Acessibilidade / Reportar erro

Diagnóstico molecular e frequência de anticorpos anti-Leishmania infantum chagasi em cães do município de Belém, Pará

Molecular diagnosis and frequency of anti-Leishmania infantum chagasi antibodies in dogs in Belém/Pará, Brazil

Resumos

A leishmaniose visceral é uma enfermidade cujo agente etiológico no Brasil é o protozoário Leishmania infantum chagasi. Os cães são considerados reservatórios urbanos da doença, sendo indicadores da ocorrência de casos humanos. O presente trabalho teve como objetivo diagnosticar a infecção por L. infantum chagasi em cães domiciliados e errantes do município de Belém, estado do Pará, através da reação em cadeia da polimerase (PCR) e da reação de imunofluorescência indireta (RIFI), empregando dois antígenos distintos. Amostras de sangue venoso de cães adultos, sem distinção de sexo ou raça, de diferentes bairros e épocas do ano da cidade de Belém-PA, foram colhidas em tubos sem e com anticoagulante para obtenção do soro e do DNA, respectivamente. Esses animais foram divididos em dois grupos: cães errantes capturados pelo Centro de Controle de Zoonoses (Grupo A) e cães domiciliados (Grupo B). Os soros foram analisados através do teste de RIFI para pesquisa de IgG utilizando-se dois antígenos distintos: 1) antígeno do kit Bio-Manguinhos/FIOCRUZ (Ag-PRO) contendo formas promastigotas de Leishmania sp. (complexo major-like); 2) Antígeno do Instituto Evandro Chagas (Ag-AMA) constituído por formas amastigotas de L. infantum chagasi. A avaliação dos dois antígenos foi realizada com as amostras reagentes a partir da titulação 1:80. Já a PCR foi realizada a partir do DNA extraído do sangue total dos animais e amplificado utilizando-se os iniciadores RV1e RV2. Das 335 amostras analisadas, 10,4% (35/335) foram reagentes na RIFI (Ag-PRO) e 0,9% (3/335) reagiram com o Ag-AMA. A distribuição das amostras positivas se deu da seguinte forma: Grupo A 14,8% (25/169) com Ag-PRO e 1,2% (2/169) com Ag-AMA; Grupo B 6% (10/166) com Ag-PRO e 0,6% (1/166) com Ag-AMA; sendo que todas as amostras positivas pelo teste de RIFI com o Ag-AMA também reagiram com o Ag-PRO e em nenhuma das amostras foi detectado o DNA de L. infantum chagasi. Os achados do presente estudo indicam que Belém ainda pode ser considerada área não endêmica para leishmaniose visceral canina e que a natureza do antígeno influencia no resultado da RIFI para a pesquisa de anticorpos anti-L. infantum chagasi em cães, sendo que a RIFI que utiliza formas promastigotas de Leishmania major-like como antígeno deve ser utilizada com cautela como método diagnóstico confirmatório em estudos epidemiológicos em áreas não endêmicas para LVC.

Leishmaniose; Leishmania infantum chagasi; sorodiagnóstico; diagnóstico molecular


Visceral leishmaniasis is a disease whose etiological agent in Brazil is Leishmania infantum chagasi. Dogs are considered urban reservoirs of the disease, being an indicator of the human cases occurrence. The present study aimed to diagnose L. infantum chagasi infection in stray and owned dogs in Belém, Pará State, by polymerase chain reaction (PCR) and indirect immunofluorescence assay (IFA) using two different antigens. Venous blood samples from adult dogs, regardless of gender or breed, of different neighborhoods in Belém-PA, were collected in tubes with and without anticoagulant to obtain DNA and serum, respectively. These animals were divided into two groups: stray dogs captured by the Center for Zoonosis Control (Group A) and owned dogs (Group B). Sera were analyzed by IFA testing for IgG using two different antigens: 1) Bio-Manguinhos/Fiocruz antigen kit (Ag-PRO) containing promastigotes of Leishmania sp. (Complex Major-Like), 2) Instituto Evandro Chagas Antigen (Ag-AMA) consisting of amastigotes of L. infantum chagasi. The evaluation of the two antigens was performed considering positive the reactions above the 1:80 dilution. Already PCR was performed with DNA isolated from whole blood of animals and amplified with the primers RV1 and RV2. Of the 335 samples analyzed, 10.4% (35/335) were positive by IFA (Ag-PRO) and 0.9% (3/335) with the Ag-AMA. The distribution of positive samples is given as follows: Group A 14.8% (25/169) with Ag-PRO and 1.2% (2/169) with Ag-AMA; Group B 6% (10/166) with Ag-PRO and 0.6% (1/166) with Ag-AMA, being that all samples positive by IFA with Ag-AMA also reacted with Ag-PRO, and none of the samples detected DNA of L. infantum chagasi. The findings of this study indicate that Belém can still be considered non-endemic area for canine visceral leishmaniasis and the nature of the antigen influences the result of the IFA for the detection of anti-L. infantum chagasi antibodies in dogs, and the IFA using promastigotes of Leishmania major-like antigen should be used with caution as a confirmatory diagnostic on epidemiological studies in non-endemic areas.

Leishmaniosis; Leishmania infantum chagasi; serodiagnosis; molecular diagnosis


PEQUENOS ANIMAIS/SMALL ANIMAL DISEASES

Diagnóstico molecular e frequência de anticorpos anti-Leishmania infantum chagasi em cães do município de Belém, Pará

Molecular diagnosis and frequency of anti-Leishmania infantum chagasi antibodies in dogs in Belém/Pará, Brazil

Katiane SchwankeI; Aryane M.M. da SilvaI; Adlilton PachecoI; Michele BahiaI; Fernando T. SilveiraII; Alessandra ScofieldI; Gustavo Góes-CavalcanteI* * Autor para correspondência: ggcggc@hotmail.com

ILaboratório de Parasitologia Animal, Instituto de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Pará (UFPA), Rodovia BR-316 Km 68, Castanhal, PA 68743-000, Brasil

IILaboratório de Leishmanioses, Instituto Evandro Chagas, Rodovia BR-316 Km 7, Ananideua, PA 67030-000, Brasil

ABSTRACT

Visceral leishmaniasis is a disease whose etiological agent in Brazil is Leishmania infantum chagasi. Dogs are considered urban reservoirs of the disease, being an indicator of the human cases occurrence. The present study aimed to diagnose L. infantum chagasi infection in stray and owned dogs in Belém, Pará State, by polymerase chain reaction (PCR) and indirect immunofluorescence assay (IFA) using two different antigens. Venous blood samples from adult dogs, regardless of gender or breed, of different neighborhoods in Belém-PA, were collected in tubes with and without anticoagulant to obtain DNA and serum, respectively. These animals were divided into two groups: stray dogs captured by the Center for Zoonosis Control (Group A) and owned dogs (Group B). Sera were analyzed by IFA testing for IgG using two different antigens: 1) Bio-Manguinhos/Fiocruz antigen kit (Ag-PRO) containing promastigotes of Leishmania sp. (Complex Major-Like), 2) Instituto Evandro Chagas Antigen (Ag-AMA) consisting of amastigotes of L. infantum chagasi. The evaluation of the two antigens was performed considering positive the reactions above the 1:80 dilution. Already PCR was performed with DNA isolated from whole blood of animals and amplified with the primers RV1 and RV2. Of the 335 samples analyzed, 10.4% (35/335) were positive by IFA (Ag-PRO) and 0.9% (3/335) with the Ag-AMA. The distribution of positive samples is given as follows: Group A 14.8% (25/169) with Ag-PRO and 1.2% (2/169) with Ag-AMA; Group B 6% (10/166) with Ag-PRO and 0.6% (1/166) with Ag-AMA, being that all samples positive by IFA with Ag-AMA also reacted with Ag-PRO, and none of the samples detected DNA of L. infantum chagasi. The findings of this study indicate that Belém can still be considered non-endemic area for canine visceral leishmaniasis and the nature of the antigen influences the result of the IFA for the detection of anti-L. infantum chagasi antibodies in dogs, and the IFA using promastigotes of Leishmania major-like antigen should be used with caution as a confirmatory diagnostic on epidemiological studies in non-endemic areas.

Index terms: Leishmaniosis, Leishmania infantum chagasi, serodiagnosis, molecular diagnosis.

RESUMO

A leishmaniose visceral é uma enfermidade cujo agente etiológico no Brasil é o protozoário Leishmania infantum chagasi. Os cães são considerados reservatórios urbanos da doença, sendo indicadores da ocorrência de casos humanos. O presente trabalho teve como objetivo diagnosticar a infecção por L. infantum chagasi em cães domiciliados e errantes do município de Belém, estado do Pará, através da reação em cadeia da polimerase (PCR) e da reação de imunofluorescência indireta (RIFI), empregando dois antígenos distintos. Amostras de sangue venoso de cães adultos, sem distinção de sexo ou raça, de diferentes bairros e épocas do ano da cidade de Belém-PA, foram colhidas em tubos sem e com anticoagulante para obtenção do soro e do DNA, respectivamente. Esses animais foram divididos em dois grupos: cães errantes capturados pelo Centro de Controle de Zoonoses (Grupo A) e cães domiciliados (Grupo B). Os soros foram analisados através do teste de RIFI para pesquisa de IgG utilizando-se dois antígenos distintos: 1) antígeno do kit Bio-Manguinhos/FIOCRUZ (Ag-PRO) contendo formas promastigotas de Leishmania sp. (complexo major-like); 2) Antígeno do Instituto Evandro Chagas (Ag-AMA) constituído por formas amastigotas de L. infantum chagasi. A avaliação dos dois antígenos foi realizada com as amostras reagentes a partir da titulação 1:80. Já a PCR foi realizada a partir do DNA extraído do sangue total dos animais e amplificado utilizando-se os iniciadores RV1e RV2. Das 335 amostras analisadas, 10,4% (35/335) foram reagentes na RIFI (Ag-PRO) e 0,9% (3/335) reagiram com o Ag-AMA. A distribuição das amostras positivas se deu da seguinte forma: Grupo A 14,8% (25/169) com Ag-PRO e 1,2% (2/169) com Ag-AMA; Grupo B 6% (10/166) com Ag-PRO e 0,6% (1/166) com Ag-AMA; sendo que todas as amostras positivas pelo teste de RIFI com o Ag-AMA também reagiram com o Ag-PRO e em nenhuma das amostras foi detectado o DNA de L. infantum chagasi. Os achados do presente estudo indicam que Belém ainda pode ser considerada área não endêmica para leishmaniose visceral canina e que a natureza do antígeno influencia no resultado da RIFI para a pesquisa de anticorpos anti-L. infantum chagasi em cães, sendo que a RIFI que utiliza formas promastigotas de Leishmania major-like como antígeno deve ser utilizada com cautela como método diagnóstico confirmatório em estudos epidemiológicos em áreas não endêmicas para LVC.

Termos de indexação: Leishmaniose, Leishmania infantum chagasi, sorodiagnóstico, diagnóstico molecular.

INTRODUÇÃO

A leishmaniose visceral (LV) é uma enfermidade infecciosa de caráter crônico, sendo considerada uma das sete mais importantes endemias mundiais, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) (Gontijo & Melo 2004). O agente etiológico da LV no Brasil é o protozoário Leishmania chagasi (sin. Leishmania infantum chagasi) (Kinetoplastida: Trypanosomatidae), que apresenta caráter zoonótico, tendo como principal vetor biológico o flebotomíneo Lutzomyia longipalpis (Diptera: Psychodidae) (Dantas-Torres & Brandão-Filho 2006).

Em virtude da importância dos cães no ciclo epidemiológico urbano da LV, o diagnóstico da infecção por L. infantum chagasi nesses animais é de grande valor no monitoramento dessa enfermidade em regiões endêmicas e arredores, pois a prevalência e a incidência da leishmaniose visceral canina (LVC) são importantes parâmetros epidemiológicos (Moreno & Alvar 2002). Baseado nisso, o presente trabalho teve como objetivo diagnosticar a infecção por L. infantum chagasi em cães domiciliados e errantes do município de Belém, estado do Pará, através da reação em cadeia da polimerase e da reação de imunofluorescência indireta empregando dois antígenos distintos.

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi realizado em Belém (latitude -01° 27' 21''S/ longitude 48° 30' 16''W), capital do estado do Pará, que é a cidade mais populosa da região Norte, com aproximadamente 1.393.399 habitantes (IBGE 2010).

Foram coletadas assepticamente 335 amostras de sangue venoso de cães adultos, sem distinção de sexo ou raça. Os animais foram divididos em dois grupos, sendo 169 cães errantes capturados pelo Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Prefeitura de Belém (Grupo A) e 166 cães domiciliados (Grupo B). Os animais domiciliados eram procedentes dos bairros Águas Lindas, Cremação, Curió-Utinga, Guamá e Terra Firme.

As amostras foram divididas em duas alíquotas, uma em tubo contendo EDTA para extração de DNA e outra em tubo sem anticoagulante, para obtenção do soro para a realização dos testes sorológicos.

Os soros coletados foram processados para RIFI com pesquisa de IgG, utilizando-se dois antígenos distintos. Para a RIFI com antígeno de formas promastigotas (Ag-PRO) foi utilizado como antígeno Leishmania major-like (MHOM/BR/76/JOF) integrante do kit IFI-LVC, produzido por Bio-Manguinhos/Fiocruz, lote 04 PLC004Z, seguindo o protocolo do fabricante.

Para a RIFI com antígeno de formas amastigotas (Ag-AMA) foi utilizado como antígeno L. infantum chagasi obtido por infecção experimental em hamster no biotério do Laboratório de Leishmanioses do Instituto Evandro Chagas. As lâminas da RIFI com Ag-AMA foram preparadas por aposição de baço de hamster infectado experimentalmente e, posteriormente, fixadas com acetona e armazenadas a -20°C. Os soros-teste foram diluídos até 1:80 (análise qualitativa) e distribuídos em lâminas que eram incubadas a 37°C por 30 minutos; após esse processo era realizada a primeira lavagem em PBS durante 15 minutos, retirando-se o excesso com água destilada.

O conjugado anti-IgG canina (SIGMA) era distribuído na lâmina, que era novamente incubada a 37°C por mais 30 minutos; após essa segunda incubação as lâminas eram novamente lavadas em PBS por 15 minutos. Após a secagem das lâminas, adicionava-se tampão de glicerina e lamínula, sendo então levadas ao microscópio de imunofluorescência para a realização da leitura, utilizando-se objetiva de 40X.

Como controle positivo foram utilizadas amostras de soro de dois cães sintomáticos e que foram positivos no exame parasitológico de medula óssea e linfonodo. Como controle negativo foram empregadas amostras de soro de dois cães de área não endêmica e com diagnóstico negativo no exame parasitológico de medula óssea e linfonodo.

Para o diagnóstico sorológico, primeiramente foi feita uma análise qualitativa através da triagem das amostras na diluição 1:80, sendo que as amostras reagentes nessa diluição foram submetidas a uma análise quantitativa, onde foram feitas diluições até 1:640 para ambos os antígenos.

A extração de DNA das amostras de sangue foi realizada empregando-se o kit Illustra blood genomic DNA Purification (GE Healthcare), seguindo as recomendações do fabricante. Como controle positivo da PCR utilizaram-se amostras de DNA extraídas de sangue total de dois cães sintomáticos e parasitologicamente positivos. As amostras de DNA extraído do sangue total desses animais foram diluídas em série de 1:10; 1:100; 1:1000 e submetidas à PCR.

Para a amplificação de parte do gene 18S do DNA de L. infantum chagasi foram utilizados os iniciadores RV1 e RV2 que amplificam um produto de 145 pares de base (Gomes et al. 2007). A mistura para amplificação continha 1,5 unidades de Taq DNA polimerase, 10mM Tris–HCl, pH 9,0; 50mMKCl; 50mM MgCl2 e 0,2mM de cada dNTP. Cada reação foi realizada com a adição de 5mL(~100hg) do DNA extraído de cada amostra teste e 10µM de cada iniciador para um volume final de 25mL.

As reações ocorreram em um termociclador (MJ 96G- Biocycler) utilizando-se protocolo de hot start com uma etapa de desnaturação inicial de 5 minutos a 96°C, seguida por 40 ciclos de 30s a 95°C, 30s a 60°C, e 1,5min a 72°C, finalizando a reação por uma extensão final de 7min a 72°C. Os produtos amplificados foram separados por eletroforese horizontal em gel de agarose a 2% contendo brometo de etídio (0,5mg/mL) e posteriormente visualizados no sistema de fotodocumentação (Quantum -ST4 1000/26M).

A concordância dos resultados obtidos na RIFI utilizando-se os dois antígenos foi avaliada através do indicador Kappa (k), conforme Andrade & Zicker (1997). O número de animais positivos na RIFI em função dos grupos experimentais foi comparado através do teste Qui-quadrado, utilizando-se o software Biostat® 5.0, com um nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Das 335 amostras analisadas, 10,4% (35/335) foram reagentes na RIFI Ag-PRO (Fig.1) e 0,9% (3/335) reagiram na RIFI Ag-AMA (Fig.2), sendo que todas as amostras positivas pelo teste de RIFI com o Ag-AMA também reagiram na RIFI com o Ag-PRO. A distribuição das amostras positivas em função dos grupos está descrita no Quadro 1.




Do total de 30 amostras reagentes apenas na RIFI Ag-PRO, 63,33% (19/30) reagiram até a diluição de 1:80, 33,33% (10/30) até a diluição de 1:160 e 3,33% (1/30) até a diluição 1:320. As amostras positivas em ambos os antígenos, reagiram até a mesma diluição, sendo que 66,66% (2/3) reagiram até a diluição de 1:80 e 33,33% (1/3) até 1:160. A concordância entre os dois antígenos foi fraca (k= 0.152).

A reação em cadeia da polimerase (PCR) utilizando-se os iniciadores RV1e RV2 foi capaz de amplificar um fragmento de aproximadamente 145 pb das amostras de DNA extraído de sangue total dos dois cães sintomáticos com diagnóstico parasitológico positivo que foram utilizados para a padronização da reação. A PCR foi capaz de detectar o DNA de L. infantum chagasi em ambas as amostras até a diluição de 1:10. Não foi possível a visualização do sinal positivo em nenhuma das reações realizadas a partir das amostras de DNA extraídas do sangue total dos animais estudados.

DISCUSSÃO

Diferentes estudos vêm sendo realizados com o propósito de avaliar as ferramentas a serem empregadas no diagnóstico da leishmaniose visceral canina, visando sempre rapidez e elevada acurácia dos resultados. Essas são características essenciais para o estabelecimento de estratégias de controle dessa enfermidade em regiões endêmicas, bem como para monitorar a ocorrência dessa enfermidade em áreas não endêmicas, como é o caso do município de Belém, que atualmente é considerado pelo Ministério da Saúde como área de transmissão esporádica (Brasil 2012).

Apesar de, no Brasil, a doença estar associada a apenas uma espécie de Leishmania, ainda não existe um consenso na literatura especializada quanto ao emprego de um antígeno para uso no sorodiagnóstico da LVC (Laurenti 2009). Por isso, no presente trabalho foram utilizados dois antígenos distintos para o diagnóstico da leishmaniose visceral canina em animais residentes no município de Belém. O diagnóstico sorológico realizado com antígenos distintos mostrou baixa ocorrência de anticorpos nos animais estudados (10,4%) quando comparado aos índices observados em animais provenientes de área de elevada transmissão, que podem ser de até 25% (Gontijo & Melo 2004, Dantas-Torres 2006).

A concordância fraca (k= 0.152) obtida na RIFI entre os dois antígenos distintos indica a influência da natureza do antígeno sobre os valores intrínsecos do teste, visto que, além dos antígenos empregados serem de formas evolutivas distintas, pertencem a espécies diferentes (De Jesus et al. 2003, Alves & Bevilacqua 2004, Andrade et al. 2009). Este fato foi observado por Mancianti et al. (1995) e Mancianti et al. (1996), que reportaram que, tanto a sensibilidade quanto a especificidade da RIFI para a detecção de anticorpos anti-Leishmania sp. podem variar em função da natureza do antígeno utilizado.

É importante mencionar que o diagnóstico da LVC, utilizando-se o antígeno de promastigotas de L. major-like, baseia-se no fenômeno da reação cruzada que, quando acontece entre outros agentes infecciosos acaba prejudicando a especificidade do teste. Isso ocorre em função de diferentes patógenos poderem apresentar epítopos semelhantes, fenômeno observado principalmente entre microrganismos que apresentam proximidade filogenética (Andrade et al. 2009). A reação cruzada entre esse antígeno e outros agentes infecciosos foi mencionada em diversos trabalhos (Vexenat et al. 1996, Lira 2005, Ferreira et al. 2007, Andrade et al. 2009), principalmente em relação a outros tripanossomatídeos (Ferreira et al. 2007, Laurenti 2009).

Desse modo, o fato de ser observado número maior de amostras reagentes ao Ag-PRO de L. major-like, quando comparado ao número de amostras reagentes ao antígeno Ag-AMA de Leishmania infantum chagasi, aliado ao fato de que os animais residiam em região não endêmica para o agente da LVC, sugere que possa ter ocorrido grande número de reações cruzadas com outros agentes infecciosos na RIFI com Ag-PRO, semelhante ao observado por De Jesus et al. (2003).

Além da especificidade, a sensibilidade da RIFI pode ser influenciada pela natureza do antígeno. Fernández-Pérez et al. (1999) compararam a eficiência da RIFI utilizando formas amastigotas e promastigotas de L. infantum como antígenos para diagnóstico de LVC e concluíram que a RIFI utilizando como antígeno as formas amastigotas do parasito foi igualmente específica, porém mais sensível que a RIFI com antígeno de promastigotas.

Outro aspecto amplamente discutido é o valor de corte (CUT-OFF) utilizado para definir o resultado da reação. Em áreas endêmicas, o Ministério da Saúde recomenda a eutanásia dos cães reativos na RIFI a partir da diluição de 1:40 (Figueiredo et al. 2010). Esses autores observaram que a sensibilidade da RIFI foi igual para os dois pontos de corte aplicados (1:40 e 1:80). Por outro lado, a especificidade foi significativamente maior quando o ponto de corte se deu na diluição de 1:80. Eles relacionaram essa discordância à sobreposição de áreas geográficas endêmicas, tanto para LV como para Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA), favorecendo a reação cruzada, que é observada em diluições baixas.

Dessa forma, em virtude do presente estudo ter sido realizado em área não endêmica para LVC, foi escolhido o ponto de corte de 1:80 em ambas as RIFI utilizadas, com o objetivo de maximizar a especificidade do teste e, consequentemente, minimizar a ocorrência de resultados falso-positivos.

Segundo Quinnell et al. (2001), a concentração de anticorpos anti-L. infantum chagasi no soro de cães infectados varia conforme o curso da infecção. Lima et al. (2010) ainda relataram que animais sintomáticos para LVC tendem a apresentar altos títulos de anticorpos, geralmente superiores a 1:80, semelhante ao observado neste estudo, visto que a maioria dos animais não apresentava sinais clínicos característicos de LVC justificando, desse modo, a baixa ocorrência de reações com diluição acima de 1:80 dentre as amostras soropositivas (33,33% até a diluição de 1:160 e 3,33% até a diluição 1:320).

Apesar da discordância nos resultados obtidos nas RIFI's utilizando os dois antígenos distintos, as três amostras positivas para ambos os antígenos reagiram até as mesmas diluições nas duas técnicas, evidenciando a presença de quantidade semelhante de anticorpos com afinidade para as frações antigênicas, tanto nas formas promastigotas de L. major-like, quanto nas formas amastigotas de L. infantum chagasi.

O maior número de amostras reagentes observado no grupo de animais errantes pode se justificar pelo fato de que animais de rua estão mais expostos a infecções por diferentes patógenos, além do fato de que, em sua maioria, os animais estudados apresentavam estado nutricional e sanitário deficientes, favorecendo o desenvolvimento de diferentes agentes infecciosos que podem levar a reações cruzadas nos testes sorológicos (Costa et al. 2007), visto que cerca de 95% (26/28) desses animais considerados positivos, reagiram apenas na RIFI Ag-PRO.

O único animal domiciliado sororreagente na diluição de 1:160, tanto para Ag-PRO como para Ag-AMA, residia nas proximidades da mata do Utinga, onde já foi comprovado o ciclo silvestre de várias espécies do gênero Leishmania, inclusive L. infantum chagasi (Lainson 2010). Esse animal era um macho com 13 anos de idade e que não apresentava sinal clínico característico de LVC, contudo, após o proprietário ter sido informado sobre o resultado, não permitiu que a equipe responsável pelo estudo realizasse exame clínico mais detalhado, bem como colhesse outras amostras para diagnóstico.

A escolha dos primers utilizados no presente trabalho foi baseada nos resultados de Gomes et al. (2007) e Lachaud et al. (2002), que demonstraram ótimo desempenho diagnóstico, tanto no grupo de cães sintomáticos, como no grupo de assintomáticos. A padronização da PCR realizada a partir de amostras de sangue total de dois cães sintomáticos, positivos no exame parasitológico e reagentes na sorologia, detectou DNA de L. infantum chagasi até a diluição do DNA de 1:10, demostrando uma ótima capacidade diagnóstica em amostras de sangue total de cães sintomáticos, corroborando com os dados obtidos por outros autores (Lachaud et al. 2002, Gomes et al. 2007, Quaresma et al. 2009, Leite et al. 2010).

Entretanto, em nenhuma das amostras-teste deste estudo submetida a PCR foi detectado DNA de L. infantum chagasi. Nesse caso, não há elementos suficientes para afirmar se a incapacidade da PCR em detectar DNA de L. infantum chagasi nos cães sororreagentes foi devida a parasitemia baixa nas amostras coletadas, ou se as reações sorológicas tidas como positivas foram reações inespecíficas.

Sabe-se que a sensibilidade da PCR é maior em amostras de DNA extraídas de baço, linfonodos e medula óssea, mas a coleta dessas amostras in vivo é muito invasiva e tem uma série de desvantagens. Segundo Gomes et al. (2007) e Maia et al. (2009), para estudos epidemiológicos a campo, a PCR a partir do DNA de sangue total de cães é apropriada para a confirmação dos exames sorológicos, o que não foi observado no presente estudo.

CONCLUSÕES

Os achados do presente estudo ratificam que Belém ainda pode ser considerada área não endêmica para LVC, contudo, vale ressaltar que há vários municípios da região metropolitana de Belém (Lima et al. 2010, Brasil 2012) bem como municípios próximos situados na Ilha do Marajó (Quinnel et al. 2001, Brasil 2012) e na região nordeste do Estado do Pará (Brasil 2012) que são considerados de alta taxa de transmissão e apresentam elevada taxa de êxodo para a capital, demonstrando a necessidade de um sistema de vigilância constante e eficaz para o monitoramento de casos de LVC.

O presente estudo também mostrou que a natureza dos antígenos influencia diretamente no resultado da RIFI para a pesquisa de anticorpos anti-Leishmania infantum chagasi em cães, e que a RIFI que utiliza formas promastigotas de L. major-like como antígeno deve ser utilizado com cautela como método diagnóstico confirmatório em estudos epidemiológicos em áreas não endêmicas para leishmaniose visceral canina.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e Fundação Amazônia Paraense (FAPESPA), órgãos financiadores das bolsas e dos recursos financeiros.

Recebido em 27 de setembro de 2013.

Aceito para publicação em 15 de janeiro de 2014.

  • Andrade A.L.S.S. & Zicker F. 1997. Avaliação de testes diagnósticos, p.9-30. In: Andrade A.L.S.S. & Zicker F. (Eds), Métodos de Investigação Epidemiológica em Doenças Transmissíveis. Vol.1. FNS, OPAS, Brasília, DF.
  • Andrade R.A., Araújo M.S.S., Reis A.B., Gontijo C.M.F., Vianna R.L., Mayrink W. & Martins-Filho O.A. 2009. Advances in flow cytometric serology for canine visceral leishmaniasis: diagnostic applications when distinct clinical forms, vaccination and other canine pathogens become a challenge. Vet. Immunol. Immunopathol. 128:79-86.
  • Alves W.A. & Bevilacqua P.D. 2004. Reflexões sobre a qualidade do diagnóstico da leishmaniose visceral canina em inquéritos epidemiológicos: o caso da epidemia de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 1993-1997. Cad. Saúde Pública 20:259-265.
  • Brasil 2012. Ministério da Saúde, Brasília, DF <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=34340>
  • Costa C.H.N., Tapety C.M.M. & Werneck G.L. 2007. Controle da leishmaniose visceral em meio urbano: estudo de intervenção randomizado fatorial. Revta Soc. Bras. Med. Trop. 40:415-419.
  • Dantas-Torres F. 2006. Leishmune vaccine: the newest tool for prevention and control of canine visceral leishmaniosis and its potential as a transmission-blocking vaccine. Vet. Parasitol. 141:1-8.
  • Dantas-Torres F. & Brandão-Filho S.P. 2006. Expansão geográfica da leishmaniose visceral no Estado de Pernambuco. Revta Soc. Bras. Med. Trop. 39:352-356.
  • De Jesus R.C.S., Corrêa Z.C., Everdosa D.R., Martins A.P., Eliseu L.S., Campos M.B., Jennings V.L.L., Ishikawa E.A.I., De Souza A.A.A. & Silveira F.T. 2003. Comparação das técnicas de RIFI (ag. IEC x ag. BIO-Manguinhos) e ELISA no sorodiagnóstico da leishmaniose visceral canina (LVC), Estado do Pará, Brasil. Revta Soc. Bras. Med. Trop. 36 (Supl.1):311.
  • Fernández-Pérez F.J., Méndez S., De La Fuente C., Gómez-Muñoz M.T. & Alunda J.M. 1999. Short Report: Improved diagnosis and follow-up of canine leishmaniasis using amastigote-based indirect immunofluorescence. Am. J. Trop. Med. Hyg. 61:652-653.
  • Ferreira E.C., Lana M., Carneiro M., Reis A.B., Paes D.V., Da Silva E.S., Schallig H. & Gontijo C.M. 2007. Comparison of serological assays for the diagnosis of canine visceral leishmaniasis in animals presenting different clinical manifestations. Vet. Parasitol. 146:235-241.
  • Figueiredo F.B., Madeira M.F., Nascimento L.D., Abrantes T.R., Mouta-Confort E., Passos S.R.L. & Schubach T.M.P. 2010. Canine visceral leishmaniasis: study of methods for the detection of IgG in serum and eluate samples. Revta Inst. Med. Trop. São Paulo 52:193-196.
  • Gomes A.H.S., Ferreira I.M.R., Lima M.L.S.R., Cunha E.A., Garcia A.S., Araújo M.L.F. & Pereira-Chioccola V.L. 2007. PCR identification of Leishmania in diagnosis and control of canine leishmaniasis. Vet. Parasitol. 144:234-241.
  • Gontijo C.M.F. & Melo M.N. 2004. Leishmaniose visceral no Brasil: quadro atual, desafios e perspectivas. Revta Bras. Epidemiol. 7:338-349.
  • IBGE 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística <http://www.ibge.gov. br/cidadesat/topwindow.htm>
  • Lachaud L., Marchergui-Hammami S., Chabbert E., Dereure J., Dedet J.P. & Bastien P. 2002. Comparison of six PCR methods using peripheral blood for detection of canine visceral leishmaniasis. J. Clin. Microbiol. 40:210-215.
  • Lainson R. 2010. The Neotropical Leishmania species: a brief historical review of their discovery, ecology and taxonomy. Revta Pan-Amaz. Saúde 1:13-32.
  • Laurenti M.D. 2009. Correlação entre o diagnóstico parasitológico e sorológico na leishmaniose visceral americana canina. BEPA, Bolm Epidemiol. 6:13-23.
  • Leite R.S., Ferreira S.A., Ituassu L.T., Melo M.N. & Andrade A.S.R. 2010. PCR diagnosis of visceral leishmaniasis in asymptomatic dogs using conjunctival swab samples. Vet. Parasitol. 170:201-206.
  • Lima L.V.R., Carneiro L.A., Campos M.B., Chagas E.J., Laurenti M.D., Corbett C.E.P., Lainson R. & Silveira F.T. 2010. Canine Visceral Leishmaniasis due to Leishmania (L.) infantum chagasi in amazonian Brazil: comparison of the parasite density from the skin, lymph node and visceral tissues between symptomatic and asymptomatic, seropositive dogs. Revta Inst. Med. Trop. São Paulo 52:259-265.
  • Lira RA. 2005. Diagnóstico da Leishmaniose Visceral Canina: Avaliação do Desempenho dos Kits EIE-leishmaniose-visceral-canina-Bio-Manguinhos e IFI-leishmaniose-visceral-canina-Bio-Manguinhos. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, PE. 43p.
  • Maia C., Ramada J., Cristóvão J.M., Gonçalves L. & Campino L. 2009. Diagnosis of canine leishmaniasis: Conventional and molecular techniques using different tissues. Vet. J. 179:142-144.
  • Mancianti F., Falcone M.L., Giannelli C. & Poli A. 1995. Comparison between an enzyme-linked immunosorbent assay using a detergent-soluble Leishmania infantum antigen and indirect immunofluorescence for the diagnosis of canine leishmaniosis. Vet. Parasitol. 59:13-21.
  • Mancianti F., Pedonese F. & Poli A. 1996. Evaluation of dot enzyme-linked immunosorbent assay (dot-ELISA) for the serodiagnosis of canine leishmaniosis as compared with indirect immunofluorescence assay. Vet. Parasitol. 65:1-9.
  • Moreno J. & Alvar J. 2002. Canine leishmaniasis: epidemiological risk and the experimental model. Trends in Parasitol. 18:399-405.
  • Quaresma P.F., Murta S.M.F., Ferreira E.C., Rocha-Lima A.C.V.M., Xavier A.A.P. & Gontijo C.M.F. 2009. Molecular diagnosis of canine visceral leishmaniasis: Identification of Leishmania species by PCR-RFLP and quantification of parasite DNA by real-time PCR. Acta Tropica 111:289-294.
  • Quinnell R.J., Courtenay O., Shaw M.A., Day M.J., Garcez L.M., Dye C. & Kaye P.M. 2001. Tissue Cytokine Responses in Canine Visceral Leishmaniasis. J. Infect. Dis. 183:1421-1424.
  • Vexenat A.C., Santana J.M. & Teixeira A.R.L. 1996. Cross-reactivity of antibodies in human infections by the kinethoplastid protozoa Trypanosoma cruzi, Leishmania chagasi, and Leishmania (Viannia) braziliensis Revta Soc. Bras. Med. Trop.38:177-185.
  • *
    Autor para correspondência:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Aceito
      15 Jan 2014
    • Recebido
      27 Set 2013
    Colégio Brasileiro de Patologia Animal - CBPA Pesquisa Veterinária Brasileira, Caixa Postal 74.591, 23890-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel./Fax: (55 21) 2682-1081 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: pvb@pvb.com.br