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A Química que temos, a Química que queremos, a Química de que precisamos

EDITORIAL

A Química que temos, a Química que queremos, a Química de que precisamos

A Sociedade Brasileira de Química já conta quase um quarto de século. Seu crescimento foi fantástico, tanto em quantidade como em qualidade, e é um justo motivo de orgulho da comunidade química brasileira. Este crescimento foi, porém, um reflexo da espantosa mudança ocorrida na Química brasileira desde os anos setenta. De um conjunto de poucos e obstinados praticantes chegamos a números bastante expressivos. Embora nossos indicadores ainda possam ser considerados modestos se comparados aos números dos países líderes na ciência química mundial, estão longe de serem desprezíveis. O aumento de qualidade, então, foi extraordinário. Apesar de tudo, vivemos uma situação difícil no país, pois o apoio que se acreditava quase automático ao fomento da ciência tornou-se nos últimos anos algo distante e bastante sovina. Por apoio à ciência refiro-me ao apoio das agências federais, que foi tão importante dos anos setenta a meados dos anos noventa. Por outro lado, a ação da indústria neste campo tem sido muito modesta no panorama nacional. Com relação ao fomento federal, o que há 10 ou 15 anos atrás era tido como favas contadas, ou seja, a possibilidade de obter apoio das agências para os bons projetos de pesquisa, passou a encontrar cada vez mais dificuldades. É como se tivesse havido uma regressão, e que a sociedade que parecia cada vez mais empenhada em apoiar o desenvolvimento científico no Brasil se houvesse arrependido e achasse que tudo aquilo fosse um equívoco. Ora, para que desenvolver pesquisas se é mais fácil e barato importar processos e produtos prontos e de alta qualidade? A velocidade da transformação do mundo em aldeia global criou uma vertigem que, à primeira vista, parece justificar esse raciocínio primário. Primário porque não resiste à mais elementar das análises, que leve em consideração as necessidades reais e as especificidades da sociedade brasileira. Não há necessidade de alongar-me a respeito disso para os leitores de Química Nova. No entanto, a situação vigente no fomento à pesquisa criou na comunidade científica desconforto e apreensão, e é a este respeito que é preciso dizer algumas palavras.

Percebe-se nitidamente em alguns segmentos de nossa comunidade um pessimismo em relação à situação da ciência, particularmente da Química, e de seu futuro próximo no Brasil. Esse mal-estar é particularmente acentuado em jovens doutores, sobretudo aqueles contratados nos últimos anos em instituições de ensino e pesquisa, que muitas vezes não têm como prosseguir na carreira da forma como imaginaram e para a qual se formaram. Em contraposição, ainda vejo muito entusiasmo e vontade de trabalhar e progredir nos mais novos, notadamente estudantes de graduação e pós-graduação. Ou seja, as contingências atuais parecem, em muitos casos, frustrar as expectativas de jovens cientistas assim que se tornam emancipados cientificamente e presumivelmente aptos a desenvolver uma carreira independente.

Essa frustração tem crescido, e é nítida em vários círculos. Embora ainda não tenha contaminado significativamente os estudantes, se o processo continuar, isso fatalmente se dará. É um problema nada trivial e de solução complexa. Em primeiro lugar, não se pode descortinar, em prazo curto, ou mesmo talvez médio, um retorno à situação de financiamento à pesquisa relativamente assegurado, como ocorria, até certo ponto, no passado. Assim sendo, a prosseguir a política em curso, continuará sendo difícil para um novo pesquisador iniciar um projeto ambicioso sem algum respaldo institucional, como estar associado a um laboratório estabelecido. Todavia, uma associação desse tipo só funciona bem se for entendida como uma verdadeira colaboração, e não como colonização do recém-doutor pelo pesquisador sênior. Outra hipótese, ainda muito pouco explorada, seria a associação de vários pesquisadores jovens em projetos comuns de caráter interdisciplinar, provavelmente bastante diferentes dos trabalhos que realizaram durante seus doutorados ou pós-doutorados. Isto implicaria uma mudança significativa do padrão estabelecido no Brasil, segundo o qual muitos dos novos pesquisadores, ao se tornarem independentes, procuram continuar a estudar novos aspectos da linha de pesquisa em que se formaram, tentando às vezes duplicar seu laboratório de origem. É até natural que assim seja, pois eles foram treinados dessa maneira. Finalmente, a sempre deplorada pouca interação com a indústria deve ser perseguida continuamente. A ampliação das pequenas brechas já abertas poderá eventualmente desenvolver-se sob a forma de parcerias eficazes, duradouras e mais abrangentes.

De qualquer modo, a Química está num processo de evolução fantástico, em que suas divisões estão esmaecendo e a tendência à multidisciplinaridade, incluindo não só aspectos químicos como de outras disciplinas, aumenta a cada dia. Para acompanhar essa mudança, será forçoso que os cursos de pós-graduação, sobretudo de doutorado, sejam repensados. Deve-se reconhecer que é muito difícil para um curso de doutorado dar a seus alunos uma formação geral e ao mesmo tempo especializá-los num campo específico. Não obstante, é inevitável, no presente momento, que isso seja buscado pelos cursos, e principalmente pelos orientadores. Estes têm uma responsabilidade muito grande em dar uma formação adequada aos orientados, ao mesmo tempo evitando que eles se transformem em seus clones que, uma vez soltos no mundo, não saberão fazer outra coisa que aquilo para que foram treinados durante a pós-graduação. Felizmente, conheço vários orientadores que partilham dessa opinião e realmente orientam seus estudantes para uma carreira cada dia mais competitiva e múltipla. Esta não pode ser, porém, uma decisão pessoal e depender unicamente da personalidade do orientador. Faz-se necessária uma intervenção direta das coordenações dos cursos de pós-graduação e dos formuladores das políticas respectivas para conduzir firmemente a pós-graduação nesse rumo.

Carlos A. L. Filgueiras

IQ - UFRJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2000
  • Data do Fascículo
    Abr 2000
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