Resumo:
A ingestão crônica de braquiária induz lesões hepáticas em bovinos caracterizadas por fibrose, atrofia do lobo esquerdo, hipertrofia compensatória do lobo direito e proliferação de ductos biliares. Tipicamente, essas lesões são associadas com agregados de macrófagos espumosos no parênquima hepático. Nesse trabalho foram estudados fígados com essas lesões num abatedouro frigorífico do Brasil Central e as perdas econômicas causadas pela condenação de tais fígados afetados foram estimadas. Durante o período estudado, 488.476 bovinos foram abatidos nesse matadouro frigorífico, dos quais 5.295 fígados foram condenados devido à fibrose, e 192 com lesão hepática foram estudados. Cálculos econômicos permitiram inferir que essas condenações representaram uma perda de R$ 108.817,60. Conclui-se que a condenação de fígados em razão de fibrose induzida pela ingestão de braquiária causa uma perda significativa para a indústria de carne e produtos bovinos devido à condenação de 23,6 toneladas de fígado em um ano em apenas um frigorífico, com perdas estimadas acima de R$ 100.000,00.
Termos de Indexação: Bovinos; lesões hepáticas; fibrose hepática induzida pela ingestão de braquiária; condenação de fígado em abatedouro; impacto econômico
Abstract:
Chronic ingestion of Brachiaria spp. by cattle causes in the liver fibrosis, atrophy of left lobe, compensatory hypertrophy of the right lobe, and bile duct proliferation. Typically, these lesions are associated with accumulation in the hepatic parenchyma of cluster with foamy macrophages. This study surveyed bovine livers with those lesions in a slaughterhouse in Central Brazil and estimated the economic losses caused by condemnation of such affected livers. During the study period, 488,476 cattle were slaughter in this particular abattoir. From 5,295 livers condemned due to fibrosis, 192 with lesions were sampled and studied. Economic calculations permitted to infer that the condemnations represented a loss of R$ 108,817.60. It is concluded that the condemnation of livers due to brachiaria-induced fibrosis causes significant economic losses for the meat industry due to condemnation of 23.6 tons of beef liver with an estimate annual loss of more than R$ 100,000.00 in a single slaughterhouse.
Index Terms: Cattle; hepatic lesions; Brachiaria induced liver fibrosis; slaughterhouse liver condemnation; economic impact
Introdução
Embora sejam as forrageiras mais importantes para a bovinocultura de corte no Brasil, severos prejuízos econômicos são causados pelas intoxicações por gramíneas do gênero Brachiaria em ruminantes, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sudeste (Costa et al. 2013, Pessoa et al. 2013). Em bovinos, a intoxicação por braquiária foi mais prevalente entre 1960-1980, ou seja, nos períodos iniciais após a introdução desta forrageira no país com surtos graves de fotossensibilização. Subsequentemente, o número de focos diminuiu, aparentemente devido à morte dos animais susceptíveis ou ao desenvolvimento de resistência à intoxicação. Outra possibilidade seria que a diminuição do número de surtos fosse resultado da substituição de Brachiaria decumbens que é mais tóxica, por Brachiaria brizantha e Brachiaria humidicola que são menos tóxicas pois contêm níveis menores de saponinas (Riet-Correa et al. 2011). As gramíneas do gênero Brachiaria são responsáveis pelo maior percentual de intoxicações em bovino no Mato Grosso do Sul, porém sua importância como planta tóxica é pequena quando se correlaciona o número de surtos com o consumo e área cultivada dessa forrageira (Souza 2015).
As perdas econômicas causadas pelas intoxicações por plantas são difíceis de estimar devido à escassez de dados, no entanto, as perdas causadas pela morte dos animais são mais fáceis de estimar através da análise dos dados elaborados por laboratórios de diagnóstico veterinário, nas suas respectivas áreas de abrangência (Pessoa et al. 2013).
Um aspecto ainda não explorado dessas perdas econômicas são as lesões crônicas observadas em fígados, responsáveis por condenações desses órgãos em bovinos abatidos para consumo. Essas lesões crônicas estão relacionadas ao consumo de gramíneas do gênero Brachiaria (Faccin et al. 2014). Alguns estudos tentaram correlacionar a quantidade de macrófagos espumosos no fígado e o peso ao abate em ruminantes (Moreira et al. 2009, Riet-Correa et al. 2010). Outros autores (Driemeier et al. 1998) descreveram os achados macroscópicos, microscópicos e ultraestruturais em fígado, baço, rins e diversos linfonodos de bovinos abatidos criados em pastagem de Brachiaria spp., porém não foram encontrados trabalhos que mensurassem as perdas econômicas por condenações de órgãos devido à intoxicação por plantas, o que causaria prejuízos à indústria frigorífica.
O objetivo deste trabalho foi estimar as perdas econômicas devido à condenação de fígados por lesões causadas por ingestão de braquiária em abatedouro de bovinos.
Material e Métodos
Foram avaliados 192 fígados condenados por fibrose na linha de inspeção do Serviço de Inspeção Federal em um frigorífico de bovinos do município de Campo Grande no Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Foram coletados, em média, 16 fígados por mês, de abril de 2012 a março de 2013. Esta quantidade de fígados foi determinada com base no cálculo amostral considerando-se o total de animais abatidos e o total de fígados condenados por fibrose nos 12 meses anteriores ao início do trabalho. Para cada fígado condenado por fibrose, foi colhida uma amostra de fígado que não foi condenado, proveniente do mesmo lote de bovinos (n=73). Os fígados foram identificados por códigos numéricos utilizados pelo frigorífico para reconhecimento dos lotes de origem dos bovinos, município de origem, sexo, idade, peso da carcaça e do lote. Estes órgãos foram separados inteiros na linha de inspeção, pesados e os fragmentos de lobos com e sem lesão macroscópica foram fixados em formol a 10%, processados rotineiramente e corados pela técnica de hematoxilina e eosina (HE). Os dados epidemiológicos e a caracterização macroscópica, histológica e imuno-histoquímica destes fígados foram brevemente descritos (Faccin et al. 2014) e posteriormente serão detalhados em outra publicação.
O critério para incluir as lesões como causadas por plantas do gênero Brachiaria foi a presença de macrófagos com citoplasma espumoso associados à lesão, uma característica de fígados de animais que ingeriram braquiária (Driemeier et al. 1999).
Para estimar as perdas por condenações de fígados devido às lesões causadas pela ingestão de braquiária no período estudado, os valores amostrais obtidos foram extrapolados para todos os fígados condenados por fibrose e foi realizado o seguinte cálculo:
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PT = W * Z, onde:
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PT: Peso total, em kg, de fígados condenados por lesão de braquiária;
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W: Quantidade de fígados condenados por fibrose em que as lesões são causadas devido à ingestão de braquiária;
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Z: Peso médio amostral dos fígados condenados durante o período estudado.
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PE = PT * K
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PE: Perda econômica, em reais, estimada durante o período experimental;
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PT: Peso total, em kg, de fígados condenados por lesão de braquiária;
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K: R$ 4,60 - valor médio pago pelo quilograma do fígado no mercado atacadista local.
Para a estimativa dos prejuízos, a condenação dos fígados, ou seja, o envio do órgão para graxaria foi considerado como perda total (Baptista 1999). Para converter os preços em dólares, a taxa de câmbio usada (Brasil 2015) foi de US$ 1,00 = R$ 2,01, correspondente ao período de coleta.
Resultados
Os bovinos estudados eram de 32 municípios que representam as quatro mesorregiões sul-mato-grossenses. A maioria dos fígados condenados era de bovinos machos, com até 36 meses de idade. O peso médio dos fígados foi de 6,17±0,89 kg (média ± desvio padrão), o peso das carcaças com fígados condenados por fibrose foi de 271,34±36,93 kg e dos lotes de origem dos bovinos (considerando todos os animais, com e sem presença de lesão) foi de 274,56±33,16 kg.
Entre abril de 2012 e março de 2013, 488.476 bovinos foram abatidos no frigorífico estudado. Desse total, 5.295 fígados foram condenados devido à fibrose hepática, representando assim, uma prevalência de 1,08% (Quadro 1).
A principal lesão macroscópica observada foi atrofia moderada ou acentuada do lobo hepático esquerdo com hipertrofia compensatória do lobo hepático direito em aproximadamente metade dos casos. O lobo atrofiado apresentava-se brancacento e firme (Fig.1). No restante do órgão, havia áreas predominantemente focais, brancacentas, deprimidas e firmes que se estendiam pelo parênquima.
Fibrose em fígado de bovino colhido em matadouro. Há atrofia acentuada do lobo hepático esquerdo com áreas focalmente extensas brancacentas e firmes.
Microscopicamente, as alterações observadas nos locais com lesões macroscópicas eram caracterizadas por fibrose com hiperplasia de ductos biliares, neovascularização e infiltrados de macrófagos espumosos (Fig.2a, b). Em 27,6% casos, lesão semelhante foi observada, porém com ausência de macrófagos espumosos. As lesões histológicas no lobo hepático sem alterações macroscópicas eram discretas. Na grande maioria dos casos apresentavam macrófagos espumosos de forma multifocal e predominantemente aleatória com intensidade leve. Dos fragmentos de fígados não condenados na linha de inspeção que eram do mesmo lote dos fígados condenados por fibrose, a maioria (65,75%) apresentaram grupos multifocais de macrófagos com intensidade predominantemente discreta.
Fígado de bovino colhido em matadouro. Essas lesões são características de intoxicação crônica por braquiária. (A) Acentuado infiltrado de macrófagos espumosos associado à hiperplasia de ductos biliares, neovascularização e tecido conjuntivo fibroso, HE, obj.10x. Observa-se no lado superior esquerdo (*) o parênquima hepático remanescente. (B) maior aumento da lesão semelhante mostrada em A, HE, obj.40x.
De um total de 192 fígados condenados por fibrose, 139 apresentaram infiltrados de macrófagos espumosos visíveis no HE, o que representa 72,4%. Segundo o cálculo amostral, PT foi igual a 857,63 kg e PE foi igual a R$ 3.945,10. Quando os valores amostrais foram extrapolados para todos os 5.295 fígados condenados por fibrose no período da coleta, os 72,4% do cálculo amostral equivalem a 3.834 fígados. Portanto, PT foi 23.656 kg e PE foi igual a R$ 108.817,60, equivalente a US$ 54,138.11.
Discussão
A condenação de fígados com lesões causadas pela ingestão de braquiária ocasiona perdas econômicas para a indústria frigorífica. Ao se extrapolar os valores, o prejuízo pode ser estimado em R$ 916.794,00 considerando o total de abates no período para o Estado de Mato Grosso do Sul, ou ainda em R$ 2.745.624,00 considerando todo o rebanho abatido no Centro-Oeste Brasileiro, sendo estes dados obtidos junto ao IBGE (2013), durante o período de coleta dos dados. Os prejuízos causados pela ingestão de braquiária poderiam ser ainda maiores considerando os 27,6% fígados que não apresentaram macrófagos espumosos no exame histopatológico. Macroscopicamente estes órgãos apresentavam lesões semelhantes aos demais. É possível que após formação da lesão hepática, os bovinos tenham interrompido o consumo do princípio tóxico por um determinado tempo, o que explicaria lesão semelhante aos casos descritos anteriormente (com fibrose e hiperplasia de ductos biliares), porém com poucos macrófagos espumosos (Faccin et al. 2014).
Observou-se neste estudo, a diferença entre o que é considerado cirrose no abatedouro e a definição clássica dessa condição em patologia. No abatedouro, as lesões de atrofia ou hipertrofia dos lobos hepáticos, acompanhadas de fibrose, são consideradas como cirrose. No entanto, em patologia, cirrose é um processo difuso caracterizado por fibrose e conversão da arquitetura normal do fígado em nódulos estruturalmente anormais (Anthony et al. 1978). Em razão disso preferiu-se o uso do termo fibrose para designar as lesões descritas aqui.
Os fígados condenados por fibrose representaram uma prevalência de 1,08% em relação a quase meio milhão de bovinos abatidos na indústria estudada. Esta relação é superior à observada em 12 frigoríficos de Minas Gerais, no período de 5 anos (1993-1997), em que 15.140 fígados foram condenados por "cirrose" de um total de 2.491.594 bovinos abatidos, constituindo uma prevalência de 0,61% (Baptista 1999). Esse trabalho menciona que os prejuízos devido à condenação de todos os fígados foram estimados em R$ 2.088.162,00 e que esse valor é cerca de quatro vezes superior ao da condenação de suas carcaças. O estudo, no entanto, não fornece as causas dessa lesão.
Em abatedouros de Santa Catarina (Mendes & Pilati 2007) e Rio Grande do Sul (Lauzer et al. 1979), as condenações de fígados por "cirrose" não ocorrem ou são pouco relatadas, respectivamente. Nestes Estados, as gramíneas do gênero Brachiaria são pouco cultivadas. No Mato Grosso do Sul, as condenações por "cirrose" representam 64,16% das condenações totais desse órgão (Faccin 2011). Esse fato reforça a estreita relação entre condenação de fígados por fibrose e consumo de Brachiaria spp.
No presente estudo, observou-se diferença de 3 kg entre a média de peso das carcaças dos bovinos com fígados condenados por fibrose e, dos bovinos do mesmo lote de origem, portanto não foi possível atribuir ou descartar que essas lesões ocasionem menores ganhos de peso, constituindo uma forma subclínica da doença. Relatos anteriores correlacionam negativamente o ganho de peso e quantidade de macrófagos espumosos no fígado de bovinos que pastejam em Brachiaria, sugerindo que perdas econômicas importantes ocorreriam em animais sem sinais clínicos (Moreira et al. 2009). Novos estudos são necessários em abatedouros de bovinos e bubalinos (Riet-Correa et al. 2010) para determinar a possível interferência destas lesões no ganho de peso.
O critério utilizado para a condenação dos fígados foi o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (RIISPOA), segundo o qual, os fígados com "cirrose" atrófica ou hipertrófica devem ser condenados, e acompanhados por rigoroso exame da carcaça, para eliminar a possibilidade de doenças infectocontagiosas (Brasil 1980). No presente trabalho, as lesões observadas não caracterizaram doença infectocontagiosa e eram localizadas. No restante do órgão, em que não havia alterações macroscópicas, observaram-se apenas grupos multifocais de macrófagos espumosos. Esses órgãos poderiam ser destinados ao consumo após toalete, pois não trazem prejuízos à saúde humana e assim minimizariam os prejuízos ao frigorífico. Esses macrófagos também são observados em fígados de bovinos e bubalinos saudáveis que consomem Brachiaria spp. (Driemeier et al. 1998, Gomar et al. 2005, Riet-Correa et al. 2010). Além disso, 65,75% dos fígados destinados ao consumo que eram do mesmo lote dos fígados condenados por fibrose apresentaram grupos multifocais de macrófagos espumosos no exame histopatológico. Nessas circunstâncias, esses resultados confirmam observações anteriores de que o apoio do exame histopatológico é de grande valia na diferenciação de lesões (Costa et al. 2006) e elucidação da etiologia das mesmas.
Conclusões
As perdas por condenação de fígados com fibrose devido à ingestão de braquiária podem ocasionar severos prejuízos econômicos para a indústria frigorífica.
As lesões de braquiária resultam na condenação de 23,6 toneladas de fígado com prejuízo estimado em mais de R$100.000,00 no período de um ano em apenas um matadouro.
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq nº 14/2011 - Projeto Universal Proc.483211/2012-5) pelo apoio financeiro
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jun 2015
Histórico
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Recebido
22 Maio 2015 -
Aceito
19 Jun 2015