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Feminino e maternidade: mais ainda, a partir da prematuridade

Feminine and motherhood even more in prematurity

Femenino y maternidad: aún más desde la prematuridad

Féminin et maternité encore dans la prématurité

Resumo

A partir da escuta psicanalítica oferecida a mães de bebês prematuros em alas de neonatologia de um hospital maternidade, buscamos articular neste artigo as relações entre feminino e maternidade, através da apresentação de trechos de um caso atendido. Para isso, debatemos as questões relativas à construção da maternidade como algo inerente à feminilidade, perspectiva concebida na modernidade e que se estende para os dias atuais, acompanhada de críticas e atualizações. Consideramos também a noção freudiana de feminilidade enquanto saída edípica das mulheres, a qual não se iguala às leituras sociais, pois inclui o desejo. Essa noção ganhou maiores contornos com o ensino de Lacan, o qual nos ajudou a trabalhar maternidade e feminino a partir do desejo e de posições de gozo fálicas e não-todas fálicas que se colocam de maneira sempre singular para cada mulher.

Palavras-chave:
feminino; maternidade; escuta clínica; psicanálise; prematuridade

Abstract

Based on psychoanalytic listening offered to mothers of premature babies in the neonatology ward of a maternity hospital, this study articulates the relationships between the feminine and motherhood through a case analysis. To do so, it discusses issues related to the construction of motherhood as inherent to femininity, a perspective created by modernity that prevails today, followed by criticisms and updated views. It also considers the Freudian femininity as an Oedipean escape for women, which differs from social readings as it includes the desire. This notion was better developed by Lacan, whose writing helped us investigate motherhood and femininity according to desire and to phallic and not-all phallic jouissance, which are always singular experiences.

Keywords:
feminine; maternity; clinical listening; psychoanalysis; prematurity

Resumen

Desde la escucha psicoanalítica ofertada a madres de bebés prematuros en sectores de neonatología de un hospital maternidad, en este artículo buscamos articular las relaciones entre lo femenino y la maternidad mediante la presentación de extractos de una atención clínica. Para esto, discutimos sobre la construcción de la maternidad como algo inherente a la feminidad, perspectiva que surge en la modernidad y que alcanza hasta nuestros días, así como críticas y actualizaciones. Consideramos también la noción freudiana de feminidad en tanto salida edípica de las mujeres, que no coincide con las lecturas sociales por incluir el deseo. Esta idea fue desarrollada más por Lacan, quien nos permite la base para trabajar la maternidad y lo femenino desde el deseo y de las posiciones de goce fálico y no todo fálico, que son siempre únicas para cada mujer.

Palabras clave:
femenino; maternidad; escucha clínica; psicoanálisis; prematuridad

Résumé

Basée sur l’écoute psychanalytique offerte aux mères de bébés prématurés dans le service de néonatologie d’une maternité, cet article articule les rapports entre féminin et maternité à travers une analyse de cas. Pour ce faire, on aborde les questions liées à la construction de la maternité comme inhérent à la féminité, une perspective créée par la modernité qui prévaut aujourd’hui, suivie de critiques et de points de vue actuels. Il considère également la féminité freudienne comme une échappatoire œdipienne pour les femmes, qui diffère d’autres lectures sociales car elle inclus le désir. Cette notion a été mieux développée par Lacan, dont les écrits nous ont aidés à étudier la maternité et la féminité en fonction du désir et de la jouissance phallique et pas-tout phalliques, qui sont toujours des expériences singulières.

Mots-clés:
féminin; maternité; écoute clinique; psychanalyse; prématurité

O tema do feminino e da maternidade ocupa importante espaço na literatura em ciências humanas e sociais (Perrot, 1998/2005Perrot, M. (2005). As mulheres ou os silêncios da história (V. Ribeiro, trad.). Bauru, SP: Edusc. (Trabalho original publicado em 1998); Federici, 2004/2017Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva (Coletivo Sycorax, trad.). São Paulo, SP: Elefante. (Trabalho original publicado em 2004)), atestando, já de partida, que entre um e outro há algo do sujeito que, pensado por um viés histórico, antropológico ou social, deixa claro não se tratar da redução de um termo ao outro; ou seja, que o feminino já contenha em si a maternidade em toda sua complexidade ou que a maternidade explique e justifique o feminino em sua riqueza. Por partirmos de um lugar que reconhece o estreito enlace entre esses termos, mas que vê nele não apenas o traço sócio-histórico e sim o sujeito em toda sua dinâmica psíquica, a psicanálise busca se debruçar sobre os tropeços e mal-entendidos que advêm do encontro entre o feminino e a maternidade.

O interesse por aquilo que contradiz o discurso articulado racionalmente faz parte de uma herança deixada por Freud desde seus primeiros escritos (Freud, 1900/2018bFreud, S. (2018b). A interpretação dos sonhos. (R. Zwick, trad., Vols. 1-2). Porto Alegre, RS: L&PM. (Trabalho original publicado em 1900); 1901/2018cFreud, S. (2018c). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (R. Zwick, trad.). Porto Alegre, RS: L&PM . (Trabalho original publicado em 1901); 1905/2017Freud, S. (2017). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In Obras completas de Sigmund Freud (F. C Mattos & P. C. Souza, trad., Vol. 7). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)), em que o autor, longe de fazer uma aferição entre o que está correto e o que falhou, recolhe da falha o inconsciente como conceito fundamental para sua clínica e teoria. Outro importante legado deixado por Freud, que em muito nos interessa neste trabalho, é o lugar privilegiado dado à palavra de cada sujeito, pois por meio dela conseguimos recolher as frestas abertas pelo inconsciente, além da função terapêutica que o falar tem para aquele que sofre.

Considerando a fala sobre a experiência de ser mãe, as torções entre feminino e maternidade que aqui serão trabalhadas partem da escuta oferecida a mulheres em uma unidade hospitalar, as quais acompanhavam seus filhos em alas de neonatologia do Método Canguru1 1 Trata-se da Atenção Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso - Método Canguru (AHRNBP - MC), ação implantada no Brasil em 1999 que tem por objetivo o cuidado humanizado de bebês prematuros (nascidos antes de 37 semanas de gestação) e/ou baixo peso (nascidos com menos de 2,5 kg), oferecendo suporte desde a gestação de alto risco até internações dos recém-nascidos (Ministério da Saúde, 2017). O trabalho de escuta clínica do qual parte este artigo se desenvolveu nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), Unidades de Cuidados Intermediários (UCIs) e Unidades de Cuidado Intermediário Neonatal Canguru (UCINCa), onde as mães atendidas acompanhavam seus bebês internados. O trabalho faz parte do projeto de pesquisa desenvolvido pela Universidade Federal do Pará e executado no Hospital Maternidade Santa Casa de Misericórdia do Pará, com aprovação dos comitês de ética das duas instituições. . Nesse sentido, a clínica provocou questões que agora articulamos em termos teóricos; para isso, nos direcionaremos inicialmente a uma discussão acerca da maternidade, enquanto tema que convoca diferentes áreas das ciências humanas e encontra na psicanálise uma importante associação à feminilidade e ao feminino. Esta associação será em seguida trabalhada com maior atenção, sublinhando sobretudo a relação com o falo que aí se coloca. Ao final do percurso, retornaremos àquilo que disparou nosso interesse, apresentando uma vinheta clínica que nos ajudou a pensar questões entre feminino e maternidade a partir dessa experiência.

Maternidade: uma questão sempre renovada

A constante atualização dos sentidos dados à maternidade tem seu lastro não apenas nas práticas sociais, mas também na saúde, a exemplo de pesquisas e práticas em saúde no parto e puerpério, como no estudo de Ferrari, Cherer e Piccinini (2017Ferrari, A. G., Cherer, E. Q., & Piccinini, C. A. (2017). Aspectos subjetivos da amamentação e desmame: Evidências em três casos. Psicologia: Teoria e pesquisa, 33, 1-8. doi: 10.1590/0102.3772e33411
https://doi.org/10.1590/0102.3772e33411...
) sobre amamentação. A partir dessa pesquisa, nota-se que, mesmo uma prática que seria natural para a espécie humana - enquanto pertencente à classe dos mamíferos -, demanda um trabalho que não está situado apenas na estimulação física, mas nos contornos dados à maternidade, os quais irão influenciar também o fisiológico. Dessa forma, retira-se a maternidade do lugar comum do instinto materno e, em vez de tomá-la como resposta àquilo que se espera da equação mãe=mulher, faz com que estes dois fatores lancem perguntas e nos façam trabalhar.

A própria noção de um instinto materno como um direcionamento natural da mulher à maternidade, cujos tratos com a criança e a relação afetiva entre mãe e bebê estariam em um registro biológico, é construída a partir de um cenário histórico e social. Como aponta Badinter (1980/1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)), tal construção, além de dar ares de naturalidade à maternidade, associa a interpretação biológica do instinto a um amor materno universal. Esse sentimento se manifestaria nos comportamentos de cuidado da mulher como esposa e mãe, estando diretamente ligados à divisão público/privado sobre a qual se sustenta a família nuclear burguesa.

Como construção social e histórica, podemos supor que nem sempre a maternidade se configurou dessa maneira e, conforme nos mostra Badinter (1980/1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)), essa compreensão da maternidade difere em grande medida daquela retratada por filósofos gregos que perdurou até o século XVIII, mudança que também diz respeito às crianças e ao poder paterno. A autora nos mostra como até o século XVIII o comportamento das mães oscilou entre indiferença e rejeição e, uma vez que as crianças não tinham tamanha centralidade e importância na família, seus cuidados e sobrevivência eram de responsabilidade de amas e escravizadas, sendo o amor uma categoria pouco relevante tanto para os casamentos quanto para a maternidade.

Desse cenário à constituição de um amor materno universal, diferentes questões - epistemológicas, políticas, religiosas, sanitárias - influenciaram, alcançando um suposto amor materno transistórico. Nas palavras de Badinter (1980/1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)):

Ao insistir sobre os terríveis azares da vida de outrora e sobre as diversas desgraças (pobreza, epidemia e outras necessidades…) que se abatiam sobre nossos antepassados, levamos suavemente o leitor do século XX a reconhecer que, afinal de contas, na situação deles, teríamos sentido e agido da mesma maneira. Assim se opera nos espíritos a bela continuidade entre mães de todos os tempos, que reforça a imagem de um sentimento único, o Amor materno. A partir daí, alguns concluíram que podia haver maior ou menor amor materno, segundo as dificuldades externas que se abatem sobre as pessoas, mas que esse amor existe sempre. O amor materno seria uma constante transistórica. (p. 85)

Com tamanha importância tomada pela noção de amor materno, até os testemunhos históricos contrários a ele são lidos a partir de sua suposta universalidade, de modo que a constituição da subjetividade moderna foi totalmente atravessada pela associação entre amor e maternidade. Essa perspectiva fez com que as posições de mulher, mãe e esposa se enlaçassem de tal maneira que a noção de feminilidade não surge como algo autônomo, mas sempre vinculado ao masculino, de quem a mulher será esposa ou mãe, alcançando sua feminilidade com essas relações.

Dessa maneira a maternidade vai ganhando espaço progressivamente e se confundindo com a feminilidade, ainda mais que “o papel de esposa, muito necessário, não bastará à plena realização de sua feminilidade. Para que uma mulher cumpra a sua vocação é preciso que seja mãe, não como outrora, de maneira esporádica e irregular, mas constantemente.” (Badinter, 1980/1985Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980), p. 249). Essa configuração, que a historiadora atribui ao século XIX, se aprofundou e ganhou muitos detalhes na constituição do que seria a feminilidade, estendendo-se para os dias atuais. Importante considerar que essa perspectiva, em alguma medida, está presente também na leitura feita por Freud sobre a saída edípica das meninas através da maternidade.

Notamos assim que tratar de maternidade nos remete à feminilidade, seja ela tomada a partir da equação social que pretende igualar mulher e mãe, com o aparato fisiológico sustentando esta tentativa de igualdade; seja naquilo que em psicanálise chamamos de feminilidade, a qual, em termos freudianos (Freud, 1931/2018dFreud, S. (2018d). Sobre a sexualidade feminina. In Obras incompletas de Sigmund Freud (M. R. S. Moraes, trad., Vol. 7, pp. 285-312). Belo Horizonte, MG: Autêntica . (Trabalho original publicada em 1931); 1933/2018aFreud, S. (2018a). A feminilidade. In Obras incompletas de Sigmund Freud (M. R. S. Moraes, trad., Vol. 7, pp. 313-345). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicada em 1933)), está diretamente ligada à dissolução do complexo de Édipo da menina através do desejo de ser mãe. Portanto, há uma convergência entre a leitura freudiana e sociológica acerca da maternidade e feminilidade, porém, ela não as iguala: na medida que Freud insere a ligação entre mulher e mãe na dinâmica edípica, isto é, do desejo, a dimensão inconsciente não cabe totalmente na construção social da maternidade.

Somente enquanto desejo podemos, a partir da psicanálise, falar de maternidade e feminilidade, o que dá à leitura psicanalítica a complexidade de lidar com algo enigmático para o próprio sujeito que deseja. O lugar do filho como realização de um desejo que inclui outro sujeito, faz com que pensadores, mesmo fora da seara psicanalítica como Badinter (2011Badinter, E. (2011). O conflito: A mulher e a mãe (V. L. Reis, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Record.), se debrucem sobre as construções sociais desse desejo materno face às questões contemporâneas, como a contracepção, o planejamento familiar e os diferentes modos de licença maternidade em diferentes países, de modo que este outro sujeito é acompanhado de outros desejos desta mulher, como a vida profissional.

Estamos às voltas, portanto, com o campo do desejo no qual a maternidade se insere e, mesmo as leituras sociais que não consideram a dinâmica psíquica inconsciente, parecem suspeitar de seu caráter sempre fugidio e mobilizador. No atual cenário em que se incluem diferentes desejos e a tentativa de garantia de direitos em torno deles, as noções de liberdade e exigência relativas à maternidade encontram outras configurações, distintas de momentos anteriores da história ocidental.

Estamos diante, portanto, de uma questão que se mantém ao mesmo tempo que se renova, a partir do modo de organização do laço cultural no qual a maternidade se torna um desejo entre tantos outros da mulher moderna, de modo que a hesitação e a dúvida, questões que a psicanálise mostra como inerentes ao desejo, encontram na contemporaneidade um maior espaço dentro das insígnias sociais. Em outros termos, se é próprio ao desejo a não saturação nos objetos, eleitos inconscientemente a partir da fantasia de cada sujeito, na atualidade esta não saturação aparece na multiplicidade de possíveis realizações femininas.

Mudamos, portanto, de uma naturalidade da maternidade, conforme pensada até as primeiras décadas do século XX, para o que Badinter (2011Badinter, E. (2011). O conflito: A mulher e a mãe (V. L. Reis, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Record.) chama de “tormentos da liberdade” (p. 18), em que não totalmente desvinculadas das exigências de outrora, as mulheres devem equilibrar diferentes modos de usufruir de sua liberdade, o que mostra os paradoxos da própria noção de liberdade que se instaura. Estas configurações atuais lançam luz sobre as ambivalências próprias à relação entre mãe e mulher que, se em termos freudianos encontravam uma confluência na noção de feminilidade como saída edípica, o ensino de Lacan vai mostrar as disjunções entre os registros da maternidade e do feminino.

Tal disjunção é situada por Lacan em obras como A juventude de Gide ou a letra e o desejo (1958/1998a) e Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina (1960/1998c), nas quais o autor indica que o feminino marca justamente aquilo que escapa ao materno. Esta perspectiva, de um tempo ainda inicial de seu ensino, teve maiores consequências quando o autor se dedicou a questões próprias da sexuação, nos seminários 18 - De um discurso que não fosse semblante (1971/2009), 19 - Ou pior (1971-1972/2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19:…Ou pior, 1971-1972. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) e 20 - Mais, ainda (1972-1973/2008), postulando a maternidade do lado fálico dos modos de gozo, ao passo que o feminino se situa como não-todo fálico. Dessa maneira, feminino e maternidade se implicam nos modos de operar com o falo, no que diz respeito ao desejo e ao gozo, o que mostra a complexidade presente no ser mãe e ser mulher.

Sem nos apressarmos a lançar questões definitivas acerca da postulação lacaniana que estará em nosso horizonte, sublinhamos as dimensões de junção e disjunção entre feminino e maternidade, já que, mesmo situadas em modos distintos de gozo, não deixam de fazer referência uma a outra. Conforme iremos nos deter na próxima seção, a maternidade, compreendida enquanto um modo de gozo fálico (Lacan, 1972-1973/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: Mais, ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), não garante a inexistência do gozo feminino, o qual não se oblitera no materno; assim como o gozo feminino não impede buscas fálicas, pois a noção de um não-todo fálico - conceituação complexa de Lacan, que recorre a quantificadores lógicos para postulá-la - passa também pela organização simbólica dada pelo falo.

As relações entre maternidade e feminino são sempre estreitas, seja como confluência ou como contradição. Isso, segundo Jeruzalinsky (2014Jeruzalinsky, J. (2014). A criação da criança: Brincar, gozo e fala entre mãe e bebê. Salvador, BA: Ágalma.), está presente na própria relação estabelecida entre mãe e bebê, a qual não é dual, pois a mãe traz consigo o desejo sempre faltoso que o bebê não esgota. Logo, na própria constituição do sujeito, apresenta-se a maternidade às voltas com o falo, sinalizando assim que falar sobre feminino e maternidade não diz respeito exclusivamente às mulheres, mas ao falo como significante do desejo e organizador da cadeia simbólica. Nesse sentido, para melhor situarmos as questões sobre maternidade e feminino e as operações com o falo, adentraremos à noção de feminilidade na psicanálise, destacando o lugar do falo nessa questão.

Feminilidade e feminino: operações com o falo

Como nosso breve trajeto apresentou, o termo feminilidade ocupa um importante lugar na psicanálise, não se reduzindo a traços ou comportamentos associados às mulheres, como compreendido popularmente, mas se relacionando à dissolução do complexo de Édipo, conceito nuclear da psicanálise desde Freud. A ligação do complexo de Édipo com a feminilidade como saída edípica das mulheres só pode ser compreendida a partir do falo. Isso porque, a partir do pensamento freudiano (Freud, 1933/2018aFreud, S. (2018a). A feminilidade. In Obras incompletas de Sigmund Freud (M. R. S. Moraes, trad., Vol. 7, pp. 313-345). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicada em 1933)), a menina encontra na maternidade a possibilidade de ter o substituto do falo no filho, o que dá à maternidade e à feminilidade contornos que as vinculam ao desejo.

Dessa maneira, quando usamos a significante feminilidade para nos referirmos ao desejo da maternidade, indicamos o caráter fantasioso que compõe toda relação entre mãe e filho, na medida que a busca fálica, atravessada por fracassos e sucessos em fazer do filho o falo da mãe, implica questões do desejo inconsciente da mulher. Assim, a feminilidade, pensada a partir da obra freudiana, conjuga mulher e maternidade através do falo: se à primeira vista esta conjugação se mostra homogênea, a escuta clínica rapidamente nos indica as contradições entre ser mulher e ser mãe, revelando que o falo opera de diferentes maneiras em um e outro registro.

Estas contradições, que advêm da escuta clínica, também surgiram para autores pós-freudianos, como Helene Deutsch, Melanie Klein e Ernest Jones, os quais se debruçaram sobre o tema da feminilidade a partir de questões abertas por Freud - como inveja do pênis, complexo de masculinidade, prazer clitoridiano, frigidez, feminilidade e maternidade - compondo o que Lacan chamou de a querela do falo, debate em que o psicanalista francês também adentrou. A entrada lacaniana nesse debate se realizou a partir da retomada da importância dada por Freud ao falo como organizador da sexualidade; porém, diferente de Freud, Lacan (1958/1998bLacan, J. (1998b). A significação do falo. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1958)) se interessou menos pela presença no corpo daquilo que opera justamente pela falta, esta sim foco de seu interesse.

Nesse sentido, Campista e Caldas (2013Campista, V. R., & Caldas, H. F. (2013). Feminilidade: Enigma e semblante. Arquivos brasileiros de psicologia, 65(2), 258-273. Recuperado de https://bit.ly/2PhDcyo
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) destacam dois importantes momentos da leitura feita por Lacan sobre o feminino e o falo: nos anos 1950, pela dialética do ter/não ter o falo desdobrada em ser/não ser o falo; e nos anos 1970, por uma lógica além da fálica. Assim, o falo encontra lugar de excelência em Lacan e, ainda que tenha modificações no percurso de seu ensino, não deixa de comparecer como significante que diz respeito a toda dinâmica sexual.

No primeiro momento da leitura lacaniana, em A significação do falo (1958/1998b), o autor retoma a perspectiva freudiana de ter o falo e a desdobra na perspectiva de ser o falo, sublinhando a função de prestígio que ele apresenta nas duas posições. Nesse desdobramento, todo sujeito parte da posição de ser o falo do Outro, a qual foi perdida para entrada no simbólico; ter o falo, por sua vez, é uma posição que, mediante a castração, o sujeito busca em outros objetos. Porém, o estatuto de ser o falo, objeto de desejo do Outro, pode ser forjado, mostrando assim a sua função simbólica, a qual se dá em diferentes significações e modos de operação.

Para uma melhor compreensão desse estatuto simbólico do falo, Lacan (1956-1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: A relação de objeto, 1956-1957. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) debruça-se sobre aquilo que chamou de três tempos do Édipo - privação, frustração e castração -, nos quais o falo demarca que a relação de objeto não se dá pela presença deste, mas por sua falta. Partindo do traslado do complexo de Édipo, homens e mulheres serão atravessados pela função significante exercida pelo falo: ao final do translado, marcados com um sinal de mais ou menos, nenhum é possuidor do falo e, a partir daí, é incitado a encontrá-lo em outros objetos que não o materno. A partir deste quadro, o sujeito pode ter o desejo regulado pela fantasia ($<>a), na medida que um objeto vem se colocar como causa do desejo que nunca será de todo satisfeito.

A concepção do falo como motor do desejo é assim remontada a tempos anteriores à castração, sinalizando-nos um interesse para o momento pré-edípico, o mesmo em que as investigações freudianas se detiveram para tratar a sexualidade feminina. Em outros termos, vemos o ensino de Lacan direcionar-se àquilo que foi levantado por Freud sobre a feminilidade, mostrando que as questões apresentadas por ela lançam luz sobre a própria articulação do desejo.

A relação entre feminino e falo no ensino de Lacan demonstra ir além da saída freudiana que conjuga feminilidade e maternidade; contudo, não deixa de passar pelo lugar que o materno ocupa na dinâmica do feminino. Com Lacan, esse lugar é concebido mais como disjunção do que confluência, o que é pensado a partir de uma figura trágica: Medéia. Para trabalhar as torções entre mulher e mãe, em A juventude de Gide ou a letra e o desejo (Lacan, 1958/1998aLacan, J. (1998a) A juventude de Gide ou a letra do desejo. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 749-775). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)) o autor vê na personagem de Eurípedes, assassina dos próprios filhos, a imagem da verdadeira mulher, justamente pela distância que nela há entre a mãe e a mulher. A falta aqui já não diz respeito tanto ao anseio em busca de algo que tampone, mas, como mostra Medéia, à possibilidade de se destituir daquilo que lhe é mais precioso.

O feminino, nesse sentido, está muito mais próximo daquilo que escava o vazio, abrindo mão do materno nessa escavação, do que da busca de preenchimento, ainda que ela esteja em seu horizonte. Notamos aí uma maneira muito singular de operar com o fálico, que mostra um gozo na destituição e na busca; em outros termos, situa-se na organização fálica e aponta seus limites.

O que ocorre ao feminino para que esteja sempre muito próximo à falta, a ponto de produzi-la? Esta interrogação, que encontra na clínica e na cultura as mais diversas manifestações, impulsiona as pesquisas lacanianas e, em Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina (Lacan, 1960/1998cLacan, J. (1998c). Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 734-745). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1960)), o leva a questionar se a mediação fálica drena todo o pulsional da mulher, pois esse parece sempre escapar. Nesse sentido, mesmo a função fálica instaurando a falta significante em todos os sujeitos, o feminino mostra um além desta instauração, sinalizando a natureza própria da pulsão.

Esta sinalização de um além do falo - que abre possibilidades de leituras acerca das articulações entre desejo e pulsão enquanto uma questão importante para psicanálise desde Freud -, remete àquilo que Campista e Caldas (2013Campista, V. R., & Caldas, H. F. (2013). Feminilidade: Enigma e semblante. Arquivos brasileiros de psicologia, 65(2), 258-273. Recuperado de https://bit.ly/2PhDcyo
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) situam como o segundo momento da leitura lacaniana sobre o feminino, a saber, a discussão a partir de uma lógica fálica e um não-todo fálico.

Para pensar a função fálica no discurso, o autor articula a lógica, pelas categorias do universal e do particular, aos quantificadores existenciais, nas categorias todo e alguns, manejando outros elementos que não apenas os da lógica aristotélica. Lacan (1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante, 1971. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) pensa o atributo fálico como um operador no discurso que possibilita ao homem o amparo fálico no universal todo homem, ao passo que a mulher não existe com uma referência que lhe seja passível de criar o universal, o que não impede de construir no particular uma mulher. Em ambos, o falo serve ao semblante no discurso, porém, a possibilidade de criar ou não conjunto pelo atributo fálico lhes oferece diferentes posições:

O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. Mas, como vocês sabem, há enormes dúvidas incidindo sobre o fato de que o todo homem existe. É isso que está em jogo - ele só pode sê-lo na qualidade de todohomem [touthhomme], isto é, de um significante, nada mais. Quanto à mulher, em contrapartida, o que está em jogo é exatamente o contrário, como eu lhes disse. É isso que se expressa no enunciado discordancial de cima, aquele que só escrevi sem escrevê-lo, se assim posso dizer - já que ressaltei que se trata de um discordancial que só se sustenta por ser enunciado. Ele diz que A mulher só pode ocupar seu lugar na relação sexual, só pode sê-lo, na qualidade de uma mulher. Como acentuei vivamente, não existe toda mulher. (Lacan, 1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante, 1971. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 132, grifos do autor)

Colocando o impasse sexual dentro da própria lógica que orienta o discurso, Lacan (1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante, 1971. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) deixa ver que os significantes homem e mulher ocupam funções que não dizem respeito a um testemunho corporal que os faria complementares, mas às suas posições quanto ao significante fálico. Por isso o semblante fálico pode servir à mascarada, como forma de se utilizar da falta para convocar o desejo do Outro, assim como pode ser operado pela histérica ao bancar o todohomem, e pelo homem ao se guiar por este universal. Tratamos, portanto, de uma frequentação da potência fálica através das insígnias imaginárias.

Nesta frequentação da potência fálica, Lacan inclui a maternidade, em que a lógica fálica, a qual faz existir um significante que nomeie o todo, se decanta no que é ser mãe. Notamos como isso pulula na cultura, através de discursos em que o fálico materno se empresta a dissimular uma plena divisão na partilha sexual, e logo em seguida deixa antever a hiância que buscava tamponar: discussões sobre o parto, a divisão de tarefas com a criança, a condenação moral e legal do aborto, entre outras discussões que situam a maternidade em um aparente absoluto, o qual, no entanto, se mostra sempre com falhas.

No entanto, eis o que destaca o ensino de Lacan: se o fálico funciona por esta lógica cujo universal o orienta, proporcionando uma mínima partilha simbólica e imaginária entre os sujeitos, há uma lógica que se organiza pela negação da homogeneidade do quantificador universal, o que não significa a sua exclusão. Nesse sentido, o ensino de Lacan nos encaminha ao feminino como esta outra lógica, do não-todo dentro do discurso que, assim como usa o significante fálico acentuando seu estatuto de semblante, nele também se posiciona de modo a não se incluir completamente.

O feminino como não-todo, nesse sentido, dá notícias de um gozo cujo discurso não bordeja completamente, mas que através dele encontra vias simbólicas. É o que Lacan desenvolve no seminário 20: Mais ainda (1972-1973/2008): partindo da concepção do feminino como Outro face ao falo, o trajeto lacaniano sobre o feminino radicaliza a condição significante dos termos feminino e masculino, ao apontar que, uma vez operando no discurso, eles só podem ser pensados à luz do ser falante: “O homem, uma mulher, eu disse da última vez, não são nada mais que significantes. É daí, do dizer enquanto encarnação distinta do sexo, que eles recebem sua função.” (Lacan, 1972-1973/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: Mais, ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 45).

Entre dizer e sexo há disjunções que, se por um lado mostram que não há uma relação absoluta entre corpo sexuado e fala, por outro apontam a incidência do significante sobre os corpos; ou seja, não é possível homogeneizá-los, tampouco separá-los. A cada sujeito, porque falante, estão colocadas exigências de operar pela função fálica e a ela apontar a carência, como estudos de psicanálise e questões de gênero e identidade sexual apontam (Françoia, Porchat & Corsetto, 2018Françoia, C., Porchat, P., & Corsetto, P. (Orgs.). (2018). Psicanálise e gênero: Narrativas feministas e queer no Brasil e na Argentina. Curitiba, PR: Calligraphie.; Daquino, 2019Daquino, M. (Org.). (2019). A diferença sexual: Gênero e psicanálise (M. C. Formigoni, trad.). São Paulo, SP: Aller.). Nesse sentido, o trajeto lacaniano irá pensar feminino e masculino relacionados a modos de gozo.

Com isso, a noção de feminino e maternidade vai ganhando outros contornos, na medida que a última, enquanto saída fálica, carrega consigo um gozo fálico via simbólico. Porém, será que não podemos pensar que na maternidade também estaria implicado um gozo não-todo fálico? Feminino e maternidade não poderiam se conjugar e, de maneira distinta da postulação freudiana via falo, na maternidade também haver uma posição não-toda fálica? Autoras como Jeruzalinsky (2014Jeruzalinsky, J. (2014). A criação da criança: Brincar, gozo e fala entre mãe e bebê. Salvador, BA: Ágalma.) e Alves (2016Alves, M. B. (2016). Quando uma mulher é mãe: O gozo feminino na maternidade (tese de Doutorado). Recuperado de Repositório Institucional da UFRJ (https://bit.ly/3Iua1Ah)
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) apostam nesta direção.

Para avançarmos nesse sentido, adentraremos em uma discussão a partir da experiência clínica em ambiente hospitalar, cuja escuta, oferecida a mulheres que acompanhavam seus bebês prematuros, nos mostrou os diferentes desenhos da maternidade e do feminino em relação aos modos de gozo fálico e não-todo fálico.

Questões clínicas da maternidade e feminino: pode a maternidade ser prematura?

A interrogação contida no título desta seção de nosso trabalho abre diferentes veredas já em sua enunciação: haveria um tempo maduro para a maternidade? Ele estaria em função do tempo de gestação e parto? Quais as consequências da antecipação do tempo biológico para o desejo da maternidade? Entre tantas outras que destas se desdobram, mantemos a interrogação como provocação pertinente ao nosso interesse, na medida que a escuta da qual partimos é atravessada por esse ponto de referência da prematuridade do parto. Considerando o trajeto já realizado, as questões entre feminino e maternidade envolverão a prematuridade - ainda que não nos dediquemos ao tema especificamente - por conta da clínica que adotamos, pois foi a partir da escuta de mães de bebês nascidos antes do período considerado a termo, de 38 a 42 semanas de gestação, que lançamos as questões trabalhadas aqui.

A escuta de mães de bebês prematuros ocorreu em UTIs e UCIs em um Hospital Maternidade em Belém do Pará - Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará -, cujo tratamento oferecido aos recém-nascidos segue o Método Canguru. A partir desta inserção em ambiente hospitalar nas alas de neonatologia, o interesse pela maternidade e feminino na psicanálise pôde então se articular desde a clínica, de modo que aquilo que iremos adentrar a seguir é um recorte feito a partir do tema em questão.

Juliana, de 29 anos, acompanhava seu filho na UCI depois de ter passado 40 dias na UTI neonatal e uma semana e meia na UCINCa2 2 Nas Unidades de Cuidados Intermediários Canguru a internação do bebê e de sua mãe ocorre em enfermarias, sem incubadoras e aparelhos de monitoramento de respiração e batimentos cardíacos dos bebês, que ficam em berços ao lado dos leitos das mães e das cadeiras dos pais ou outro acompanhante autorizado. Nestas alas, há estimulação da amamentação no seio, com ou sem complementação, e contato pele a pele, por pelo menos uma hora diariamente, para que a criança ganhe peso e, ao alcançar 1,600kg, possa ter alta hospitalar (Ministério da Saúde, 2017). , onde ele estava somente para ganhar peso, pois seu bebê nasceu prematuro - com parto ocorrido com 28 semanas de gestação e a criança pesando 950g. De modo geral, o trâmite de internação dos bebês recém-nascidos abaixo de um kg é a UTI neonatal, seguida pela UCI neonatal e por fim a UCINCa; porém, como o bebê de Juliana respondeu bem ao tratamento na UTI, ganhando peso e conseguindo iniciar a amamentação no seio, foi encaminhado para a última fase da internação com a perspectiva de alta, quando teve um episódio de apneia e cianose - parada momentânea na respiração e corpo arroxeado -, necessitando então de um acompanhamento com aparelhos que sinalizassem alterações no batimento cardíaco e respiração, motivo pelo qual foi encaminhado para a UCI.

Os detalhes deste traslado nas alas de internação neonatal são narrados por Juliana através de termos técnicos e de hipóteses diagnósticas, tanto para o parto prematuro quanto para o episódio que a levou à UCI, quando ela revela que é médica e conta, também com vocabulário médico, sobre a sua gestação. Depois de ter sofrido um aborto espontâneo cerca de dois anos atrás, Juliana engravida e resolve colocar um pessário - dispositivo ginecológico em formato de anel, utilizado para sustentar o útero até a gestação alcançar o período de parto a termo - para garantir que desta vez seu colo do útero não dilataria antecipadamente. No entanto, com 28 semanas de gravidez ela entra em trabalho de parto, que, por conta do pessário, se prolonga por três dias, além de dias internada em um hospital particular onde, segundo ela, “não faziam nada”.

A falta de domínio e explicações sobre o quadro da criança surge como uma questão recorrente na fala de Juliana, que ora encontra no saber médico um amparo para os enigmas do bebê, tentando até se antecipar a eles - como na colocação do pessário -, ora é tomada pela angústia de não saber, o que a remeteu aos limites da vida, tanto de seu filho quanto a sua, chorando ao falar que pensou em se matar na sala de pré-parto e de sua entrada na UCI, para “monitorar o episódio inexplicável” ocorrido com o bebê. Este movimento de busca de controle via saber, com seus sucessos e fracassos na maternidade de Juliana, pode ser pensado a partir da discussão que realizamos acerca do falo nas diferentes posições de gozo.

A maternidade como saída fálica atravessa as falas de Juliana, sobretudo nas tentativas de resguardar sua gravidez e internação através do conhecimento médico. No entanto, ainda que isso apareça de forma muito clara a princípio e em grande medida a ajude a lidar com a castração que a prematuridade do bebê atualiza, sua relação com a medicina como algo que dá contornos à angústia encontra limites. Isso porque, ao falar que é médica, ela continua: “mas eu nunca soube muito lidar com bebê e com criança, porque eu trabalho com auditoria médica”; ou seja, além dos limites próprios ao saber médico em relação ao real do corpo do bebê, a medicina de Juliana não se endereça ao bebê. Logo, como médica que audita procedimentos de outros médicos ela não pode dar alguma resposta aos enigmas da criança, mas sim como mãe através de seu saber inconsciente.

O saber inconsciente da mãe, ainda que não garanta totalmente a melhora do quadro clínico do bebê, apareceu no momento em que Juliana, que estava cochilando, escutou os gemidos do bebê e viu que ele estava roxo, assim como em outras falas que, escamoteadas pela tentativa de apreensão através do diagnóstico, deixam antever uma potência que a situa como imprescindível para a melhora do quadro da criança durante a internação. Notamos assim que a posição de gozo fálico oferece uma satisfação, através da mitigação da angústia de castração, que tem função importante no estabelecimento do laço entre mãe e bebê, pois situa Juliana como Outro que nomeia as questões do bebê e as indica para o tratamento médico.

Este modo de gozo oferece uma borda que permite que a mãe não seja apenas médica; porém, essas bordas se mostram frágeis, nas quais o real do corpo do bebê prematuro fissura as tentativas simbólicas de dar um tratamento via palavra, expondo o desamparo com o qual a própria mãe tem de lidar para responder ao desamparo da criança. Assim, o laço singular entre Juliana e seu filho, ao mesmo tempo que convoca a potência materna, faz fissuras nela, levando Juliana a lançar mão de novas saídas, fálicas e além do falo.

A saída para além da posição fálica apareceu quando ela se referia ao “tempo do bebê”, termo recorrente na fala de Juliana que reaparece quando conversava com a médica a respeito do quadro da criança, perguntando sobre os possíveis medicamentos a serem administrados e os exames que poderiam confirmar o diagnóstico para a apneia e cianose. A médica, então, pergunta a idade da criança, ao que Juliana responde: “depende, você quer a idade corrigida ou a que ele nasceu?”, causando estranhamento na médica, que pergunta a idade dele naquele momento, contando desde que nasceu. Depois da conversa com a médica - realizada na visita da neonatologista aos leitos no mesmo momento em que Juliana era escutada pela analista -, foi retomado com Juliana o que seria a “idade corrigida” de seu bebê, ao que ela fala dos cálculos gestacionais e, repetindo o que já havia dito no início do atendimento, responde que ele só iria nascer ao final daquele mês.

Este bebê que, nos planos maternos, ainda está por nascer, parece conferir à Juliana uma posição de mãe diferente daquela fálica, cuja resposta via saber médico dá contornos que lhe oferecem uma organização, pois sinaliza um tempo do bebê que diz respeito muito mais ao tempo da maternidade de Juliana. Diante da castração atualizada pelo quadro da criança, aparece na fala de Juliana um bebê que sequer nasceu e, conforme disse, ela como mãe também não nasceu, porque não conseguiu aproveitar a gravidez sem a imagem do corpo com a barriga grande e agora estava à espera do “diagnóstico e conduta” e “não podia fazer nada”.

Sem ser mãe, Juliana é apenas mulher e, se esta falta de reconhecimento dos próprios atos maternos, cuja eficiência no tratamento aparecem em sua fala em outros momentos, pode sinalizar questões presentes no prolongamento da internação, ela indica também que nem tudo passa pela posição de mãe. A escuta à Juliana nos permitiu ter acesso às nuances presentes entre ser mãe e ser mulher na fala sobre a maternidade, revelando que estas duas posições fazem sombra uma à outra, mas, conforme veremos a seguir, também podem confluir para uma maternidade que não esteja unicamente nas saídas fálicas ou seja destituída pela posição feminina.

As relações não excludentes entre gozo fálico e não-todo fálico na maternidade ficam claras no segundo e último atendimento: Juliana, retomando a fala da analista que havia pontuado o quanto seu bebê já tinha nascido e vivido muitas coisas graças a ela, diz que estava fazendo planos para quando saísse do hospital, para uma nova vida fora dali, entre eles usar o enxoval do bebê que, por conta da antecipação do parto, fora feito somente no momento que ele já estava estável, quando então Juliana escolhera e coordenara a compra e decoração de dentro do hospital. A garantia por um bebê vivo e estável que a tornasse mãe carrega consigo o medo da perda; contudo, Juliana faz algo com este medo ao encontrar respostas nos cuidados com o bebê prematuro e nos ornamentos do enxoval, apontando para o desejo por esta criança, naquilo que ela carrega de realização fálica e de furo que aponta um além do falo.

Este investimento em algo que não está na seara do cuidado físico, cujo imaginário pode parecer menor diante do tratamento médico tão presente em sua fala, comporta o estilo da mãe que não se reduz à profissão de médica e que pode, com seu saber inconsciente, vislumbrar uma maternidade também naquilo que não tem uma funcionalidade dada a princípio, mas que opera como uma transmissão portadora de uma escolha de Juliana. Uma mãe que oferece cuidados e que também pode usufruir da maternidade, escolhendo o que seria a decoração do quarto e as roupas do bebê, mostram o trânsito entre diferentes posições de gozo, em que as construções de sentido podem dar importantes bordas, mas que aquilo que está além do sentido também tem sua importância.

Ao situarmos a decoração e enxoval como saída além do falo, não estamos com isso negando um brilho fálico conferido ao bebê através de ornamentações, mas indicando o quanto, para Juliana, isso parece ir além, pois ela até então só falara da criança a título do tratamento médico, com as saídas fálicas que a medicina e a atenção materna aos cuidados físicos lhe ofereciam. Dessa maneira, trata-se de um além do falo que não se faz sem o falo, operando torções só recolhidas via fala, de modo que não podemos tomar como modelo replicável para outras mulheres, mas que notamos como saída inventiva de Juliana como uma mulher que é mãe.

Considerações finais

Concluímos este trabalho retornando aos postulados de Lacan (1972-1973/2008), nos quais a maternidade situa a mulher no gozo fálico, enquanto o feminino, pela não existência d’ A Mulher, só se faz no um a um com um gozo não-todo fálico. Se à primeira vista estas duas posições parecem diametralmente opostas, com a vinheta clínica aqui apresentada vislumbramos as possibilidades de saídas não todas fálicas na maternidade, operando o que Jeruzalinsky (2014Jeruzalinsky, J. (2014). A criação da criança: Brincar, gozo e fala entre mãe e bebê. Salvador, BA: Ágalma.) situa como articulação possível do feminino na maternidade. Tal articulação, além de dar à mulher saídas inventivas que jogam com a multiplicidade de significações do falo, dá ao laço mãe-bebê contornos que estarão presentes na própria constituição do sujeito que dali advém e já é suposto: o bebê.

Tornar-se mãe e tornar-se sujeito, portanto, são trabalhos inventivos com o falo, o qual encontra no feminino um importante operador, na medida em que nos abre as múltiplas possibilidades de significação, ao mesmo tempo que nos inscreve nos sentidos compartilhados pelos sujeitos falantes. Posições de gozo fálica e não-toda fálica, desse modo, surgem como veredas a serem construídas e trilhadas por cada sujeito e, em relação à maternidade e prematuridade, permitem que os protocolos e cuidados, necessários ao tratamento de bebês prematuros, não homogeneízem as singulares relações ali estabelecidas entre mãe e bebê.

Como nos mostrou o recorte clínico apresentado, a maternidade se constrói com as questões e fantasias de uma mãe em relação a um bebê; como todo recorte supõe perdas, deixamos de fora questões que também apareceram na dinâmica clínica - como a identificação da mãe com o bebê, a função paterna, a prosódia da fala com o bebê em ambiente hospitalar etc. -, fazendo um esforço em situar as questões aqui trabalhadas. Destacamos, a título de enlace de nossa discussão, as possibilidades sempre únicas construídas por cada mulher em sua maternidade que, mesmo que contenham repetições transgeracionais ou obediência a condutas médicas, conferem à maternidade a impossibilidade de um modelo prévio que caiba para todas as mulheres.

Referências

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  • 1
    Trata-se da Atenção Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso - Método Canguru (AHRNBP - MC), ação implantada no Brasil em 1999 que tem por objetivo o cuidado humanizado de bebês prematuros (nascidos antes de 37 semanas de gestação) e/ou baixo peso (nascidos com menos de 2,5 kg), oferecendo suporte desde a gestação de alto risco até internações dos recém-nascidos (Ministério da Saúde, 2017Ministério da Saúde. (2017). Atenção humanizada ao recém-nascido: Método Canguru. Manual técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde.). O trabalho de escuta clínica do qual parte este artigo se desenvolveu nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), Unidades de Cuidados Intermediários (UCIs) e Unidades de Cuidado Intermediário Neonatal Canguru (UCINCa), onde as mães atendidas acompanhavam seus bebês internados. O trabalho faz parte do projeto de pesquisa desenvolvido pela Universidade Federal do Pará e executado no Hospital Maternidade Santa Casa de Misericórdia do Pará, com aprovação dos comitês de ética das duas instituições.
  • 2
    Nas Unidades de Cuidados Intermediários Canguru a internação do bebê e de sua mãe ocorre em enfermarias, sem incubadoras e aparelhos de monitoramento de respiração e batimentos cardíacos dos bebês, que ficam em berços ao lado dos leitos das mães e das cadeiras dos pais ou outro acompanhante autorizado. Nestas alas, há estimulação da amamentação no seio, com ou sem complementação, e contato pele a pele, por pelo menos uma hora diariamente, para que a criança ganhe peso e, ao alcançar 1,600kg, possa ter alta hospitalar (Ministério da Saúde, 2017Ministério da Saúde. (2017). Atenção humanizada ao recém-nascido: Método Canguru. Manual técnico. Brasília, DF: Ministério da Saúde.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2020
  • Revisado
    11 Fev 2022
  • Aceito
    29 Jun 2022
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