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Conformações distorcida e planar do anel porfirínico em complexos e hemoproteínas: propriedades físico-químicas e implicações espectroscópicas

Ruffled and planar conformations of the porphyrin ring in complexes and heme proteins: physical-chemistry properties and spectroscopic implications

Resumo

The different conformations of porphyrin rings are strongly related with the electronic configurations of the metallic center in the ferriheme coordination compounds and heme proteins. The usual electronic configuration, (d xy)²(d xz,d yz )³ presents a planar conformation of the porphyrin ring and the less common electronic configuration (d xz,d yz)4(d xy )¹ occurs in the case of a strongly ruffled ring. These states are responsible for distinct chemical and spectroscopic properties of the porphyrin systems. The importance of the ring conformations, their characteristics, implications and applications are discussed.

porphyrin; electronic configurations; spectroscopies


porphyrin; electronic configurations; spectroscopies

ARTIGO

Conformações distorcida e planar do anel porfirínico em complexos e hemoproteínas: propriedades físico-químicas e implicações espectroscópicas

Ruffled and planar conformations of the porphyrin ring in complexes and heme proteins: physical-chemistry properties and spectroscopic implications

Leonardo M. Moreira* * e-mail: leomarmo@iqsc.usp.br ; Julio C. Ribelatto; Hidetake Imasato

Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo, CP 780, 13560-970 São Carlos - SP

ABSTRACT

The different conformations of porphyrin rings are strongly related with the electronic configurations of the metallic center in the ferriheme coordination compounds and heme proteins. The usual electronic configuration, (dxy)2(dxz,dyz )3 presents a planar conformation of the porphyrin ring and the less common electronic configuration (dxz,dyz)4(dxy )1 occurs in the case of a strongly ruffled ring. These states are responsible for distinct chemical and spectroscopic properties of the porphyrin systems. The importance of the ring conformations, their characteristics, implications and applications are discussed.

Keywords: porphyrin; electronic configurations; spectroscopies.

INTRODUÇÃO

Os tetraazamacrociclos ao se coordenarem a íons metálicos conferem a estes centros de coordenação uma estabilização de estados de oxidação não usuais, como por exemplo, ferro(I) e ferro(IV), devido ao chamado "efeito macrocíclico". Esta estabilidade, juntamente com a conhecida versatilidade dos sistemas macrocíclicos, além da evidente relevância biológica, tem motivado várias pesquisas desses compostos como protótipos em modificação de superfícies (filmes finos)1, confecção de sistemas supramoleculares (supermoléculas)2,3, reconstituição de hemoproteínas4 e biomimetismo de hemoproteínas por meio de complexos modelos5, entre outras aplicações. Vale lembrar que a química dos ligantes macrocíclicos recebeu especial destaque com a outorga do prêmio Nobel de 1987 a Lehn, Pedersen e Cram6-8.

Dentre os macrociclos, as porfirinas apresentam grande realce, devido à relevância de suas implicações biológicas, constituindo-se no grupamento prostético de várias hemoproteínas.

DESDOBRAMENTO DOS ORBITAIS DO CENTRO FÉRRICO

Segundo Walker9, partindo-se complexos de Fe(III) de porfirinas, clorinas e tetrafenilporfirinas com ligantes axiais diversificados, entre eles piridinas, pirazóis e imidazóis, pode-se identificar três tipos de centros ferro-porfirínicos:

  1. tipo I, que apresenta o estado fundamental eletrônico (dxy)2(dxz, dyz)3 e os ligantes axiais alinhados em planos perpendiculares;

  2. tipo II, que apresenta o estado fundamental eletrônico (dxy)2(dxz, dyz)3 e os ligantes axiais alinhados em planos paralelos e

  3. tipo III, que apresenta o estado fundamental eletrônico (dxz,dyz)4(dxy )1 com os ligantes axiais em quaisquer orientações9.

Em princípio, pode-se dizer que são duas as variáveis que determinam qual configuração eletrônica (Figura 1) a porfirina vai apresentar: os ligantes axiais e o solvente9,10. No entanto, há de se acrescentar entre esses fatores a estereoquímica, que também desempenha papel determinante.


A configuração distorcida ocorre se uma das seguintes condições é satisfeita:

  1. os ligantes axiais são, ao mesmo tempo, fracos s-doadores e fortes p-aceptores tais como tert-butil isocianeto (BuNC) e 4-cianopiridina (4-CNPy);

  2. anéis porfirínicos que são fortemente S4-distorcidos como em meso-tetraisopropilporfirina, meso-tetrametilquiroporfirina e meso-tetracicloexilporfirina11.

Como já foi mencionado, o solvente é importante na determinação do estado fundamental12, mas neste estudo não será enfatizada esta abordagem já que nosso interesse é a compreensão estrutural da proteína e de sua relação estrutura-atividade no meio biológico, ou seja, somente em meio aquoso.

A título de ilustração é relevante citar, baseado em dados de raios-X, exemplos de hemoproteínas que revelam o grupamento prostético distorcido de uma simetria ideal D4h. São elas: citocromo-c3; citocromo-c do atum, oxidado e reduzido; citocromo-c peroxidase, iso-1-citocromo-c de leveduras13.

No estudo de ferro-porfirinas, vários modelos de hemes têm sido pesquisados com o objetivo de se avaliar a influência dos ligantes axiais e dos substituintes periféricos de porfirinas sobre a energia dos orbitais moleculares e as propriedades espectroscópicas e magnéticas inerentes a esse sistema e às hemoglobinas. Em um sistema onde não são alterados os substituintes periféricos do anel porfirínico, os ligantes axiais são determinantes nas propriedades de todo o macrociclo, não apenas pelo tipo de ligante e suas propriedades, como também por sua disposição espacial9,14-19. Quanto a essa disposição, é importante salientar que apesar da grande utilidade de complexos modelos na elucidação das propriedades das hemoproteínas, os hemes sintéticos, freqüentemente, apresentam diferentes propriedades, como por exemplo, a rápida rotação dos ligantes axiais em soluções homogêneas, quando, evidentemente, não são inseridos nos complexos impedimentos estéricos que impeçam essa movimentação. Quando a rotação é livre os complexos se diferenciam das proteínas em vários aspectos e, notadamente, quanto às propriedades magnéticas, o que tem sido a justificativa de muitos estudos que desconsideram a anisotropia das interações hiperfinas nestes compostos20, tanto em ressonância magnética nuclear de sistemas paramagnéticos como em ressonância paramagnética eletrônica.

Em relação à disposição espacial, deve-se considerar tanto a orientação recíproca dos ligantes axiais, como se existe ou não deformação de origem estérica do anel porfirínico. Além de ser fundamental no desdobramento dos orbitais moleculares, o arranjo espacial dos ligantes será determinante na orientação do tensor de susceptibilidade paramagnética, sendo, portanto, um estudo imprescindível como pré-requisito para interpretação dos dados espectroscópicos de ressonância magnética nuclear e ressonância paramagnética eletrônica18,21. As porfirinas podem apresentar-se em uma disposição planar ou em uma conformação não-planar ondulada (conformação distorcida), e essa capacidade de distorcer-se mais ou menos está estritamente relacionada ao arranjo das insaturações deste anel, podendo afetar profundamente a simetria do grupo heme e, conseqüentemente, as propriedades físico-químicas do mesmo8. Porém, é interessante salientar que estes estados distorcidos e planares podem se apresentar interconversíveis (Figura 2), ou seja, podem constituir um equilíbrio químico, o que é evidenciado por espectros de RPE com características de ambos12.


INFLUÊNCIA DA ORIENTAÇÃO DOS LIGANTES AXIAIS NA CONFIGURAÇÃO ELETRÔNICA E NAS PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS DOS HEMES

A influência da orientação dos planos dos ligantes axiais é efetiva sobre a configuração eletrônica e as propriedades dos sistemas ferro-porfirínicos22,23, podendo ser um fator mais significativo que a propriedade de acidez/basicidade dos ligantes em questão24,25. A orientação perpendicular dos planos dos ligantes axiais imidazólicos, por exemplo, é importante na estabilização do estado eletrônico mais raro, (dxz,dyz)4(dxy )1 26. Um outro fator relevante diz respeito à inserção de impedimentos estéricos que podem controlar e estabilizar o estado eletrônico distorcido, independentemente da acidez/basicidade dos ligantes axiais26. Ademais, existe a possibilidade de uma correlação entre as orientações dos planos dos ligantes axiais e o potencial redox do sistema27. Além da influência dos ligantes axiais, os grupos volumosos, seja no anel porfirínico ou no próprio ligante axial, também devem ser considerados, pois a inserção de influências estéricas consiste em um dos principais causadores de distorção do macrociclo28, proporcionando aquilo que se convencionou chamar de "cavidades", cujas áreas dependem do grau de distorção29,30.

É fundamental ressaltar que a distorção constringe todo o sistema, diminuindo a velocidade de rotação dos ligantes axiais31. Em alguns casos a distorção chega a fixar a orientação destes ligantes, fenômeno este que ocorre com os grupos hemes nas proteínas, sendo que essa orientação definida está correlacionada com as altas freqüências das linhas espectrais encontradas para os sistemas distorcidos em ressonância magnética nuclear29. Além disso, o comprimento de ligação entre o centro metálico e os ligantes axiais também influencia a velocidade de rotação destes ligantes32.

Portanto, a orientação recíproca dos ligantes axiais tem sido considerada um importante fator para a definição da conformação do anel, constatando-se que o arranjo distorcido favorece a orientação perpendicular. Segundo McGarvey, a orientação perpendicular dos ligantes axiais diminui a energia dos orbitais do complexo, evitando a distorção tetragonal33, também conhecida como efeito de Jahn-Teller, que consiste, no caso da porfirina, em um alongamento das ligações axiais em relação às ligações do plano xy (Figura 3).


INFLUÊNCIA DOS LIGANTES AXIAIS p-ÁCIDOS NO ESTABELECIMENTO DA CONFORMAÇÃO DISTORCIDA E DA BAIXA ANISOTROPIA MAGNÉTICA DO ANEL PORFIRÍNICO

Segundo Simonneaux e colaboradores, a complexação de isocianeto às ferroporfirinas causa um estado fundamental distorcido puro34, o que não deixa de corroborar as idéias de Ikezaki e Nakamura, que afirmam que complexos porfirínicos com orbitais p* dos ligantes axiais com baixa energia apresentam a configuração eletrônica dita menos comum, ou seja, a conformação distorcida para o heme. Portanto, a acidez-p dos ligantes axiais deve ser considerada um dos fatores fundamentais para a distorção do anel porfirínico. Ikezaki e Nakamura propõem que a diminuição da diferença de energia entre dp e dxy causa a diminuição da anisotropia magnética do sistema12. Este fato, juntamente com a informação de Simonneaux35 de que o anel porfirínico distorcido apresenta uma contribuição de contato muito significativa, uma contribuição dipolar desprezível e que, por sua vez, a porfirina planar apresenta uma contribuição dipolar considerável, sendo menor sua anisotropia magnética é bastante conclusiva, pois a presença de ligantes isocianetos induzindo à proposta de que quanto maior a acidez p, maior a distorção do anel e menor a anisotropia magnética neste mesmo anel.

Em princípio, essa proposição é pertinente, pois na porfirina distorcida o orbital dxy do metal está em contato direto com os orbitais pz (p*) do tetraazamacrociclo, criando um contato paramagnético com o anel muito mais pronunciado que na configuração planar, onde os orbitais dp, que "dividem" o elétron desemparelhado, não têm a mesma interação com orbitais porfirínicos, estando mais "superpostos" com orbitais dos ligantes axiais, como mostrado na Figura 4.


Segundo Munro e colaboradores13, a diferença nas configurações eletrônicas do metal é principalmente controlada pelas características eletrônicas dos ligantes axiais, presumivelmente, com os ligantes deficientes em elétron, por exemplo 4-cianopiridina, distorcendo o anel a partir da estabilização dos orbitais preenchidos dxz e dyz pela ligação p M®Laxial. A localização do spin desemparelhado no orbital dxy também possibilita uma acentuação da s-doação do ligante porfirínico no plano xy, devido a uma menor repulsão eletrônica no plano do anel, distorcendo a porfirina e contraindo, parcialmente, as ligações Fe-Np (Ferro-Nitrogênio porfirínico). Portanto, os ligantes p-ácidos acentuam a distorção do anel através de uma dupla ação: aumentam a eletrofilicidade do ferro por meio da ligação p e diminuem a repulsão eletrônica no plano xy facilitando o encurtamento da ligação Fe-Np, já que estabilizando os orbitais dxz e dyz tornam o orbital dxy o homo (orbital molecular ocupado de maior energia) do sistema, ocupado, por conseqüência, por apenas um elétron e não mais dois, o que acontecia na conformação planar.

A distorção discutida acima resulta, portanto, de uma contração ao longo da ligação ferro-nitrogênio porfirínico, causando uma inclinação "para fora" do plano dos anéis pirrólicos e uma rotação dos mesmos em torno do eixo da ligação.

Na mesma direção dessa proposta, Nakamura e colaboradores36 afirmam que mesmo na ausência de repulsão estérica apreciável todos os complexos com a configuração eletrônica (dxz, dyz)4(dxy)1 têm um anel porfirínico distorcido, causado por interações eletrônicas entre o ferro e os ligantes axias e interações entre o ferro e a porfirina, sendo que essa deformação possibilita uma estabilização adicional devido às interações do tipo porfirina(a2u)-Fe(dxy), que não ocorrem no arranjo planar.

A influência dos ligantes axiais na distorção da porfirina, via encurtamento das ligações ferro-nitrogênio porfirínico, pode ser analisada pelos dados de Munro e colaboradores13 (Tabela 1).

Um aspecto interessante que ainda está sob estudo é o fato da configuração planar apresentar uma variação de deslocamentos das linhas espectrais de RMN maior que a configuração distorcida37. Uma das causas está relacionada à maior anisotropia da conformação planar, causada pela corrente do anel, que é um fenômeno que pode ser minimizado quando ocorrem distorções na porfirina devido a uma diminuição da sobreposição dos orbitais pp do anel, orbitais estes que constituem todo o sistema conjugado p do macrociclo. De qualquer maneira, ainda não está clara a diferença do mecanismo de acoplamento hiperfino nos dois sistemas e suas conseqüências nos respectivos desdobramentos de linhas.

INFLUÊNCIA DOS SOLVENTES SOBRE A CONFIGURAÇÃO ELETRÔNICA E AS PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS DOS HEMES

Estudos recentes têm mostrado que solventes próticos, sobretudo os de maior constante dielétrica, como a água, favorecem a configuração eletrônica distorcida devido à ocorrência de ligações de hidrogênio entre os ligantes axiais ácidos-p e o solvente. Esta interação estabiliza os orbitais p* dos ligantes axiais, acentuando a superposição destes com os orbitais dp, conseqüentemente diminuindo a energia dos orbitais dxz e dyz em relação ao orbital dxy10.

AS ORIENTAÇÕES DO ANEL PORFIRÍNICO

O próprio anel porfirínico apresenta um equilíbrio químico entre duas orientações nas hemoproteínas, ou seja, existem duas formas possíveis a partir de uma interconversão de 180° que afetam significativamente as propriedades espectroscópicas como, por exemplo, as posições das linhas espectrais de RMN-1H. Isto se deve à assimetria das vizinhanças do heme dentro do enovelamento protéico, que também impõe uma orientação termodinamicamente mais favorável38. Em estudos de reconstituição e em pesquisas de relação estrutura-atividade visando atingir implicações mais amplas do ponto de vista biológico, esse comportamento dinâmico, envolvendo a disposição do heme nas chamadas formas predominante e minoritária, deve ser considerado.

INFLUÊNCIA DO VOLUME IÔNICO NA DISTORÇÃO DO ANEL PORFIRÍNICO

A utilização de sistemas modelos tem sido uma constante nas pesquisas envolvendo porfirinas e proteínas que apresentem grupamentos prostéticos heme. Além do ferro, uma grande variedade de metais é estudada continuamente como centros de coordenação para os grupamentos porfirínicos. Porém, para se empregar dados de distorção porfirínica observados em modelos com centros metálicos que não sejam o ferro nas hemoproteínas, é necessário considerar as diferenças de volume iônico. Segundo Jentzen e colaboradores39, por exemplo, uma distorção similar entre um complexo porfirínico de níquel e o citocromo-c apresenta uma diferença de energia maior para o citocromo-c, ou seja, o efeito de uma mesma distorção pode ser muito mais representativo para o ferro que para o níquel, já que a distorção é muito mais difícil para o ferro, por este ser um íon mais volumoso.

Este argumento deve ser mencionado também quando se propõe empregar os dados de ferro(III) para analisar os resultados de ferro(II), pois as propriedades de ambos podem diferir significativamente pois, à exceção de n-metilimidazol, as constantes de equilíbrio de coordenação de diversos ligantes são bem diferenciadas para os dois estados de oxidação40. De qualquer maneira, para as hemoglobinas em geral, o fato do n-metilimidazol apresentar constantes de equilíbrio próximas para os estados férrico e ferroso implica que as diferenças entre os dois sistemas são minimizadas, haja vista o fato de que, invariavelmente, a posição proximal das hemoproteínas é ocupada por uma histidina, que apresenta grande similitude estrutural com o n-metilimidazol.

FATORES COMUNS ENTRE CATÁLISE E DISTORÇÃO PORFIRÍNICA

A caracterização de catalisadores ferroporfirínicos em suas formas mais estáveis constitui um ponto chave da atividade de porfirinas. Tem sido observado que a atividade catalítica de ferroporfirinas é dependente de meso-substituintes no anel porfirínico, solventes, presença de água ou íons hidroxila no meio reacional, entre outros fatores41. É interessante notar que esses fatores que influenciam a atividade catalítica coincidem com os fatores que vêm sendo discutidos no presente texto como fundamentais na definição de uma conformação do sistema ferro-porfirínico, pressupondo, uma vez mais, uma significativa correlação entre reatividade e distorção do anel.

ESPECTROSCOPIA DE ABSORÇÃO NA REGIÃO DO ULTRAVIOLETA-VISÍVEL DE PORFIRINAS

As conformações do anel são fundamentais para a interpretação dos deslocamentos das bandas dos espectros de absorção na região do ultravioleta-visível de sistemas porfirínicos. As chamadas bandas B (Soret) e Q são transições p-p*, logo, transições do anel porfirínico e, portanto, sensíveis às mudanças conformacionais do anel.

Está bem estabelecido que quanto mais distorcido o anel, maior o deslocamento para o vermelho. Esse deslocamento batocrômico é justificado por uma maior desestabilização do homo em relação ao lumo (orbital molecular desocupado de menor energia) em sistemas distorcidos, o que foi constatado através de estudos eletroquímicos por meio da determinação dos potencias na redução e na oxidação de porfirinas contendo diversos centros metálicos como cobalto, níquel e zinco29,42,43. Os potenciais na redução e na oxidação permitem avaliar indiretamente alterações nas energias do lumo e do homo, respectivamente. Por sua vez, cálculos quânticos também têm corroborado essas assertivas42,43.

RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR APLICADA A SISTEMAS FERRO-PORFIRÍNICOS PARAMAGNÉTICOS

A interpretação do acoplamento hiperfino é uma ferramenta analítica amplamente utilizada tanto em RPE como em RMN de complexos porfirínicos e hemoproteínas. Este emprego em RMN se justifica pois os espectros dos referidos sistemas paramagnéticos são, em geral, mais ricos em informação. Este fato é tão usual, que normalmente hemoproteínas com centro metálico ferro(II), com S=0, são oxidadas para o estado férrico, pois ferro(III) sendo paramagnético pode funcionar como uma sonda das vizinhanças do grupamento prostético.

Para o ferro(III) baixo spin é necessário, portanto, determinar as componentes do tensor de susceptibilidade magnética (c) para se avaliar a intensidade do acoplamento hiperfino em cada direção do sistema de coordenadas, em relação ao centro metálico. Essa determinação, porém, não é trivial e pode implicar em uma grande margem de erro para a interpretação espectral, até porque a correspondência direta entre a susceptibilidade magnética e o tensor g não é esperada para sistemas que mostram efeitos Zeeman de segunda-ordem ou contribuição dos estados excitados44, que é o caso das porfirinas de ferro(III) baixo-spin, cuja susceptibilidade magnética contém contribuições de Zeeman de primeira e segunda ordens, as quais levam a uma desproporcionalidade entre g2 e c nestes compostos45.

A relação da anisotropia com a configuração eletrônica é bastante interessante para a interpretação dos dados de espectroscopia magnética, haja vista a anisotropia magnética do ferro, que diminui à medida que a diferença de energia entre os orbitais dp e dxy também diminui12.

Os deslocamentos químicos encontrados para os sistemas ferro-porfirínicos, em conseqüência do acoplamento hiperfino, dependem fundamentalmente da configuração eletrônica do centro metálico e, por conseguinte, da disposição do anel e orientação dos ligantes axiais. Os dados da literatura mostram, em geral, uma linearidade no comportamento de diversos sistemas, sejam eles complexos metálicos ou hemoproteínas, ou seja, o arranjo distorcido apresenta linhas espectrais na região de maior freqüência que o arranjo planar, sendo que as causas desse comportamento estão relacionadas com as propriedades do acoplamento hiperfino. Deve ser feita uma ressalva com relação à linearidade desse comportamento, quando se tratar de hemes reduzidos (os chamados "hemes verdes"), que apresentam o anel porfirínico com um número maior de elétrons, o que proporciona uma interação hiperfina singular e, portanto, não deve ser considerado como uma exceção46,47.

Uma questão relevante é a influência da temperatura sobre o deslocamento químico dos hidrogênios que interagem com o elétron desemparelhado, o que é estabelecido pela Lei de Curie, pois em alguns casos temperaturas baixas são imprescindíveis para que ocorra o desdobramento das linhas, o que está relacionado com a fixação da orientação dos ligantes axiais29 e com a minimização da relaxação longitudinal do sistema de spin.

RESSONÂNCIA PARAMAGNÉTICA ELETRÔNICA APLICADA A SISTEMAS FERRO-PORFIRÍNICOS

A ressonância paramagnética eletrônica é extremamente relevante em bioquímica, apresentando aplicações diversas nessa área48. Para o desenvolvimento de estudos sobre a configuração eletrônica dos hemes, as formas dos espectros e os valores de g são evidências consistentes para as diferentes configurações que adquirem os orbitais do ferro.

Foi desenvolvido um método extremamente simples e objetivo visando diferenciar as conformações planar e distorcida das ferro-porfirinas, baseado nos valores do tensor g. Este método consiste na determinação do somatório dos quadrados dos valores das componentes do tensor g, ou seja, Sg2, sendo que, quando esse valor for aproximadamente 16, a conformação do anel porfirínico é planar e quando esse valor for inferior a 14 essa conformação é distorcida22,34,49. Apesar da simplicidade deste método, que o predispõe como uma excelente ferramenta para o estudo das configurações eletrônicas dos hemes, McGarvey questiona sua credibilidade, particularmente para sistemas nos quais a determinação dos valores de g não seja obtida com grande precisão33. Este fato, portanto, torna imprescindível uma análise cuidadosa dos espectros de ressonância paramagnética eletrônica, como um meio de se aproveitar este método bastante acessível, de uma forma em que se tenha confiabilidade nos dados por ele apresentados e, principalmente, nas implicações conformacionais decorrentes. Além dessa metodologia, a técnica de ressonância paramagnética eletrônica destaca-se por apresentar espectros característicos para cada conformação, fenômeno causado pelas diferentes simetrias adquiridas pelas ferro-porfirinas.

A diferenciação representativa em espectros de ressonância paramagnética eletrônica para as possíveis simetrias ocorre, basicamente, em função do grau de deslocalização do elétron desemparelhado, que é significativamente distinto nas configurações planar e distorcida, proporcionando diferentes momentos angulares para o sistema porfírínico50,51. Essa maior ou menor deslocalização da densidade de spin paramagnético afeta drasticamente os espectros, o que está intrinsicamente relacionado com os valores de g apresentados. Quando a porfirina é planar, Sg2 em torno de 16, equivale dizer que a contribuição do momento angular orbital é bastante significativa pois o elétron desemparelhado está ligeiramente deslocalizado, ou seja, divido entre os orbitais dxz e dyz. Entretanto, na conformação distorcida essa deslocalização não ocorre. Em sistemas (dxy)1 "puros" praticamente toda a contribuição de momento angular orbital é suprimida, repercutindo na diminuição do valor de g, o que justifica Sg2 estar em torno de 14 para anéis distorcidos47, pois o életron desemparelhado apresenta uma probabilidade desprezível de interagir com outros orbitais além do dxy. Esta análise pode ser ilustrada conforme os espectros apresentados na Figura 5 9.


CONCLUSÕES

A química bioinorgânica é uma área extremamente estudada tanto por químicos inorgânicos como bioquímicos52, sendo que o estudo da flexibilidade do anel porfirínico tem provocado grande interesse de ambos os grupos pois está intrinsicamente relacionada com as diferentes configurações eletrônicas do centro metálico e com as conseqüentes propriedades físico-químicas, como potenciais redox53, constantes de equilíbrio de coordenação de ligantes axiais53 e, obviamente, com as características espectroscópicas apresentadas. Por conseguinte, a consideração das diferentes conformações desse anel é fundamental tanto em estudos de sistemas modelos ferro-porfirínicos como de hemoproteínas, assim como de porfirinas que apresentem quaisquer centros metálicos.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao CNPq, pela bolsa de doutorado concedida a L. M. Moreira, e à CAPES pela bolsa de mestrado proporcionada a J. C. Ribelatto. Agradecemos a inestimável contribuição do Prof. Dr. M. Tabak pela leitura, discussão e sugestões na elaboração desta revisão e a B. McGarvey por suas elucidações a respeito de relaxação e acoplamento hiperfino em espectroscopias magnéticas. Agradecemos também a atenção dispensada pela Elsevier, autorizando a reprodução de figuras.

Recebido em 19/9/03; aceito em 1/3/04; publicado na web em 6/7/2004

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      01 Mar 2004
    • Recebido
      19 Set 2003
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