RESUMO
Cabo Verde aparece na memória social e nas práticas de pessoas cabo-verdianas enquanto um território atravessado e costurado pelas mobilidades a outros territórios, desde Europa, Américas e África. Dos vários territórios possiveis, São Tomé e Principe foi o palco de experiências de dor, de explorações e tentativas de desumanização. Com as narrativas dos meus interlocutores em alusão aos modos de vida no ‘tempo do branco’ versus ‘tempo da empresa’ (nacionalização das roças), vividos nas múltiplas roças santomenses, sinalizo os horrores e os modos escravistas que povoaram as vivências e os modos laborais no mato e nas roças. Proponho que revisitemos os contornos deste modus operandi laboral que emana do acontecimento do contrato, enquanto chave central na fabricação de vidas e na criação das várias temporalidades - o tempo presente, atual e cotidiano, acoplada à categoria ‘castigo’ espelhada nas práticas e nos cotidianos devastados pelo ‘castigo’ de vidas escravizadas.
PALAVRAS-CHAVE:
São Tomé e Princípe; Tempo do branco; Tempo da empresa; Contrato; Castigo
ABSTRACT
Cape Verde appears in the social memory and practices of Cape Verdean people as a territory crossed and sewn by mobilities to other territories, from Europe, the Americas and Africa. Of the various possible territories, São Tomé and Principe was the stage for experiences of pain, exploitation and attempts at dehumanization. With the narratives of my interlocutors in allusion to the ways of life in the ‘time of the white man’ versus ‘the time of the company’ (nationalization of the fields), lived in the multiple fields of Santomean, I point out the horrors and the slavery ways that populated the experiences and ways workers in the bush and in the fields. I propose that we revisit the contours of these labor modus operandi that emanate from the event of the contract, as a central key in the fabrication of lives and in the creation of the various temporalities - the present, current and everyday time, coupled with the category ‘punishment’ mirrored in the practices and daily lives devastated by the ‘punishment’ of enslaved lives.
KEYWORDS:
Sao Tome and Principe; time of the white man; time of the company’; Contract; Punishment
Estava falando do tempo. É tão difícil para mim acreditar no tempo. Algumas coisas vão embora. Passam. Algumas ficam. Eu pensava que era minha rememória. Sabe. Algumas coisas você não esquece. Outras coisas, não esquece nunca. Mas não é. Lugares, os lugares ainda estão lá. Se uma casa pega fogo, desaparece, mas o lugar - a imagem dela - fica e não só na minha rememória, mas lá fora, no mundo.
Toni Morrison, Amada.
Várias foram as tentativas de regulamentar as formas de trabalho contratado, em São Tomé e Príncipe1, visando essencialmente a escapar às denúncias de trabalho escravo face ao Tratado de Abolição do Tráfico de Escravos em 1815 e à abolição absoluta da escravatura nos domínios portugueses em 25 de fevereiro de 1869. A primeira lei a regulamentar os contratos laborais foi a de 29 de abril de 1875, que objetivou estabelecer as condições de liberdade concedida aos chamados libertos e as condições de tutela às quais estavam sujeitos. Anos volvidos, a administração colonial portuguesa aprova a regulamentação de 21 de novembro de 1878, na qual introduz a variável “liberdade” àqueles que “tinham que se contratar”.
[…] A lei de 1878 prescreve, de um modo claro o e terminante para o indígena, a liberdade de contratar ou não os seus serviços (artigo 3.0), podendo portanto escolher o patrão que entender e o trabalho que mais lhe agradar. (Boletim oficial, 14 de outubro de 1914, p. 949).
Em decorrência das ambiguidades no que tange à duração do contrato - dois, três ou cinco anos -, o decreto n. 951 do boletim oficial de 14 de outubro de 1914, homologado em São Tomé e Príncipe, instituiu contratos de dois ou três anos, renováveis caso o contratuante e o “serviçal” acordassem para tal. Se, numa chave, os decretos-leis operam como gramáticas discursivas sobre o trabalho contratado criando outros corpos de enunciação, noutra chave observa-se, essencialmente, a possibilidade de recrutamento2 da mão de obra barata e escravizada nas então colônias, com recurso a ferramentas e enunciações jurídico-legais. Exemplos dessa instrumentalização são a fabricação dos enunciados de liberdade e a prática do assalariamento atrelada a uma realidade do “trabalho contratado”.
Entretanto, que implicações pragmáticas ocorreram nos modos de vida das pessoas em situação de contratadas?
Com as narrativas dos meus interlocutores3 das múltiplas roças4 santomenses, apresento as suas vivências, o cotidiano laboral em que suas vidas foram povoadas por experiências de dor, de sofrimento e de tentativas de desumanização. Sinalizo que o entendimento das experiências dos meus interlocutores passa por levar a sério o ato de criação das temporalidades e historicidades contra-hegemônicas: o ‘tempo do branco’ e o ‘tempo da empresa’5 e o modo como operam nas relações com as espacialidades. Essas temporalidades parecem produzir outros rearranjos temporais operadores na demarcação do ‘tempo do branco’ e do ‘tempo da empresa’. Assim, proponho que revisitemos os contornos dos modos laborais que emanam do acontecimento do “trabalho contratado” nas roças santomenses. Bem como perceber o acontecimento do “contrato” como uma chave central na fabricação dos modos de vida e na criação das várias temporalidades - o tempo presente, atual e cotidiano, quer no registro dum trabalho duro, quer no registro da categoria ‘castigo’, um ‘trabalho de castigo’.
Em ruptura ao olhar com o qual e no qual se tem falado dos cabo-verdianos no arquipélago santomense, criando narrativas amorfas e homogeneizantes que desprezam e invisibilizam a densidade daquelas vivências, busco trazer no artigo a densidade destas experiências atrozes marcadas nas corporeidades e atravessadas pelas relações de violências criadas com e no “tempo do branco”.
Defendo que, em determinado período após a abolição da escravatura (de 1940 a 1970) no território português, a governamentalidade colonial criou e instaurou nas roças santomenses um espaço onde vidas foram escravizadas: mão de obra barata e escravizada de pessoas oriundas das então colônias. Mostro, igualmente, a rentabilidade dessa premissa no entendimento do que foi a experiência do trabalho contratado no “tempo do branco” face ao projeto do Humanismo Ocidental, no período da Segunda Guerra Mundial. Em que a experiência do contrato nas roças santomenses se terá constituído num laboratório social onde vidas foram alvo de experiências desumanizantes, cujas marcas ainda perduram nas corporeidades, sendo que tais modos de trabalho e economias afetivas nas roças santomenses sinaliza(ra)m o inaceitável que foi silenciado pelo Humanismo Ocidental.
Assim, minha hipótese de costura do artigo prende-se à ideia de que a rentabilidade deste agenciamento e os modos como opera nas experiências dos meus interlocutores nas roças de São Tomé passam por concebê-lo como atos de criação6 (Deleuze, 1987), originando outras possibilidades de escrever a história e suas existências. Os atos de criação das temporalidades e historicidades não hegemônicas podem ser contranarrativas aos modos de existência dum contratado (experiência que atravessa as temporalidades e eclode em tempos e espaços variados): quer nas construções temporais “tempo de branco” e “tempo de empresa”, enquanto tempos que remetem a contextos históricos oficiais mas cujas existências escapam desses marcadores históricos: o colonialismo e a independência/Nacionalização7 das roças; quer nas espacialidades dos sujeitos, cujas terminologias espaciais coloniais (“casa-senzala”, “casa-comboio”, “casa-patrão”, “quintal dos Cabo-verdianos”, “quintal dos Tonga”8) são atualizadas no tempo presente e nas relações cotidianas, enquanto marcadores de espaço e relações no tempo presente, tratando-se assim duma eclosão de temporalidades em diferentes contextos.
NOS NAVIOS… A CAMINHO DO SUL
Nha Fátima chega para trabalhar na então roça Rio d’Ouro (atual roça Agostinho Neto9) na segunda metade do século passado - a 18 de julho de 1957 - ao lado de Nhu Beto, casados em 1959. Ao chegar a São Tomé, só trabalhou no galinheiro: “Não passei pelas durezas do trabalho no mato” - afirma Nha Fátima. Na altura da pesquisa de campo, com setenta e dois anos, ainda moravam na mesma “casa-senzala” (na roça Agostinho Neto) onde foram morar após o matrimónio e nasceram os dez filhos.
Nhu Manuel, conhecido como Nhu Mamede na roça Ubabudo, septuagenário, envelhecido e carcomido pelas desventuras do tempo e do acontecimento contrato em São Tomé: as maçãs da face de outrora em camadas flácidas e ossudas, com os poucos dentes espreitando sob um sorriso franco. Nhu Mamede veio para São Tomé aos vinte anos (após o falecimento dos pais) e desde então nunca mais retornou para Cabo Verde. A esposa dele fora viver na companhia dos filhos em Cabo Verde, desde então Mamede anseia a partida. Mora sozinho no quarto de “senzala” onde casara e criou os filhos. O Cabo Verde que ele deixara a 21 de maio de 1960, quando partiu a bordo do navio Luanda, estava devastado por cotidianos de fomes, secas e na iminência de mortes.
Importa frisar que as terminologias “casas-senzalas”, “senzalas”, “castigo”, que aparecem nas falas dos meus interlocutores, constituem terminologias usadas e presentes no “tempo do branco” e ainda utilizadas nas vivências diárias nas roças. Conforme os meus interlocutores, as “casas-senzalas” e as “senzalas” eram terminologias espaciais presentes no “tempo do contrato” que se mantiveram usuais e presentes no seu cotidiano, mesmo depois do término do contrato e da instauração de novos modos de trabalho e viver.
Minha filha, vim pra São Tomé, passei castigo, trabalho só. Gente trabalhou baixo de chuva com garoto nas costas. Chuva muito, éh. Roupa não seca, senhora. Outro dia, é mesma roupa, molhada. Difícil, mas gente saía e ia, senão levava porrada. Enquanto gente não enche cinco tinas de cacau quebrado, ninguém volta pra senzala. Se escurecer, procura candeeiro para iluminar, tem que terminar trabalho, senão corpo fica quente. Tempo branco era trabalho só! Muita chuva, agora não chove, tempo antigo que chovia. Minha mãe disse: “Minha filha, não vai prá San Tomé, lá tem porrada, lá é castigo só”. (Nha Segunda)
Gente passava lá contratado, castigo éh! Grande castigo! Lá é dois anos, você não cumpriu, passava dois anos, porrada era muito, pancada era muito […]. (Nhu Saustino)
Nas narrativas de Nhu Mamede, Nha Fátima, Nha Segunda e os demais, alusivas à viagem e à chegada ao arquipélago santomense, o então porto Fernão Dias opera como o encontro com a “fartura”: “São Tomé tinha muita comida: chegando em Fernão Dias, gente só via verde e mais verde” - diziam os meus interlocutores. Quando da chegada em Fernão Dias, São Tomé vê-se habitado por desejos que o produzem como um território de muita comida, verde e chuva, face à rememória dum Cabo Verde de fomes, secas e mortes10. Também, os registos históricos de Tenreiro (1961) aludem ao Fernão Dias como o porto central da ilha de São Tomé, onde as embarcações oriundas das demais colônias (Cabo Verde, Angola e Moçambique) e as provenientes da ilha do Príncipe atracavam.
Além do navio Luanda, os barcos/navios Ana Mafalda, Quanza, Bela, Ernestina, Amboim, Luanda, Benguela, Sofala, Moçambe, Ambrizete e Bela Vista habitam os trânsitos e fluxos dessas pessoas, além de serem mobilizados no trabalho de fabricação de sentidos e rememória dessa migração. As vivências a bordo dos navios/barcos durante sete, oito, nove dias e noites - duração extraordinária das viagens -, numa velocidade assombrosa, são criadas e costuradas às vivências de fartura, muita comida, assistência médica, boas instalações onde dormir e às vivências de injúria, padecimentos e maus-tratos no navio. Também, há todo um trabalho de rememorar os infortúnios dum tempo passado dum Cabo Verde de muita fome e de muitas mortes, diante das marcas corporais manifestas: prostração de crianças e adultos morrendo nas viagens, inabilitados em suster as contrariedades da viagem, sucumbindo ao fluxo marítimo.
Barco pra levar doze dias, correu seis dias! Garoto [criança] morreu muito. Barco correu muito. Gente vinha corpo fraco, não aguentava solavanco do barco, garoto morreu muito, não aguentou. Mar tem coisa muito, minha filha. Quem aguentou chegar na terra, chegou! Quem morreu ficou no mar! (Nha Segunda. Grifos meus)
Era barco Quanza [em 1963]. Tinha camarote. Cama, cama. Quanza é bom! Era barco respeitado. Gente não deitava na tábua, não! Era camarote, cama. Outro debaixo, de cima, ao lado. No barco Moçambe [em 1947] era deitar na tábua, colchão era deitar no chão. Na tábua. (Nha Segunda).
Dentro de barco [Barco Embrizete, 1947] gente dormia na porão. Eles estendiam esteira. Contratado na porão, gente dormia tudo na porão. Não tinha cama, era só estendido no chão. Cada um põe sua esteira e depois dorme na esteira. Mas, era tudo no porão. Lá embaixo, tudo deitado. Cada um procura um canto pra deitar. De cada ilha tinha um lado, São Vicente tinha dele, Santo Antão tinha dele, São Nicolau tinha dele, Praia tinha dele. Cada zona, ilha tinha comissário dele. Cada comissário vai tomar comida pra vem dividir pra nós. (Nha Maria Francisca)
Se antes, como frisa Nha Segunda, “barco Moçambe gente deita na tábua, colchão era deitar no chão”, nos anos 1960, no barco Quanza (Nha Segunda no segundo contrato em 1963): “Gente não deitava na tábua, não! Era camarote, cama, cama!”. Isso porque, nos anos 1960 e 1970, muito decorrentes da eclosão dos movimentos pela descolonização nas ex-colônias e das tensões resultantes das suspeitas de escravidão no recrutamento e no cotidiano laboral, passou-se a salvaguardar os então inexistentes direitos da figura nomeada juridicamente de “trabalhador rural”: não se tratando juridicamente mais nem de serviçal, nem de contratado. Embora nos inícios do século XX, após várias pressões internacionais relativas às práticas escravistas no arquipelágo, ter-se-ão revisto os mecanismos de recrutamento e a observância dos contratos, somente nos inícios dos anos 1960 - em 1962 - criou-se o Código do Trabalho Rural11, o qual veio permitir a criação jurídica da figura do “trabalhador rural” e os seus direitos e deveres.
Entretanto, essas novas formas, unicamente jurídicas, de modular os modos de vida do trabalhador rural não dissiparam as marcas do castigo e do horror no trabalho de atualização e de fabricação dos sentidos das experiências vividas e partilhadas e das economias morais e dos afetos, como Nha Segunda e Nha Firmina (ambas residentes na roça Santa Margarida) sinalizam. No dia em que as conheci, Nha Firmina e Nha Segunda, falando na língua cabo-verdiana, regada dum amplo sorriso, exclamaram, abraçando-se: “El e nha naviu!”12.
Eu e nha Segunda gente veio junta no mesmo barco, no barco Quanza, 1963. Gente chama companheiro “meu navio”. Gente conhecia não! Gente veio junta pra aqui [roça Santa Margarida] e estamos junta até hoje. (Nha Firmina)
A categoria “Ele(a) é meu navio” parece operar como um artifício linguístico acionado entre as pessoas que, além da condição de contratados, partilharam o mesmo “porão”, as adversidades, os desejos criados e atrelados durante “seis dias, seis noites” ou mais, a bordo e cuja relação criada no navio foi se estendendo no “castigo” e na dureza do cotidiano vivido nas roças. O processo de criação das narrativas acopla-se a um trabalho de fabricar sentidos e de criar/descrever relações e cotidianos atravessados por modos escravistas, conforme frisa Tenreiro (1961: 191):
Homens e mulheres tendem a juntar-se segundo a sua raça ou segundo o seu navio. Gente do mesmo navio é gente que chegou à ilha viajando ao mesmo tempo das praias de Angola ou de Moçambique para as praias de São Tomé; quando um homem fala de outro, pode dizer: ele é “meu navio”, isto é, ele veio comigo. Expressão que me afigura arcaica e que me parece ser de relacionar com os tempos antigos do tráfico negreiro. A sorte, ou melhor, o infortúnio, fazia dos escravos que viajam no mesmo navio mais que irmãos cimentando neles tácitas ajudas no destino comum. (Ênfase no original).
Seguindo na chave trazida por Nha Firmina e Nha Segunda, percebo que, para os meus interlocutores, o registro no qual narram e percebem os navios tem alguma aproximação na reflexão sobre as diásporas negras sinalizada nos estudos de Paul Gilroy (2008). Esses estudos apontam para o fato de o navio constituir uma metáfora de pensar as interfaces entre o global e o local, entre a micropolítica e a macropolítica, em que a modernidade e as subjetividades são produzidas e constituídas (Gilroy, 2008). Assim, entendo que a expressão “Ele(a) é meu navio”, ao sinalizar e agltinar os afetos envolvidos nos encontros, mostra como o entendimento dele, enquanto mera embarcação e objeto de navegação, silenciaria as complexidades e os efeitos nas vidas dos contratados, bem como as temporalidades que atravessam e as povoam.
Eles [navios] eram elementos móveis que representavam os espaços de mudança entre os lugares fixos que eles conectavam. Consequentemente, precisavam ser pensados como unidades culturais e políticas em lugar de incorporações abstratas do comércio triangular. (Gilroy, 2008: 60)
Os navios inscritos na máquina colonial de recrutamento do trabalho contratado, além de conectarem Cabo Verde, Angola e Moçambique ao aquipélago de São Tomé e Príncipe, permitiam às pessoas em condição de contratadas operarem por outros registos, quando inscritas na geopolítica das Companhias Agrícolas e do Governo Colonial Português.
Assim, em diálogo com a ideia defendida por Gilroy (2008) de que o navio possibilita pensar as interfaces entre o global e o local, entre a micropolítica e a macropolítica, permitindo olhar para a forma como as subjetividades são produzidas e constituídas, entendo que os navios, por condensarem temporalidades múltiplas, constituem um “cristal de tempo”13 (Deleuze, 2011). No navio apercebe-se um campo de possibilidades de atravessamento do tempo e de narrativas, nas quais primeiramente Cabo Verde aparece enquanto “um presente do passado”, um passado de fomes e que constitui ainda um presente pelas e nas marcas corporais da fome, na “necessidade de se sucumbir a ter que vir no navio pra São Tomé”; resignados à sorte do destino, “sobrevivemos à fome… a vida pode melhorar”.
Quer povoados por um desejo de “presente melhor” em São Tomé e Príncipe, apesar dos reveses do Sul, asseveram: “Quando cheguei em Fernão Dias, achei São Tomé bom, mato verde, muito trabalho, mas chuva à vontade e muita comida…”. Quer quando descrevem os cotidianos nos navios, durante as viagens, similares às temporalidades de pessoas escravizadas nos porões de navios negreiros no trânsito África-Américas: indo para o sul amontoados e dormindo no chão do porão. Quer, tendo finalizado o tempo do contrato (dois, três ou cinco anos) e tendo a autorização de retornar a Cabo Verde - processo de repatriação -, o navio permite o reencontro dum Cabo Verde ainda ancorado num “presente do passado”, de fomes e secas, apesar dos desejos de que “as coisas já estão melhores”.
Percebem-se assim, em escalas heterógenas e marcadamente afetadas por uma gramática de afetos variados, os modos como estas vivências múltiplas fabricam o navio enquanto um aglutinador de experiências e de encontros múltiplos, encetando outras ordens de subjetivações. No navio, os desejos são reativados por meio dum processo de atualização das várias “pontas de presente”14 (Deleuze, 2011): “um presente do passado” dum Cabo Verde marcado por fomes e mortandades é ainda visível diante de “um presente do presente” dum Cabo Verde entre os que se alistaram novamente - “ainda com alguma seca… e fomes…” e um desejo que se desenha no horizonte: de “um presente do futuro” em Cabo Verde ao lado dos parentes e a possibilidade de melhorias de vida. Entretanto, o “presente do futuro” não se atualiza e se malogra quando notamos os vários movimentos de contratar-se novamente para as roças santomenses, diante dum “presente do passado” das fomes e das secas que (re)insistem no arquipélago.
As narrativas e práticas dos meus interlocutores afirmam a potência do tempo, como procede e como o passado, mais do que um rememorar, torna-se numa possibilidade de transformação, de subjetividades sendo afetadas, potencializadas e criando-se no encontro com as múltiplas temporalidades. Pois, como nos lembram as leituras deleuzianas sobre Henri Bergson (Deleuze, 2011: 103): “[…] o tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, a interioridade na qual estamos, nos movemos e mudamos”. A cada um, esses navios, “transportando” cabo-verdianos em situação de contratados povoados de desejos (desencadeando projetos e afetos múltiplos do encontro com e estar no Sul), por “oito, nove dias” e/ou “oito, nove noites”, aglutinaram, condensaram e propiciaram encontros múltiplos. O artifício linguístico “Ela é meu navio” reverbera e estabiliza as relações de Nha Firmina e de Nha Segunda não unicamente por terem vindo no mesmo navio, como por terem sido “conduzidas” à mesma roça, partilhando experiências e cotidianos nos modos escravistas, no mato e nas “senzalas”.
O desalento de Nhu Frank, após ter partilhado durante “oito dias e oito noites” o navio com outros cabo-verdianos, ao deparar com a situação de “agora nós que veio de junto fica dias e dias sem ver companheiro, ou não vê mesmo mais”. O desespero de Nhu João que, aos catorze anos, vindo no contrato da “mãe que arranjou”, ao descer do navio Ernestina no porto de Fernão Dias, deslumbrado com o denso manto verde no horizonte da ilha de São Tomé, se perde da “mãe que arranjou” para não mais reencontrá-la. O temor de Nha Joana e Nhu António quando lhes foram entregues coletes salva-vidas no porão e levados para a superfície, sem nenhuma explicação, apenas rumores de que o barco iria ser atacado: “gente não sabe para que veio, se foi para matar gente, ou não”15. O desespero das mães na impossibilidade de levarem todos os filhos, em vista do limite de filhos por família: “muitas mães deixaram e perderam seus filhos em Cabo Verde por causa desta brincadeira” - denuncia com revolta Nha Segunda. Vários afetos, conexões e agenciamentos foram produzidos por conta deste trânsito, marcados pelo “tempo do branco” e pelo “tempo do contrato”, em que pessoas em situação de contrato experienciaram modos de vidas escravistas.
DA VIDA NAS “SENZALAS” E NAS ROÇAS
Nhu Frank, octogenário de estatura alta, de pele clara, com as costas ligeiramente curvadas, emagrecido, com as feições levemente ossudas e os dentes escasseando, queixa-se da saúde desgastada pelo trabalho duro no mato: “Senhora, era quebrar cacau só!”. Chegou a São Tomé e Príncipe na condição de contratado, em 1955, a bordo do barco Bela e, no segundo contrato, em 1965, no barco Quanza, sendo ambos os contratos para a então roça Rio d’Ouro. Ao chegar a São Tomé, no porto Fernão Dias, Nhu Frank e os demais companheiros da viagem a bordo do barco Bela foram levados para um alojamento na roça Fernão Dias, “casas assemelhando a quartéis” - esclarece Nhu Frank -, onde permaneceram até serem distribuídos às roças que os contrataram. Os que iriam trabalhar na roça Rio d’Ouro, como Nhu Frank, foram encaminhados ao então Hospital Central: “lá puxámos mais oito dias, e depois dividiram gente então para as dependências [de Agostinho Neto]: uns vão para Fernão Dias, Caldeiras, Santa Luzia, Santa Clara… todos estes lugares” - explana na sequência Nhu Frank.
Se, para Nhu Frank e os demais, a chegada à ilha de São Tomé reverbera o espaço de “um futuro melhor”, a vivência de Nha Maria Francisca soma tensões e questões outras. Em 1959, no segundo contrato a uma das dependências da então roça-sede Ubabudo, Nha Maria Francisca vivencia os efeitos dos modos escravistas que irrompiam as vidas de pessoas em condição de “serviçais”. A bordo do barco Bela Lisboa, tendo desembarcado no Porto Fernão Dias, Nha Francisca e outros “serviçais” foram “levados” para o então Instituto do Trabalho, Providência e Ação Social na cidade de São Tomé (atualmente o edifício onde funciona o Ministério do Trabalho) e por lá permaneceram até serem distribuídos, tendo dormido ao relento à frente do edifício.
Na segunda vez que vim [1959], gente ficou aqui no Ministério do Trabalho, gente dormia na rua! Na rua éh! Nós dormia na rua, baixo flor! Cada um desenrasca com a manta, quem que tem. Moçambique de um lado, os cabo-verdianos num lado, os Angola noutro lado. Mas nós dormia é na rua, chão só! Nós não dormia na casa, não. Eles pegou, cercou com flores, põe uma chapa, gente fica lá. Quando chega de manhã, gente levanta, eles dá gente, comissário vem com nós, dá gente bocado comida. Quem quer comer, come, quem não quer, fica dele. Depois vem começar tirar pra roça. Quando gente foi pra roça, eu fui pra roça Ubabudo. Quando chegou lá, mandou gente ir para Ribeira Peixe. Pôs gente 30 dias no armazém. Dormir no armazém de cacau, chão só. Depois vem mandar nós pra dependência.
O registro contudente de Nha Maria Francisca após ter chegado a São Tomé, em 1959, a humilhação de dormir no chão no espaço da Curadoria, e durante trinta dias tendo o chão do armazém como o único leito que lhes fora reservado e a sensação de desumanidade a que foram subjugados, recoloca o debate escravista. As experiências de Nha Francisca e de outras pessoas em situação de contrato, nos finais dos anos 1950 e início dos anos 1960, sinalizam o modus operandi da biopolítica, sustentado em discursos e práticas de trabalho e de viver nas roças, sinalizando um espaço onde vidas passa(ra)m por uma especíe de desumanização. Assim: que lugar lhes foi reservado, quando retirados da sua humanidade, transformados em corpos que não importam, unicamente como mão de obra e vozes silenciadas, tendo em conta que a Instituição a que podiam recorrer para reverter esta situação foi a mesma que os relegou para este lugar?
No que concerne à conformação e à composição das “senzalas” e aos comprimentos dos quartos das roças, percebem-se algumas particularidades em cada roça. Na roça-sede Ribeira Peixe (zona sul da ilha de São Tomé, pertencente ao município/distrito de Caué16), a “senzala” é conformada pela disposição de pequenos chalés dispersos uns dos outros, cada um abrigando duas moradias: um quarto-sala e dois quartos de dormir. Nas roças-sede Agostinho Neto, Ubabudo, Santa Margarida e nas suas respectivas dependências, as “senzalas” estão organizadas em filas de casas (compostas dum quarto-sala e dois quartos de dormir ou um quarto de dormir), algumas paralelas, outras dispostas horizontalmente compondo um quadrado aberto, outras enfileiradas horizontal ou verticalmente. Por partilharem do mesmo telhado, ainda são denominadas de “casas-comboio”.
Nha Fátima e Nhu Beto chegaram em 1957 e após o matrimónio receberam um quarto privado; diferentemente, a condição dos solteiros (quer homens, quer mulheres) como Nhu Frank, Nha Aninha e Nhu Mamede implode com o registo jurídico-legal “cuidador” dos “trabalhadores rurais”.
Primeiro contrato [1955, roça Rio d’Ouro], encontrou num quarto assim, naquele tempo [“tempo do branco”] gente falava candumba. Morava seis, oito até dez homem dentro de um quarto. Fiquei nesse quarto até que terminou contrato, eu foi para Cabo Verde. Aqui onde estou [na casa dele: dois quartos de dormir e um quarto sala], era candumba, era quarto como quartel. Aqui morava trabalhador, quando chegar tempo um vai embora, vem outro e fica aqui. Segundo contrato [1965, roça Rio d’Ouro], quando minha irmã morreu e fiquei com filhos dela, Patrão seu Fonseca mandou dividir quarto, gente ficou no quarto de gente. (Nhu Frank)
[1960, roça Ubabudo] Patrão juntava gente que não tinha mulher, juntava cinco num quarto como este pra dormir. Óh senhora! Mulher juntava cinco também num quarto, mulher, mulher só. Cama era tábuas de madeira que gente fazia, era dormir de cima de cada uma dela, não tinha nada de cima dela. Pessoas começou a arranjar coisa de deitar por cima dele. Aqui não cabia tábua pra todo gente, uns deita na tábua, outros deita no chão, porque não havia maneira. Quarto era pequeno, não cabia tábua, então outros dormia no chão mesmo. (Nhu Mamede)
O vivido dos meus interlocutores faz emergir outras questões. Por um lado, temos uma narrativa historiográfica oficial que articula a migração para São Tomé e Príncipe como uma solução às fomes e às mortandades que marcavam o arquipélago cabo-verdiano. Importa frisar que é visível alguma ressonância desta narrativa historiográfica oficial entre os meus interlocuitores, caso das narrativas de Nhu Mamede, Nha Fátima, Nha Segunda e os demais, alusivas à viagem e à chegada ao arquipélago santomense: “São Tomé tinha muita comida: chegando em Fernão Dias, gente só via verde e mais verde”, num território marcado por muita comida, verde e chuva, contrastando com um Cabo Verde de fomes, secas e mortes. Por outro, este acontecimento tornado História e a História tornada acontecimento, pronto e acabado, são atravessados por processos de subjetivação, criando espaços onde histórias e temporalidades descontinuadas confluem e inventam a História.
Isso porque as histórias hegemônicas produzidas no contexto intelectual cabo-verdiano e santomense perdem de vista o vivido das pessoas em situação de contratados (não só nas práticas e nas vivências, como, por excelência, nas marcas corporais) e os agenciamentos coloniais no “tempo do branco”. E a constatação de que, dos finais do século XIX até ao terceiro quartel do século XX, décadas após os processos abolicionistas no território português em 1869, criou-se e instaurou-se o modus operandi escravista nas roças santomenses, recrutando e explorando mão de obra barata e escravizada proveniente de Angola, Cabo Verde e Moçambique, nas plantações de cacau e de café.
Importa salientar que, embora em termos jurídicos, àquela altura, a escravidão já tivesse sido abolida, a discussão que enforma o presente artigo não é como se duma metáfora tratasse, mas é levar a sério as narrativas e as elaborações discursivas e vivênciais dos meus interlocutores e perceber a existência dum modus operandi escravista que eclodiu nas roças santomenses, no tempo do contrato. Igualmente, apesar de nem todas as experiências de migração e mobilidade constituírem sempre uma experiência gorada17, o processo migratório cabo-verdiano para as roças santomenses, na maioria das vezes, foi se constituíndo num reflexo de fragilidades e precariedades sociais quer do território de origem, quer no de acolhimento, ou seja, instigadas pelas mesmas forças e alternativas infernais dum “presente-presente melhor” e/ou um “presente-futuro melhor”.
“TEMPO DO BRANCO… ERAM MUITAS COISAS!”: “CASTIGO” E “PADECIMENTO”
No final dos anos 1940, Nha Lucinda chega a São Tomé, à então “dependência” Guegui da roça-sede Ubabudo, e Nha Maria Augusta em 1950. Nha Maria Varela chega à roça Ubabudo um ano antes que Nhu Mamede (1959). Este coletivo, apesar das oscilações temporais, é afetado pelas relações biopolíticas vigentes nas roças, pela produção das subjetividades trespassadas pela instrumentalização dos corpos braçais e pelas experiências aglutinadas dos modus operandi escravistas que estabilizavam esta variação temporal e apareciam como atemporais. Pois, como referira, até 1960 não havia legislação regulamentando as condições do contrato, tampouco as dinâmicas laborais nas roças.
A circulação ou o recrutamento para uma roça ou outra era essencialmente em resposta às necessidades das empresas e das administrações coloniais, levando a que, enquanto fossem trabalhadores na condição de contratados, fossem apenas contratados: nem homem, nem mulher, nem mãe, nem filho, nem marido. Entretanto, as variações de configuração das roças fundem-se num espaço de confluência onde o “trabalho contratado” se constitui em “experiências e vidas de castigo” que se atualizam nas relações e no cotidiano nas roças e no mato.
Trabalho só, muito trabalho… trabalhei muito, filho nas costas, chuva a cair! Quando vim pra São Tomé gente comia na folha de bananeira, pé descalço… mas não neguei trabalho!… tudo que aparecia eu fazia…! (Nha Lucinda)
Mulher pode ter filho hoje, amanhã está no mato trabalho, morreu teu filho, marido, vai pro mato trabalhar no mesmo dia, não tem pausa, todo dia tem trabalho. (Nha Maria Augusta)
Experiências de sujeição, humilhação, tentativas de desumanização e um estado de dor povoavam as práticas e os cotidianos dos meus interlocutores durante o “tempo do contrato”, sucumbidos e subjugados a uma situação de serem meras e somente forças de trabalho, peças na engrenagem da máquina capitalista e não existindo enquanto pessoas. Além do cotidiano no mato, das chuvas torrenciais, da condição de “comer na folha de bananeira”, economias de dor e de afetos escravistas trespassavam, também, as existências dos meus interlocutores: que dores importavam e que dores eram passíveis e possiveís de serem vividas dentro do espaço laboral e existencial criado nas roças santomenses?
A impossibilidade de uma mãe/pai ou de uma pessoa velar a dor da perda dum parente afetivo, face à urgência e à imponência do trabalho, renega e destitui a dor e desloca a temporalidade e a espacialidade para um tempo escravista em que as relações parentais e afetivas eram renegadas às pessoas negras escravizadas. A força e a imponência do trabalho foram constituindo estas vidas num estado de precariedade, destituídas da possibilidade de existirem e serem reconhecidas como pessoas, dotadas de direitos sociais e políticos. A Modernidade e o pseudo-Humanismo que se desenhavam na paisagem social santomense acoplada aos modos capitalistas deslocaram as pessoas da situação de contratados para uma condição na qual ser contratado era ser escravizado: “Nós crianças éramos filhos de escravos. Contratado não era livre!” - como denuncia Nhu Afonso. Ainda que a narrativa do Nhu Afonso remeta para o seu lugar enquanto criança levado para São Tomé junto com os pais, na altura do tempo do contrato deles, que trabalhavam igualmente nas roças, de igual modo, refere-se ao lugar dos contratados como “escravos”: “Éramos filhos de escravos”, no caso os pais enquanto contratados.
Nha Segunda, Nha Paula, Nha Lucinda, Nha Ninha, Nhu Frank, Nhu Mamede, Nhu João e os demais, de quem tive a honra de etnografar as experiências, os afetos e o cotidiano laboral no mato, viveram relações e cotidianos de violência que os relegaram a uma condição de corpos e vidas escravizados, num estado continuum de dor. Esse estado continuum de dor que, conforme Paul Gilroy (2008), povoa as vivências de negros escravizados, nos meus interlocutores ressoa e reverbera:
Gente passou mal, mal mesmo… carregar estrume na chuva, ainda mais nós que tínhamos este cabelinho fino, nós que eles mandavam carregar estrume, lata de estrume em cima de cabeça, água de estrume escorria pela cara… hum… passa mal. Tempo de chuva não parava, não havia gravana naquele tempo!18 Pegava no trabalho de 5 h da manhã às 5 h da tarde, só após ter concluído o trabalho poderia parar… chuva! Roupa não secava, hein… Chuva, éee! Levantava 4 h de madrugada, com chuva… comer aquele café só e corrida pro mato!... Roupa que nos davam?! Éee…era umas calças militar pé largo, óoo, era como um saco… não tinha botim, era pé descalço, correr para apanhar cacau. Chuva, relâmpago, arrancavam os troncos das árvores, muitos morreram por causa da queda dos troncos… Muitos morreram nesta brincadeira! Davam pau em cima de gente… não podia correr, ia pra onde?! Só mar a volta!19 (Nhu Mamede)
Antes davam nós comida, era fubá podre, peixe podre cheio de bicho! Gente está vivo, enfim! Fizeram cozinha geral, lá atrás, todo povo cozinhava lá… era perigoso, hein! Gente que era contratado também colocava veneno na comida de gente. (Nha Maria Augusta)
Nas narrativas de Nhu Mamede, Nha Aninha e Nha Maria Augusta, este continuum estado de dor era vísivel nas duras e extenuantes rotinas de trabalho, nas organizações rígidas do trabalho no mato, na agressividade do clima sob chuvas torrenciais, no tipo de alimentação podre que recebiam da administração, nos maus-tratos e nas violências perpetados pelos feitores e pelos capatazes no mato e nas “senzalas”. Ou na denúncia de Nhu Mamede: “Davam pau em cima de gente”. Igualmente, o “tempo do branco”, o tempo do contrato, do trabalho nas roças santomenses reportam a um tempo em que “o trabalho era castigo”, em que o desespero e a possibilidade de fuga recuavam face à visceral constatação de que “… não podia correr, ia para onde?! Só mar à volta!” - como desabafa Nhu Mamede. Assim, as narrativas dos meus interlocutores, relativas ao “tempo do branco”, sinalizam como o acontecimento da migração laboral contratada dos cabo-verdianos para as roças santomenses aponta para uma gestão biopolítica de pessoas, povoadas por relações e vidas numa espécie de cativeiro e modus operandi escravistas.
Entendo que as categorias “tempo da empresa” e “tempo do branco” (usadas também entre as pessoas moçambicanas e angolanas em situação de contratadas) aparecem nas falas dos meus interlocutores enquanto atos de criação, de resistência a um tempo vivido, demarcando nas duas temporalidades as relações e os modos de existências criadas, demonstrando como esses marcadores temporais ainda eclodem nos seus cotidianos e constituem mecanismos de resistir aos modos de vida escravistas, que as narrativas históricas hegemônicas silenciaram. Há aqui um trabalho de reiteração dos modos de existência, o “cativeiro” e o “tempo de castigo” como extensivos e constituintes do “tempo do branco”, evocando formas de existência de escravidão e criando apropriação dessas vivências, como mecanismo de resistir e criar contranarrativas que ainda eclodem nas suas narrativas e vivências.
E a liberdade, o trabalho livre aparecem acionados na criação e na vivência do “tempo da empresa”, da pós independência do território santomense, em que não mais haveria contrato, pessoas em situação de contratadas e um “branco” a subjugar. No “tempo da empresa” - após a Nacionalização das Roças a 30 de setembro de 1975 -, em que não mais estariam inscritos na modalidade de “trabalho escravo”, na condição de contratados se transmutariam à condição de trabalhadores assalariados e, posteriormente, nos anos noventa do século passado, à condição de “sem patrão”, trabalhando por autossustento nos “lotes” e nos “campos”20.
O “tempo do branco” acionado e criado vem estabilizar as relações e produzir rearranjos e temporalidades, operando como um demarcador do trabalho contratado no “tempo do branco”, e o “trabalho livre” não mais “contratado” no “tempo da empresa”. O “tempo do branco” remete tanto a um recorte temporal - a experiência e o cotidiano do contrato até à Independência de São Tomé e Príncipe -, quanto a um modo de existência que reverbera o tempo de “cativeiro”, evocando os tempos da escravidão.
Observo que este tempo de “cativeiro”, de escravidão, ainda que tenha sido vivido numa chave temporal antes da abolição da escravatura - não vivido pelos meus interlocutores -, constitui memórias virtuais que criam, compõem e lhes permitem pensar as experiências vividas. Similar ao trabalho de criação do mundo pelos camponeses evocando um tempo não vivido (Velho, 1995), o pré-texto ou a memória virtual - fora da temporalidade e da espacialidade deles -, a categoria cativeiro dum tempo bíblico, a criação do mundo nas roças, a experiência da migração e o cotidiano nas roças são pensados num registro escravista, dum “tempo de castigo”.
Assim, no cotidiano e nas suas relações, perpassam modos dum tempo de cativeiro, ao mesmo tempo que há um trabalho de atualizar e de produzir sentidos na virtualização da escravidão, em particular no trabalho da criação do corpo contratado. Pois os modos do trabalho são pensados no binômio: trabalho livre versus trabalho contratado, sendo que a produção da pessoa contratada é acoplada a um modo de trabalho cativo que, como dizem: “pensar nada… trabalho só”.
O que pensava de São Tomé ao chegar cá??! Pensar era trabalhar só! Não era chuva de agora, éh … chuva… levantava 4 h da madrugada, para formar, chuva… comia café só e corrida pra mato, trabalhar… não era brincadeira… jovens de agora não conhece trabalho. (Nhu Frank)
Era muito trabalho, trabalho só. Gente acorda quatro de noite pra fazer ver coisa pra matabichar21, cinco hora, capataz espera com chicote na mão, pra não atrasar ida pro mato. Roupa que gente leva pro mato hoje, não vai amanhã, cheio de barro, molhado, sujo, às vezes até estraga mesmo. Gente lava e deixa secar, dia seguinte, mesmo molhada gente usa. Faz quê! Gente volta tarde já, dezoito, dezanove, depois do trabalho. (Nha Eulália)
Em Ponta Figo, em 1947 quando eu vim, cinco horas tocavam sino. Tocava pito, cinco horas ir tomar café, na panelona junto com maçambique22 [moçambicanos] e angolanos, na cozinha grande, cinco horas tomar aquele café na panela grande, na cozinha grande geral, cinco horas arranca para trabalho, escuro, para ir trabalhar no mato23. (Nha Segunda)
A jornada na “senzala” nas alas masculinas e femininas inicia pela madrugada entre as quatro e as cinco horas, com a apresentação de todas as pessoas em condição de contratadas, sem exceção, no “terreiro” - um amplo e largo terraço a poucos metros das “senzalas”, na postura corporal ereta e enfileiradas horizontalmente: a “formatura”. E, após os trabalhadores serem contados mediante a lista, são encaminhados para mais uma jornada laboral. A cada um era incumbido um trabalho ou um espaço laboral específico: no mato sob fiscalização do capataz, no “galinheiro”, na oficina de consertos das peças das máquinas, na carpintaria, na serralheira, no secador de cacau, no hospital, ou nos trabalhos domésticos na “casa de patrão” e/ou “casa de empregado”. Ainda que “o trabalho duro” não tenha sido uma particularidade somente dos que padeceram no mato, observo que o trabalho de rememorar a experiência de ser “contratado” e as vivências nas roças são falados e concebidos na chave da “dureza”, do “castigo” e duma vida “sofrida” no mato.
Amanheceu cinco horas, roupas que usou no mato ontem, está molhado, não secou, traz, abre a roupa assim, amanhã outra vez, você apanha de novo, não tem outro, você tem que apanha esse mesmo, se você tem outro você troca, se não tem é esse mesmo que você apanha. Minha filha, nós padecemos muito, mas até ainda estamos a viver! Trabalhei no armazém também, costurava sacos, passei anos a coser sacos. Família podia morrer, estava-se na esteira, eu sentar na esteira só a noite, porque eu tinha que trabalhar24. (Nha Segunda)
Vidas escravizadas e de “castigo” povoa(ra)m este cotidano em que pessoas viram suas vidas relegadas ao descarte, não importando se tivessem que trabalhar embaixo de chuvas torrenciais, cumprindo o serviço exigido pelo feitor, despossuídas de proteção alguma: “Era pé no chão, se a chuva vier, você apanha folha, põe na cabeça. Tinha plástico onde, eh! Quem que naquele tempo conhecia bota, conhecia plástico?!” - como Nhu Saustino desabafa. A proteção era reservada unicamente aos patrões, feitores e capatazes, essencialmente “brancos”: “Branco usava, capataz usava bota mexicana, tinha capa pra eles” - como acusa Nhu Mamede. Muitos sucumbiram, como Nhu Mamede denuncia: “Gente dentro chuva, relâmpago, vento muito, muito tem morrido por queda de pau, caía pau cima de gente, muitos morreram nesta brincadeira!” ou sobreviveram. E nos sobreviventes, as marcas do tempo, no qual foram submetidos a cruéis modos laborais e existenciais, a cotidianos e a práticas escravistas, ainda hoje visiveis nos corpos: quer pelas doenças respiratórias que muitos adquiriram, como Nha Lucinda, quer pelo desgaste corporal espelhado em cada fisionomia das pessoas (cabo-verdianas, angolanas e moçambicanas) vindas para São Tomé e Príncipe, em situação de contratadas.
Desta feita, a violência, os maus-tratos e a violência simbólica que constituíam e perfaziam vidas de pessoas em condição de contratadas, e que se retroalimentavam das relações de forças do sistema colonial, denunciam os efeitos dos usos coloniais e capitalistas da fome no arquipélago cabo-verdiano: a criação da “necessidade de migrar” para não padecer25. A realidade das fomes devastadoras e a iminente morte, com as quais se criou o acontecimento da migração cabo-verdiana para as roças santomenses, são agenciadas por Nhu João - que veio aos catorze anos em 1947 - para descrever um cotidiano de cativeiro e de vidas escravizadas acoplado à condição de “contratado”: “Nós veio contratado, nós era contratado! Você sabe contrato é contrato!”.
Naquele tempo branco que mandava em nós. Ele que trouxe gente, ele pagava dinheiro dele, fazia tudo que queria. Tem que fazer, tem que trabalhar, faz como!? Não havia remédio! Nós veio contratado, nós era contratado! Você sabe: contrato é contrato! Tinha regras e tem que cumprir, quem não quer cumprir, padece! A porrada que vai tomar, não pode escolher não: é vamo! Vai! Porrada é quente! Naquele tempo, São Tomé era São Tomé. Agora esta gente que está aqui não viu nada. Nada! Nós que veio na 47, que viu quê que São Tomé era! Não tinha justiça! Qualquer diferença, você ia pra cidade, você que é preguiçoso, cidade cedo! Vai lá, trinta dias na cadeia. Tem que ir mesmo, obrigatório! Sem discutir! (Nhu João)
Com as narrativas e os modos de compor e fabricar as memórias dos meus interlocutores, com e sobre a migração cabo-verdiana para as roças santomenses, procurei sinalizar o fato de que os cabo-verdianos que se alistaram, instigados pelo acontecimento da migração para as roças e pelo cotidiano das fomes e o assombro das mortes, relatam relações e cotidianos de ordens outras que os afetaram. O “tempo do branco”, que se contrapõe ao “tempo da empresa”, se constituía num tempo de cativeiro, de “padecimento”, em que a pessoa em situação de contratada se via despossuída da liberdade de existir e afetada por forças coloniais e capitalistas que a agenciavam como “peça” da engrenagem da máquina capitalista.
A experiência da migração cabo-verdiana para as roças santomenses na modalidade do contrato laboral mostra-nos como a prática e o cotidiano do trabalho contratado carregam densidades escravistas espelhadas e plasmadas nos modos de vida dos meus interlocutores. E por não se tratar dum exercício metafórico, “como se fosse”, mas sim de sinalizar e denunciar os modus operandi duma migração laboral afetada pelas forças coloniais e pela gestão biopolítica escravista, abre espaços de problematização das forças e alternativas infernais que perpassam muitas das políticas migratórias modernas e contemporâneas.
Isso porque, ainda que o evento histórico “escravidão” tenha sido abolido em todo o território português em 1869, as vivências das pessoas em situação de contratadas, dos finais do século XIX até os anos cinquenta do século XX, denunciam a criação dum espaço onde vidas foram escravizadas pelo imperialismo português. Os trabalhos carregados de “padecimentos” e castigo, as obrigações inegociáveis de trabalhar sob intensas e torrenciais chuvas no mato, sem proteção possível, as violências físicas: o chichote, “porrada” a que eram impingidos: “preguiçoso padeceu muito”, as regras rígidas de funcionamento das senzalas, as condições precárias dos alojamentos e dos navios denunciam por excelência um espaço e uma temporalidade fundada e alicerçada na expropriação absoluta do direito de decidir e de gerir a própria existência, a meio das tentativas violentas de desumanização e alternativas infernais: “emigrar para as roças santomenses ou padecer de fome no arquipelágo cabo-verdiano”.
Destarte, quando o cotidiano e as práticas dos cabo-verdianos e dos moçambicanos em situação de contratados, como Nhu Saustino, acusam modos escravistas de existir, vigentes no trabalho do mato, no funcionamento e na ocupação das “senzalas”, no trabalho de “castigo” e de vidas escravizadas, relegadas a uma situação de invisibilidade existencial, falam também de temporalidades e de histórias vividas e ainda presentes nas marcas corporais dos meus interlocutores, e estas “não devem passar adiante” e não mais cairão no esquecimento e silenciamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BALSÁMO, Pilar. 2009. Perigoso é não correr perigo. Experiências de viajantes clandestinos em navios de carga no Atlântico Sul Porto Alegre, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2009.
- BERTHET, Marina. 2012. “Reflexões sobre as roças em São Tomé e Príncipe”. Estudos Históricos, 25(50): 331-351.
- CARREIRA, António. 1977. Classes sociais, estruturas familiares e migração em Cabo Verde Lisboa, Ulmeiro.
- CARREIRA, António. 1983. Migrações nas Ilhas de Cabo Verde 2. ed. Cabo Verde, CEE/ICL, Instituto Caboverdiano do Livro.
- CARREIRA, António. 1984. Cabo Verde: aspectos sociais, secas e fomes do século XX Lisboa, Biblioteca Ulmeiro.
- DELEUZE, Gilles. 27/06/1999. “Atos de criação”. Tradução de José Marcos Macedo. Folha de S.Paulo
- DELEUZE, Gilles. 2011. A imagem tempo: cinema 2 São Paulo, Brasiliense.
- GILROY, Paul. 2008. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência Rio de Janeiro, Editora 34.
- MUNGOI, Dulce. 2010. Identidades viajeiras. Familia e transnacionalismo no contexto da experiência migratória de moçambicanos para as minas da terra do Rand, África do Sul Porto Alegre, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2010.
- NASCIMENTO, Augusto. 2000. Relações de poder e quotidiano nas roças de S. Tomé e Príncipe: de finais de oitocentos a meados do presente século Lisboa, Tese de Doutoramento em Sociologia na especialidade de Economia e Sociologia Históricas, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. 2000.
- NASCIMENTO, Augusto. 2007. O fim do caminhu longi Mindelo, Ilhéu Editora e do Autor.
- NASCIMENTO, Augusto. 2008. Vidas de S. Tomé segundo vozes de Soncente Lousã, Ilhéu Editora e do Autor.
- NAVIA, Ângela. 2014. Êxodos e refúgios. Colombianos refugiados no Sul e Sudeste do Brasil Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2014.
- ROCHA, Eufémia. 2014. Feitiçaria e mobilidade na África Ocidental: uma etnografia da circulação de kórda, méstris e korderus Praia, Tese de Doutoramento em Ciências Sociais, Universidade de Cabo Verde. 2014.
-
SEMEDO, C. 2021. “Mobilidades e territórios impensáveis. Contranarrativas e afetos de cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe”. Revista de Antropologia, USP, São Paulo, On-line, 64(1): 1-22. http://dx.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2021.184478.
» https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2021.184478 - SEMEDO, C. 2021. “A experiência migratória de cabo-verdianos para as roças de São Tomé e Príncipe: pesquisa de campo”. População e Sociedade, Cepese, Porto, 34: 87-106.
- SENA BARCELOS, Cristiano. 1904. Alguns apontamentos sobre as fomes em Cabo Verde: desde 1719 a 1904 Lisboa, Typ. da Cooperativa Militar.
- TENREIRO, Francisco. 1961. A Ilha de S. Tomé Coleção Memória da Junta de Investigação do Ultramar, 2ª série (24). Lisboa.
CONTRIBUIÇÃO DA AUTORA:
-
SEMEDO, C. I. jan-abr 2022. “Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência”. Sociologias, Porto Alegre, 24(59): 54-82. DOI: 10.1590/15174522-120602.
» https://doi.org/10.1590/15174522-120602 -
SEMEDO, C. I. 2021. “Mobilidades e territórios impensáveis. Contranarrativas e afetos de cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe.”. Revista de Antropologia, USP, São Paulo, On-line, 64(1): 1-22. DOI: 10.11606/1678-9857.ra.2021.184478.
» https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2021.184478 -
SEMEDO, C. I. set.-dez. 2020. “Somos descendentes! Contranarrativas e agenciamentos musicais dos coletivos de Tchabeta na Roça Agostinho Neto (São Tomé e Príncipe)”. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, 10(3): 981-1000. DOI: 10.1590/2238-38752020v1039.
» https://doi.org/10.1590/2238-38752020v1039 - SEMEDO, C. I. dez. 2020. “A experiência migratória de cabo-verdianos para as roças de São Tomé e Príncipe: pesquisa de campo”. População e Sociedade, Cepese, Porto, 34: 87-106.
-
SEMEDO, C. I. dez. 2020. “As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano”. Hawò, Goiânia, 1: 1-34. Disponível em: https://revistas.ufg.br/hawo/article/view/65617
» https://revistas.ufg.br/hawo/article/view/65617
ARQUIVOS
- Boletim Oficial n. 10. 8 de março de 1947. Cabo Verde.
- Código do Trabalho Rural do Ultramar. Decreto n. 44 309. 27 de abril de 1962. Cabo Verde.
- Decreto-Lei de 1903. Boletim Official n.9, 28 de fevereiro de 1903, São Thomé.
- Decreto-Lei n. 951. 14 de outubro de 1914. Cabo Verde.
- Decreto-Lei 24/75. 30 de setembro de 1975. São Tomé e Princípe.
- Diário do Governo. n. 173, 25/7/1912. Instituto do Arquivo Histórico Nacional. Repertório Numérico simples do Fundo Nacional da Repartição Provincial dos Serviços de Administração Civil (1907-1979). Caixa n. 22, peça n. 1. Cabo Verde.
-
1
Este artigo propõe uma releitura dos resultados da pesquisa (2013 e 2015) realizada no âmbito do doutorado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, com apoio de bolsa Capes PEC-PG. A tese, de cariz etnográfico, se debruça sobre a comunidade cabo-verdiana residente nas roças de São Tomé e Príncipe, explorando tanto as narrativas dessa migração, como também as experiências vividas no presente tempo etnográfico.
-
2
Mediante um registo jurídico-oficioso, a 28 de fevereiro de 1903, permitiu-se a criação de uma Junta de Trabalho e Migração para o recrutamento de serviçais a trabalhar nas roças de São Tomé e Príncipe. Sobre isso, Sena Barcelos (1904) chama a atenção para algumas conexões e relações vigentes na época: até 29 de abril de 1878 ainda a escravatura vigente no território português, ficavam “a cargo do governo o sustento destes” e os custos no deslocamento ao sul. Após a proclamação da Abolição, os fluxos migratórios para o Sul procedem numa chave jurídico-legal: o Decreto-Lei de 1903. O decreto favorecia o recrutamento, exortando ao “desenvolvimento e exploração das propriedades agrícolas das ilhas de S. Tomé e Príncipe, que constituem uma das mais belas obras da colonização portuguesa” (Diário do Governo, n. 173, de 25/7/1912). Criaram-se, igualmente, práticas discursivas facilitadoras à formação objetiva de “Juntas de Recrutamento”, enquanto mediadoras e representantes dos interesses dos então donos das roças. E, por fim, criou-se também um campo de possibilidades no reforço dessta rede ultramarina: uma sociedade de migração a qual na mesma década viria a ser nomeada de Sociedade de Migração para São Tomé e Príncipe - SOEMI.
-
3
Sobre a metodologia, a pesquisa de campo foi realizada exclusivamente na ilha de São Tomé de janeiro a julho de 2013 e de novembro de 2014 a janeiro de 2015. Interessou registrar as narrativas dos idosos cabo-verdianos alusivas à experiência de contrato e, no Arquivo Histórico Nacional de São Tomé e de Cabo Verde, realizaram-se pesquisas nos arquivos sobre a migração contratada. Num segundo momento, fez-se etnografia do cotidiano e das relações na roça Agostinho Neto a partir dos dois grupos locais do ritmo musical cabo-verdiano Batuko/Tchabeta.
-
4
Em termos de congregações administrativas, havia várias companhias/sociedades agrícolas, entre as quais a Sociedade Agrícola Valle Flor Lda. e a Companhia Agrícola Ultramarina, as quais tinham a propriedade de algumas roças - as “roças-sede” - que administravam as pequenas roças: as “dependências”. Muitas das “roças-sede” - sob a administração do ‘patrão’ da roça -, como a então Roça Rio D’Ouro (Agostinho Neto), formam propriedades “gigantes” em que “não raro não ultrapassam mais de 10 000 ha”. Cada uma dessas roça-sede tinha a propriedade administrativa de duas, três ou mais “dependências” - roças de menor geografia e aparatos infraestrutural e administrativo - as quais normalmente se encontravam sob a administração local do Feitor e/ou a distância pelo Administrador da roça-sede. Assim, as roças-sede fundavam “autênticos ‘condados’”, como descreve o geógrafo e poeta santomense Francisco José Tenreiro (1961: 151): criação no continente africano sob administração portuguesa, modalidades de plantations emanando forças e relações no modus operandi escravista. As então Empresas Agro-Pecuárias, Roças, aparecem como constituintes (de) e constituindo uma estrutura espacial colonial, as quais funcionavam como unidades de povoamento quase autossuficientes, cada uma com o seu hospital, carpintaria, alfaiataria, serralharia mecânica, cantina, alojamentos para os trabalhadores na condição de contratados, para os empregados (feitor e/ou capataz) e dos administradores/patrões.
- 5
-
6
Deleuze (1987) sinaliza como todas as criações, no cinema, na filosofia, na ciência, se constituem ou “acabam sendo” atos de resistência à morte. Ou seja, “que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo. […] O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens”. (Deleuze, 1987:13-4).
-
7
Mediante a homologação do Decreto-Lei n. 24/75 a 30 de setembro de 1975, 48 dias após a Independência do Estado Nação São Tomé e Príncipe, o então Estado Nação santomense instaura os passos para a Nacionalização das Roças, uma protorreforma agrária, a fim de possibilitar as terras cultiváveis ao uso público, romper e transformar a estrutura fundiária legada do colonialismo - as grandes empresas agrícolas (Roças) e as então dependências -, e aquelas inicialmente sob a administração do Estado Nação santomense, anos volvidos, são entregues em pequenas unidades - os “lotes” - a pequenos agricultores.
-
8
No período da pesquisa etnográfica, percebi que, tanto na roça Agostinho Neto como nas outras roças, estas terminologias espaciais apareciam ainda comumente usadas nas conversações cotidianas.
-
9
Segundo o jornal Voz de São Tomé (1976), o então presidente da República de Angola - Agostinho Neto - fez a sua primeira visita à roça em abril de 1976, um ano a seguir à independência do arquipélago (12 de julho de 1975) e de Angola (10 de novembro de 1975). Em 1980, a roça passou a chamar-se Empresa Estatal Agro-Pecuária Dr. António Agostinho Neto, de forma a render uma homenagem a Agostinho Neto, pelo seu contributo central nos movimentos emancipatórios de Angola.
- 10
- 11
-
12
Tradução da língua cabo-verdiana: “Ela é meu navio!”.
-
13
A partir das leituras bergsonianas sobre o tempo e a memória (imagem lembrança e imagem atual), a noção de “cristal de tempo” em Deleuze (2011: 103) articula-se com a noção de “imagem-cristal” que constitui a “[…] operação mais fundamental do tempo: já que o passado não se constitui depois do presente que ele foi mas ao mesmo tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instante em presente e passado […]”. Por conseguinte, “o cristal, com efeito, não para de trocar as duas imagens distintas que o constituem, a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva”. E estes estados cristalinos, Deleuze (2011: 103) nomeia “cristal de tempo”: “o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conserva em si, como passado geral (não cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva”.
-
14
As “pontas do presente” em Deleuze (2011: 124): “Na bela fórmula de Santo Agostinho, há um presente do futuro, um presente do presente, um presente do passado, todos eles implicados e enrolados no acontecimento, portanto, simultâneos, inexplicáveis. Do afeto ao tempo: descobrimos um tempo interior ao acontecimento, que é feito da simultaneidade dos três presentes implicados, destas pontas de presente desatualizadas. É a possibilidade de tratar o mundo, a vida ou simplesmente uma vida, um episódio, como um único e mesmo acontecimento, que funda a implicação dos presentes”. (Destaque na citação original).
-
15
Além destas narrativas, escutei, em outros momentos, que o barco Quanza numa destas viagens Cabo Verde-São Tomé e Príncipe, em finais dos anos 1950, que dizem ter sido a última, foi parado em pleno mar por navios cargueiros ingleses e ficou em suspense o real motivo. Muito relacionado, poderia ter sido a explosão das tensões geopolíticas (entre Portugal e a Inglaterra) vigentes na época, as quais apontavam que Portugal estaria mantendo um sistema de trabalho escravo nas roças, a despeito da abolição do tráfico negreiro em 1815 e da abolição absoluta da escravidão nos domínios portugueses a 25 de fevereiro de 1869.
-
16
Quanto às configurações administrativas, São Tomé e Príncipe é organizada em sete distritos, estruturas municipais político-administrativas. A capital da Ilha, São Tomé, pertence ao distrito de Água Grande - ao norte da ilha, com maior concentração da população. Ainda ao norte da ilha, o distrito de Lobata, o de Lembá, no centro o distrito de Mé Zochi, e os dois mais ao sul: Cantagalo e Caué, o limite sul da ilha. A ilha do Príncipe só possui um distrito - o de Pagué. A ilha do Príncipe detém uma autonomia administrativa com maior independência do que os distritos, constituindo-se num Governo: a Região Autônoma do Príncipe.
-
17
Sobre algumas experiências de mobilidades contemporâneas e as múltiplas dinâmicas associadas a esses movimentos, como o caso das mobilidades de moçambiçanos à África do Sul, das experiências de migrações irregulares entre a África Ocidental e a América do Sul, protagonizadas por jovens em navios de forma clandestina, das mobilidades de pessoas provenientes da África Ocidental para Cabo Verde dentro do acordo de livre trânsito entre os países da CEDEAO ou, então, das experiências de refúgio dos colombianos no Brasil, vide Dulce Mungoi (2010), Pilar Balsámo (2009), Eufémia Rocha (2014) e Ângela Navia (2014), respectivamente.
-
18
Em termos climáticos, o arquipélago encontra-se dividido em duas estações: a chuvosa e a seca, que é denominada de gravana. A chuvosa normalmente é mais extensiva e compreende dos meses de janeiro a maio e setembro a dezembro. A gravana refere-se ao tempo seco dos meses de junho a agosto, com alguma queda da temperatura. O clima é tropical úmido, e as temperaturas variam entre 21ºC e 27ºC com frequentes precipitações sobretudo no sul de São Tomé e na ilha do Príncipe. As zonas mais elevadas têm grande pluviosidade, podendo atingir 7.000 mm por ano, e as zonas baixas (Norte e Nordeste) registam menos chuvas, sendo genericamente inferiores aos 1.000 mm por ano. Diferentemente, em Cabo Verde, a pluvisiosidade ocorre num curto período do ano, geralmente entre julho e outubro, com uma média anual a não ultrapassar os 500 mm.
-
19
Durante a pesquisa de campo, ouvi muitos relatos de pessoas em situação de contrato, moçambicanos, que resistiram ao “castigo” se evadindo para o mato: os “fugidos”. Pois, embora não houvesse para “onde correr”, visto estarem num território arquipelágico, o mato constituía por excelência um espaço de evasão. E muitos se suicidavam quando fugiam.
-
20
Numa primeira fase, em 1993, receberam o direito de propriedade outorgado pelo Estado na forma de lotes de terreno - distribuídos pelo Estado santomense - e numa segunda fase em 1996, com maior abrangência. Paralelamente a esta atribuição de título de propriedade - o “lote”, foi ocorrendo apropriação informal da terra - o “campo”. A distribuição dos “lotes” não beneficiou os então trabalhadores rurais - as pessoas (cabo-verdianas, angolanas e moçambicanas) em situação de contratadas, sob a alegação do então Governo vigente de que estariam na iminência da reforma/aposentadoria; somente os mais jovens (filhos e netos) tiveram direito de receber “lote” para a prática de agricultura. Vide Jones (2006).
-
21
Expressão em português santomense e crioulo forro, usada em alusão ao ato de tomar a primeira refeição do dia: café da manhã - matabicho. Igualmente, no português angolano e moçambicano usam-se as duas expressões no mesmo sentido que o do português santomense.
-
22
Usualmente nas roças, entre os meus interlocutores, percebia o uso da expressao “maçambique” em referência aos moçambicanos. Ao invés de dizerem moçambicanos, diziam “maçambique”. Da mesma forma, os angolas eram chamados de “Tonga”.
-
23
Originalmente na língua cabo-verdiana: “Na Ponta Figo, na 47 quanto un bem, cinco horas ta tocaba sino. Ta toca pito, cinco hora bai toma matabicho, na panelona djuntu ku moçambicanos e angolanos, na cozinha grande, cinco horas toma kel café na panela grande, na cozinha grande geral, cinco horas ranca pra trabalho, sucurro, pa bai trabalho na mato”.
-
24
Originalmente na língua cabo-verdiana: “Era na mato, kel bes ka tinha plástico, ka tinha bota, ka tinha nada. É pé na chon, si chuba bem, bu ta panha folha bu poe na cabeça. Tinha plástico undi, eh! Kenha ki na kel tempo conxi bota, conxi plástico?! É panha folha de banana, quebra si, poe na cabeça pa tadja cabeça. Manxi cinco horas, roupas ku bem kual di mato di ontem, sta modjadu, ka seca, bu bem kual, bu abril lá sim, manhan outro bes, bu torna panha, bu ka tem outu bu tem ki panha kel, si bu teni otu bu ta troca, si bu ka teni é kel mé ki bu ta panha. Nha fidju dja nu padeci, mas até inda un ata ta vive! Un trabadja na armazém tambe, un ta kozeba saku,un passa anus ta cozi saku. Família podi morri, stadu na stera, ami xintadu na stera só di noti, porquê ami un tem ki trabadja”.
-
25
Para mais desdobramentos, vide Semedo (2020).
-
FINANCIAMENTO:
Bolsa Capes/PEC-PG
Editado por
-
Editor-Chefe: Guilherme Moura Fagundes
-
Editora-Associada: Marta Rosa Amoroso
-
Editora-Associada: Ana Claudia Duarte Rocha Marques
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025