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Diagnósticos e psicotrópicos - uma resposta pela psicanálise

Diagnosis and psychotropics: an answer through phychoanalysis

Resumos

O diagnóstico é um ato que separa a psicanálise das psicoterapias e da psiquiatria. A sua presença no tratamento envolve questões cujas respostas revelam, por sua grande variedade, a impotência do clínico diante do mal que deve tratar e suas dificuldades frente às demandas do paciente. Entre essas respostas, a que abandona a fala e assimila o diagnóstico à reação do paciente a certos medicamentos psicotrópicos não é menos controversa do que o uso quase indiscriminado de substâncias psicotrópicas. Mais polêmica ainda é a restrição do tratamento à prescrição. O que aqui vai escrito parte de duas questões: O que foi feito do diagnóstico? A que responde o psicotrópico?

Diagnóstico; Drogas; Psicanálise; Linguagem; Psiquiatria


This paper deals with the problem of diagnosis in psychoanalysis, psychiatry and psychology. The question of diagnosis is discussed through psychoanalytical concepts. There is no diagnosis without patient’s demands and it cannot be understood apart from physician-patient relationship. It further inquires clinical consequences of the psychotropic abuse.

Diagnosis; Drugs; Psychoanalysis; Language; Psychiatry


DIAGNÓSTICOS E PSICOTRÓPICOS - UMA RESPOSTA PELA PSICANALISE

André Gellis1 1 Endereço para correspondência: Universidade Estadual Paulista - Departamento de Psicologia. Av. Engo. Luiz E.C. Coube, s/n - CEP 17033-360 - Bauru, SP. E-mail: agellis@sti.com.br

Depto. de Psicologia - UNESP

O diagnóstico é um ato que separa a psicanálise das psicoterapias e da psiquiatria. A sua presença no tratamento envolve questões cujas respostas revelam, por sua grande variedade, a impotência do clínico diante do mal que deve tratar e suas dificuldades frente às demandas do paciente. Entre essas respostas, a que abandona a fala e assimila o diagnóstico à reação do paciente a certos medicamentos psicotrópicos não é menos controversa do que o uso quase indiscriminado de substâncias psicotrópicas. Mais polêmica ainda é a restrição do tratamento à prescrição. O que aqui vai escrito parte de duas questões: O que foi feito do diagnóstico? A que responde o psicotrópico?.

Descritores: Diagnóstico. Drogas. Psicanálise. Linguagem. Psiquiatria.

Quanto mais as terapêuticas psiquiátrica e psicológica se entretêm com sintomas e procuram dispor o homem ao seu mal, mais resta inaudível a dimensão da causa deste mal - eis o que se pode subtrair das novas versões da CID e do DSM. 2 1 Endereço para correspondência: Universidade Estadual Paulista - Departamento de Psicologia. Av. Engo. Luiz E.C. Coube, s/n - CEP 17033-360 - Bauru, SP. E-mail: agellis@sti.com.br Longe de significar tão só um aprimoramento técnico ou científico, esta procura pelo fim do mal-estar se iniciou há tempos, diligentemente impulsionada pelos psicotrópicos disseminados nas mais diversas civilizações.

A cultura moderna impõe uma satisfação imperativa, mesmo que as coisas demonstrem serem bem diferentes (Lacan, 1988). Há uma intensa e marcante frustração de desejos, característica de qualquer civilização; frustração de desejos narcisistas que, embora necessária à vida em civilização, leva sempre ao mal-estar, o mesmo que Freud identificou ao indagar o sujeito (Freud, 1930/1973). Se o neurótico era então descrito como o sujeito que não quer saber do que ele próprio nomeia como realidade, hoje se pode indagar por que não são poucos os que preferem se refugiar em outra forma de ilusão: aquela produzida por esses psicotrópicos miraculosos, cuja facilidade de aquisição remete à exigência, por vezes cruel, da satisfação fácil e imediata peculiar à cultura.

Em tais condições, como estes sujeitos podem não se iludir e se divertir? Se estas substâncias, susceptíveis de modificar o psiquismo e o comportamento do homem ao agir sobre seu cérebro - é desta maneira que se procura definir um psicotrópico -, se tais substâncias podem adoçar a vida, por que não usá-las?

Diagnósticos e respostas

Esta diversão, no entanto, é precedida por um ato chamado diagnóstico. Apesar de muitos estarem convictos de que o realizam - ao procederem, por exemplo, a uma autoprescrição, invariavelmente de modo equivocado -, ele é também um ato específico quando se refere à reprodução de conhecimentos, de um saber já estabelecido. Assim, em medicina, a intervenção diante do paciente constitui um ato médico, inclusive o diagnóstico que, por ser uma ação exclusiva, muito privativa, sempre escapará ao paciente. Exclusivo ou não, não se pode ignorar que o ato diagnóstico é, antes, a resposta que se endereça a um paciente.

Um diagnóstico pode se efetivar de diversas maneiras. Há diagnósticos biológicos, diferenciais, etiológicos, clínicos, etc. Um diagnóstico diferencial, talvez o mais próximo da psicanálise, tem por objetivo estabelecer discriminações, diferenças, mediante a comparação de sintomas e outras manifestações da afecção em estudo com as de outras afecções semelhantes, eliminadas, quando possível, por dedução. O estabelecimento dessas diferenças não deixa de produzir efeitos que implicam posições e condutas para quem institui o ato diagnóstico; posições que se desdobram irremediavelmente até o sujeito que demanda uma cura, um saber, etc.

Um diagnóstico diferencial pode ser realizado em conjunto e às expensas de um diagnóstico clínico, caracterizado pela entrevista direta com o paciente. Nada impede que o diagnóstico diferencial utilize como parâmetro um saber externo à entrevista do clínico com o paciente, como as catalogações de sintomas ou nosografias - verdadeiros discursos preestabelecidos. No entanto, a modalidade diagnóstica que utilizar este parâmetro externo jamais poderá dar lugar a um saber interno, proveniente dessas entrevistas com o paciente, pois correria o risco do fracasso. Este saber interno, desde que inédito, será legitimado sobretudo pela psicanálise que tenta torná-lo condição para seu êxito.

Nesta perspectiva psicanalítica, o diagnóstico estará referido não a um saber externo, mas à verdade - verdade que poderá ser enunciada pelo sujeito mesmo durante esta entrevista. É necessário, então, afirmar de vez: a dimensão diagnóstica está presente em uma análise. Se há uma psicanálise, um diagnóstico está implicado como ato estranho às clínicas médica, psiquiátrica e psicológica.

Um dos objetivos da clínica psiquiátrica clássica é o de determinar, a partir dos sintomas do paciente, a natureza de sua afecção, inserindo-a em um quadro nosológico. Trata-se de uma classificação analítica, na qual os sintomas seriam relacionados entre si e analisados em busca de algum sentido. Nesta clínica, o diagnóstico, diferencial ou não, clínico ou não, precisa estar sempre referido a um discurso preestabelecido, a um saber externo à relação clínico / paciente. Trata-se aqui de um discurso que rejeita o não-sabido e, por isso mesmo, se torna digno de análise.

Hoje, é possível filiar-se à comunidade terapêutica mediante o uso do diagnóstico sindrômico. Escorado nas catalogações CID e DSM, o diagnóstico sindrômico se desdobraria em um diagnóstico múltiplo, oposto ao clássico raciocínio clínico de buscar um único diagnóstico que viesse explicar ou ao menos dar um sentido a todos os sinais e sintomas apresentados pelo paciente. Esta proposta, típica, não se reduz contudo à sua manifesta intenção de superar o antigo, ou seja, este raciocínio diagnóstico julgado ultrapassado e inoperante. Ela ainda repousa em Kraepelin e em sua nosografia a despeito de tentar acabar com ela e com o diagnóstico aproximativo, aquela modalidade diagnóstica que engloba a incerteza da resposta clínica por buscar exprimir um aspecto provável e jamais uma verdade que encerra o sujeito em um quadro definitivo e acabado.

Bem se poderia indicar o recuo deste diagnóstico aproximativo diante da verdade do sujeito e procurar analisar por que esta modalidade diagnóstica não permite a quem a utiliza saber sobre sua própria posição. Contudo, há que se ressaltar: este diagnóstico aproximativo, de estrutura aberta, viabiliza uma ação clínica concreta nada desprezível, mesmo em vista do diagnóstico sindrômico múltiplo.

É certo que o psiquiatra e a própria medicina têm por dever aceder a uma outra verdade que a apresentada pelo paciente através de suas percepções, interpretações e significações - daí a necessidade de parâmetros externos. O primeiro momento do ato médico envolvido no diagnóstico seria então o de escolher entre os ditos do paciente afim de eliminar as interferências que parasitariam o reputado rigor da investigação clínica. Nada é tão estranho à psicanálise do que esta escolha. Fundada em uma escuta que se volta menos ao dito do que ao dizer, a psicanálise ocorrerá com a livre fala do paciente.

O diagnóstico médico envolve uma seleção porque o que o paciente diz é recebido como um dado discutível, ruidoso, desnecessário até, sobre o qual não se deve basear a resposta do clínico. Não seria a isso que o suposto avanço tecnológico médico vem responder? Ao que se escuta, confia-se ou não As novas tecnologias, como as ressonâncias, voltadas para a quantificação e a visualização, prometem acesso ao plano biológico dos comportamentos, dos pensamentos, dos afetos, etc., mas, com isto, o sentido e a significação implicados no diagnóstico acabam por se endereçar ao que é quantificado, ao que é visualizado e não mais ao que é enunciado pelo paciente. Se este avanço tecnológico pode fazer o paciente se calar ainda mais, basear-se de vez em sinais que se pensa capturar fora de sua fala é escutá-lo menos ainda ...

Os sistemas de classificações diagnósticas nada devem a esta ensurdecedora panóplia tecnológica: para prometer acesso ao ideal de toda pesquisa clínica eles tiveram de abandonar a rota da subjetividade, da singularidade do sujeito que se exprime em seu próprio nome. A psicanálise, por sua vez, abandona o sujeito à liberdade de, enfim, falar em seu próprio nome.

Se à ciência menos interessa o singular que o generalizável, para dela se valer é preciso realmente ignorar que a percepção do paciente se dispõe em uma representação que não procede de nada, que sua queixa se elabora em uma linguagem que não depende diretamente de qualquer plano biológico, cultural ou social, mesmo que ela esteja assentada sobre uma infelicidade, uma dor, uma disfunção ou um infortúnio? Ao que parece, a proposta do DSM-III-R (1989) de se utilizar a resposta do paciente à imipramina (um antidepressivo) como padrão etiológico e classificatório para a depressão desconsidera toda esta dimensão da linguagem. A prescrição toma todo o espaço psicoterapêutico.

Tratamentos sem respostas

Não se pode desconhecer que os psicotrópicos ocupam, entre outros, o lugar de uma resposta para a maioria das civilizações (Freud, 1930/1973). Nesta perspectiva, a sólida presença de psicotrópicos na clínica psiquiátrica e na pesquisa psicopatológica, aqui sob a forma dos legalizados medicamentos, não seria um eco desta mesma resposta? De um modo ou de outro, nada isenta sua contestação.

Em todas as civilizações e em qualquer época, substâncias naturais foram utilizadas pelo homem para afetar sua existência. Várias eram julgadas estimulantes, algumas sedativas, outras, tenebrosamente extasiantes; sem falar das inebriantes. A Odisséia já citava uma mistura de ervas contra a melancolia. Platão, por sua vez, descrevia o phármakon, substância não-substância capaz de alterar a identidade do sujeito a ponto de torná-la estranha ao que lhe é mais familiar, a própria memória. Inúmeras outras substâncias foram e ainda têm sido utilizadas para aplacar a fome, retardar a fadiga, aproximar-se dos outros, alijar o sofrimento moral, mas também e sobretudo para atingir o prazer sem qualquer palavra.

Alegações distorcidas, sem dúvida. A recorrência a tais substâncias tem como causa primeira, para a psicanálise, o desconforto que advém das condições estipuladas pela vida em civilização, pelo ingresso na cultura (Freud, 1930/1973). Mal-estar devido à exigência incontornável de fazer de seus desejos e necessidades, linguagem.

Ao tentar dar conta do mal-estar, a ingestão de substâncias psicotrópicas acaba com a palavra. Justamente por se voltar para a palavra, a psicanálise irá transpor esta resistência até conseguir produzir efeitos mesmo em um sujeito que se encontra sob a ação de um psicotrópico qualquer - trata-se da ação inesperada de palavras e transferência.

O fim da palavra

Se há algo que a psicanálise pode testemunhar é que um psicotrópico não escapa nem resiste à palavra transferencial, na verdade, muitas vezes ele depende da ação da palavra. Por que, então, o clínico desistiria antecipadamente de responder ao tratamento para se voltar, já no diagnóstico, à exclusiva prescrição?

A psicanálise não se apoia na realidade material nem se sustenta com um saber preestabelecido, mas com o que advém da fala do paciente. Eis porque ela não cede à biologia o quadro exclusivo da definição do mal: isto acarretaria na condenação de toda uma parte das expectativas dos pacientes ao mutismo. As técnicas diagnósticas que caíram sob o domínio de critérios biológicos cada vez mais numerosos e discriminantes acabaram por exigir uma leitura cada vez mais rigorosa e sistemática para que a interpretação dos sinais tecnologicamente capturados permitisse a identificação das patologias. Todavia, a leitura aqui exigida ignora o sujeito pois desconsidera que um diagnóstico jamais será decidível em termos exclusivamente científicos e objetivos. É a cada sujeito que cabe decidir o momento em que foi transposto o limiar tolerável de sofrimento ou de mal-estar. Ao desconsiderar este dado elementar, qualquer que seja a técnica diagnóstica ou a terapêutica envolvida, ela na verdade estará ignorando a dimensão da responsabilidade de um sujeito irredutível.

É preciso insistir: é eminentemente subjetivo o domínio a que pertencem as ditas perturbações psíquicas. Nele, qualquer fronteira entre "normal" e "patológico," maléfico e saudável, naufraga diante da apreciação particular, esta região inóspita em que o limite entre o tolerável e o intolerável traçado por uma fala é uma verdade subjetiva singular da qual o sujeito nada quer saber ou espera esquecer, em que as frustrações da existência e o bem-estar correspondem a critérios particulares e até ilusórios.

A ciência instala a obrigação de compreender, de explicar. A clínica, no entanto, impõe uma ação terapêutica. Todas as especialidades médicas definem diagnósticos antes de descobrir as terapêuticas, mas com a psiquiatria ocorre um estranha inversão. A partir dos anos 1950 a psiquiatria passou a dispor de certas substâncias às quais concedeu a insígnia de medicamento psiquiátrico sem que houvesse diagnósticos no sentido estritamente médico do termo. Neste caso, não se tratavam de medicamentos para nada? Esta situação sustenta práticas não menos estranhas em que se procura estabelecer diagnósticos a partir de substâncias farmacológicas. Mas esses eram pequenos problemas contanto que se considerasse que tais substâncias tinham alguma eficácia que permitia ao clínico enfim agir concretamente sobre os sintomas e alentar um ideal de cura se ele esquecesse que a exclusiva desaparição dos sintomas não conduz à cura.

De um ponto de vista psicanalítico, o tratamento do sintoma seria apenas um elemento de uma estratégia clínica mais extensa - a descoberta de uma significação para o sintoma que pressupõe um sujeito. Significação cuja descoberta reporta a um trabalho analítico que se inicia já no diagnóstico e que depende sobretudo da fala de um sujeito.

Pode-se evitar a resposta?

O sujeito que se dirige àquele que trata pode lhe pedir uma cura, um conselho, um pouco de atenção, um saber, um remédio; pode demandar até mesmo sem saber o que se quer.

Por isso, há que se questionar qualquer demanda, quer se trate de uma solicitação de análise ou de uma busca por medicamentos. Toda demanda tem algo de inapropriado e estranho se devidamente escutada, contudo, à vezes ela se torna tão familiar e repetitiva a quem se dedica à clínica que se lhe oculta o fato de que o sujeito que demanda solicita, antes do objeto da demanda, uma resposta.

Mas, por que responder? Se existem substâncias capazes de tornar negligente ou indiferente às agressões da existência o mais tenso ansioso, de conter um louco agitado liquidando seus delírios, de mergulhar em instantes em um sono profundo e entorpecedor quem ruminava idéias melancólicas e sombrias durante horas por noites seguidas, por que não ir mais longe? Se as grandes moléstias hoje são curáveis, ao menos em suposição, as pequenas misérias humanas permanecem: o pior resiste. Falta ainda aceitá-las já que se trata de uma resistência? Trata-se de recomendar àquele sujeito rebelde uma aceitação da pressão e da tensão que se agrava à medida que o prazo se reduz? Ou trata-se de receitar a resignação amarga diante da tristeza associada a um luto ou a um desgosto amoroso? Talvez simplesmente aconselhar a tolerância ante a desilusão com o que fala o ser amado ou frente à fadiga de um fim de expediente em que as frustrações pesaram mais do que de costume. Por que não torná-las recalcadas esquecendo-as com um medicamento ou abafando-as com um belo e precioso conselho? Em outras palavras, poderia o clínico tão só responder?

A crença do clínico na ação exclusiva de medicamentos lhe assegura que ele se instala no plano biológico da doença somente à medida que lhe oculta que ninguém deixa de operar através de vieses simbólicos. A causalidade psíquica postulada pela psicanálise - que advém da fala - diz que há outras influências além das que o experimentalismo psicológico e a ciência médica apresentam como determinantes para a ação deste clínico.

O paciente, não separa um estado do sentido que consegue dar a esta condição. Em seu nome, ele apresenta uma solicitação que, por mais estranha e caótica que possa parecer, é única e aguarda uma resposta que a leve em conta. Não é senão, em um segundo tempo, que ele pode ser levado a diferenciar suas demandas e necessidades, por vezes não lhe restando outra saída que a de se endereçar a diferentes profissionais, de acordo com o que privilegiam, e estabelecer por fim um itinerário ao qual dedicam nada mais que suas vidas.

Há que se dizer, então: engana-se quem insiste em levar uma ação científica à prescrição que tornaria desnecessária uma resposta à demanda do paciente. A prescrição é bem mais que um ato técnico, na verdade ela é mensagem, é palavra. Neste sentido, pode-se constatar que não há um único remédio que se cale, que mesmo um ato objetivo não é, contudo, um ato mudo. Pode-se esperar de todo produto administrado quando de uma prescrição, ainda que ele seja somente um placebo, e de todo ato que se distingue como tratamento, ainda que ele seja um diagnóstico, que eles não participam apenas da mensagem recebida pelo paciente, mas também da resposta que ele aguarda, mesmo que eles não a considerem. A despeito de se conceber um produto para um embuste ou uma mentira, é possível afirmar, ao inverso, que não há uma falsa relação, pois a demanda do paciente existiu.

Responder ou agir

Esta dimensão não é absolutamente ignorada pelo clínico; a expressão "medicamento de conforto" não revelaria um valor que se reluta em admitir? Ele não estaria aí mais para responder que para agir?

Uma resposta não pode ser substituída por um medicamento ativo ou um ato remediador, mesmo que não lhe seja dada importância no quadro de uma consulta. Ao repelir pouco a pouco a dimensão da palavra, não se estaria se desviando ainda mais da apreciação da representação que o doente faz a si mesmo de seu estado de saúde? E não seria este o espaço em que se criam os rituais, as práticas alternativas, as magias, os exorcismos? O medicamento aqui não é somente um mediador químico. Ele também intercede entre dois sujeitos: o clínico e o paciente - trata-se de um mediador simbólico que não pode ser ignorado.3 1 Endereço para correspondência: Universidade Estadual Paulista - Departamento de Psicologia. Av. Engo. Luiz E.C. Coube, s/n - CEP 17033-360 - Bauru, SP. E-mail: agellis@sti.com.br

O que não se pode ignorar é que o paciente solicita antes de tudo uma resposta que admita tanto quanto possível a relação entre a infelicidade e a dor das quais ele fala e o destino que ele ignora. Esta é a justa dimensão do diagnóstico. Estaria aí a tarefa do clínico? Ele teria os meios de concluí-la se deixasse de ignorar que responder também é agir, sobretudo quando esta resposta é um questionamento.

Mas, se qualquer demanda é demanda para análise, então a dimensão diagnóstica se torna presente sempre que há demanda? Isto acarretaria que o diagnóstico é um ato clínico exigido nas mais diversas etapas de um tratamento, senão em todas? O diagnóstico propriamente psicanalítico não corresponde a uma ação eficaz, ele tenta estimar a posição subjetiva do sujeito diante do Outro; mais especificamente, verificar como o sujeito se defende contra o perigo da inconsistência do Outro.

O ato que a prescrição tenta substituir é aquele de uma resposta que a psicanálise se esforça em revelar: trata-se de uma fala que, em uma relação que se quer terapêutica, entre um sujeito que demanda e um outro que é suposto curar ou suposto saber, conduz a um efeito terapêutico seja qual for a sintomatologia, até mesmo no diagnóstico, pois não se analisa o que o sujeito tem, mas o que lhe falta ser. E desde que há um sujeito que demande a quem é suposto curar, tratar ou saber, há palavra e transferência, das quais nada poderá privar o sujeito.

Gellis, A. (2000). Diagnosis and Psychotropics: an Answer Through Phychoanalysis. Psicologia USP, 11 (1), 107-118.

Abstract: This paper deals with the problem of diagnosis in psychoanalysis, psychiatry and psychology. The question of diagnosis is discussed through psychoanalytical concepts. There is no diagnosis without patient’s demands and it cannot be understood apart from physician-patient relationship. It further inquires clinical consequences of the psychotropic abuse.

Index terms: Diagnosis. Drugs. Psychoanalysis. Language. Psychiatry.

2Classificação Internacional de Doenças e Manual Diagnóstico e Estatístico, respectivamente.

3 Sobre o papel da mediação simbólica no tratamento, cf. o texto de Lacan (1987), especialmente o Prefácio de Tito Cardoso e Cunha.

  • Freud, S. (1973). El malestar en la cultura. In Obras completas (Vol. 3). Madrid, Espańa: Biblioteca Nueva. (Originalmente publicado em 1930)
  • Lacan, J. (1985). O seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1987). O mito individual do neurótico Lisboa, Portugal: Ed. Assírio e Alvim.
  • Lacan, J. (1988). O seminário - Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1991). Le séminaire - Livre VIII: Le transfert. Paris: Seuil.
  • Postel, J. (1981). Genčse de la psychiatrie Paris: Le Sycomore.
  • Postel, J. (1994). La Psychiatrie (Col. Textes Essentiels). Paris: Larousse.
  • La recherche: Voir dans le cerveau (1996). Numèro special, Paris, No 289.
  • Zarifian, E. (1994). Des paradis plein la tęte Paris: Éditions Odile Jacob.
  • Manual de diagnóstico e estatística de distúrbios mentais: DSM-III-R (3a ed.). (1989). Săo Paulo: Manole.
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    Endereço para correspondência: Universidade Estadual Paulista - Departamento de Psicologia. Av. Engo. Luiz E.C. Coube, s/n - CEP 17033-360 - Bauru, SP. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Set 2000
    • Data do Fascículo
      2000
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