A culpa é das estrelas (Boone, 2014), Uma prova de amor (Cassavetes, 2009), Pronta para amar (Kassell, 2011), Já estou com saudades (Hardwicke, 2015) e Doce novembro (O’Connor, 2001). Essas películas trabalham com os sentidos mais comumente evocados em relação ao câncer, como o medo da morte, o temor diante do diagnóstico de câncer e, frequentemente, as dificuldades decorrentes do processo de enfrentamento da doença. O recurso utilizado nessas narrativas emerge de modo associado ao componente afetivo, destacando a emoção das personagens e buscando emocionar o interlocutor. Por essa razão, tais filmes mobilizam emocionalmente seus expectadores, gerando comoção diante da temática do câncer. Também são filmes com expressiva distribuição, sendo frequentemente exibidos na televisão e nas plataformas de streaming.

Esse movimento promove um processo que associa o adoecimento pelo câncer a representações sociais consideradas complexas, temerosas e repletas de aspectos desadaptativos do ponto de vista da saúde mental (Vidotti et al., 2013). Mais do que promover um debate, tais filmes podem ser representações tanto do que a sociedade compreende por câncer como também reforçar estereótipos negativos relacionados a essa doença, não permitindo a veiculação de sentidos considerados positivos e adaptativos geralmente relacionados a noções como as de enfrentamento, de resiliência, de cura e de superação.

Esses filmes, embora possam ser empregados em contextos de ensino e aprendizagem, devem ser discutidos em termos dos diversos marcadores dessas produções, buscando novas formas de apreender o adoecimento e a promoção de saúde. Buscando discutir essa temática com profissionais de saúde e evitando os filmes que frequentemente evocam sentidos considerados desadaptativos em relação a esse tipo de adoecimento, muitas vezes em um posicionamento unívoco em relação à temática, o filme Aquarius, roteirizado e dirigido por Kleber Mendonça Filho, lançado no ano de 2016, tem se revelado um filme importante em torno dessa argumentação. Este filme também tem sido capitaneado para a discussão desse tema por fugir das narrativas que tradicionalmente estão presentes em filmes cujo enredo central é o câncer, em um movimento no qual o adoecimento é costurado ao cotidiano e às diversas experiências pelas quais as pessoas passam ao longo do ciclo vital.

A partir dessa argumentação, o objetivo deste estudo é discutir os sentidos sobre o adoecimento pelo câncer a partir da análise do filme Aquarius. A meta do estudo é contribuir para as discussões sobre o ensino acerca do câncer a partir da linguagem fílmica como disparadora de diferentes reflexões e posicionamentos que evoquem não apenas conhecimentos científicos, mas também experiências pessoais e leituras de mundo que devem compor o repertório formativo dos profissionais de saúde no paradigma da integralidade e da humanização. Trata-se de um estudo de caráter teórico e de base documental que partirá do filme em tela para apresentar reflexões que serão cotejadas a partir da literatura científica produzida acerca do adoecimento pelo câncer.

O filme Aquarius

Aquarius retrata a vida da personagem Clara, uma mulher de 65 anos, jornalista, viúva e mãe de três filhos que vive no Edifício Aquarius na praia de Boa Viagem em Recife. A história do filme apresenta a luta da personagem para se manter no apartamento que viveu a maior parte da vida e do qual tem inúmeras lembranças, após uma construtora comprar todos os demais apartamentos do prédio. No transcorrer do enredo, as vivências atuais e do passado se entrelaçam, dando significado para as experiências de vida, marcadas por memórias que foram e são significativas e parte da existência e constituição do eu da personagem.

Dividido em três capítulos (“O cabelo de Clara”, “O amor de Clara” e “O câncer de Clara”), o filme é marcado essencialmente pela representação do significado das memórias na vida da personagem, demonstrando a importância do passado para a constituição do eu na atualidade. No filme, o enredo não é direcionado para as vivências do câncer de mama, sendo esse evento apresentado como algo ligado à história de vida de Clara, que teve significado no percurso da personagem, mas que não foi limitador para que ela construísse sua história. As sinalizações desse evento ao longo da produção estão representadas no início do filme, quando Clara surge com o cabelo curto, deixando a entender um possível sinal da recuperação do processo de tratamento da doença; e no transcorrer da película, ao demonstrar algumas implicações da mastectomia na vida sexual da personagem, sem que seja feita uma descrição estereotipada ou mesmo didática desse evento.

Além da temática do câncer, o filme aborda questões como a da exploração imobiliária, do racismo, das assimetrias econômicas e sociais entre patrões e empregados, da sexualidade e do empoderamento feminino. Tais narrativas não constituem diferentes lugares de interesse para o expectador, mas sim vértices que dialogam diretamente com o contexto do câncer, como será abordado posteriormente.

Os sentidos vivenciais expressos no filme

Para a construção deste estudo documental, o percurso analítico foi composto a partir dos procedimentos sugeridos por Fulgencio (2013): Fase 1) estabelecer o quadro teórico segundo o qual o fenômeno será analisado; Fase 2) definir autores e obras que serão consultadas para orientar a interpretação; Fase 3) descrever o objetivo da interpretação do material. Na Fase 1 estabelecemos o quadro teórico da Psicologia da Saúde, com foco nos estudos sobre o adoecimento por câncer, quadro este apresentado na introdução do presente estudo. Na Fase 2 definimos como objeto de estudo o filme Aquarius, bem como possíveis estudos publicados sobre essa produção que discutam a temática do câncer. Na Fase 3 definimos como objetivo da interpretação a discussão dos sentidos sobre o adoecimento pelo câncer veiculados no presente filme. Para a execução da Fase 3 foi adotado o seguinte itinerário, a exemplo do que foi descrito no estudo de Scorsolini-Comin e Santos (2013): (a) o filme foi assistido por dois pesquisadores de modo independente por, ao menos, três vezes; (b) a cada exibição os pesquisadores anotavam individualmente em um diário de campo as suas impressões sobre o filme; (c) nesse mesmo diário de campo eram descritas cenas e diálogos relacionados ao câncer a partir da perspectiva de cada pesquisador; (d) a fim de analisar essas passagens mais detidamente, foram anotados os tempos de cada cena, de modo que pudessem ser retomadas posteriormente já tendo em vista o processo analítico; (e) em reunião posterior, ambos os diários de campo foram lidos, sendo elencados os pontos de encontro de cada registro e os sentidos produzidos por cada um dos pesquisadores; (f) após a discussão sobre os temas emergentes em comum, foram produzidos cinco sentidos principais para discussão e reflexão: (1) Protagonismo feminino; (2) O câncer como algo a ser lembrado; (3) O câncer como roubo; (4) O câncer como invasão; (5) O câncer como poder. A seguir, esses sentidos serão melhor apresentados e discutidos.

Protagonismo feminino

Os primeiros aspectos que devem ser destacados em relação a este filme referem-se à abordagem do protagonismo feminino. Uma personagem simbólica nesse sentido é tia Lúcia, que, no início do filme, está comemorando o seu aniversário de 70 anos na cidade de Recife. Os filhos de Clara escrevem textos em homenagem à tia Lúcia e tais narrativas apresentam ao expectador uma idosa considerada à frente de seu tempo, responsável por diversos elementos considerados de ruptura com o que se esperava da mulher à época. Entre esses eventos destaca-se o fato de tia Lúcia ter cursado ensino superior, ter sido aprovada em concurso público e ter sido a primeira mulher a ocupar espaços importantes relacionados à sociedade conservadora de Recife.

Para além desses aspectos, tia Lúcia complementa os textos de seus sobrinhos netos para tratar de uma temática que, segundo ela, não havia sido devidamente explorada na homenagem: a liberdade sexual. Em meio às homenagens que vai recebendo, tia Lúcia olha para lugares específicos do apartamento de Clara e se lembra de tórridas noites de amor com seu companheiro já falecido.

Tia Lúcia não se casou e era amante de um homem casado, Augusto, seu companheiro ao longo da maior parte da vida. Foi com Augusto que tia Lúcia parece ter se realizado sexualmente para além dos padrões impostos pela sociedade e considerados legítimos às mulheres de seu tempo. Tais aspectos merecem ser destacados e discutidos, principalmente ao considerar que mesmo na atualidade a sexualidade, a conjugalidade e a maternidade são elementos perpassados por valores morais que orientam a vida social no contexto brasileiro. Para alguns grupos sociais a sexualidade ainda é vista como um tabu quando não exercida dentro de um contexto conjugal heterossexual e em alguns casos com a finalidade reprodutiva. Tais elementos, embora não correspondam à realidade, são delimitadores das diferenças de gênero existentes na sociedade que têm sido problematizadas ao considerar a necessidade de abordar questões como a sexualidade feminina e a maternidade, principalmente com o objetivo de desconstrução de estereótipos, como descrito por Farinha e Scorsolini-Comin (2018).

Essa possibilidade do ser mulher como alguém independente e possuidor de desejos sexuais que podem e devem ser satisfeitos atravessa a narrativa de Clara após o seu adoecimento por câncer e também a sua viuvez. Já na segunda parte do filme Clara é representada com uma mulher forte, decidida, determinada e que não se encaixa nos padrões de uma mulher submissa e que esconde os próprios desejos. Clara é viúva e passou grande parte da sua vida dedicada à carreira de jornalista na área musical, tendo que afastar-se dos filhos durante o período de produção do seu livro mais importante, estágio este no qual o cuidado dos filhos foi promovido pelo esposo. As cobranças típicas em relação à maternidade em sua dupla jornada aparecem não apenas na cobrança que seus filhos, já adultos, fazem em relação à Clara em dado momento, mas também podem ser apreciadas no itinerário da própria filha quando esta se divorcia e precisa conjugar o cuidado do filho (neto de Clara) com a sua atuação profissional. Neste trecho o filme representa o papel da avó nesse processo, sendo Clara uma figura importante nos cuidados com o neto para que a filha continuasse trabalhando.

A necessidade de a mulher flexibilizar-se para a corporificação de diferentes papéis é algo destacado no filme, denunciando também a estrutura machista sob a qual se sustenta a sociedade brasileira: à mulher que trabalha pesa o ônus do possível afastamento da maternidade, relação na qual o papel do homem é pouco evocado, o que possui como efeito a associação do cuidado dos filhos como uma atribuição essencialmente feminina (Fiorin, Oliveira & Dias, 2014). Nesse trabalho a mulher passa a contar com uma rede de apoio essencialmente feminina, representada pela avó Clara e por sua funcionária, no filme. A carreira da mulher, nesse sentido, é representada como algo que só pode ocorrer se houver certo distanciamento da maternidade, fato este que recairia sobre a própria mulher no futuro, gerando culpa por não ter exercido a maternidade tal como uma sociedade machista e patriarcal espera ou deseja.

As referências ao sexo e à sexualidade são expressivas na película. Clara busca a satisfação sexual por meio de uma relação com um garoto de programa em uma dada passagem do filme, possui uma relação de aparente aceitação do seu corpo e se mostra, a todo o tempo, ciente da sua sensualidade e da sua sexualidade. Para representá-la, a escolha da atriz Sônia Braga parece oportuna. Considerada uma das atrizes mais belas de sua época, com fama e renome internacional, Sônia Braga sempre foi representada com uma mulher muito bonita, atraente e vaidosa, cumprindo os estereótipos da mulher brasileira que foi divulgada no exterior na segunda metade do século XX (Goldemberg, 2006). Seus longos cabelos, considerados sinônimos de sensualidade, são bastante explorados na narrativa.

Na primeira parte do filme, Clara aparece com cabelo bastante curto, resultado de seu tratamento de câncer. Posteriormente, já encenada por Sônia Braga, com 65 anos de idade, a personagem possui cabelos longos e pretos que são sempre colocados como foco no filme. Assim, os cabelos de Clara que dão título à primeira parte do filme são representados de modo curto no início da narrativa e logo após o tratamento de câncer, posteriormente sendo revelados ao expectador como longos e expressivos. Assim, seus longos cabelos podem ser simbolicamente associados à cura do câncer ou a um estágio posterior ao adoecimento.

O feminino também aparece representado na própria escolha do tipo de câncer que acomete Clara, o câncer de mama, o mais comum em mulheres. Entre os tratamentos para o câncer de mama, a mastectomia total ou parcial da mama pode ser um dos protocolos empregados e no caso da personagem Clara a representação feita foi a de uma mastectomia total da mama esquerda.

O câncer de mama é o segundo tipo de câncer que mais acomete mulheres no contexto brasileiro de acordo com estimativas do INCA (2020) e, no contexto global, representa um importante problema de saúde pública, sendo o câncer de ocorrência mais frequente em mulheres (Tao et al., 2015). Para o ano de 2020 a Organização Mundial da Saúde estimou a ocorrência de 2.261.419 de casos de câncer de mama no mundo, sendo 85.620 destes no Brasil (WHO, 2020b). A incidência de câncer de mama tem aumentado no mundo e, embora possa ser alcançada alguma redução de risco com a prevenção, essas estratégias não podem desconsiderar o fato de que a maioria dos casos se desenvolve em países de baixa e média renda em que o câncer de mama é diagnosticado em estágios muito tardios (WHO, 2020c).

Embora seus longos cabelos representem a cura da doença, a ausência de um dos seios revela uma das marcas importantes do adoecimento por câncer vivenciado pela protagonista, o que é bastante explorado na literatura científica sobre o câncer de mama, sendo um dos aspectos mais temidos pelas mulheres acometidas. A mastectomia é um procedimento frequentemente curativo para o tratamento do câncer de mama (Chen et al., 2018). Contudo, as implicações da retirada da mama e a posterior reconstrução podem interferir nas condições de saúde mental das mulheres e desencadear sintomas psicopatológicos como estresse, depressão, ansiedade, além de mudanças em relação à percepção da autoimagem (Fanakidou et al., 2018; Herring et al., 2019).

A mastectomia total é uma intervenção cirúrgica que, muitas vezes, é significada como uma quebra da integridade do corpo, podendo causar perturbações na imagem corporal (Li et al., 2018; Vidotti, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013). A imagem corporal pode ser uma questão particularmente importante em mulheres e a perda de mama, as cicatrizes cirúrgicas, a alopecia, entre outros aspectos, são sequelas que podem prejudicar a qualidade de vida (Rosenberg et al., 2012).

Essa marca, com suas cicatrizes, acaba dialogando com a música de Taiguara que abre a narrativa do filme, como se essa e outras marcas acumulados ao longo do tempo fossem não apenas representações de um passado vivido, mas de possibilidade de composição de um presente que, a despeito desses registros, poderia se configurar com uma narrativa diferente de outrora. Essa simbologia será melhor explorada a seguir.

O câncer como algo a ser lembrado

A experiência de adoecimento pelo câncer é um importante evento desenvolvimental. Embora possamos tratar de aspectos como a superação do adoecimento e mesmo de um processo de resiliência, o câncer deixa marcas expressivas tanto nos corpos de seus sobreviventes como nas experiências emocionais decorrentes desse evento. Adoecer por câncer é algo que, inevitavelmente, irá atravessar a experiência de vida de qualquer pessoa.

Em relação ao adoecimento por câncer de mama, como o vivido pela personagem, sabe-se que o diagnóstico e o tratamento afetam não apenas os aspectos físicos, mas também os psicológicos e sociais da vida cotidiana, sendo que esses impactos também se estendem e são presentes em mulheres que obtêm sucesso no tratamento (Campbell-Enns & Woodgate, 2017). Em muitas situações o estresse psicossocial pode reduzir as oportunidades de vida das pacientes e aumentar a rejeição e o isolamento social, uma vez que o diagnóstico pode desencadear reações adversas para a maioria das mulheres (Al-Azri et al., 2014).

A narrativa do filme não se propõe a apagar o adoecimento por câncer, mas de constantemente relembrá-lo, tanto aos seus personagens como aos próprios expectadores. Pode-se dizer que o filme não explora a questão do câncer como centro da sua narrativa, mas de que essa doença acaba costurando todas as narrativas do filme de modo a produzir sentidos relevantes sobre a vida da personagem Clara.

O adoecimento por câncer é lembrado nos momentos em que Clara busca a retomada de sua vida sexual, quando se enamora por um senhor que conheceu em um baile que estava com as amigas ou quando tem um relacionamento sexual com um garoto de programa. As interferências do câncer na sexualidade feminina podem ocorrer por meio de aspectos biológicos do organismo e também pelos aspectos psicológicos e sociais que permeiam o contexto de vida. Assim, percebe-se a importância de se considerar a sexualidade como algo que não se limita ao físico, pois o corpo não pode ser conceituado sem que seja considerado o contexto relacional, as construções discursivas de sexualidade e feminilidade em um contexto sociocultural específico (Emilee, Ussher, & Perz, 2010).

Nas duas situações supracitadas, a ausência de uma das mamas é referida ora como um empecilho ou uma condição especial para um relacionamento, ora como algo a ser contornado para que o enlace amoroso aconteça. Enquanto empecilho, o senhor com quem havia dançado no baile toca o seu corpo e nota a ausência do seio. Neste momento, Clara afirma que teve que realizar uma cirurgia. Ao fazer essa revelação, o homem interrompe o enlace. Já no segundo momento, ao contratar os serviços de um garoto de programa, a mesma ausência do seio é notada pelo parceiro, o que rapidamente é contornado pela protagonista ao fazer com que o rapaz tocasse o seu seio direito.

Tais lembranças no nível corpóreo são importantes simbologias a respeito do câncer de mama, de modo que a superação da doença e mesmo a cura não significam o apagamento desses registros experienciais, emocionais e corpóreos. Neste ponto da narrativa, o filme trabalha com a ideia de que sobreviver ao câncer é também conviver com o câncer e suas marcas, de modo que a superação não significa a transformação da narrativa de vida para algo no qual o adoecimento não seja mais possível. Desse modo, constrói-se uma narrativa vivencial e bastante concreta em relação às sobreviventes do câncer de mama, sobretudo as de longo prazo (Vidotti et al., 2013).

Ao desmistificar que a retomada de uma vida sexual tenha que se dar a despeito da doença, Clara revela, em seu próprio corpo, que o prazer pode ser buscado em um corpo construído a partir do câncer e após esse tipo de adoecimento, um corpo que possui marcas, que possui registros e que possui uma história. Para além desses aspectos, a própria dimensão da memória é referida em diversas passagens, como na escolha das fotos de criança para o casamento do sobrinho, na referência às músicas do passado e às linguagens digitais e analógicas, na reverência aos elementos considerados antigos e que são revisitados como vintage.

Ao invés de apagar, o filme sugere a lembrança como possibilidade de conferir contornos outros que não apenas aqueles responsáveis pela exclusão de registros importantes na história de vida do sujeito (Scorsolini-Comin & Santos, 2013, 2016). O câncer, desse modo, é trabalhado como algo que deve ser lembrado e, paulatinamente, como algo que não pode ser esquecido pelo sujeito, quaisquer que sejam as tentativas nesse sentido. O esquecimento do nome de uma empregada - Juvenita - que, supostamente, havia roubado a família no passado, representa que nada pode, de fato, ser realmente apagado, funcionando como uma metáfora de algo que volta à tona - tanto a lembrança como o esquecimento seriam operadores importantes da construção do psiquismo e, no filme, constituem importantes sentidos sobre o adoecer por câncer. Essa fantasia do roubo será melhor explorada a seguir.

O câncer como roubo

Outro sentido que emerge na narrativa é o do câncer como roubo de uma condição anterior de saúde ou de equilíbrio para a construção de uma nova condição repleta de intervenções, de interditos e de condicionamentos, de restrições importantes ao viver. Esse sentido é explorado nas histórias que circundam as personagens do filme.

A exploração imobiliária representada pela tentativa de compra do apartamento de Clara para a construção de um novo edifício Aquarius é um dos aspectos centrais dessa simbologia. A exploração imobiliária refere-se à tentativa de desconstruir o antigo para que, em seu lugar, possa habitar algo novo, renovado e que atenda às ansiedades e expectativas de um novo público. Esse processo nem sempre considera as decisões de seus moradores e a história daquele território, mas dialoga fundamentalmente com a necessidade de atender à demanda capitalista que apregoa a exploração como condição para a manutenção de um sistema econômico.

Nessa exploração não cabem justificativas que levem em consideração as histórias dos sujeitos, suas lembranças e suas histórias com seus lugares de origem, com o território tanto físico quanto afetivo. Tudo pode ser modificado, tudo pode ser desconstruído e tudo pode ser reerguido a partir de uma nova premissa que tenha como norte o apagamento do passado. Clara é representada com uma personagem que se recusa a esse apagamento e à desconstrução de seu apartamento enquanto campo vivencial e quanto história não apenas de sua vida como a de seus familiares, o que também é representado e retomado pela personagem de tia Lúcia no início narrativa a partir de experiências vividas no mesmo apartamento que Clara vive atualmente, na praia de Boa Viagem, no Recife.

Em contraponto a essa interpretação, um outro aspecto relacionado a essa veemente recusa de Clara em vender seu apartamento refere-se ao que chamamos de diferença entre lembrar o passado, algo acessível a todos que possuem uma memória, e o apego injustificado a esse tempo pretérito. Clara parece, em alguns momentos, fixar-se no apartamento como uma via concreta para não perder o passado. Em que pesem as vivências afetivas naquele território, o comportamento de Clara aproxima-se, por vezes, de uma atitude intransigente e obstinada. Assim, pode-se aventar que é bastante tênue a linha entre a necessidade de preservar uma memória e a incapacidade de desapegar-se do passado, como se aquele território fosse responsável, sozinho, pela manutenção das memórias que Clara queria preservar. Ainda assim, também a tentativa desenfreada de a empreiteira adquirir o apartamento revela a possibilidade de um território destituído de memórias e afetividade, em uma postura que prioriza o lucro decorrente dessa exploração e não as pessoas nem as histórias que corporificam qualquer território.

O roubo também emerge a partir de episódios que tratam dos desvios financeiros cometidos pela construtora que quer destruir o edifício Aquarius e desenvolver o “novo Aquarius”. Em outra passagem, o roubo é representado a partir de uma empregada doméstica negra que trabalhara para a família de Clara no passado. A empregada é descrita como uma funcionária antiga que havia roubado as joias da família. Em alguns momentos, as imagens dessa empregada aparecem de modo confuso e desorganizado, como se os personagens não pudessem ter certeza do que de fato ocorreu. A memória, assim, é retratada como um elemento carregado de afetividade e que pode ser distorcida, silenciada e mesmo apagada a partir de diferentes marcadores, entre eles o trabalho que seria realizado de fora para dentro, a exemplo do movimento de demolição operado pela construtora para construir o novo empreendimento.

A presença da empregada que havia roubado família volta à baila na terceira parte do filme, quando Clara se vê diante da necessidade de resolver a questão da invasão do edifício por parte da construtora. É a imagem da empregada doméstica que aparece dizendo a Clara que ela estava machucada, sangrando em um sonho. Esse episódio, acrescido da importante referência da empregada de Clara nos tempos atuais, destaca as importantes assimetrias sociais entre patrões e empregados, desvelando também questões de gênero, raça/cor, opressão e exploração oportunamente tensionadas em outros estudos (Bragança, Siciliano, & Pinto, 2019).

O mundo dos patrões e o mundo dos empregados são representados de maneira diametralmente opostas no filme. O lugar da empregada está sempre atrás, à espreita, deixando a patroa em posição de protagonismo e de maior importância em relação as cenas. Os bairros onde vivem patroas e empregadas são divididos por uma rede de esgoto a céu aberto que marca uma linha divisória entre o mundo de quem oprime e o mundo de quem é oprimido. Em uma sociedade bastante conservadora e assimétrica como a do Recife, esses diferentes lugares ocupados por patrões e empregados revelam uma estrutura rígida, essencialmente opressora, racista e que aproxima a experiência da pobreza à maior possibilidade de exposição à injustiça social, como a representada a partir da morte não solucionada do filho da empregada de Clara, Ladjane.

O câncer como invasão

O sentido da invasão é trabalhado ao longo de todo o filme. Em nenhum momento emerge a narrativa algo que possa ter causado o câncer de Clara ou que estivesse associado potencialmente a essa experiência de adoecimento. O câncer simplesmente aparece como algo que invade o corpo do sujeito independentemente de sua vontade ou de seu consentimento, roubando-lhe uma condição de saúde e de equilíbrio e promovendo uma desorganização e uma perda progressiva de aspectos importantes relacionados à experiência do sujeito, deixando marcas em seu corpo e em seu psiquismo.

O câncer muitas vezes é descrito como algo que promove uma cisão na vida do sujeito, algo que rompe com a realidade e coloca em suspensão todas as certezas sobre o cotidiano e os planos futuros. Frequentemente o próprio corpo se torna algo estranho, uma vez que se perde algo nesse processo (no caso da mama), sendo necessária uma readaptação do sujeito a esse corpo, como acontece com a personagem Clara. O corpo tem um sentido simbólico, é aquilo que confere uma identidade, é linguagem, não se trata meramente de um aparato orgânico e suas alterações terão implicações diretas na vida do sujeito. Quando uma parte significativa é perdida com o avanço da doença ou pelo tratamento cirúrgico, uma operação de reconhecimento desse corpo será necessária (Ferreira & Castro-Arantes, 2014).

Nesse sentido, pode-se dizer que o próprio corpo representa uma das moradas do sujeito, uma vez que é o espaço onde se constrói a subjetividade, onde são guardadas as memórias, os afetos, instrumento pelo qual se materializa a vida. É entendido como consequência de uma construção, não estando pronto desde o nascimento (Ferreira & Castro-Arantes, 2014). Assim, Clara não está disposta a ter roubado de si outra parte que é significativa de sua história, de sua constituição, carregado de significados que fazem parte de sua existência no mundo, que é representada pelo apartamento.

A invasão também é representada quando a construtora leva para o prédio uma estrutura de madeira de demolição com cupins capazes de promover a completa destruição do imóvel. O cupim de demolição é representado como um agente capaz de corroer um corpo, neste caso o corpo físico do imóvel, o que simbolicamente se remete ao próprio corpo humano. O cupim corrói essa estrutura do imóvel, a exemplo do que o câncer, de modo metafórico, faz no corpo humano. A imagem de corrosão, de expansão, de algo que não se pode conter ou controlar emerge de modo significativo.

Quando Clara leva uma parte dessa madeira de demolição para as dependências da construtora, afirma que depois de ter adoecido pelo câncer ela preferia dar um câncer a ter um câncer. Aqui é importante considerar a representação do mito de que o paciente poderia produzir o câncer a partir de um determinado comportamento, o que torna lícita também a interpretação de que seria possível, deliberadamente, evitar o aparecimento da doença. Essas representações levam a uma culpabilização do sujeito, como se coubesse a ele deter o avanço da doença, como na metáfora do cupim, ou então produzir o adoecimento no outro por meio da transmissão intencional de um problema, pela expressão de um comportamento agressivo ou pela produção de um trauma, por exemplo. Essas imagens estão fortemente representadas em nosso imaginário social sobre o câncer, o que é capturado pelo filme. Essas representações também podem evocar associações do câncer à culpa, ao castigo e à punição por atos, comportamentos e experiências das pessoas ao longo da vida.

Nesse momento da narrativa Clara também explora, simbolicamente, uma representação social bastante difundida a respeito do câncer como algo complexo do ponto de vista emocional. As possíveis dificuldades emocionais vivenciadas e que poderiam conduzir a uma experiência do câncer são transpostas na narrativa da sobrevivência da personagem Clara para uma possibilidade de não mais receber o câncer como resultado de suas possíveis vivências individuais, mas de permitir que esse câncer se espalhe para outros, isto é, que seja produzido em outras pessoas.

No entanto, é importante colocar em suspenso essa fantasia de onipotência que se abate sobre Clara após ter sobrevivido ao câncer. Clara não apenas se sente apartada da possibilidade de adoecer novamente como se atribui a possibilidade de dirigir esse adoecimento a outrem, no caso, aos donos da construtora. Tomada por esse sentimento de agora ser imune ao câncer, pois este já a havia atingido no passado, parece reconhecer o potencial destrutivo dessa doença. Desse modo, ao desejar o aniquilamento das pessoas que buscavam destruir o apartamento que a ligava ao passado, parece realmente reconhecer o câncer como algo que, a despeito de outras estratégias de embate, poderia, de fato, atingir o inimigo. Clara já havia passado por isso em sua pele, tendo consciência do modo como o câncer atravessava para sempre a vida de uma pessoa. É essa metáfora que utiliza para atacar, de algum modo, os donos da construtora.

No entanto, também reconhece que sua luta individual em nada poderia deter o poderio econômico que ameaçava ruir o prédio em que passara a maior parte da vida. Mesmo assumindo a sua impotência nesse embate assimétrico, retoma a sua experiência de adoecimento por câncer como forma de se ancorar em algo ameaçador que conseguira enfrentar e vencer. Essa imagem nos parece especialmente importante para a discussão a seguir.

O câncer como poder

Como podemos observar, predomina na literatura científica e também nos filmes que abordam a temática do câncer um sentido que costura esse adoecimento a uma noção considerada negativa, desadaptativa, promotora de vivências emocionais dolorosas e que frequentemente, também se aproximam da morte e do morrer. Ao contrário dessa representação, o filme Aquarius explora a sobrevivência ao câncer como algo carregado de poder.

Esse aspecto permite a Clara assumir o protagonismo da própria vida, das próprias decisões e também de combate à tentativa de destruição do condomínio em que se coloca o seu apartamento. Recusando-se a uma posição de quem recebe o adoecimento, que é invadida por um agente que promove esse adoecimento, Clara mostra-se uma pessoa reativa a esses aspectos, preferindo, no nível do desejo, inclusive, “provocar” este tipo de adoecimento em outras pessoas a ter que passar ela mesma por esses aspectos outrora vivenciados. Aqui, novamente, é importante considerar o mito de que o câncer pode ser “produzido” deliberadamente a partir de uma escolha ou de um determinado comportamento do sujeito. No entanto, o endereçamento metafórico de um câncer aos seus oponentes revela o modo como a experiência do adoecimento havia se depurado na protagonista, sendo carregado de sentidos como os de resistência e de enfrentamento.

A experiência de adoecer por câncer transforma essa personagem em uma mulher forte, segura, determinada e que é capaz de mobilizar a si mesma e as pessoas ao seu entorno para a luta em relação aos aspectos por ela priorizados. A tentativa de manter vivo o edifício Aquarius não se refere apenas à possibilidade de manutenção de um imóvel ou de um bem, mas a de preservação de suas memórias e de registros importantes acerca do seu viver. Esse edifício, como metáfora do seu corpo, é revelado no filme como algo que a protagonista busca manter a despeito dos diversos movimentos que buscam cindir essa estrutura e apagá-la.

Ao lutar pela preservação do edifício Aquarius, Clara também está buscando a preservação e a continuidade da sua própria vida e de sua própria história, como se o seu corpo e a sua alma tivessem que sobreviver em conjunto a todas as intempéries das quais o câncer foi um elemento importante. A resistência representada em Clara também metaforiza o conflito entre velho e novo, entre passado e presente, de modo que a protagonista se mostra uma representante não apenas de um passado que deve ser renovado na contemporaneidade, mas da necessidade de também validar socialmente as experiências dessa mulher em suas lutas cotidianas contra um adoecimento grave, contra o preconceito em uma sociedade machista, contra uma sociedade que ainda associa a mulher ao domínio exclusivo do lar, que a escraviza em relação às imagens do que deve ser um corpo saudável e belo, contra o poder masculino que visa a desestabilizar a mulher em seu poder de tomar decisões, enfim, em relação às diversas invasões às quais os corpos femininos são expostos em nossa cultura. Em resposta a esse movimento, Clara resiste e se mostra combativa, o que é metaforizado no filme na sua tentativa de manter vivo o edifício Aquarius e, consequentemente, a sua própria história.

O sentido de poder a partir da experiência do câncer é retratado no filme como uma condição alcançada por meio da vivência de algo bastante complexo e doloroso. Sobreviver ao câncer é, portanto, um aspecto representado no filme como algo potente e capaz de fazer frente, inclusive, a possíveis ameaças a esse corpo de agora, marcado e construído a partir de experiências pregressas.

Considerações finais

Ao final do presente estudo pode-se assinalar que, apesar de o filme em tela dialogar com sentidos bastante explorados em demais produções que elegem o câncer como temática central, abre-se a possibilidade de emergência de um sentido menos comum, o do adoecimento pelo câncer como potente, sinônimo de um poder adquirido a partir da experiência de sobreviver a esse adoecimento. Enquanto sobrevivente de longo termo de um câncer de mama, a protagonista Clara não apenas reconstrói a sua vida após a doença, a perda do marido e a saída dos filhos de casa, mas se mostra uma mulher empoderada pelas experiências que tivera.

Aventa-se que a memória do câncer, nessa personagem, em seu corpo e em suas experiências de vida, possa ter se revelado como uma potência capaz de subverter a lógica do adoecimento como algo ruim, negativo e desadaptativo, promovendo o surgimento de um sentido novo, adaptativo e capaz de construir novas inteligibilidades. No entanto, esse sentido também se difere da literatura clássica em torno da superação e das estratégias de enfrentamento, como se a pessoa tivesse apagado o adoecimento, suplantando-o.

Em Aquarius o sentido parece não querer a superação, mas sim a vivência a despeito do adoecimento. Aceitando as experiências e as marcas do tempo, a personagem pode estar amadurecida em sua capacidade de continuar lutando e resistindo, trazendo para si um sentido de potência a partir do câncer. Esse sentido de potência parece ainda ser tímido nas representações fílmicas do câncer, o que também atravessa o modo como essa linguagem pode ser evocada nos cursos de formação na área de saúde.

Tais reflexões podem ser importantes na formação dos profissionais de saúde, permitindo a audiência e a emergência de diferentes sentidos sobre o câncer, sentidos esses que, inclusive, permitam a construção de novas inteligibilidades, rompendo com estereótipos negativos e tabus até então predominantes na sociedade, na arte e também na formação em saúde. Além disso, podem permitir que o câncer não seja associado exclusivamente à finitude, mas à busca de recursos e à adoção de itinerários de vida, considerando o adoecer uma experiência concreta, ultrapassando exclusivamente a narrativa do sofrimento.

A protagonista Clara promove no expectador uma perspectiva mais adaptativa, mas não se recusa a olhar para o seu adoecimento e as suas repercussões - trata-se de uma mulher consciente das suas experiências. Assim, a linguagem proposta não se liga necessariamente a uma visão de superação do adoecimento, como frequentemente evocado em alguns filmes mais tradicionais ou mesmo comerciais, mas a uma vida que possa ser experienciada tendo a narrativa do adoecer como mais uma das possibilidades de ser-no-mundo: o adoecimento não é escamoteado, mas convocado a estar presente como acontecimento e como experiência.

Ao final desse percurso, recomenda-se a utilização desse filme em contextos de ensino e aprendizagem pelas diversas possibilidades que emergem da narrativa de Clara, sendo o adoecimento apenas uma dessas. O câncer, desse modo, embora possa ser um elemento que dê início à narrativa e atravesse todo o filme, é vislumbrado como uma experiência com a qual Clara e a sua família passam a lidar, enredando-se dentro de outros acontecimentos, de outros desafios e de superações que não envolvem apenas o sobreviver ao câncer. Isso se assemelha ao itinerário dos pacientes na linha de cuidado oncológico: embora tenham a narrativa da doença e as possíveis intercorrências dessa experiência, trata-se de acessar também todo um universo de significados e vivências para além do adoecer.

Permitir tais leituras pode ser uma estratégia importante na formação de profissionais mais alinhados aos pressupostos do cuidado integral e humanizado no contexto oncológico. Tais leituras podem possibilitar a construção de outras percepções sobre o câncer, permitindo novos olhares para os sujeitos nessa travessia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2022
  • Aceito
    27 Maio 2023
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