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Raiva, medo e o pequeno número: o indigenismo bolsonarista a partir de Arjun Appadurai

Anger, fear and the small number: Bolsonaro’s indigenous policy according to Arjun Appadurai

RESUMO

As ações do governo federal no âmbito da política indigenista, no governo de Jair Bolsonaro, caracterizam-se por um forte antagonismo aos direitos territoriais indígenas, consagrados na Constituição de 1988, e às políticas públicas de atenção a essas populações estabelecidas ao longo dos governos civis nas últimas três décadas. Este artigo discute as principais ações da política indigenista do governo Bolsonaro, como também as suas relações com o tema da diferença, a partir do trabalho de Arjun Appadurai, Fear of small number, publicado originalmente em 2006APPADURAI, Arjun. 2006. Fear of small numbers - an essay on the geography of anger. Durham and London: Duke University Press..

PALAVRAS-CHAVE:
Política indigenista; terras indígenas; minorias; Bolsonaro; Arjun Appadurai

ABSTRACT

Under Jair Bolsonaro’s government, the actions of the federal administration related to the indigenous policy, was characterized by a strong antagonism against indigenous territorial rights, enshrined in the 1988 Constitution. It was also marked by attacks against the public policies that aim to protect cultural differences laid out in the last few decades. This article discusses the main actions of the Bolsonaro government’s indigenist policy, as well as its relationship with the issue of difference, based on the work of Arjun Appadurai, Fear of small number, published in 2006APPADURAI, Arjun. 2006. Fear of small numbers - an essay on the geography of anger. Durham and London: Duke University Press..

KEYWORDS:
Indigenous policy in Brazil; indigenous lands; minorities; Bolsonaro; Arjun Appadurai

INTRODUÇÃO1 1 Devo um agradecimento especial aos/às pareceristas deste artigo pelas sugestões que fizeram, permitindo-me tornar o texto mais claro e a tratar de questões negligenciadas em sua versão original.

Como presidente, Jair Bolsonaro esforçou-se em cumprir a promessa de campanha de não demarcar nenhuma Terra Indígena em seu governo, evitando, assim, criar territórios que podem, segundo suas palavras, se tornar “novos países no futuro”.2 2 "O índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro. Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro, para talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí". Declaração de Bolsonaro à imprensa, pouco após à sua eleição à presidência da república, em Cachoeira Paulista, (SP), 30 nov. 2018. Além dos obstáculos a novas demarcações e de diversas iniciativas que atacam direitos consolidados na Constituição Federal, o presidente, como também outros membros de seu governo, já fizeram declarações hostis e impertinentes sobre os povos indígenas do país, expressando um misto de cólera e temor, indignação e receio, e reproduzindo uma estrutura discursiva há muito presente na fala de segmentos políticos e econômicos que o apoiaram na campanha eleitoral de 2018, como aqueles vinculados à agropecuária, à mineração, à atividade madeireira e ao garimpo.3 3 Os ataques aos direitos indígenas, conquistados sobretudo na Constituição de 1988, não são novos e não se limitam ao espectro da direita bolsonarista. Discuti alhures (Rufino, 2022) que esses ataques estiveram presentes desde o processo constituinte, como vemos no testemunho ocular de Carneiro da Cunha (2018), e se estenderam por todo o período posterior. Além da ação conhecida de parlamentares vinculados à bancada ruralista (somada aos parlamentares que representam os interesses de outros setores econômicos, como a mineração, a indústria da infraestrutura e as igrejas evangélicas), tivemos ações anti-indígenas em todas as forças políticas que comandaram o Executivo federal a datar do governo de Fernando Collor de Mello. Mesmo os governos mais à esquerda do Partido dos Trabalhadores frustraram as expectativas do movimento indígena organizado e das organizações parceiras da causa indígena. Falaremos sobre isso mais à frente.

A forma como esse discurso anti-indígena se estrutura e serve de alicerce para ações concretas na política indigenista nos conduz aqui ao exercício intelectual despretensioso de interpretar o momento atual do indigenismo oficial brasileiro apoiado nas considerações feitas por Arjun Appadurai, em seu livro Fear of small numbers - an essay on the geography of anger, traduzido ao português em 2009. Não proponho que o escopo e o argumento do autor se aplique de modo manifesto e insuspeito à realidade da política indigenista bolsonariana, porquanto o trabalho de Appadurai volta-se a pensar questões próprias a sua longa reflexão sobre o fenômeno da globalização. Mas defendo que ele nos permite traçar paralelos interessantes entre o temor, e aversão, às minorias por parte de alguns Estados-nação e o modo como essa modalidade de direita populista radical, no comando do Executivo federal brasileiro, lida com a alteridade ou, mais especificamente, com a diferença cultural interna em sua forma mais conspícua, a dos povos indígenas.

O livro de Appadurai é de natureza ensaística, como denuncia o título, e constitui ele mesmo uma reflexão despojada sobre a ação hostil de Estados nacionais frente às minorias presentes em seu território, encetada mormente desde os anos 90, no contexto da Queda do Muro de Berlim. É o próprio autor que o considera, a um só tempo, uma pausa e um movimento de transição no interior de um projeto maior de análise dos processos de globalização econômica, política e cultural. Ele dá continuidade à investigação iniciada em Modernity at large: cultural dimensions of globalization, de 1996, e consiste, em grande parte, na resposta às críticas e objeções de que lá Appadurai teria tratado da globalização sob um ângulo assaz favorável, ignorando os seus aspectos mais nefastos, dentre os quais a violência, a desigualdade crescente e a exclusão socioeconômica sistemática de parcelas importantes das populações de cada país. Neste livro, portanto, a atenção do autor se dirige a esses aspectos, com atenção especial à violência e à “demonização” das minorias.

O MEDO AO PEQUENO NÚMERO

Para que nossa leitura do indigenismo bolsonarista assentada nas elucubrações de Appadurai faça algum sentido, é preciso expor algumas de suas ideias e temas que julgamos pertinentes para a reflexão e o reconhecimento do lugar ocupado pela diferença na política indigenista deste governo. Façamos então uma reconstituição do argumento do autor, mesmo que breve.

Ao reduzir a capacidade dos Estados em controlar as suas economias e, de certo modo, o destino de seus próprios países, o processo histórico de globalização, mormente nas últimas quatro décadas, teria sido responsável pela criação de um ambiente de incerteza política, econômica e cultural ao redor do planeta, que atinge inclusive as democracias liberais. Um componente importante na produção dessa incerteza é o fato de que a redução de distâncias e a forte circulação de pessoas dentro e por entre as fronteiras dos Estados tensiona e desestabiliza aquilo que está sob sua fundação, desde os acordos da paz de Westfália: a soberania política estatal e o ethnos nacional. Appadurai (1996APPADURAI, Arjun. 1996. Modernity at large: cultural dimensions of globalization. Minneapolis: Minnesota University Press.) já explorava a ameaça aos projetos dos Estados-nação, identificada a partir de relações inéditas (surgidas na segunda metade do século XX) entre soberania, território e ethnos nacional, em sua discussão acerca do processo de produção de localidades (lugares coletivamente ocupados e transformados por uma forma de circulação de pessoas tornada possível apenas nos últimos anos). Cidades que estão no meio desses trajetos transnacionais se tornam divorciadas de seus contextos nacionais, tornando-se translocalidades, e formam uma nova categoria de organização humana que aponta para o envelhecimento dos modelos atuais de soberania.

E aqui temos o combustível necessário para o medo, e também o ódio, que se propaga entre os grupos sociais que se representam como coletividades majoritárias em seus países, contribuindo para a formação de uma política global da raiva. Incerteza, insegurança e raiva, por sua vez, se reforçam mutuamente e se alimentam da mobilização de conexões, feitas de modo cada vez mais frequente, entre eventos distantes, velhas histórias, novas provocações e medos próximos (2006: 100). A raiva, não obstante, pede um objeto, um alvo concreto e visível sobre o qual ela possa ser exercida, o que deixa incólume exatamente aquilo que participa de sua origem. A globalização, diz o autor, por se constituir como um processo imaterial e por pertencer, como categoria ou conceito, ao plano do discurso, é inatingível e, de certo modo, invisível à raiva. As minorias sim são tangíveis, constituindo então um fim em direção ao qual o propósito do ódio possa ser dirigido. Povos indígenas, migrantes, ciganos, comunidades quilombolas, pessoas transgêneras possuem a materialidade necessária para que se possa indexar os males da globalização, ou os “medos próximos” à que se refere Appadurai, a uma corporeidade localizável no espaço.

A pluralidade étnica, representada, em nosso caso, pela sociodiversidade indígena, viola o isomorfismo entre território e identidade nacional na qual se apoia o Estado-nação moderno (1996: 45). Ela é o “pequeno número”, apreendido como ameaça ao ethos nacional e que pode, em determinadas circunstâncias, ser entendida pelo Estado como um risco à sua soberania. Entre a insegurança e a cólera, temos a mediação importante de uma forma de ansiedade social decorrente da percepção, por parte da coletividade nacional, de uma incompletude fundamental em sua própria existência. A mera presença do pequeno número no interior das fronteiras de seu território funciona como a afirmação dessa incompletude, de uma coesão nacional deficiente, de uma identidade nacional inconclusa. Há, assim, uma ansiedade da incompletude (anxiety of incompleteness) que cresce pela ação constante de um narcisismo das pequenas diferenças4 4 Appadurai faz uso frequente deste conceito, proposto inicialmente pelo antropólogo britânico Ernest Crawley, mas tornado famoso por Freud, em O mal-estar na civilização, escrito em 1929. e que faz das minorias o bode expiatório adequado. A reflexão de Appadurai nos sugere uma potência criadora da raiva, que mobiliza os indivíduos e agrega a coletividade no entorno daquilo que se percebe como um mal comum. As minorias estão no meio da dissidência entre o Estado-nação e a globalização. O primeiro, marcado por uma forma de circulação política vertebrada, demanda coesão e identidade. O segundo, caracterizado por uma circulação celular, aponta para a abertura, a ação em rede e os fluxos transnacionais. Se o Estado-nação afirma a soberania e a fronteira, a globalização declara o seu inverso, expressando um mundo outro, marcado pelo hibridismo e pela circulação incontida de pessoas, ideias e instituições. O confronto entre demandas tão díspares conduz o Estado-nação a perseguir a homogeneidade nacional, horizonte mítico e inatingível, mas cuja procura oferece um sentido de segurança e destino coletivo.

A ALTERIDADE E A FÚRIA PATRIÓTICA

Com Bolsonaro, avistamos a maior transformação já imposta à política indigenista oficial desde o fim da ditadura militar quando, em meados dos anos 1980, testemunhamos a consolidação de um novo marco no entendimento da alteridade indígena, que negou o assimilacionismo como política de Estado e culminou com os avanços dos direitos indígenas na Constituição, promulgada ao final daquela década (Souza Lima, 2015SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2015. “Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, século XX/XXI”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 21, n. 2: 425-457. DOI 10.1590/0104-93132015v21n2p425.
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; Carneiro da Cunha, 2018CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2018. Índios na Constituição. Novos estudos Cebrap, vol. 37, n. 3: 429-443. DOI 10.25091/S01013300201800030002
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; Le Tourneau, 2019LE TOURNEAU, François-Michel. 2019. “O governo Bolsonaro contra os povos indígenas: as garantias constitucionais postas à prova”. Confins - Revue franco-brésilienne de géographie. n. 501. DOI 10.4000/confins.22413
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).5 5 Um dos pareceres a este artigo observou que a escalada de ataques aos direitos indígenas ocorre exatamente após o momento em que o Estado dá passos importantes na superação de lacunas históricas e na concessão de direitos a essas populações, o que seria um paradoxo frente ao argumento de Appadurai acerca de seu enfraquecimento. Isso nos permite explorar melhor um aspecto no raciocínio do autor que, muitas vezes, se vê num certo “ponto cego” frente a esta discussão. Para Appadurai, a redução da capacidade do Estado em controlar a sua economia, com o fortalecimento dos mercados internacionais, ou mesmo a circulação em suas fronteiras, não é contraditória com sua ação no âmbito da proteção de direitos relativos à diferença. Ao contrário, ele se torna mais suscetível a essas demandas exatamente pelo fortalecimento das estruturas de circulação política celular, mais facilmente associadas aos processos transnacionais. O ódio se associa então à percepção de que o Estado esteja, não ausente, mas sendo atravessado por forças e interesses externos ao focar sua atenção sobre os direitos de minorias. Pela primeira vez em pouco mais de trinta anos, o Executivo federal retomou a bandeira da integração cultural dos indígenas, propondo a dissolução das políticas públicas voltadas à diferença e a transformação das Terras Indígenas em espaços de produção econômica (ISA, 2020bINSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). 2020b. “PL da devastação” pode ser um “liberou geral” para mineração em 315 Terras Indígenas. Blog do ISA, São Paulo, 19 mar. 2020. Disponível em: Disponível em: https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/pl-da-devastacao-pode-ser-um-liberou-geral-para-mineracao-em-315-terras-indigenas Acesso em: 23 maio 2021
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). Viu-se o renascimento de um ufanismo patriótico que só admitiria uma forma social de existência e um único modo de ser e viver.

As críticas do presidente Bolsonaro à política indigenista anterior e aos direitos fixados na Constituição apresentavam-se com um verniz de modernidade, com um lustro desconstrucionista de quem promete enxergar o que a maioria não vê. A sua fala recorrente de que os indígenas seriam “iguaizinhos a nós” e que a diferença cultural, tão propalada pelas políticas públicas após a Constituição de 1988, constitui uma invenção, é um exemplo disso. Ele, e outros personagens importantes de seu governo e base de apoio, difundem a tese de que ONGs, nacionais e estrangeiras, partidos de esquerda, movimentos sociais e outros agentes estariam na origem da produção desta invenção, que responderia a interesses alheios à pátria. O Brasil já seria um país de iguais, mas forças políticas com interesses escusos disseminam a ilusão da diferença e impedem que a unidade nacional se manifeste plenamente sob a mesma bandeira e o mesmo hino.

Combater essa ilusão seria uma tarefa premente e que tem por alvo não apenas a sociedade brasileira, mas também os povos indígenas. Presos em grandes “zoológicos humanos”, as Terras Indígenas, eles seriam vítimas do paternalismo estatal que os impede de exercer plena e livremente a sua condição de humanidade.6 6 “Agora, veja, na Bolívia temos um índio que é presidente. Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?” Declaração de Bolsonaro, ainda em Cachoeira Paulista (SP), em 30 nov. 2018. Esses grandes territórios demarcados, repletos de riquezas minerais e potência agrícola, pecuária e energética, fariam as vezes, simultaneamente, de espaço de servidão e de reserva de recursos e riqueza para as potências estrangeiras. Assim, a política de não demarcar “nem mais um centímetro”, ou de rever as demarcações existentes, seria uma forma de enfrentar esses dois problemas. Sob Bolsonaro, a política indigenista almejou, paradoxalmente, o fim último de si mesma. Fim de si mesma porque se quer o fim dos indígenas como signos de diferença, tornando-os todos brasileiros, produtores rurais e, idealmente, cristãos evangélicos. Se a política indigenista tem sido, a datar da abertura democrática, uma política voltada à proteção da sociodiversidade, ela não teria mais lugar em um Estado para quem formas diferentes de ser e viver são antes de tudo um problema. O combate à diferença na ordem do indigenismo parece acompanhar o combate à diferença em todas as outras ordens, seja nas formas de família, no pertencimento religioso, ou nas elaborações sobre sexualidade e gênero.7 7 Em uma análise da reconfiguração do campo político-identitário no país, Letícia Cesarino (2019: 541) argumenta que as estratégias discursivas da direita conservadora bolsonarista é cautelosa ao explorar o tema da diferença nas mídias digitais, que se tornaram palco importante da ação política após a universalização do uso do smartphone e do Whatsapp: “Não por acaso, a fama original de Bolsonaro como misógino, racista e homofóbico reproduz ponto a ponto os marcadores da diferença privilegiados pelas políticas de identidade no Brasil e alhures: gênero, raça e orientação sexual. Durante a campanha, a memética bolsonarista mobilizou todos estes, de modo central, enquanto inimigos - porém, teve o cuidado de traçar a fronteira antagonística não entre brancos e negros, homens e mulheres, ou heteros e gays, mas entre a militância feminista, LGBT e do movimento negro e os ‘cidadãos de bem’. Assim, brasileiros negros, pardos, gays ou mulheres que não tinham um investimento especial na gramática identitária das políticas de reconhecimento (podemos supor, uma maioria) puderam ter seu pertencimento mobilizado pela cadeia de equivalência do bolsonarismo, que operou com significantes vazios como ‘brasileiros’, ‘trabalhadores’, ‘cidadãos de bem’ ou ‘patriotas’.” Em um mundo sem o múltiplo, a política indigenista não precisa existir.

A relação entre insegurança (ou incerteza) e raiva que, para Appadurai, é central para o entendimento da perseguição a minorias em várias partes do planeta, parece ganhar contornos próprios no universo da direita radical bolsonarista. Vemos aqui a afirmação frequente de que os direitos das minorias instituem privilégios indevidos, vantagens e regalias injustificadas, tornadas possíveis pela ação de organismos e movimentos de esquerda, que seriam supostamente beneficiados por criar um público devotado e fiel. A declaração de Abraham Weintraub, ex-ministro da educação e considerado integrante do núcleo ideológico do governo, ilustra essa associação:

Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo. Odeio. O povo cigano. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios.

(Declaração de Weintraub em reunião interministerial, abr. 2020).

Não importam, sugere o ex-ministro, os caracteres e qualidades particulares de cada um, contanto que eles não operem como sinais diacríticos ou como marcadores de diferença. O ódio ao “termo” é mais do que a ojeriza a um componente do vernáculo da língua. Se o Estado-nação produz um “fiction of ethnos”, como nos diz Appadurai - e, de certo modo, Benedict Anderson (1983ANDERSON, Benedict. 1983. Imagined communities - reflections on the origin and spread of nationalism. London/New York: Verso/New Left Books.) -, a forma como a ideia de identidade nacional é mobilizada no falatório bolsonarista aponta para uma entidade larga o suficiente para abarcar todas essas qualidades. Consagrar a diferença seria exaltar as imperfeições da identidade, tornando o mal menor em um ente ameaçador, fraturando a igualdade dos brasileiros nos privilégios do pequeno número.8 8 Para Cesarino (2019), a comunicação desta direita conservadora logra realizar inversões importantes na maneira como as minorias são apreendidas por aqueles que se sentiram excluídos do jogo político ao longo dos últimos anos, em que o país avançou na promoção de “políticas da identidade”. Expressões como “ditadura gay” e “feminazi” são exemplos da ressignificação das minorias como forças “opressoras”.

O caso específico dos povos indígenas traz um outro componente ao temor à diferença e que nos remete a um ponto importante no argumento de Appadurai sobre as tensões contemporâneas de um mundo cada vez mais globalizado. Trata-se da associação, nas representações do Estado-nação, da minoria interna a uma maioria internacional. O pequeno número desloca-se, assim, do frágil ao perigoso, do diminuto ao graúdo, tornando-se, para a maioria, algo além de sua mera incompletude.9 9 Entre os exemplos explorados por Appadurai, temos as minorias muçulmanas na Índia e em outras partes, comumente acusadas por governos nacionalistas de serem a ponta de lança de uma força exterior ambiciosa e calculista, conspirando sempre contra a soberania territorial dos Estados onde residem. A maneira como os indígenas são “inventados” no país, pensa o bolsonarismo, os torna mais próximos de uma comunidade global dos povos indígenas do que da nação brasileira, categoria primordial em seu discurso. A proximidade e semelhança dos temas presentes em documentos internacionais como a declaração de direitos dos povos indígenas das Nações Unidas, como também a da OEA, a Convenção 169 da OIT e os capítulos dos índios em nossa Constituição Federal, seriam a expressão de uma confabulação global que ameaça a soberania de países como o Brasil.

Não é gratuito, para o presidente, que os direitos territoriais indígenas estejam no centro da legislação dedicada a estes povos. A demarcação das Terras Indígenas teria o intuito de dificultar o desenvolvimento econômico do país, condenando-o a uma posição subserviente no cenário internacional, e de impedir a exploração, pelos brasileiros, de recursos naturais centrais para a economia mundial, como minérios os mais variados.10 10 “Não tem Terra Indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio”. Fala do presidente ao portal Campo Grande News, 22 abr. 2015. Ao garantir a posse permanente dos indígenas, que não realizam atividades econômicas na escala que poderia interessar ao país, e proibir qualquer forma de exploração de seu subsolo, os territórios indígenas teriam a função de fazerem a custódia dessas riquezas para a exploração futura por parte de nações e empresas estrangeiras. A proibição de arrendamento dessas terras e a sua interdição para as atividades do agronegócio e da grande pecuária não poderia significar outra coisa senão o servilismo do país frente aos interesses de potências externas.

TERRA NULLIUS E CARTOGRAFIAS INDÍGENAS PÓS-NACIONAIS

Os riscos que as Terras Indígenas colocam ao país, todavia, não param aí. Haveria ainda a ameaça, sombria e aterradora, de ataque direto à soberania nacional por meio da internacionalização desses territórios. O usufruto exclusivo de grandes extensões territoriais para comunidades diminutas e o veto rigoroso em suas formas de uso seria o indício da ausência do Estado brasileiro e do apartamento dessas áreas do território da nação. As Terras Indígenas, e também as Unidades de Conservação, seriam terra nullius, aguardando a definição de seus futuros ocupantes. Nesse tópico, o bolsonarismo recicla uma narrativa já conhecida desde o último processo constituinte, em que grandes veículos de imprensa, militares e o campo político-econômico do agronegócio insistiam na tese de que os capítulos dos índios seriam frutos de uma grande “conspiração contra o Brasil” (Carneiro da Cunha, 2019CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2019. A contribuição da pesquisa sobre povos indígenas. Campos - Revista de Antropologia, vol. 20, n. 2: 26-36. DOI 10.5380/cra.v20i2.71858.
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). De lá para cá, muitas falsas notícias contribuíram para alimentar teses complotistas sobre a nossa perda de soberania.11 11 Uma dessas notícias circulou fartamente desde o ano 2000, em um momento em que a Internet se expandia a passos largos no país. Tratava-se da fotocópia de um suposto livro didático utilizado em escolas dos Estados Unidos que mostrava o mapa da América do Sul com a região amazônica descrita como “território internacional”, separado do Brasil. A Câmara dos Deputados chegou a fazer um requerimento formal ao então ministro de relações exteriores, Luiz Felipe Lampreia, para que desse informações sobre o episódio. O senador Mozarildo Cavalcante, da bancada ruralista de Roraima, fez uma declaração, em novembro de 2001, denunciando o “atentado à soberania do país” e se referindo ao mapa como um "processo inteligentemente armado para anestesiar as camadas formadoras de opinião e evitar reação". O embaixador dos Estados Unidos no país, Anthony Harrington, precisou, mesmo com o ridículo da situação, declarar que a floresta amazônica pertence ao Brasil e que a notícia, além de falsa, era hilária. Contudo, um episódio ocorrido no início do governo Bolsonaro contribuiu para alimentar as suspeitas de que grandes potências estrangeiras estariam interessadas em debilitar a soberania brasileira. Desta feita, a notícia era real e envolveu o presidente da França, Emmanuel Macron, e o G7, o grupo das sete maiores economias do mundo.

O presidente da França fez, em 26 de agosto de 2019, a polêmica declaração de que a Amazônia poderia ganhar estatuto internacional, caso um Estado soberano agisse contra o “interesse do planeta”. Era uma clara alusão ao governo brasileiro que naquele período estava sendo fortemente criticado, dentro e fora do país, em razão dos graves incêndios na região amazônica, sobretudo por conta do “Dia do Fogo”, ação criminosa coordenada por fazendeiros do entorno dos municípios de Novo Progresso e Altamira, no Pará. Essa queimada espetacular e de grande escala, iniciada em 10 de agosto, foi tornada possível pela tolerância do novo Executivo federal e pelo apoio direto de Bolsonaro à demanda dos fazendeiros para desmatar a floresta. A indignação de parte importante da opinião pública internacional com o governo brasileiro não começou naquele mês de agosto, mas alcançava ali o seu ponto mais alto. Desde o início da gestão Bolsonaro, o número de incêndios aumentou amplamente, atingindo inclusive as Unidades de Conservação e as Terras Indígenas12 12 Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio do satélite Aqua M-T da agência espacial norte-americana, 345 Terras Indígenas foram alvos de 16.680 focos de queimadas em 2019, número muito superior aos 8.942 focos no ano anterior. No país inteiro, foram 197.632 focos de incêndio em 2019 contra 132.872 em 2018. As queimadas nas Terras Indígenas, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi 19% maior do que a média dos dez anos anteriores. É preciso observar ainda que estes dados dizem respeito às terras já demarcadas, o que deixa de fora um grupo de mais de 500 terras reivindicadas, mas cujos processos de identificação ou delimitação cartográfica não foram iniciados pela Funai. , contribuindo para desacreditar a já maculada política de proteção ambiental do Estado, tomada de assalto por diversas iniciativas de desregulação e desmonte do órgão ambiental já nos primeiros meses do novo governo. Esse clima de laissez-faire serviu como pano de fundo para que o presidente da França manifestasse preocupações sérias com o futuro da Amazônia, levando-o a fazer declarações inauditas para um chefe de Estado acerca de um outro país.

Associações, ongs e atores, já há vários anos - por vezes alguns atores jurídicos internacionais - levantaram a questão para saber se podemos definir um status internacional da Amazônia. (...) Hoje, não é o caso da iniciativa que tomamos. Mas é uma questão que se coloca. Se um estado soberano toma, de forma clara, concreta, medidas que evidentemente se colocam em oposição ao interesse de todo o planeta. Há todo um trabalho jurídico, político a ser feito.

(fala do presidente francês, Emmanuel Macron, 26 ago. 2019).13 13 O discurso do presidente francês foi veiculado em diversos portais de notícia e veículos de imprensa. Um trecho de sua fala pode ser visto na matéria do mesmo dia, produzida por portal G1: https://g1.globo.com/ mundo/noticia/2019/08/26/ questionado-sobre-status-internacional-da-amazonia-macron-diz-que-pode-ser-uma-questao-se-algum-pais-tomar-medidas-contra-o-planeta.ghtml Acesso em 11 dez. 2022.

Soma-se ao impacto dessa declaração o lugar simbólico onde ela se deu. Apesar de responder a perguntas de jornalistas em Biarritz, França, Macron falava no âmbito do G7, lá reunido. Era a ocasião em que ele anunciava uma ajuda de 20 milhões de euros para que os incêndios fossem debelados pelo governo brasileiro, que a recusou prontamente. O fato de o presidente francês questionar abertamente a soberania territorial brasileira e fazê-lo em um fórum internacional do qual o Brasil não faz parte foi, para o governo Bolsonaro, a evidência que faltava para mostrar aos incrédulos que a soberania do país corre riscos. E apesar deste episódio ser protagonizado por um líder político europeu, que faz a defesa do fim das fronteiras para aquelas regiões que interessam a “todo o planeta”, para o governo, forças e interesses hábeis em dissimular o seu tamanho e poder estariam por trás das tentativas de ferir a soberania territorial brasileira. Para Bolsonaro, a França não age só quando critica o governo brasileiro e sugere retirar a Amazônia da jurisdição territorial brasileira. Junto a ela estão os agentes de uma rede transnacional de organizações não-governamentais e organismos de cooperação multilateral, mas também os povos indígenas e suas organizações e lideranças, protegidas sob as máscaras das minorias. A fragilidade das minorias indígenas, amparadas por um discurso de vitimização propalado pela esquerda política, por ONGs indigenistas e ambientais, por antropólogos, missionários católicos e parte da grande imprensa seria, portanto, uma farsa, um embuste a ocultar o pertencimento da minoria a uma maioria internacional, ávida pelo enfraquecimento das soberanias nacionais e por uma cartografia livre das fronteiras dos Estados. Avistamos aqui a mesma dinâmica observada por Appadurai em outras partes: a diferença, como oponente moral interno, é globalizada e associada a inimigos morais externos e distantes, permitindo ao Estado que se lance na produção de uma grande performance que o autor denomina como “dramas of national sovereignty”.

Em seu discurso à Assembleia Geral da ONU, no ano seguinte, o presidente Bolsonaro tratou das queimadas na Amazônia e no Pantanal, que ganharam o noticiário internacional em janeiro de 2020, ignorando a ação criminosa de fazendeiros e o papel de seu governo no aumento extraordinário das taxas de desmatamento florestal em todo o país. Em sua versão do ocorrido, ele culpou os povos indígenas pelas queimadas, em companhia das populações tradicionais, ONGs e a imprensa.14 14 “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.” Mas o que mais nos chama a atenção, na maneira turva como se organiza o argumento do presidente diante da relação entre meio ambiente, povos indígenas e soberania nacional, é o encadeamento açodado entre minorias e “impatriotismo”. Para ele, a aliança entre lideranças indígenas e os setores simpáticos à sua causa age, dentro e fora do país, em uma campanha “brutal de desinformação” contra o presidente, mas também contra o Brasil. E atacar o primeiro é ferir o segundo pois o presidente vende-se como a personificação das qualidades e valores da nação.15 15 Cesarino (2019: 534), apoiada em uma perspectiva cibernética (Gregory Bateson), mostrou como o episódio do atentado a Bolsonaro em plena campanha eleitoral à presidência foi mobilizado na construção de um “corpo digital do rei” que serve de metáfora da nação: “o mecanismo do populismo digital não colocou em relação líder e povo enquanto sujeitos políticos preexistentes, mas os (re) constituiu enquanto tais: num sentido bastante concreto, o líder Bolsonaro era esse corpo digital, e não existiria sem ele. O atentado a faca consumou o processo em que corpo do líder e corpo político - relação de equivalência amplamente ancorada na simbologia da nação brasileira - tornaram-se metáforas um do outro: o corpo (Bolsonaro, o Brasil) foi ferido e está sob ameaça; é preciso união e pronta ação para defendê-lo do inimigo comum (a corrupção, a esquerda, etc.)”. Como afirmou no encerramento de seu discurso na ONU (Nações Unidas, 2020NAÇÕES UNIDAS. 2020. “Íntegra do discurso do presidente do Brasil na Assembleia Geral”. ONU News. Disponível em: Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/09/1727082 Acesso em: 17 jun. 2021 ORO, Ivo Pedro. 1996.
https://news.un.org/pt/story/2020/09/172...
), “o Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”.

O DIABO E O PEQUENO NÚMERO

Se, como afirma Appadurai, o Estado produz minorias no mesmo movimento em que produz um fiction of ethnos, o Estado brasileiro sob Bolsonaro opera uma forma própria de reposicionar, ou reinventar, a alteridade no país. Muito longe do que dispõe o Artigo 216 da Constituição Federal, que afirma a multiplicidade de formas de criar, pensar e viver como um patrimônio nacional, o governo Bolsonaro propõe enxergar a sociodiversidade indígena como infortúnio, empecilho a ser superado pela integração desses grupos ao universo dos produtores rurais. Ele quer a unicidade do brasileiro, lançando-se em uma cruzada contra a diferença. E aqui chegamos a uma segunda dimensão do medo ao pequeno número em sua versão bolsonariana, que se distingue do tema da perda econômica prescrita ao país ou das ameaças à sua soberania territorial, ambos resultantes da mera existência das Terras Indígenas. Esse outro aspecto do temor, e ojeriza à diferença indígena, relaciona-se à ascensão indiscutível, na estruturação desse novo indigenismo oficial, de missionários evangélicos neopentecostais, há muito conhecidos pela prática do proselitismo religioso entre as populações indígenas e pela ofensa e desrespeito por suas práticas culturais.16 16 O governo Michel Temer (MDB) já nomeara um pastor, Antônio Fernandes Toninho Costa, para conduzir a Funai, em 2017. Contudo, este pastor, indicado pelo PSC, sigla que abriga diversos parlamentares ruralistas, não escancarou as portas do órgão indigenista oficial aos missionários evangélicos como era de se esperar. Quatro meses depois de sua posse, ele foi exonerado a pedido do próprio partido após se negar a nomear mais de 20 nomes alheios ao indigenismo em posições importantes da Funai. Criticados por organizações indígenas, indigenistas, pesquisadores e pela Funai de governos anteriores, esses missionários cristãos fundamentalistas, para quem as sociedades indígenas são a morada do diabo, agora agem no coração da política indigenista oficial.17 17 Ronaldo de Almeida (2002) qualifica a teologia das denominações neopentecostais, das quais fazem parte esses missionários, de transcultural fundamentalista e explica a sua ênfase na tradução da Bíblia para as línguas das minorias indígenas ao redor do mundo. São missões salvacionistas para quem a tarefa mais urgente é levar os Evangelhos para as culturas não cristãs e contrastam, de maneira muito direta, com a experiência do protestantismo histórico, de perfil ecumênico.

Não se trata, agora, de recusar a alteridade indígena tão somente em razão de sua vida improdutiva e de seus territórios gigantes “onde não se pode fazer nada”, roubando ao país a oportunidade de avançar economicamente. Não se trata também de temer esses povos exclusivamente pela ameaça que representam à soberania nacional, seja por serem o microcosmo de uma entidade maior seja por conta de seus territórios constituírem, por conta das muitas interdições legais sobre o seu uso, localidades transnacionais, fora do alcance dos brasileiros mas abertos a uma rede de circulação globalizada de minorias, ONGs, ativistas e organismos externos. O governo Bolsonaro, em sua face evangélica, rejeita a diferença porque ela lhe parece diabólica. As Terras Indígenas, onde se esconde o ócio e se aprisiona a riqueza, é também o esconderijo do Mal. Se governos anteriores foram complacentes com o relativismo cultural, impedindo que a palavra de Deus chegasse nesses últimos refúgios de paganismo, caberia a Bolsonaro, eleito com o apoio importante das denominações religiosas pentecostais e neopentecostais18 18 Artionka Capiberibe (2021), ao apresentar as relações entre o governo Bolsonaro e as missões religiosas evangélicas, explora os elementos da teologia cristã que orientam esses agentes e faz uma comparação importante entre a política indigenista do atual governo e aquela presente na ditadura militar. , proclamar uma nova era para o Estado brasileiro. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” é o dístico de um governo onde o “um” reina absoluto sobre o “múltiplo”. Não há lugar possível para alteridade em um cosmos político de reverência extrema à unicidade, em que um “Brasil acima de todos”, ou “o meu partido é o Brasil”, expressa horror ao dissenso e à política como lugar de divergência. Tampouco se permite a diferença quando “Deus está acima de todos” e se afirma, assim, o radicalismo de um monoteísmo que proclama a verdade cabal e irrecusável de sua leitura do mundo (Oro, 1996ORO, Ivo Pedro. 1996. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo: Paulus.).

A política indigenista do Estado brasileiro, tomada de assalto por missionários salvacionistas, é arremessada em direção a um passado distante, em que o paganismo figurava como categoria de alteridade central para o mundo europeu.19 19 Bestard e Contreras, em Bárbaros, paganos, salvajes y primitivos (1987) nos lembra que a Europa conheceu, ao longo de sua história, quatro momentos distintos em sua forma de representar o “outro”. No Império Romano, com a ascensão do cristianismo como religião oficial, o “outro” deixou de ser o “bárbaro” para se tornar o “pagão”, aquele que não professa a fé em Cristo e no Deus único de Abraão. O paganismo, como marcador central da alteridade perdurou por muito tempo, até se ver substituído pelo “selvagem”, figura que emergiu desde as Grandes Navegações, e posteriormente pelo “primitivo”, já no contexto de surgimento das ciências humanas desde o século XVIII. É transformada em uma política anacrônica que dissipa décadas de avanços do indigenismo oficial, cujo acúmulo de reflexão e conhecimento sobre os povos indígenas ao longo do tempo permitiu ao Estado brasileiro formular ações importantes para a construção de políticas públicas específicas que resultou, entre outras coisas, em um sistema de saúde e educação diferenciados. De maneira feroz e displicente, esses apóstolos da Palavra fazem terra arrasada desse legado que, construído ao longo dos anos, contou com a atuação vigilante de indigenistas, pesquisadores, lideranças indígenas e setores da sociedade civil. A heterogeneidade dos povos e sua multiplicidade de experiências históricas desvanece diante da figura pálida de uma alteridade pariforme, um “outro” sempre igual a si e cujo problema maior seria a danação da alma. Além do mal que professam, essas minorias seriam advertências visíveis da incompletude da identidade cristã do país; um pequeno número responsável por despertar uma atenção pública excessiva, mas desmerecida, sobre suas práticas religiosas e seus modos de vida. Para essas missões religiosas, Bolsonaro surge como um enviado de Deus para estabelecer a justiça e aniquilar a máquina que promove a idolatria e o culto a entidades pagãs que não seriam outra coisa senão as muitas formas do diabo. Antes perseguidos pelo ministério público, antropólogos e por agentes do indigenismo oficial, como eram perseguidos os primeiros cristãos no Império Romano, agora os missionários podem realizar o trabalho para o qual foram talhados. O presidente, que traz “messias” em seu nome, encarna o imperador Teodósio I, abre os portões da política indigenista brasileira aos evangélicos e dá início a uma guerra santa ao paganismo indígena.

A virada evangélica começou já no primeiro dia do novo governo, com a Medida Provisória n. 870/2019, que estabelece uma reestruturação ampla no Executivo federal. Além de transferir os procedimentos administrativos da demarcação de Terras Indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o presidente Bolsonaro determinou a remoção da Funai do Ministério da Justiça e seu deslocamento para o Ministério de Estado da Mulher, Família e dos Direitos Humanos20 20 Trata-se de um ministério novo, mas que mostra a sintonia do governo Bolsonaro com a direita conservadora radical fora do Brasil, sobretudo a direita cristã norte-americana sob os anos em que Donald Trump esteve na presidência (2017-2020). O nome do ministério faz uma articulação insólita e não usual entre termos que parecem não andar juntos, ao menos àqueles que atuam no campo dos direitos humanos e sobre as questões de gênero. A família cristã heteronormativa é a categoria que articula direitos humanos (com ênfase nos direitos das vítimas de criminosos, mas não às vítimas do Estado e da repressão policial) e mulher (sem as conotações das questões que essa direita conservadora qualifica como “ideologia de gênero”). , comandada por Damares Alves, uma pastora que já atuou na Igreja do Evangelho Quadrangular e na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Ambas as mudanças foram posteriormente rejeitadas, primeiramente pelo Congresso Nacional, que alterou a MP antes de sua aprovação, e depois pelo STF, quando o governo tentou driblar o legislativo federal, repropondo as mesmas mudanças em uma outra lei.21 21 Nos governos Lula e Dilma, tivemos uma movimentação política nessa mesma direção, por conta da necessidade de garantir a governabilidade, por meio da atração da bancada ruralista nas votações do Congresso Nacional. A posição de “descentralizar” o processo demarcatório ganhou força mormente no governo Dilma. Gleisi Hoffmann, ministra-chefe da Casa Civil, e José Eduardo Cardoso, ministro da Justiça, estão entre os membros do primeiro escalão que manifestaram essa posição do governo (Rufino, 2022). Um dos pareceres a este artigo me recorda que Hoffmann fez uma visita ao Congresso, em 2013, para questionar as demarcações realizadas pela Funai, utilizando como base um laudo técnico elaborado por Evaristo Miranda, agrônomo e pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que afirmava, entre outras coisas, que os Avá Guarani (em Guaíra - PR, estado que é domicílio eleitoral da senadora) eram paraguaios que estariam invadindo o território nacional e, assim, afrontando a soberania do país. A ação de Hoffman abriu espaço para a criação da CPI da Funai, instituída em novembro de 2015, e cujo relatório final indiciou mais de 120 pessoas, entre antropólogos, lideranças indígenas, missionários do Cimi, procuradores federais e servidores públicos da Funai e do Ministério da Justiça (ISA, 2016). Evaristo Miranda, cujo laudo pautou a ação da ministra-chefe da Casa Civil de Dilma, tornou-se uma das figuras mais importantes da política ambiental de Bolsonaro, atuando ativamente na montagem do Ministério do Meio Ambiente e tornando-se, ele mesmo, um forte candidato ao comando da pasta antes da emergência de Ricardo Salles. O descaso de Dilma Rousseff com a Funai pode ser observado também no período recorde, 24 meses, em que o órgão esteve à deriva, sem que alguém fosse nomeado para presidi-lo (deixando-o sob o comando de presidentes interinos, sem força política e interlocução com o governo). Apesar do retorno da Funai ao Ministério da Justiça (e Segurança Pública), então comandado por Sergio Moro, que não queria o órgão indigenista sob sua alçada, o fortalecimento político de Damares Alves dentro do governo e entre os segmentos políticos conservadores que lhe davam sustentação teve implicações diretas na conversão evangélica da política indigenista do Estado brasileiro. De assessora parlamentar à estrela do mundo bolsonarista22 22 Ela, que é advogada de formação, atuou como assessora parlamentar no Congresso Nacional por mais de vinte anos. Foi se tornando conhecida e admirada no meio evangélico desde sua atuação como chefe de gabinete do deputado federal João Campos, do PRB de Goiás, expoente da bancada neopentecostal, coordenador da frente parlamentar evangélica na Câmara dos Deputados e autor do polêmico projeto que propunha a “cura gay”. Depois, passou a assessorar o deputado federal e depois senador Arolde de Oliveira, do PSD do Rio de Janeiro e próximo do clã político da família Bolsonaro. Em 2015, Damares se tornou assessora do senador Magno Malta, pastor, figura ilustre entre os parlamentares evangélicos e um dos articuladores da candidatura presidencial de Jair Bolsonaro. Magno Malta, do PL do Espírito Santo, recusou o convite de Bolsonaro para ser o seu vice na campanha eleitoral de 2018, preferindo se candidatar ao senado. , o percurso de Damares Alves neste governo acompanhou o estreitamento de relações entre o presidente e a rede sociopolítica estruturada no entorno das igrejas pentecostais e neopentecostais.23 23 Desde o início de seu governo, Bolsonaro tem colecionado diversas desavenças com lideranças e segmentos políticos que o apoiaram na eleição, tornando antigos colaboradores em ex-aliados. Apesar das mágoas do ex-senador Magno Malta com o presidente, a frente parlamentar evangélica e líderes religiosos de denominações pentecostais e neopentecostais se mantém comprometidos com o projeto político do governo, fazendo com que essa fidelidade se traduza em uma ampliação e fortalecimento dessa presença evangélica no círculo mais próximo de comando do Executivo federal. O silenciamento de Olavo de Carvalho e a saída de nomes importantes do chamado núcleo ideológico do governo como o ex-ministro da educação Abraham Weintraub, o ex-chanceler Ernesto Araújo e o ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles permite um destaque especial a Damares Alves na base mais conservadora e radical do governo. Fiel ao presidente e crítica daqueles que não conduziam suas pastas ministeriais com a índole do governo Bolsonaro, ela se mostrava refratária à fritura pela qual passaram diversos ex-ministros e passou a opinar sobre um leque cada vez maior de questões. Além da militância anti-aborto, o ataque aos estudos de gênero, a denúncia à “guerra contra a família” e à desconstrução da “identidade biológica das crianças” promovida nas escolas, ela se lançou na luta por uma nova política indigenista. Um novo indigenismo que alargasse o seu escopo e não se limitasse às questões territoriais.

“O índio é gente e precisa ser visto de uma forma como um todo. Índio não é só terra.” Com essa frase, dita em um dos muitos vídeos publicados em sua conta no Twitter, ainda em 2018, a ministra antecipava a perspectiva assimilacionista que deveria conduzir essa nova etapa das relações entre Estado e alteridade indígena. As demarcações de Terras Indígenas saíam de cena para que o Estado se concentrasse, de agora em diante, no índio “como um todo”. Reiterando o que já disse Bolsonaro acerca dessas populações, Damares nos lembra que o índio é gente, é brasileiro e quer o que todos queremos, seja lá o que isso signifique. Sobre o respeito que a Constituição impõe a seus usos e costumes, ela diz que isso precisa mudar: “Isso tem que ser revisto, nós precisamos ver o índio no integral, o índio quer progresso, o índio quer inclusão, o índio quer produzir, quer estudar. O índio pode.” É paradoxal que a contraparte evangélica dessa direita populista radical se apresente como arauta de uma crítica, quase pós-moderna, quase pós-colonial, de estruturas contemporâneas de dominação sobre os povos indígenas. Se Bolsonaro questionava as Terras Indígenas por manterem os indígenas cativos, como “homens pré-históricos dentro do nosso próprio país”24 24 Fala do presidente na manhã de 27 de novembro 2019, Zona Franca de Manaus: “Nossos índios, a maior parte deles, são condenados a viver como homens pré-históricos dentro do nosso próprio país. Isso tem que mudar. O índio quer produzir, quer plantar, quer os benefícios e maravilhas da ciência, da tecnologia. Todos nós somos brasileiros.” , Damares Alves questionava antropólogos e indigenistas empenhados em manter as culturas indígenas intactas, longes das trocas e da história. A perspectiva particularista sobre as culturas indígenas seria responsável não só pela miséria desses povos, pois não se permite que eles ingressem na ordem econômica da produção, mas também pela cristofobia, pois não lhe permitem o acesso aos evangelhos.

A guerra ao diabo escondido no paganismo indígena nos serve aqui como uma alegoria do combate à diferença em um indigenismo de forte coloração evangélica. O medo à sua figura concerne, ainda no diálogo com Appadurai, ao medo ao pequeno número. Originário do grego, a palavra latina diabolus designa aquele que divide, desune ou engana. É quem desagrega o conjunto compacto de uma comunhão (nacional, familiar ou de fé), o seduz e o alicia para que siga um outro caminho. Ele tem muitos nomes, mas sua obra maligna é inconfundível para o missionário diligente. Nos povos indígenas, ele se manifesta, por exemplo, no infanticídio indígena ou no abandono de crianças, que seriam, no relato dessas missões transculturais, práticas corriqueiras.25 25 É o que se pode inferir, por exemplo, da campanha “Voz pela vida”, da Atini, ONG criada por Damares Alves e cujo foco é combater as “aberrações” culturais no mundo indígena. A Atini é acusada pelo Ministério Público de incitação ao ódio contra as populações indígenas, pelas campanhas e publicações que produz. É acusada também por tráfico e sequestro de crianças indígenas. A política indigenista pré-bolsonaro, ou “velha política indigenista socialista”26 26 Em nota intitulada “Os fatos”, a Funai ataca o “assistencialismo subserviente” e o paternalismo da política indigenista “socialista” das duas décadas anteriores, apoiadas por “ONGs e grupos religiosos ligados à Teologia da Libertação, de matriz marxista, capitaneados pelo Bispo mexicano Samuel Ruiz”. (Funai, 4. maio 2020, Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2020/osfatos Acesso em: 12 jun. 2021). , teria sido conivente com o Mal, erigindo entraves intransponíveis para a ação redentora do indigenismo missionário. O governo Bolsonaro, todavia, teria vindo para aniquilar esses “novos Herodes da Funai”27 27 Expressão utilizada por Paulo Fernando Melo da Costa, ex-membro da Atini, liderança da Frente Integralista Brasileira e assessor especial do Ministério de Estado da Mulher, Família e dos Direitos Humanos. Disponível em: https://paulofernando.com.br/paulo-fernando-professor-assessor-cristao-e-politico/ Acesso em: 22 jun. 2021. e, para isso, conta com o apoio incondicional das mesmas missões que há décadas lamentam a “perseguição” a elas inflingidas por indigenistas, antropólogos de esquerda e por uma Constituição que teria consagrado o “relativismo radical”.

COORDENAÇÃO GERAL DOS POVOS NÃO ALCANÇADOS

Organizações célebres pelo proselitismo religioso, pelo desrespeito às formas culturais nativas e pela presença ilegal em Terras Indígenas vivem o seu grande jubileu, com a ascensão de Bolsonaro ao poder. As missões religiosas transculturais28 28 A observação feita por um dos avaliadores deste artigo sobre a presença das missões transculturais no Brasil requer uma nota de esclarecimento sobre esses aparelhos missionários. Por “transcultural” não estamos adjetivando toda e qualquer missão religiosa cristã que almeja a evangelização e catequese dos povos indígenas (ou de qualquer outro grupo percebido como estando fora da ecúmene cristã), a exemplo das missões religiosas católicas que se fizeram presentes no país desde o período colonial. Este termo é utilizado como forma de autodesignação pelas próprias agências missionárias evangélicas pentecostais e neopentecostais que atuam com populações indígenas em todo o mundo; e esse é certamente o caso da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). De modo menos frequente, utilizam também a designação “missões de fé”. É também nesse sentido que a literatura antropológica voltada ao estudo da ação destes agentes religiosos faz uso do termo missões transculturais. Vide Almeida (2002). não eram parte da paisagem do indigenismo brasileiro até os anos 1950, quando então começam a chegar ao país.29 29 Antes disso, temos algumas experiências incipientes e em menor número, como a chegada de missionários norte-americanos no baixo Amazonas, nos anos 30, responsáveis por fundar a Cruzada de Evangelização Mundial, cujo herdeiro atual é a Missão Evangélica da Amazônia (Meva). Originárias dos Estados Unidos, em um contexto em que a expansão do evangelismo pentecostal conservador servia de instrumento aos propósitos norte-americanos na Guerra Fria (Colby e Dennett, 1998COLBY, Gerard; DENNETT, Charlotte. 1998. Seja feita a vossa vontade: a conquista da Amazônia: Nelson Rockefeller e o evangelismo na idade do petróleo. Rio de Janeiro: Record.), estes grupos, organizados em agências missionárias vinculadas a uma ou mais denominações evangélicas, compõem uma rede ampla e descentralizada de instituições que, em comum, partilham de concepções teológicas de natureza fundamentalista, apoiadas no literalismo bíblico, e de uma perspectiva salvacionista de conversão religiosa (Almeida, 2002ALMEIDA, Ronaldo de. 2002. Traduções do fundamentalismo evangélico. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Johnston, 1985JOHNSTON, Kenneth. 1985. The story of the New Tribes Mission. Sanford, Florida: New Tribes Mission.; Marques, 2013MARQUES, Delcídes. 2013. Da vida santificada: a moralidade do caminho estreito. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.). Apesar de algumas tentativas feitas a contar dos anos 90, a Funai nunca conseguiu produzir um levantamento confiável de seu número e sobre onde estão. Depois de um momento inicial de dispersão, hoje elas compõem a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) e consolidam a sua nacionalização por meio de missionários brasileiros e, nos últimos anos, com a formação de missionários indígenas. Com Bolsonaro no poder, essas missões não só ganharam acesso à política indigenista oficial como passaram a receber apoio financeiro do governo federal. Não foi só o ministério de Damares Alves que repassou recursos a instituições evangélicas, como vem sendo noticiado pela imprensa em diversas ocasiões.30 30 Apesar de termos evangélicos em todo o governo, e dois outros ministros pastores (educação e justiça, ambos presbiterianos), a pasta comandada por ela foi o polo base dessa direita cristã fundamentalista. Segundo levantamento feito pela Carta Capital, em maio de 2021 eram 30 cargos importantes, dentre um universo de 46, reservados a representantes dessas igrejas. As igrejas Batista, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Universal e Presbiteriana detinham 17 dessas posições. Organizações católicas conservadoras ocuparam 8 cargos. Outros 6 cargos estavam “sob sigilo”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-ceu-de-damares-como-a-ministra-dos-direitos-humanos-aparelha-sua-pasta/ Acesso em: 23 jun. 2021. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, batista como Damares, permitiu que parte dos recursos do programa Pátria Voluntária, sem qualquer edital público, fosse destinado à AMTB, ao Instituto Missional e ao Serviço Integrado de Missões.31 31 Em março de 2021, o governo forneceu uma outra grande ajuda financeira a essas instituições ao atender a bancada evangélica e perdoar a dívida de quase 2 bilhões de reais de igrejas com a receita federal e o INSS. O governo promoveu também a entrada no país de outros grupos da direita política norte-americana como o Capitol Ministries, dedicado à proliferação do fundamentalismo evangélico no interior de governos e instituições políticas mundo afora, e o The Send, que mira a evangelização e o fomento de uma educação política ultraconservadora sobre a juventude na América Latina.

A história das ofensivas mais preocupantes contra as formas de ser dos povos indígenas no país envolve duas organizações ilustres no campo das missões transculturais que não poderiam ser ignoradas aqui. A Missões Novas Tribos do Brasil (MNTB)32 32 A New Tribes Mission foi fundada em 1942, na Flórida, e hoje atua em mais de 20 países. Em 2017, ela passou a se chamar Ethnos360, em uma tentativa de dissociar sua imagem dos diversos escândalos e acusações acumulados ao longo dos anos em várias regiões do mundo. Além da prática de racismo, intolerância, desrespeito cultural, deslocamento forçado de populações, há diversas acusações de abuso sexual envolvendo missionários da organização. e a Jocum (Jovens com uma Missão)33 33 A Youth with a Mission (YWAM) nasceu em 1960, em Lausanne, Suíça, por meio de um missionário norte-americano, filho de pastores da Assembleia de Deus. Como a New Tribes Mission, ela ambiciona atingir todos os recantos do planeta e converter todos os povos ao cristianismo. Apesar de seu foco inicial em atrair jovens missionários, a YWAM hoje incorpora cristãos evangélicos de todas as idades. Há muitas controvérsias envolvendo essa agência missionária que, em grande medida, lembram aquelas relacionadas a New Tribes Mission. O livro Spiritual Warfare, de Sara Diamond (1989), cita a participação da YWAM em reunião de líderes cristãos conservadores norte-americanos com o general José Efraín Ríos Montt, que liderou o golpe militar na Guatemala, em 1982. Esse é apenas um dos exemplos dos esforços desses missionários em influenciar diretamente a política dos países em que atua, por meio da aproximação aos partidos e lideranças políticas conservadoras estão entre as mais conhecidas instituições do fundamentalismo missionário engajadas na salvação das almas e na conversão espiritual dos povos indígenas do país (Fernandes, 1980FERNANDES, Rubem César. 1980. “Um exército de anjos: as razões da Missão Novas Tribos”. Religião e Sociedade, n. 6: 129-166.; Gallois e Grupioni, 1999GALLOIS, Dominique; GRUPIONI, Luís Donisete. 1999. “O índio na Missão Novas Tribos”. In: WRIGHT, Robin. (org.), Transformando os deuses. Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, pp. 77-129.). Atuam no país a contar dos anos 1970 e continuam com essa prática de ataques ao universo cultural das populações com as quais atuam mesmo após a Constituição de 1988 lhes assegurar o direito à diferença, a permanecerem como são, com as crenças, costumes e formas de organização social que lhes são próprias. Frequentam amiúde os inquéritos do Ministério Público Federal e o noticiário policial por conta de suas práticas ilegais, especialmente frente às populações mais vulneráveis, os povos indígenas isolados. Frequentam agora o centro da política indigenista do Estado brasileiro.

Na manhã de 31 de janeiro de 2020, lideranças indígenas, indigenistas e pesquisadores receberam atônitos a notícia da nomeação de Ricardo Lopes Dias, pastor e missionário da Missões Novas Tribos do Brasil, para comandar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai. Esta nomeação constituiu um escândalo não só por que o CGIIRC constitui um dos setores mais sensíveis da instituição a exigir experiência de campo e qualificação técnica, mas principalmente porque seus objetivos são diametralmente opostos àqueles das missões evangélicas transculturais.34 34 Essa coordenação nasce com base em um novo entendimento do órgão indigenista oficial sobre a política de contato com os povos isolados, firmado em meados dos anos 1980. As missões de contato feitas ao longo do século XX, muitas das quais contaram com a participação de missionários religiosos cristãos, foram vetores na proliferação de epidemias mortais entre os grupos contatados, dizimando parte importante de sua população (Valente, 2017; Rodrigues, 2019). A CGIIRC surge com a tarefa de assegurar o não contato e o respeito ao isolamento voluntário desses grupos indígenas. O próprio conceito de “povos isolados” é visto com horror por essas missões, pois a mera existência de grupos humanos nessas condições, a do não pertencimento à ecúmene cristã, configura um sinal vigoroso da incompletude e fracasso do apostolado evangélico. O que a política pública almeja manter, a obra missionária quer aniquilar. Aqueles a quem a nossa política indigenista chama de povos isolados são, no jargão da Missão Novas Tribos do Brasil e de outras missões transculturais, Povos Não Alcançados, coletivos humanos definidos unicamente por não conhecerem os Evangelhos. A imensa diversidade de formas de ser e entender o mundo, que a CGIIRC tem por incumbência proteger, reduz-se ao paganismo a ser vencido. O desígnio e razão de existências desses “não alcançados” é aguardar a chegada daqueles a quem Cristo confiou o encargo tão claramente expresso no Evangelho de Mateus: Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei (Mt. 28.19).35 35 A Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) estabelece uma alteração importante na definição dos Povos Não Alcançados em seu Relatório Povos Indígenas do Brasil: “Um povo sem comunidade cristã autóctone, com insuficiente número, recursos e visão para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo sem apoio externo, em geral com menos de 2% de evangélicos” (AMTB, 2019: 6). Agora, o que antes entendíamos por “não alcançados” são designados como “povos não engajados” (“Um povo não alcançado sem a presença de cristãos, igrejas, missionários ou Bíblia na língua materna e sobre o qual não há nenhuma iniciativa ou intenção de evangelização, interna ou externa.”). O relatório define também os “povos menos alcançados” (“Um povo com reduzida presença cristã local, frequentemente com necessidade de cooperação externa para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo, em geral entre 2% a 5% de evangélicos.”), e, finalmente, aqueles que representam a meta desse salvacionismo fundamentalista: os povos alcançados (“Um povo com comunidade cristã autóctone e suficiente número, recursos e visão para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo sem apoio externo, em geral com mais de 5% de evangélicos”). Neste artigo, contudo, manteremos a categoria de “povos não alcançados”, ainda utilizada por grande parte das missões de fé.

As minorias, nota Appadurai, parecem ofender os Estados na proporção inversa de seu número, pois quão mais diminuto é o pequeno número, mais evidente é a afronta a uma identidade nacional exclusiva, mas inalcançável. Para esses religiosos, a ofensa dos isolados constitui um tipo particular de insulto e provocação à obra missionária pois multiplica os objetos da evangelização, obrigando-a a multiplicar também os esforços, as traduções e as estratégias de conversão. A cada descoberta de um novo grupo isolado, ou a cada ação de política pública que assegure a manutenção de seu isolamento, a missão se vê mais distante de seu objetivo. A página principal da New Tribes Mission, agora Etnhos360, traz a informação, em tom de lamento, da existência de mais de seis mil povos não alcançados no mundo e a pergunta, em tom de indignação: “Are we ok with that?”.

Ao entregar o setor responsável pelos índios isolados aos missionários, o governo Bolsonaro produz um atalho jamais esperado no caminho desses obreiros, demolindo o principal bloqueio à sua entrada nas terras desses povos e garantindo a tão aguardada liberdade para que eles enfim possam evangelizar, agora com auxílio de recursos públicos. Uma grande ironia nesta nomeação de alguém externo aos quadros técnicos da Funai36 36 Para tornar possível essa nomeação, a Funai antes alterou o seu próprio regimento interno, extinguindo a exigência de que essa função fosse ocupada por um servidor de carreira. e sem qualificação para o trabalho com esses grupos isolados foi o argumento usado pelo órgão indigenista para justificar a escolha do pastor missionário: como credencial de sua competência, foi citado o seu trabalho de evangelização entre os Matsés, que, a propósito, nunca aceitaram sua presença no território indígena. Ironia, pois, o governo transforma o vício em virtude, transmutando a “coordenação geral dos índios isolados” em uma “coordenação geral dos povos não alcançados”.

Pouco após a posse de Ricardo Lopes Dias, a irresponsabilidade da atuação do governo federal em relação aos povos indígenas isolados se mostrou evidente na malfadada tentativa de realizar uma expedição aos Suruwahás, povo de recente contato localizado no sul do estado do Amazonas, valendo-se do argumento de que haveria uma “crise de saúde mental” no grupo. Como se não bastasse a associação de práticas culturais a problemas mentais, a expedição organizada pelo ministério de Damares Alves e pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) seria protagonizada por duas agentes da Jocum cuja história expressa, em si mesma, a violência da guerra evangélica ao pequeno número.37 37 Muwaji e Inikiru Surawahá foram separadas do grupo em 2006 e 2007, respectivamente, e criadas pelos missionários para atuarem como obreiras na conversão religiosa dos povos indígenas. Inikiru se tornou missionária da Jocum e Muwaji, também evangélica, atua em campanhas da organização. Muwaji empresta o seu nome para o Projeto de Lei 1059/2007, caro às missões transculturais e que visa combater “práticas tradicionais nocivas” entre os povos indígenas, como o infanticídio. Ela, que deu à luz a uma criança portadora de deficiência, contou com a ajuda de missionários da Jocum para retirá-la do grupo. Muwaji é a figura símbolo da campanha “Voz pela Vida”, da Atini, e do documentário Hakani: a história de uma sobrevivente, dirigido por David L. Cunningham, filho de fundadores da Youth with a Mission (YWAM). A expedição, que não contou com anuência prévia dos Suruwahás, e que não respeitou os protocolos de quarentena obrigatórios em atividades com povos isolados ou de recente contato, foi então cancelada, após a forte repercussão negativa na imprensa e do protestos de lideranças indígenas, indigenistas, diversas organizações civis de apoio aos indígenas e do Ministério Público Federal.

O caso trouxe à memória, nos veículos de imprensa, os graves impactos epidemiológicos que a intrusão missionária evangélica acarretou em situações passadas, envolvendo as Missões Novas Tribos, Jocum, Summer Institute of Linguistics e outras agências missionárias. Até hoje, esses missionários procuram forçar o contato com populações extremamente vulneráveis aos patógenos e às doenças infectocontagiosas presentes na sociedade majoritária e desconhecidas por seus sistemas imunológicos (Rodrigues, 2019RODRIGUES, Douglas. 2019. “Desafios da atenção à saúde dos povos isolados e de recente contato” In: RICARDO, Fany; GONGORA, Majoí Fávero. Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira . São Paulo: Instituto Socioambiental .), demonstrando uma insensatez e indiferença pela vida alheia comparável àquela manifestada pelo presidente Jair Bolsonaro diante da crise sanitária que o Brasil enfrentou na pandemia de Covid-19 (Capiberibe, 2020CAPIBERIBE, Artionka. 2020. “COVID-19: Um novo velho conhecido dos indígenas”. Boletim ciências sociais e o coronavírus, n. 18. Disponível em: Disponível em: http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2331-boletim-n-18-covid-19-um-novo-velho-conhecido-dos-indigenas Acesso em 20/05/2022.
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). Em ambos os casos, não se trata de incúria por falta de dados ou conhecimento científico que atestem as consequências sanitárias do contato e da inobservância de protocolos estabelecidos, mas de uma ação consciente que persegue os seus objetivos e coloca os riscos à vida em segundo plano.38 38 Douglas Rodrigues, médico sanitarista que há mais de 50 anos atua com populações indígenas, nos lembra de diversos casos em que agentes da sociedade nacional produziram “manifestações mais graves das doenças entre os indígenas isolados ou de contato recente” em função da ausência de anticorpos nessas populações (2019: 40). Para esses missionários evangélicos, a redução dramática da população de alguns grupos, causada por sua presença entre eles, não é motivo de culpa e lamentação, pois a luta contra o diabo presente no mundo indígena tudo justifica. O evangelismo fundamentalista entre os indígenas na era Bolsonaro ganhou aspectos novos que parecem mimetizar o estilo e feição das práticas do presidente, seja em relação à ciência seja em relação a “notícias” de veracidade questionável. No contexto da grave epidemia de Covid-19 no país, a imprensa noticiou, desde o início da campanha de imunização, que pastores e missionários evangélicos tentaram convencer as populações indígenas a evitarem a vacina. Seguindo os passos do presidente, estes missionários espalham medo e terror entre os indígenas, em um esforço de convencê-los das teorias as mais mirabolantes sobre o vírus, a doença e a vacina.39 39 São muitas as teorias difundidas por esses evangelistas. Uma delas diz que a vacina vem contaminada da China e marca aquele que a toma com o número 666, aludido no Apocalipse como o signo da Besta, condenando-o ao inferno. Outra, aposta na transmutação do vacinado em um “animal homossexual”. Há a versão que cita simplesmente o alto risco de morte. E em todas essas versões, há o arremate comum de que “a vacina não é de Deus” e somente os convertidos ao cristianismo evangélico estariam protegidos contra a doença.

A nova coordenação dos índios isolados, nas mãos das Missões Novas Tribos, teve uma atuação negligente e omissa diante da pandemia, conforme denunciam lideranças indígenas e servidores de carreira da Funai. A indicação de outros missionários para atuar no âmbito da CGIIRC e o ingresso nas áreas sem o respeito à quarentena e sem a utilização de equipamentos de proteção, colocando em risco não apenas a saúde dos indígenas, mas também a dos servidores da Funai, só confirmaram os temores iniciais quando da nomeação de Dias Lopes. Questionado por uma servidora de carreira sobre suas intenções em levar missionários para evangelizar os Korubo utilizando a estrutura da Funai, ele responde: “E daí se for, qual o problema?”.40 40 A servidora Idnilda Obando relatou a tentativa de Dias Lopes de entrar, juntamente com outros missionários, na Terra Indígena Vale do Javari, em ofício (43/2020) encaminhado por ela ao Ministério Público Federal e à Diretoria de Proteção Territorial da Funai. (O Globo, Rio de Janeiro, 24 set. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ brasil/coordenador-da-funai-tentou-quebrar-quarentena-indicou-missionarios-para-area-de-indios-isolados-diz-chefe-de-protecao-no-vale-do-javari-24657614. Acesso em: 29 jun. 2020). A permanência de Dias Lopes na CGIIRC perdurou por nove meses, mas a sua exoneração não significou uma mudança da política indigenista bolsonarista, tampouco o enfraquecimento das missões transculturais no governo.41 41 Recordemos que outras esferas do governo, também ocupadas por pastores e missionários evangélicos, interagem com o indigenismo. Além da pasta chefiada por Damares Alves, temos o Ministério da Justiça, comandado por André Mendonça, e o Ministério da Educação, por André Ribeiro, ambos pastores presbiterianos. O presidente Bolsonaro já indicou um nome para uma vaga no STF simpático às causas evangélicas. Kassio Nunes Marques substitui Celso de Mello e atuará em decisões importantes da suprema corte sobre os direitos indígenas. Ao que parece, a vaga de Marco Aurélio Mello, que se aposenta, será ocupada pelo pastor André Mendonça, que deverá abandonar o Ministério da Justiça para ser o membro “terrivelmente evangélico” do STF, como promete Bolsonaro a seus aliados. Ainda em julho de 2021 foi noticiado que o tenente da reserva do Exército Henry Charles Lima da Silva, coordenador da Funai no Vale do Javari, incentivou os Marubo a atirarem contra os índios isolados da região e prometeu, ele mesmo, neles atear fogo.42 42 A fala deste agente da Funai está registrada em áudio e foi fartamente noticiado pela imprensa. A título de exemplo, cito o artigo publicado em Folha de S. Paulo (24 jul. 2021). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/tenente-do-exercito-coordenador-da-funai-fala-em-meter-fogo-em-indigenas-isolados-no-am-ouca-audio.shtml Acesso em 24/07/2021. Bolsonaro a seus aliados.

OUTRAS AÇÕES DO INDIGENISMO BOLSONARISTA

Sem poder rever as demarcações já homologadas, um antigo sonho dos segmentos ruralistas e do agronegócio a datar dos anos 1980, o indigenismo bolsonarista cuida para que nenhuma nova demanda territorial seja atendida. O governo identifica, corretamente, o território como o pilar central dos direitos indígenas, no entorno do qual se materializa o exercício da diferença e diversas políticas públicas dirigidas a essas populações. A sua política de não demarcação permitiu a obstrução do fluxo burocrático dos processos no âmbito da Funai ou do Ministério da Justiça, afetando centenas de territórios que se encontram em algum estágio das etapas anteriores à homologação de uma Terra Indígena.43 43 A obstrução na demarcação de Terras Indígenas não é algo inédito, mas ganha uma magnitude extraordinária sob Bolsonaro. Este governo supera o recorde do governo Temer, que demarcou apenas uma TI. Os governos do Partido dos Trabalhadores também demarcaram poucas terras, em comparação aos governos Fernando Henrique e Collor, como nos revela o placar das demarcações do Cimi (https://cimi.org.br/terras-indigenas/). O governo Dilma Roussef, depois de Bolsonaro e Temer, foi o que menos demarcou desde o fim da ditadura militar. Assirati e Moreira (2019) descrevem a estratégia de “embargo das Terras Indígenas” de Dilma, que paralisava os processos até que todo e qualquer conflito fundiário fosse resolvido em mesa de negociação. O Cimi, por sua vez, denunciou que a constituição de Grupos de Trabalho para iniciar novos processos de reconhecimento territorial pela Funai estaria submetida à aprovação direta de Dilma.

O Ministério Público Federal identificou uma “política estruturada” de obstrução administrativa nos processos de demarcação, caracterizada não apenas pela paralisação injustificada dos procedimentos normativos previstos como também pelo recuo desses processos a etapas anteriores (Rufino, 2022RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.). A asfixia financeira da Funai e a não contratação de servidores são outras estratégias importantes do governo para inviabilizar a atuação do órgão indigenista. O Cimi já apontou a baixa execução no orçamento da Funai para o primeiro semestre de 2020, redução que afeta principalmente as atividades de proteção e regularização fundiária (Santana e Miotto, 2020SANTANA, Renato; MIOTTO, Tiago. 2020. “Com apenas 0,02% do orçamento da União, valor gasto pela Funai até junho é o mais baixo em dez anos”. Porantim, Conselho Indigenista Missionário, jun/jul 2020, Brasília: Cimi .). Mais de 90% de seu orçamento foi contingenciado no início de 2019, provocando a desativação de postos e coordenações em áreas indígenas (Barros, 2019BARROS, Ciro. 2019. “Operando com 10% do orçamento, Funai abandona postos e coordenações em áreas indígenas”. Pública - Agência de Jornalismo Investigativo. 25/03/2019. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2019/03/operando-com-10-do-orcamento-funai-abandona-postos-e-coordenacoes-em-areas-indigenas/#Link1 Acesso em: 17 maio 2021.
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). Além do sucateamento dos aparelhos internos do órgão indigenista, essa asfixia financeira resulta na não renovação de servidores mais antigos, o que prejudica a memória institucional da Funai e ameaça a manutenção de um repertório importante de conhecimento e saberes sobre os povos indígenas (Assirati e Moreira, 2019ASSIRATI, Maria Augusta; MOREIRA, Luís Gustavo Guerreiro. 2019. O Estado anti-indígena: da colônia ao novo golpe. Tensões mundiais, vol. 15, n. 29: 97-118. DOI 10.33956/tensoesmundiais.v15i29.2079
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:11).44 44 A baixa contratação de servidores para o órgão indigenista também pode ser observada em governos anteriores, como denunciam há muito o Conselho Indigenista Missionário, o Instituto Socioambiental e organizações indígenas importantes, como a Apib, Coiab e Foirn. Há uma década, a Funai já funcionava com apenas um terço dos quadros necessários para a execução de sua tarefa e vimos o governo Dilma ser questionado pelo Tribunal de Contas da União em razão dos poucos concursos públicos abertos para o preenchimento de posições na Funai. Uma tática suplementar posta em marcha pelo Executivo federal para dificultar o andamento no fluxo demarcatório foi a mudança frequente no quadro de servidores e Grupos de Trabalho responsáveis pelos estudos de delimitação.

O apoio ao Projeto de Lei 490/2007, que institucionaliza a tese do “marco temporal” é outra frente de ação do governo para impedir o reconhecimento das Terras Indígenas pelo Estado.45 45 Discutimos melhor o apoio do governo ao projeto em Rufino (2022). O “marco temporal” estabelece que a demarcação só pode ser feita sobre áreas que estivessem comprovadamente ocupadas por populações indígenas até 05/10/1988 (data de promulgação da Constituição). Trata-se de uma iniciativa antiga do legislativo, apoiada sobre um movimento do STF que procurou dirimir alguns dos conflitos suscitados pela demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em 2005.46 46 Para uma análise das posições do STF sobre o tema, ver Dan e Assis (2020). Desde então, ela tem sido objeto de defesa incessante da bancada ruralista, de outros setores anti-indígenas, e do próprio Jair Bolsonaro, quando ainda era deputado federal. Para as forças do anti-indigenismo essa tese é um instrumento precioso para paralisar a concessão de novos territórios aos povos indígenas, deixando livres para a exploração econômica uma quantidade significativa de terras em situação de litígio ou que se encontrem em alguma das etapas do processo demarcatório que não a homologação pela Presidência da República. Governos anteriores já apoiaram, mesmo que de forma hesitante, o “marco temporal”, como podemos ver em manifestações de lideranças políticas importantes dos governos Lula e Dilma.47 47 A título de exemplo, citamos o ex-deputado federal Aldo Rebelo, que ocupou, nos governos petistas, a posição de presidente da Câmara dos Deputados e de ministro em diversas pastas (Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais, Ministério do Esporte, Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e Ministério da Defesa). Oriundo do PC do B, Rebelo manifestou em diversas entrevistas e pronunciamentos a sua defesa do “marco temporal” e a preocupação com o perigo representado pelas Terras Indígenas à soberania nacional. Em seu livro Raposa Serra do Sol - O índio e a questão nacional, publicado em 2010, temos a reunião de diversos de seus textos que expõem uma interpretação comum a muitos outros dentro do governo. Lembremos também que os governos petistas contaram com figuras proeminentes do anti-indigenismo nacional, como os senadores Romero Jucá (líder dos governos Lula e Dilma no Senado Federal, além de ministro da previdência no governo Lula) e Kátia Abreu (ex-líder da bancada ruralista e ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária), para nos atermos a apenas dois exemplos.

Uma ação inédita na política indigenista de Bolsonaro é a declaração de “desinteresse”, pela Funai, sobre os casos de litígio territorial envolvendo comunidades indígenas e ocupantes não indígenas. Trata-se da recusa deliberada do órgão em defender os direitos indígenas em terras ainda não homologadas e que sejam objetos de liminar na justiça. Como analisado anteriormente (Rufino, 2022RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.), o Estado sujeita essas comunidades a possibilidade de serem despejadas em ações de reintegração de posse, posicionando o órgão indigenista em uma situação contrária à sua missão institucional, que é a de atuar em nome da União em defesa dos indígenas.48 48 O Cimi exemplifica estas situações nos casos que envolvem os Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul (Santana, 2019a), e os Kaingang, da Terra Indígena Palmas, no Paraná (Santana, 2019b). Em ambas as situações, a Funai retrocede nas ações que, em governos anteriores, ela impetrou a favor do reconhecimento dos direitos desses grupos, pedindo formalmente à justiça a rescisão de suas ações anteriores. Por mais que governos anteriores, a contar do mandato de José Sarney, iniciado em 1985, tenham assumido posições hesitantes e mesmo contrárias aos direitos indígenas, essa é a primeira vez que a Funai se coloca em uma condição de prevaricação, por não praticar atos de sua incumbência direta.

Um movimento importante da política indigenista bolsonarista é o esforço em flexibilizar as possibilidades de uso das Terras Indígenas, como se vê no PL 191/2020, que extingue, em termos práticos, o usufruto exclusivo dos indígenas sobre o solo, rios e lagos, tornando possíveis empreendimentos econômicos externos como o arrendamento de terras para a monocultura agrícola, a instalação de usinas hidrelétricas, a pecuária intensiva e em larga escala, o turismo e outros. De modo criativo, o governo age combinando mais de três dezenas de propostas legislativas apresentadas ao Congresso pelos segmentos anti-indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988. Cuidadosamente gestado por Grupo de Trabalho que envolve a Funai, a Casa Civil, o Ministério de Minas e Energia e o Programa de Parcerias e Investimentos, o PL 191/2020 desfigura os dispositivos legais de proteção das Terras Indígenas e ignora a obrigatoriedade da já consagrada “consulta prévia, livre e informada”, tópico central da Convenção 169 da OIT.49 49 Discutimos mais em detalhe esse Projeto de Lei em Rufino, 2022. Lá, destacamos igualmente que o desrespeito aos princípios da Convenção 169 da OIT não é algo inédito nos governos brasileiros desde que o país ratificou a convenção, em 2002. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, iniciada em 2011, é um exemplo de obra de infraestrutura de grande porte que ignorou a posição dos grupos indígenas afetados. De acordo com lideranças indígenas e organizações como o Instituto Socioambiental e o Conselho Indigenista Missionário, as audiências públicas realizadas pelo empreendimento estiveram longe de atender aos requisitos básicos da Convenção 169. Esse projeto de lei permite também a mineração do subsolo e, o que talvez seja mais chocante, a atividade de garimpo feita por terceiros, tornando as Terras Indígenas um eldorado livre para novos agentes econômicos, nacionais e estrangeiros, e para os segmentos que há anos assediam os povos indígenas em investidas ilegais.50 50 Há uma farta e longeva literatura antropológica sobre os impactos do garimpo sobre os povos indígenas em todo o país e seria impossível listá-los aqui. O tema do garimpo já era explorado no 4º “Caderno” da Comissão Pró-Índio de São Paulo e esteve presente também em todos os volumes da série Aconteceu - Povos Indígenas no Brasil, do antigo Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), cujo programa Povos Indígenas é parte hoje do Instituto Socioambiental, todos publicados no início dos anos 1980. Um texto célebre por tratar das representações dessa atividade entre os indígenas é “La fumée du métal”, de Bruce Albert (1988), que aborda o garimpo entre os Yanomami. Citamos, a título de exemplo, um trabalho sobre os Yanomami porque eles talvez constituam os grupos indígenas mais afetados pelo garimpo. A intrusão de milhares de garimpeiros em suas terras em meados dos anos 1980 voltou a se repetir agora, no atual governo. Desde 2019, as intrusões têm crescido e atingiram o número de mais de 20 mil garimpeiros em 2021 (BBC News Brasil, 2022). O Projeto de Lei ainda prevê o cultivo de organismos geneticamente modificados nas TIs, almejando não apenas tornar os indígenas produtores rurais, mas campeões da produção agrícola nacional. O cultivo de OGMs colocaria em risco a grande variedade de sementes tradicionalmente utilizadas por essas populações, impactando diretamente, por conta da redução das variedades crioulas, a capacidade das espécies nativas de se adaptar às mudanças ambientais do entorno, privando as Terras Indígenas de seu papel crucial na manutenção da biodiversidade.51 51 O lugar das Terras Indígenas, juntamente com as Unidades de Conservação da Natureza, na proteção da diversidade biológica serviu de apoio à Lei 11.460/2007, que proíbe os OGMs nesses territórios. Os povos indígenas tornariam-se reféns das corporações multinacionais detentoras das patentes das sementes, e também dependentes dos aditivos e agrotóxicos específicos para cada “produto”.52 52 A especialista em biodiversidade do ISA, Nurit Bensusan (ISA, 2020a), coloca em evidência um outro aspecto nocivo da introdução de OGMs nesse contexto, que é a possível homogeneização de práticas e modos de vida resultantes de uma mesma forma de cultivo e alimentação. O argumento bolsonarista de que os indígenas são brasileiros como todos os outros e que a diferença é uma construção de antropólogos e ONGs ganharia então um importante ponto de apoio.

A predação ao pequeno número envolve também a desidratação dos povos indígenas enquanto minorias, pois o governo propõe um novo paradigma para o reconhecimento da diferença: os indígenas, doravante, são apenas aqueles que vivem em Terras Indígenas homologadas. A recusa em enxergar os grupos indígenas nas cidades ou em territórios não homologados é ilegal pois fere não apenas a Constituição Federal, mas os tratados dos quais o Brasil é signatário e que estabelecem as formas de reconhecimento dos povos indígenas pelos Estados nacionais. São deixados de fora da política indigenista ao menos 40% da população indígena do país, que, segundo o Censo Demográfico de 2010, vive fora de áreas demarcadas. O número é certamente maior, pois o governo ignora que os territórios demarcados que ainda não atingiram a etapa da homologação são Terras Indígenas, como dispõe a Carta Magna.

De modo congruente com esse temor e raiva pela diferença, o indigenismo bolsonariano silencia organizações e lideranças indígenas do modo que pode. Os mecanismos de controle social que permitem aos indígenas agir sobre a política indigenista oficial, constituídos após a Constituição de 1988, foram desmantelados de maneira célere, já no início do novo governo. Para comemorar os seus 100 primeiros dias, Bolsonaro assina um decreto, o de número 9.759, cujo efeito é a extinção de centenas de coletivos sociais que reuniam representantes da sociedade civil (em grande parte minorias) junto a membros do governo e o fim da Política Nacional de Participação Social, que desde 2014 buscava estratégias e soluções para aprimorar a participação popular nas políticas públicas. O que para a direita conservadora bolsonarista era uma festa de aniversário, para as minorias sociais era uma solenidade fúnebre. Povos indígenas, mas também LGBTQIA+, pessoas em situação de rua, com deficiência, submetidas a trabalho escravo, idosos, ambientalistas e ativistas dos direitos humanos perdem, a partir de então, os canais de comunicação direta com a gestão federal e toda a possibilidade de atuar na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas dirigidas a eles. No campo do indigenismo, espaços importantes deixam de existir, como o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena e o Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi). Assim, indígenas e outras minorias são proibidos de frequentar a Esplanada dos Ministérios e o Palácio do Planalto, sendo então empurrados para longe das vistas do Executivo federal.

DISJUNÇÕES E “PAISAGENS” DO FUNDAMENTALISMO SOB BOLSONARO

A constituição das forças conservadoras que compõem e apoiam o governo, mormente no caso das organizações evangélicas, sinaliza a necessidade de realizarmos algumas permutas e inversões na leitura e argumento de Appadurai, forçando assim os limites de seu modelo analítico. A oposição e tensão entre formas de circulação vertebrada e formas de circulação celular estão no centro da produção da ansiedade que, segundo o autor, torna as minorias bodes expiatórios para problemas de diversas ordens. A circulação vertebrada se manifesta no Estado-nação, ao passo que a circulação celular se realiza por meio das minorias. No governo Bolsonaro, contudo, temos elementos novos que trazem, à teoria, novas disjunções e assimetrias. Primeiramente porque não temos todo o Estado-nação comprometido com um mesmo projeto, mas uma parte importante dele, o Executivo federal, em uma situação de disputa com os outros poderes que, até o momento, se mostram comprometidas com a Constituição de 1988 e seu princípio de proteção das minorias. O Executivo federal, por sua vez, foi tomado por forças que afirmam a universalidade de sua visão de mundo e se apresentam como representantes da essência nacional brasileira, mas que não deixam de constituir, eles próprios, um grupo, uma comunidade no interior da nação.

Além disso, os evangélicos pentecostais e neopentecostais, mas também os grupos católicos ultraconservadores, integram redes transnacionais que operam nos termos daquilo que Appadurai qualifica como estruturas de circulação celular, confundindo-se com as minorias que procuram combater. A título de exemplo, a cartografia dos povos não alcançados que serve de base para o trabalho das missões de fé é produzida nessa circulação celular e envolve os esforços de agentes espalhados pelo globo, vinculados a agências e organizações interdenominacionais multinacionais. A Ethnos360, a Youth with a Mission, a Summer Institute of Linguistics International, e a Finishing the Task são exemplos de agenciamentos que se movimentam em fluxos globais, mas que, dentro de cada país onde atuam, tentam se “vertebralizar” ocupando espaços críticos no interior do Estado (Diamond, 1989DIAMOND, Sara. 1989. Spiritual warfare - the politics of the Christian right. Boston, MA: South End Press.). Algumas dessas organizações têm a tarefa direta de fazer isso acontecer, atuando junto aos partidos, ao parlamento e órgãos da administração federal, como o Capitol Ministries. Sob um outro ângulo, o Estado-nacional, que nos contextos estudados por Appadurai se vê como objeto de ataques das minorias, aqui se vê sitiado pela rede de agências conservadoras cristãs.

Esse transnacionalismo da direita conservadora cristã coloca em suspeita o ideário de autonomia e independência nacional propalado pelo presidente Bolsonaro e afirmado em contraposição ao internacionalismo esquerdista por trás das minorias. Não seriam apenas as minorias indígenas, portanto, a participar de uma extensa rede mundializada, cuja trama envolve organismos externos, outros Estados nacionais, e interesses gestados fora de nossas fronteiras. O alinhamento incondicional e um tanto subserviente do governo brasileiro aos Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, corrobora a materialidade dessa rede conservadora evangélica e também contradiz o discurso de soberania e liberdade plena do projeto político bolsonarista.

Todavia, se esse evangelismo fundamentalista, acolhido pelo Estado, nos obriga a fazer ajustes no argumento de Appadurai em Fear of small number, o mesmo não se faz necessário quando relacionamos a prática desses agentes a um outro trabalho do autor. Em “Disjuncture and difference in the global cultural economy” (1990APPADURAI, Arjun. 1990. Disjuncture and difference in the global cultural economy. Theory, culture & society, vol. 7, n. 2-3: 295-310. DOI 10.1177/026327690007002017
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), Appadurai propõe observar o mundo globalizado a partir de um conjunto assimétrico e disjuntivo de fluxos heterogêneos, onde percebemos a circulação de pessoas, ideias, recursos financeiros, tecnologias e conteúdo de mídia. As relações não isomórficas e muitas vezes tensas entre esses fluxos, ou “paisagens”, sustentam o campo cultural contemporâneo, revelando-nos um quadro complexo das trocas culturais e da circulação dos agentes e seus objetos por um mundo de fronteiras cada vez mais precárias. É inequívoco que a natureza transnacional dos aparelhos missionários fundamentalistas que passaram a ocupar a política indigenista brasileira atravessa essas dimensões da mundialização. Vemos em um primeiro plano o repertório comum de noções teológicas, constituindo um “ideoscape”, que exige a propagação da “verdade revelada” por todos os cantos da Terra e a conversão de todos os povos ao Deus de Abraão, condição sine qua non para o tão aguardado retorno do messias. A tarefa de conversão exige a circulação física dos agentes missionários pelas fronteiras dos Estados-nação em um “ethnoscape” que, em função da história particular do trabalho missionário em cada localidade, se mostra também assimétrico, como vemos em países da América Latina, África e Ásia e mesmo no interior de um mesmo país, como o Brasil. Aqui, temos a ocorrência simultânea das diversas “ondas” da missionação evangélica, com alguns grupos indígenas sendo assediados por missionários estrangeiros (primeira onda), outros sendo evangelizados por brasileiros (segunda onda) e alguns outros sendo alvo da ação de missionários indígenas (terceira onda).53 53 O Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei) reúne estes missionários nativos que simbolizam uma vitória importante para as missões transculturais, cuja meta é a constituição de igrejas indígenas autônomas e autossustentadas em cada nação indígena do planeta. “Em cada povo uma igreja genuinamente indígena” é um lema não apenas da Conplei, mas das muitas missões transculturais filiadas à AMTB.

Cartilhas, materiais didáticos e bíblias traduzidas circulam nesses fluxos de missionação transnacional, formando um “mediascape” de peso e extensão também irregulares, mas de importância crítica na tarefa de evangelização dos povos não alcançados. Nos últimos anos, essa “paisagem de media” missionária passou a incorporar as ferramentas digitais presentes na Internet, como blogs, portais, canais do YouTube, redes sociais e cursos online que se retroalimentam e colaboram para a rápida circulação dos conteúdos da “ideoscape”. De maneira também disjuntiva, e algumas vezes inconstante, recursos financeiros percorrem a rede dos aparelhos missionários, formando um “financescape” complexo que mobiliza, por sua vez, outros atores e agências, dispostos em uma situação de proximidade variável em relação às missões transculturais.54 54 A origem dos recursos financeiros que apoiam a prática de evangelização entre os indígenas expressa a complexidade e irregularidade dessa dimensão, ou “paisagem”, do fluxo missionário transnacional. Entre essas fontes de recursos, temos as igrejas e denominações religiosas, agências interdenominacionais de apoio ao trabalho de base missionário, organismos e empresas simpáticas ao conservadorismo cristão dessas missões e mesmo programas governamentais, como o “Pátria Voluntária”, do governo federal brasileiro. Tecnologias as mais variadas também participam dos fluxos que envolvem o trabalho missionário, como os sistemas de georeferenciamento utilizados na cartografia dos lugares a serem alcançados, os bancos de dados sobre as populações a serem evangelizadas, os instrumentos de comunicação em campo, os meios de deslocamento nos territórios indígenas e outros dispositivos. Grupos como Asas de Socorro (ADS), Jungle Aviation and Radio Service (Jaars) e Mercy Ships são exemplos dessa “technoscape” apostólica de alcance planetário. Podemos argumentar que estes fluxos e dimensões das forças missionárias cristãs evangélicas atravessam o Brasil, mas constituem sobretudo uma vasta rede de extensão global, contribuindo a seu modo para a instituição do que Appadurai entende ser um “mundo imaginado”.55 55 Em diálogo direto com a análise de Benedict Anderson (1983), Appadurai entende que as tensões entre os processos de globalização e a realidade do Estado-nação nos força a viver não apenas no interior de “imagined communities”, mas também em “imagined worlds”.

IDENTIDADES PREDATÓRIAS

Ao se colocar a tarefa de pensar as razões pelas quais pequenas minorias estão frequentemente na mira da violência e do ódio, Appadurai observa o quão misterioso é o fato de que grupos frágeis, pequenos e indefesos despertem a fúria, e ao mesmo tempo o temor, de comunidades muito maiores em tamanho, força e recursos. A resposta ao enigma, diz ele, deve estar na ameaça que o pequeno número realiza às narrativas de poder e controle daqueles que se pensam como maioria.56 56 Maioria e minoria, lembra Appadurai, são categorias de invenção recente, surgidas no contexto de formação das grandes concentrações urbanas após a revolução industrial e a datar do desenvolvimento de técnicas e procedimentos administrativos modernos, como o mapeamento da população e a realização de levantamentos censitários. O autor nos apresenta como perigosa a associação ou o aparentamento entre uma grande comunidade, com pretensões de totalidade, e a figura de um ethnos nacional como base do Estado-nação. Trata-se de uma ideia perigosa pois ela produz, no mundo real, um abismo entre duas categorias que se supõe equivalentes: a nação como comunidade identitária e a nação como agregado numérico e populacional. As minorias existem na zona cinzenta entre uma e outra; fazem parte do agregado, mas não compõe o ethnos; participam de uma humanidade abstrata, mas não dos limites da cidadania. Por isso, expressam a disjunção conceitual entre a maioria e a pureza ou entre a maioria e a totalidade.

O medo, e ódio, ao pequeno número, diz Appadurai, se manifesta comumente no entorno de categorias étnicas e identidades religiosas, e o caso da política indigenista brasileira afinada com o programa das missões evangélicas transculturais é um exemplo disso. No indigenismo bolsonariano, vemos um movimento discursivo que tenta indexar o indivíduo cristão, conservador e patriota ao “brasileiro” comum, figura padrão de uma comunidade de iguais, situado em oposição a um “outro” que reúne atributos contraditórios mas que devem ser igualmente combatidos; os povos indígenas são manipulados e abusados por forças externas, mas também são perigosos e ameaçadores. Nos discursos de Bolsonaro e seus parceiros de governo, a nação é uma “maioria” de pessoas para quem Deus está “acima de tudo”, mas cujo domínio se vê ameaçado por narrativas que celebram a diversidade e por minorias indígenas que, por existirem, afirmam a todo instante a disjunção entre o brasileiro cristão e a totalidade almejada. Nesse sentido, o bolsonarismo apoia-se, ao menos no campo do indigenismo (mas talvez além dele), em uma identidade predatória, que exige das populações indígenas que se integrem à sociedade nacional, tornando-se cristãos, produtores rurais e parceiros do garimpo, mineração e outras atividades econômicas que possam ser feitas em suas terras. Não interessa à nova política indigenista a maneira como cada grupo concebe o lugar em que vive ou a maneira como utiliza o território, nem tampouco as suas práticas simbólicas, mitos e formas rituais.

O presidente Jair Bolsonaro demonstrou mais de uma vez o seu encanto pelo agora ex-presidente americano Donald Trump que, como ele, foi apoiado por grupos evangélicos conservadores e cuja administração foi também marcada pelo ódio às minorias. Antes dele, outro personagem público norte-americano já encantou o presidente brasileiro: Philip Sheridan, general do exército nas Guerras Indígenas dos Estados Unidos e protagonista do massacre de diversos povos nativos daquele país. “Índio bom é índio morto”, frase supostamente dita por Sheridan57 57 A participação decisiva de Sheridan na guerra travada contra os povos indígenas americanos é um fato fartamente documentado, mas ele negou ter dito a frase comumente associada à sua biografia: "The only good Indians I ever saw were dead". As declarações de Bolsonaro sobre os indígenas, entretanto, estão registradas em dezenas de periódicos da imprensa brasileira e internacional. , ecoa o feitio discursivo de Bolsonaro e o seu desejo de uma pátria idealmente uniforme. Em pronunciamento no Congresso Nacional, em abril de 1998, ele fez questão de homenageá-lo: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus indígenas no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.58 58 Pronunciamento de Jair Bolsonaro, quando deputado federal pelo PPB (atual PP), em 15 de abril de 1998. Mais do que saudar o extermínio dos indígenas americanos, Bolsonaro lamenta que a cavalaria brasileira não tenha tido a mesma maestria e que, por conta disso, estejamos à volta com a alteridade indígena no presente. Para ele, caberia aos patriotas cristãos e conservadores resistir à luta das minorias por visibilidade e direitos. O governo do mito veio, em nome de Deus, conflagrar uma guerra à diferença, seja em qual ordem ela se manifeste, sonhando um futuro em que a floresta dê lugar ao pasto e que os povos indígenas não sejam mais do que objetos do folclore e do passado.

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  • RUFINO, Marcos Pereira. 2013. “Águas da discórdia: a transposição das águas do Rio São Francisco e as mudanças de curso da missão indigenista católica”. Revista de Antropologia , vol. 56, n. 1: 15-44. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2013.64459
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  • RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.
  • SANTANA, Renato. 2019a. “Alegando ‘desinteresse’, Funai desiste de processo no TRF-4 contra reintegração de posse da TI Palmas”. Portal do Conselho Indigenista Missionário, 6 nov. 2019, Brasília: Cimi. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2019/11/alegando-desinteresse-funai-desiste-de-processo-no-trf-4-contra-reintegracao-de-posse-da-ti-palmas/ Acesso em: 18 maio 2021.
    » https://cimi.org.br/2019/11/alegando-desinteresse-funai-desiste-de-processo-no-trf-4-contra-reintegracao-de-posse-da-ti-palmas/
  • SANTANA, Renato. 2019b. “Funai desiste de ação que mantém indígenas em Ñande Ru Marangatu - GT sofre interferência e portarias isolam aldeias”. Portal do Conselho Indigenista Missionário, 2 dez. 2019, Brasília: Cimi . Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2019/12/funai-desiste-de-acao-que-mantem-indigenas-em-nande-ru-marangatu-gt-sofre-interferencia-e-terras-declaradas-deixam-de-ser-atendidas/ Acesso em: 18 maio 2021.
    » https://cimi.org.br/2019/12/funai-desiste-de-acao-que-mantem-indigenas-em-nande-ru-marangatu-gt-sofre-interferencia-e-terras-declaradas-deixam-de-ser-atendidas/
  • SANTANA, Renato; MIOTTO, Tiago. 2020. “Com apenas 0,02% do orçamento da União, valor gasto pela Funai até junho é o mais baixo em dez anos”. Porantim, Conselho Indigenista Missionário, jun/jul 2020, Brasília: Cimi .
  • SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. 2015. “Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, século XX/XXI”. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 21, n. 2: 425-457. DOI 10.1590/0104-93132015v21n2p425.
    » https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425
  • VALENTE, Rubens. 2017. Os fuzis e as flechas: a história de sangue e a resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 1
    Devo um agradecimento especial aos/às pareceristas deste artigo pelas sugestões que fizeram, permitindo-me tornar o texto mais claro e a tratar de questões negligenciadas em sua versão original.
  • 2
    "O índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro. Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro, para talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí". Declaração de Bolsonaro à imprensa, pouco após à sua eleição à presidência da república, em Cachoeira Paulista, (SP), 30 nov. 2018.
  • 3
    Os ataques aos direitos indígenas, conquistados sobretudo na Constituição de 1988, não são novos e não se limitam ao espectro da direita bolsonarista. Discuti alhures (Rufino, 2022RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.) que esses ataques estiveram presentes desde o processo constituinte, como vemos no testemunho ocular de Carneiro da Cunha (2018)CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2018. Índios na Constituição. Novos estudos Cebrap, vol. 37, n. 3: 429-443. DOI 10.25091/S01013300201800030002
    https://doi.org/10.25091/S01013300201800...
    , e se estenderam por todo o período posterior. Além da ação conhecida de parlamentares vinculados à bancada ruralista (somada aos parlamentares que representam os interesses de outros setores econômicos, como a mineração, a indústria da infraestrutura e as igrejas evangélicas), tivemos ações anti-indígenas em todas as forças políticas que comandaram o Executivo federal a datar do governo de Fernando Collor de Mello. Mesmo os governos mais à esquerda do Partido dos Trabalhadores frustraram as expectativas do movimento indígena organizado e das organizações parceiras da causa indígena. Falaremos sobre isso mais à frente.
  • 4
    Appadurai faz uso frequente deste conceito, proposto inicialmente pelo antropólogo britânico Ernest Crawley, mas tornado famoso por Freud, em O mal-estar na civilização, escrito em 1929.
  • 5
    Um dos pareceres a este artigo observou que a escalada de ataques aos direitos indígenas ocorre exatamente após o momento em que o Estado dá passos importantes na superação de lacunas históricas e na concessão de direitos a essas populações, o que seria um paradoxo frente ao argumento de Appadurai acerca de seu enfraquecimento. Isso nos permite explorar melhor um aspecto no raciocínio do autor que, muitas vezes, se vê num certo “ponto cego” frente a esta discussão. Para Appadurai, a redução da capacidade do Estado em controlar a sua economia, com o fortalecimento dos mercados internacionais, ou mesmo a circulação em suas fronteiras, não é contraditória com sua ação no âmbito da proteção de direitos relativos à diferença. Ao contrário, ele se torna mais suscetível a essas demandas exatamente pelo fortalecimento das estruturas de circulação política celular, mais facilmente associadas aos processos transnacionais. O ódio se associa então à percepção de que o Estado esteja, não ausente, mas sendo atravessado por forças e interesses externos ao focar sua atenção sobre os direitos de minorias.
  • 6
    “Agora, veja, na Bolívia temos um índio que é presidente. Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?” Declaração de Bolsonaro, ainda em Cachoeira Paulista (SP), em 30 nov. 2018.
  • 7
    Em uma análise da reconfiguração do campo político-identitário no país, Letícia Cesarino (2019CESARINO, Letícia. 2019. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3: 530-557. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    : 541) argumenta que as estratégias discursivas da direita conservadora bolsonarista é cautelosa ao explorar o tema da diferença nas mídias digitais, que se tornaram palco importante da ação política após a universalização do uso do smartphone e do Whatsapp: “Não por acaso, a fama original de Bolsonaro como misógino, racista e homofóbico reproduz ponto a ponto os marcadores da diferença privilegiados pelas políticas de identidade no Brasil e alhures: gênero, raça e orientação sexual. Durante a campanha, a memética bolsonarista mobilizou todos estes, de modo central, enquanto inimigos - porém, teve o cuidado de traçar a fronteira antagonística não entre brancos e negros, homens e mulheres, ou heteros e gays, mas entre a militância feminista, LGBT e do movimento negro e os ‘cidadãos de bem’. Assim, brasileiros negros, pardos, gays ou mulheres que não tinham um investimento especial na gramática identitária das políticas de reconhecimento (podemos supor, uma maioria) puderam ter seu pertencimento mobilizado pela cadeia de equivalência do bolsonarismo, que operou com significantes vazios como ‘brasileiros’, ‘trabalhadores’, ‘cidadãos de bem’ ou ‘patriotas’.”
  • 8
    Para Cesarino (2019)CESARINO, Letícia. 2019. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3: 530-557. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    , a comunicação desta direita conservadora logra realizar inversões importantes na maneira como as minorias são apreendidas por aqueles que se sentiram excluídos do jogo político ao longo dos últimos anos, em que o país avançou na promoção de “políticas da identidade”. Expressões como “ditadura gay” e “feminazi” são exemplos da ressignificação das minorias como forças “opressoras”.
  • 9
    Entre os exemplos explorados por Appadurai, temos as minorias muçulmanas na Índia e em outras partes, comumente acusadas por governos nacionalistas de serem a ponta de lança de uma força exterior ambiciosa e calculista, conspirando sempre contra a soberania territorial dos Estados onde residem.
  • 10
    “Não tem Terra Indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio”. Fala do presidente ao portal Campo Grande News, 22 abr. 2015.
  • 11
    Uma dessas notícias circulou fartamente desde o ano 2000, em um momento em que a Internet se expandia a passos largos no país. Tratava-se da fotocópia de um suposto livro didático utilizado em escolas dos Estados Unidos que mostrava o mapa da América do Sul com a região amazônica descrita como “território internacional”, separado do Brasil. A Câmara dos Deputados chegou a fazer um requerimento formal ao então ministro de relações exteriores, Luiz Felipe Lampreia, para que desse informações sobre o episódio. O senador Mozarildo Cavalcante, da bancada ruralista de Roraima, fez uma declaração, em novembro de 2001, denunciando o “atentado à soberania do país” e se referindo ao mapa como um "processo inteligentemente armado para anestesiar as camadas formadoras de opinião e evitar reação". O embaixador dos Estados Unidos no país, Anthony Harrington, precisou, mesmo com o ridículo da situação, declarar que a floresta amazônica pertence ao Brasil e que a notícia, além de falsa, era hilária.
  • 12
    Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por meio do satélite Aqua M-T da agência espacial norte-americana, 345 Terras Indígenas foram alvos de 16.680 focos de queimadas em 2019, número muito superior aos 8.942 focos no ano anterior. No país inteiro, foram 197.632 focos de incêndio em 2019 contra 132.872 em 2018. As queimadas nas Terras Indígenas, no primeiro ano do governo Bolsonaro, foi 19% maior do que a média dos dez anos anteriores. É preciso observar ainda que estes dados dizem respeito às terras já demarcadas, o que deixa de fora um grupo de mais de 500 terras reivindicadas, mas cujos processos de identificação ou delimitação cartográfica não foram iniciados pela Funai.
  • 13
    O discurso do presidente francês foi veiculado em diversos portais de notícia e veículos de imprensa. Um trecho de sua fala pode ser visto na matéria do mesmo dia, produzida por portal G1: https://g1.globo.com/ mundo/noticia/2019/08/26/ questionado-sobre-status-internacional-da-amazonia-macron-diz-que-pode-ser-uma-questao-se-algum-pais-tomar-medidas-contra-o-planeta.ghtml Acesso em 11 dez. 2022.
  • 14
    “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas.”
  • 15
    Cesarino (2019CESARINO, Letícia. 2019. Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3: 530-557. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    : 534), apoiada em uma perspectiva cibernética (Gregory Bateson), mostrou como o episódio do atentado a Bolsonaro em plena campanha eleitoral à presidência foi mobilizado na construção de um “corpo digital do rei” que serve de metáfora da nação: “o mecanismo do populismo digital não colocou em relação líder e povo enquanto sujeitos políticos preexistentes, mas os (re) constituiu enquanto tais: num sentido bastante concreto, o líder Bolsonaro era esse corpo digital, e não existiria sem ele. O atentado a faca consumou o processo em que corpo do líder e corpo político - relação de equivalência amplamente ancorada na simbologia da nação brasileira - tornaram-se metáforas um do outro: o corpo (Bolsonaro, o Brasil) foi ferido e está sob ameaça; é preciso união e pronta ação para defendê-lo do inimigo comum (a corrupção, a esquerda, etc.)”.
  • 16
    O governo Michel Temer (MDB) já nomeara um pastor, Antônio Fernandes Toninho Costa, para conduzir a Funai, em 2017. Contudo, este pastor, indicado pelo PSC, sigla que abriga diversos parlamentares ruralistas, não escancarou as portas do órgão indigenista oficial aos missionários evangélicos como era de se esperar. Quatro meses depois de sua posse, ele foi exonerado a pedido do próprio partido após se negar a nomear mais de 20 nomes alheios ao indigenismo em posições importantes da Funai.
  • 17
    Ronaldo de Almeida (2002)ALMEIDA, Ronaldo de. 2002. Traduções do fundamentalismo evangélico. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. qualifica a teologia das denominações neopentecostais, das quais fazem parte esses missionários, de transcultural fundamentalista e explica a sua ênfase na tradução da Bíblia para as línguas das minorias indígenas ao redor do mundo. São missões salvacionistas para quem a tarefa mais urgente é levar os Evangelhos para as culturas não cristãs e contrastam, de maneira muito direta, com a experiência do protestantismo histórico, de perfil ecumênico.
  • 18
    Artionka Capiberibe (2021)CAPIBERIBE, Artionka. 2021. Reaching Souls, Liberating Lands: Cross-cultural Evangelical Missions and Bolsonaro’s Government”. Brazilian political science review. Vol.15, n. 2: 1-22. DOI https://doi.org/10.1590/1981-3821202100020002
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    , ao apresentar as relações entre o governo Bolsonaro e as missões religiosas evangélicas, explora os elementos da teologia cristã que orientam esses agentes e faz uma comparação importante entre a política indigenista do atual governo e aquela presente na ditadura militar.
  • 19
    Bestard e Contreras, em Bárbaros, paganos, salvajes y primitivos (1987BESTARD, Joan; CONTRERAS, Jesus. 1987. Bárbaros, paganos, salvajes y primitivos - una introducción a la antropología. Barcelona: Barcanova.) nos lembra que a Europa conheceu, ao longo de sua história, quatro momentos distintos em sua forma de representar o “outro”. No Império Romano, com a ascensão do cristianismo como religião oficial, o “outro” deixou de ser o “bárbaro” para se tornar o “pagão”, aquele que não professa a fé em Cristo e no Deus único de Abraão. O paganismo, como marcador central da alteridade perdurou por muito tempo, até se ver substituído pelo “selvagem”, figura que emergiu desde as Grandes Navegações, e posteriormente pelo “primitivo”, já no contexto de surgimento das ciências humanas desde o século XVIII.
  • 20
    Trata-se de um ministério novo, mas que mostra a sintonia do governo Bolsonaro com a direita conservadora radical fora do Brasil, sobretudo a direita cristã norte-americana sob os anos em que Donald Trump esteve na presidência (2017-2020). O nome do ministério faz uma articulação insólita e não usual entre termos que parecem não andar juntos, ao menos àqueles que atuam no campo dos direitos humanos e sobre as questões de gênero. A família cristã heteronormativa é a categoria que articula direitos humanos (com ênfase nos direitos das vítimas de criminosos, mas não às vítimas do Estado e da repressão policial) e mulher (sem as conotações das questões que essa direita conservadora qualifica como “ideologia de gênero”).
  • 21
    Nos governos Lula e Dilma, tivemos uma movimentação política nessa mesma direção, por conta da necessidade de garantir a governabilidade, por meio da atração da bancada ruralista nas votações do Congresso Nacional. A posição de “descentralizar” o processo demarcatório ganhou força mormente no governo Dilma. Gleisi Hoffmann, ministra-chefe da Casa Civil, e José Eduardo Cardoso, ministro da Justiça, estão entre os membros do primeiro escalão que manifestaram essa posição do governo (Rufino, 2022RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.). Um dos pareceres a este artigo me recorda que Hoffmann fez uma visita ao Congresso, em 2013, para questionar as demarcações realizadas pela Funai, utilizando como base um laudo técnico elaborado por Evaristo Miranda, agrônomo e pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que afirmava, entre outras coisas, que os Avá Guarani (em Guaíra - PR, estado que é domicílio eleitoral da senadora) eram paraguaios que estariam invadindo o território nacional e, assim, afrontando a soberania do país. A ação de Hoffman abriu espaço para a criação da CPI da Funai, instituída em novembro de 2015, e cujo relatório final indiciou mais de 120 pessoas, entre antropólogos, lideranças indígenas, missionários do Cimi, procuradores federais e servidores públicos da Funai e do Ministério da Justiça (ISA, 2016INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). 2016. “O que o governo Dilma fez e não fez para garantir o direito à terra e áreas para a conservação?”. Notícias socioambientais, São Paulo, 1 jun. 2016. Disponível em: Disponível em: https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-que-o-governo-dilma-fez-e-nao-fez-para-garantir-o-direito-a-terra-e-areas-para-conservacao Acesso em: 19 maio 2022
    https://site-antigo.socioambiental.org/p...
    ). Evaristo Miranda, cujo laudo pautou a ação da ministra-chefe da Casa Civil de Dilma, tornou-se uma das figuras mais importantes da política ambiental de Bolsonaro, atuando ativamente na montagem do Ministério do Meio Ambiente e tornando-se, ele mesmo, um forte candidato ao comando da pasta antes da emergência de Ricardo Salles. O descaso de Dilma Rousseff com a Funai pode ser observado também no período recorde, 24 meses, em que o órgão esteve à deriva, sem que alguém fosse nomeado para presidi-lo (deixando-o sob o comando de presidentes interinos, sem força política e interlocução com o governo).
  • 22
    Ela, que é advogada de formação, atuou como assessora parlamentar no Congresso Nacional por mais de vinte anos. Foi se tornando conhecida e admirada no meio evangélico desde sua atuação como chefe de gabinete do deputado federal João Campos, do PRB de Goiás, expoente da bancada neopentecostal, coordenador da frente parlamentar evangélica na Câmara dos Deputados e autor do polêmico projeto que propunha a “cura gay”. Depois, passou a assessorar o deputado federal e depois senador Arolde de Oliveira, do PSD do Rio de Janeiro e próximo do clã político da família Bolsonaro. Em 2015, Damares se tornou assessora do senador Magno Malta, pastor, figura ilustre entre os parlamentares evangélicos e um dos articuladores da candidatura presidencial de Jair Bolsonaro. Magno Malta, do PL do Espírito Santo, recusou o convite de Bolsonaro para ser o seu vice na campanha eleitoral de 2018, preferindo se candidatar ao senado.
  • 23
    Desde o início de seu governo, Bolsonaro tem colecionado diversas desavenças com lideranças e segmentos políticos que o apoiaram na eleição, tornando antigos colaboradores em ex-aliados. Apesar das mágoas do ex-senador Magno Malta com o presidente, a frente parlamentar evangélica e líderes religiosos de denominações pentecostais e neopentecostais se mantém comprometidos com o projeto político do governo, fazendo com que essa fidelidade se traduza em uma ampliação e fortalecimento dessa presença evangélica no círculo mais próximo de comando do Executivo federal. O silenciamento de Olavo de Carvalho e a saída de nomes importantes do chamado núcleo ideológico do governo como o ex-ministro da educação Abraham Weintraub, o ex-chanceler Ernesto Araújo e o ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles permite um destaque especial a Damares Alves na base mais conservadora e radical do governo.
  • 24
    Fala do presidente na manhã de 27 de novembro 2019, Zona Franca de Manaus: “Nossos índios, a maior parte deles, são condenados a viver como homens pré-históricos dentro do nosso próprio país. Isso tem que mudar. O índio quer produzir, quer plantar, quer os benefícios e maravilhas da ciência, da tecnologia. Todos nós somos brasileiros.”
  • 25
    É o que se pode inferir, por exemplo, da campanha “Voz pela vida”, da Atini, ONG criada por Damares Alves e cujo foco é combater as “aberrações” culturais no mundo indígena. A Atini é acusada pelo Ministério Público de incitação ao ódio contra as populações indígenas, pelas campanhas e publicações que produz. É acusada também por tráfico e sequestro de crianças indígenas.
  • 26
    Em nota intitulada “Os fatos”, a Funai ataca o “assistencialismo subserviente” e o paternalismo da política indigenista “socialista” das duas décadas anteriores, apoiadas por “ONGs e grupos religiosos ligados à Teologia da Libertação, de matriz marxista, capitaneados pelo Bispo mexicano Samuel Ruiz”. (Funai, 4. maio 2020, Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2020/osfatos Acesso em: 12 jun. 2021).
  • 27
    Expressão utilizada por Paulo Fernando Melo da Costa, ex-membro da Atini, liderança da Frente Integralista Brasileira e assessor especial do Ministério de Estado da Mulher, Família e dos Direitos Humanos. Disponível em: https://paulofernando.com.br/paulo-fernando-professor-assessor-cristao-e-politico/ Acesso em: 22 jun. 2021.
  • 28
    A observação feita por um dos avaliadores deste artigo sobre a presença das missões transculturais no Brasil requer uma nota de esclarecimento sobre esses aparelhos missionários. Por “transcultural” não estamos adjetivando toda e qualquer missão religiosa cristã que almeja a evangelização e catequese dos povos indígenas (ou de qualquer outro grupo percebido como estando fora da ecúmene cristã), a exemplo das missões religiosas católicas que se fizeram presentes no país desde o período colonial. Este termo é utilizado como forma de autodesignação pelas próprias agências missionárias evangélicas pentecostais e neopentecostais que atuam com populações indígenas em todo o mundo; e esse é certamente o caso da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB). De modo menos frequente, utilizam também a designação “missões de fé”. É também nesse sentido que a literatura antropológica voltada ao estudo da ação destes agentes religiosos faz uso do termo missões transculturais. Vide Almeida (2002)ALMEIDA, Ronaldo de. 2002. Traduções do fundamentalismo evangélico. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo..
  • 29
    Antes disso, temos algumas experiências incipientes e em menor número, como a chegada de missionários norte-americanos no baixo Amazonas, nos anos 30, responsáveis por fundar a Cruzada de Evangelização Mundial, cujo herdeiro atual é a Missão Evangélica da Amazônia (Meva).
  • 30
    Apesar de termos evangélicos em todo o governo, e dois outros ministros pastores (educação e justiça, ambos presbiterianos), a pasta comandada por ela foi o polo base dessa direita cristã fundamentalista. Segundo levantamento feito pela Carta Capital, em maio de 2021 eram 30 cargos importantes, dentre um universo de 46, reservados a representantes dessas igrejas. As igrejas Batista, Assembleia de Deus, Evangelho Quadrangular, Universal e Presbiteriana detinham 17 dessas posições. Organizações católicas conservadoras ocuparam 8 cargos. Outros 6 cargos estavam “sob sigilo”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-ceu-de-damares-como-a-ministra-dos-direitos-humanos-aparelha-sua-pasta/ Acesso em: 23 jun. 2021.
  • 31
    Em março de 2021, o governo forneceu uma outra grande ajuda financeira a essas instituições ao atender a bancada evangélica e perdoar a dívida de quase 2 bilhões de reais de igrejas com a receita federal e o INSS.
  • 32
    A New Tribes Mission foi fundada em 1942, na Flórida, e hoje atua em mais de 20 países. Em 2017, ela passou a se chamar Ethnos360, em uma tentativa de dissociar sua imagem dos diversos escândalos e acusações acumulados ao longo dos anos em várias regiões do mundo. Além da prática de racismo, intolerância, desrespeito cultural, deslocamento forçado de populações, há diversas acusações de abuso sexual envolvendo missionários da organização.
  • 33
    A Youth with a Mission (YWAM) nasceu em 1960, em Lausanne, Suíça, por meio de um missionário norte-americano, filho de pastores da Assembleia de Deus. Como a New Tribes Mission, ela ambiciona atingir todos os recantos do planeta e converter todos os povos ao cristianismo. Apesar de seu foco inicial em atrair jovens missionários, a YWAM hoje incorpora cristãos evangélicos de todas as idades. Há muitas controvérsias envolvendo essa agência missionária que, em grande medida, lembram aquelas relacionadas a New Tribes Mission. O livro Spiritual Warfare, de Sara Diamond (1989)DIAMOND, Sara. 1989. Spiritual warfare - the politics of the Christian right. Boston, MA: South End Press., cita a participação da YWAM em reunião de líderes cristãos conservadores norte-americanos com o general José Efraín Ríos Montt, que liderou o golpe militar na Guatemala, em 1982. Esse é apenas um dos exemplos dos esforços desses missionários em influenciar diretamente a política dos países em que atua, por meio da aproximação aos partidos e lideranças políticas conservadoras
  • 34
    Essa coordenação nasce com base em um novo entendimento do órgão indigenista oficial sobre a política de contato com os povos isolados, firmado em meados dos anos 1980. As missões de contato feitas ao longo do século XX, muitas das quais contaram com a participação de missionários religiosos cristãos, foram vetores na proliferação de epidemias mortais entre os grupos contatados, dizimando parte importante de sua população (Valente, 2017VALENTE, Rubens. 2017. Os fuzis e as flechas: a história de sangue e a resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras.; Rodrigues, 2019RODRIGUES, Douglas. 2019. “Desafios da atenção à saúde dos povos isolados e de recente contato” In: RICARDO, Fany; GONGORA, Majoí Fávero. Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira . São Paulo: Instituto Socioambiental .). A CGIIRC surge com a tarefa de assegurar o não contato e o respeito ao isolamento voluntário desses grupos indígenas.
  • 35
    A Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) estabelece uma alteração importante na definição dos Povos Não Alcançados em seu Relatório Povos Indígenas do Brasil: “Um povo sem comunidade cristã autóctone, com insuficiente número, recursos e visão para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo sem apoio externo, em geral com menos de 2% de evangélicos” (AMTB, 2019AMTB (Associação de Missões Transculturais Brasileiras). 2019. Relatório indígenas do Brasil - atualização 2018. Departamento de Assuntos Indígenas da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (DAI-AMTB).: 6). Agora, o que antes entendíamos por “não alcançados” são designados como “povos não engajados” (“Um povo não alcançado sem a presença de cristãos, igrejas, missionários ou Bíblia na língua materna e sobre o qual não há nenhuma iniciativa ou intenção de evangelização, interna ou externa.”). O relatório define também os “povos menos alcançados” (“Um povo com reduzida presença cristã local, frequentemente com necessidade de cooperação externa para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo, em geral entre 2% a 5% de evangélicos.”), e, finalmente, aqueles que representam a meta desse salvacionismo fundamentalista: os povos alcançados (“Um povo com comunidade cristã autóctone e suficiente número, recursos e visão para fazer discípulos de Jesus no seu próprio povo sem apoio externo, em geral com mais de 5% de evangélicos”). Neste artigo, contudo, manteremos a categoria de “povos não alcançados”, ainda utilizada por grande parte das missões de fé.
  • 36
    Para tornar possível essa nomeação, a Funai antes alterou o seu próprio regimento interno, extinguindo a exigência de que essa função fosse ocupada por um servidor de carreira.
  • 37
    Muwaji e Inikiru Surawahá foram separadas do grupo em 2006 e 2007, respectivamente, e criadas pelos missionários para atuarem como obreiras na conversão religiosa dos povos indígenas. Inikiru se tornou missionária da Jocum e Muwaji, também evangélica, atua em campanhas da organização. Muwaji empresta o seu nome para o Projeto de Lei 1059/2007, caro às missões transculturais e que visa combater “práticas tradicionais nocivas” entre os povos indígenas, como o infanticídio. Ela, que deu à luz a uma criança portadora de deficiência, contou com a ajuda de missionários da Jocum para retirá-la do grupo. Muwaji é a figura símbolo da campanha “Voz pela Vida”, da Atini, e do documentário Hakani: a história de uma sobrevivente, dirigido por David L. Cunningham, filho de fundadores da Youth with a Mission (YWAM).
  • 38
    Douglas Rodrigues, médico sanitarista que há mais de 50 anos atua com populações indígenas, nos lembra de diversos casos em que agentes da sociedade nacional produziram “manifestações mais graves das doenças entre os indígenas isolados ou de contato recente” em função da ausência de anticorpos nessas populações (2019RODRIGUES, Douglas. 2019. “Desafios da atenção à saúde dos povos isolados e de recente contato” In: RICARDO, Fany; GONGORA, Majoí Fávero. Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira . São Paulo: Instituto Socioambiental .: 40).
  • 39
    São muitas as teorias difundidas por esses evangelistas. Uma delas diz que a vacina vem contaminada da China e marca aquele que a toma com o número 666, aludido no Apocalipse como o signo da Besta, condenando-o ao inferno. Outra, aposta na transmutação do vacinado em um “animal homossexual”. Há a versão que cita simplesmente o alto risco de morte. E em todas essas versões, há o arremate comum de que “a vacina não é de Deus” e somente os convertidos ao cristianismo evangélico estariam protegidos contra a doença.
  • 40
    A servidora Idnilda Obando relatou a tentativa de Dias Lopes de entrar, juntamente com outros missionários, na Terra Indígena Vale do Javari, em ofício (43/2020) encaminhado por ela ao Ministério Público Federal e à Diretoria de Proteção Territorial da Funai. (O Globo, Rio de Janeiro, 24 set. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ brasil/coordenador-da-funai-tentou-quebrar-quarentena-indicou-missionarios-para-area-de-indios-isolados-diz-chefe-de-protecao-no-vale-do-javari-24657614. Acesso em: 29 jun. 2020).
  • 41
    Recordemos que outras esferas do governo, também ocupadas por pastores e missionários evangélicos, interagem com o indigenismo. Além da pasta chefiada por Damares Alves, temos o Ministério da Justiça, comandado por André Mendonça, e o Ministério da Educação, por André Ribeiro, ambos pastores presbiterianos. O presidente Bolsonaro já indicou um nome para uma vaga no STF simpático às causas evangélicas. Kassio Nunes Marques substitui Celso de Mello e atuará em decisões importantes da suprema corte sobre os direitos indígenas. Ao que parece, a vaga de Marco Aurélio Mello, que se aposenta, será ocupada pelo pastor André Mendonça, que deverá abandonar o Ministério da Justiça para ser o membro “terrivelmente evangélico” do STF, como promete Bolsonaro a seus aliados.
  • 42
    A fala deste agente da Funai está registrada em áudio e foi fartamente noticiado pela imprensa. A título de exemplo, cito o artigo publicado em Folha de S. Paulo (24 jul. 2021). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/tenente-do-exercito-coordenador-da-funai-fala-em-meter-fogo-em-indigenas-isolados-no-am-ouca-audio.shtml Acesso em 24/07/2021. Bolsonaro a seus aliados.
  • 43
    A obstrução na demarcação de Terras Indígenas não é algo inédito, mas ganha uma magnitude extraordinária sob Bolsonaro. Este governo supera o recorde do governo Temer, que demarcou apenas uma TI. Os governos do Partido dos Trabalhadores também demarcaram poucas terras, em comparação aos governos Fernando Henrique e Collor, como nos revela o placar das demarcações do Cimi (https://cimi.org.br/terras-indigenas/). O governo Dilma Roussef, depois de Bolsonaro e Temer, foi o que menos demarcou desde o fim da ditadura militar. Assirati e Moreira (2019)ASSIRATI, Maria Augusta; MOREIRA, Luís Gustavo Guerreiro. 2019. O Estado anti-indígena: da colônia ao novo golpe. Tensões mundiais, vol. 15, n. 29: 97-118. DOI 10.33956/tensoesmundiais.v15i29.2079
    https://doi.org/10.33956/tensoesmundiais...
    descrevem a estratégia de “embargo das Terras Indígenas” de Dilma, que paralisava os processos até que todo e qualquer conflito fundiário fosse resolvido em mesa de negociação. O Cimi, por sua vez, denunciou que a constituição de Grupos de Trabalho para iniciar novos processos de reconhecimento territorial pela Funai estaria submetida à aprovação direta de Dilma.
  • 44
    A baixa contratação de servidores para o órgão indigenista também pode ser observada em governos anteriores, como denunciam há muito o Conselho Indigenista Missionário, o Instituto Socioambiental e organizações indígenas importantes, como a Apib, Coiab e Foirn. Há uma década, a Funai já funcionava com apenas um terço dos quadros necessários para a execução de sua tarefa e vimos o governo Dilma ser questionado pelo Tribunal de Contas da União em razão dos poucos concursos públicos abertos para o preenchimento de posições na Funai.
  • 45
    Discutimos melhor o apoio do governo ao projeto em Rufino (2022)RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.. O “marco temporal” estabelece que a demarcação só pode ser feita sobre áreas que estivessem comprovadamente ocupadas por populações indígenas até 05/10/1988 (data de promulgação da Constituição).
  • 46
    Para uma análise das posições do STF sobre o tema, ver Dan e Assis (2020)DAN, Vivian Lara Caceres; ASSIS, Flavia Benedita Sousa. 2020. “A tese do marco temporal nas decisões do Supremo Tribunal Federal e a controvérsia possessória acerca dos direitos territoriais indígenas”. Teoria jurídica contemporânea, vol. 5, n. 2: 263-286. DOI 10.21875/tjc.v5i2.25496.
    https://doi.org/10.21875/tjc.v5i2.25496...
    .
  • 47
    A título de exemplo, citamos o ex-deputado federal Aldo Rebelo, que ocupou, nos governos petistas, a posição de presidente da Câmara dos Deputados e de ministro em diversas pastas (Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais, Ministério do Esporte, Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e Ministério da Defesa). Oriundo do PC do B, Rebelo manifestou em diversas entrevistas e pronunciamentos a sua defesa do “marco temporal” e a preocupação com o perigo representado pelas Terras Indígenas à soberania nacional. Em seu livro Raposa Serra do Sol - O índio e a questão nacional, publicado em 2010, temos a reunião de diversos de seus textos que expõem uma interpretação comum a muitos outros dentro do governo. Lembremos também que os governos petistas contaram com figuras proeminentes do anti-indigenismo nacional, como os senadores Romero Jucá (líder dos governos Lula e Dilma no Senado Federal, além de ministro da previdência no governo Lula) e Kátia Abreu (ex-líder da bancada ruralista e ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária), para nos atermos a apenas dois exemplos.
  • 48
    O Cimi exemplifica estas situações nos casos que envolvem os Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul (Santana, 2019aSANTANA, Renato. 2019a. “Alegando ‘desinteresse’, Funai desiste de processo no TRF-4 contra reintegração de posse da TI Palmas”. Portal do Conselho Indigenista Missionário, 6 nov. 2019, Brasília: Cimi. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2019/11/alegando-desinteresse-funai-desiste-de-processo-no-trf-4-contra-reintegracao-de-posse-da-ti-palmas/ Acesso em: 18 maio 2021.
    https://cimi.org.br/2019/11/alegando-des...
    ), e os Kaingang, da Terra Indígena Palmas, no Paraná (Santana, 2019bSANTANA, Renato. 2019b. “Funai desiste de ação que mantém indígenas em Ñande Ru Marangatu - GT sofre interferência e portarias isolam aldeias”. Portal do Conselho Indigenista Missionário, 2 dez. 2019, Brasília: Cimi . Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2019/12/funai-desiste-de-acao-que-mantem-indigenas-em-nande-ru-marangatu-gt-sofre-interferencia-e-terras-declaradas-deixam-de-ser-atendidas/ Acesso em: 18 maio 2021.
    https://cimi.org.br/2019/12/funai-desist...
    ). Em ambas as situações, a Funai retrocede nas ações que, em governos anteriores, ela impetrou a favor do reconhecimento dos direitos desses grupos, pedindo formalmente à justiça a rescisão de suas ações anteriores.
  • 49
    Discutimos mais em detalhe esse Projeto de Lei em Rufino, 2022RUFINO, Marcos Pereira. 2022. “The equality trap: notes on indigenist policies in the Bolsonaro government”. Vibrant - Virtual brazilian anthropology. vol. 19.. Lá, destacamos igualmente que o desrespeito aos princípios da Convenção 169 da OIT não é algo inédito nos governos brasileiros desde que o país ratificou a convenção, em 2002. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, iniciada em 2011, é um exemplo de obra de infraestrutura de grande porte que ignorou a posição dos grupos indígenas afetados. De acordo com lideranças indígenas e organizações como o Instituto Socioambiental e o Conselho Indigenista Missionário, as audiências públicas realizadas pelo empreendimento estiveram longe de atender aos requisitos básicos da Convenção 169.
  • 50
    Há uma farta e longeva literatura antropológica sobre os impactos do garimpo sobre os povos indígenas em todo o país e seria impossível listá-los aqui. O tema do garimpo já era explorado no 4º “Caderno” da Comissão Pró-Índio de São Paulo e esteve presente também em todos os volumes da série Aconteceu - Povos Indígenas no Brasil, do antigo Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), cujo programa Povos Indígenas é parte hoje do Instituto Socioambiental, todos publicados no início dos anos 1980. Um texto célebre por tratar das representações dessa atividade entre os indígenas é “La fumée du métal”, de Bruce Albert (1988)ALBERT, Bruce. 1988. La fumée du métal - Histoire et représentations du contact chez les Yanomami. L’Homme - Revue française d’anthropologie, n. 106/107: 87-119. Disponível em: Disponível em: https://www.persee.fr/doc/hom_0439-4216_1988_num_28_106_368972 acesso em 11 dez. 2022.
    https://www.persee.fr/doc/hom_0439-4216_...
    , que aborda o garimpo entre os Yanomami. Citamos, a título de exemplo, um trabalho sobre os Yanomami porque eles talvez constituam os grupos indígenas mais afetados pelo garimpo. A intrusão de milhares de garimpeiros em suas terras em meados dos anos 1980 voltou a se repetir agora, no atual governo. Desde 2019, as intrusões têm crescido e atingiram o número de mais de 20 mil garimpeiros em 2021 (BBC News Brasil, 2022BBC News Brasil. 2022. “O que se sabe sobre a invasão de garimpeiros no território Yanomami”. BBC News Brasil, São Paulo, 4 maio 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61328546 Acesso em: 19 maio 2022.
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61...
    ).
  • 51
    O lugar das Terras Indígenas, juntamente com as Unidades de Conservação da Natureza, na proteção da diversidade biológica serviu de apoio à Lei 11.460/2007, que proíbe os OGMs nesses territórios.
  • 52
    A especialista em biodiversidade do ISA, Nurit Bensusan (ISA, 2020aINSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). 2020a. “PL da devastação” ameaça alimentação dos índios ao liberar transgênicos em Terras Indígenas. Blog do ISA, São Paulo, 21 fev. 2002. Disponível em: Disponível em: https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/pl-da-devastacao-ameaca-alimentacao-dos-indios-ao-liberar-transgenicos-em-terras-indigenas Acesso em: 26 maio 2021.
    https://site-antigo.socioambiental.org/p...
    ), coloca em evidência um outro aspecto nocivo da introdução de OGMs nesse contexto, que é a possível homogeneização de práticas e modos de vida resultantes de uma mesma forma de cultivo e alimentação. O argumento bolsonarista de que os indígenas são brasileiros como todos os outros e que a diferença é uma construção de antropólogos e ONGs ganharia então um importante ponto de apoio.
  • 53
    O Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei) reúne estes missionários nativos que simbolizam uma vitória importante para as missões transculturais, cuja meta é a constituição de igrejas indígenas autônomas e autossustentadas em cada nação indígena do planeta. “Em cada povo uma igreja genuinamente indígena” é um lema não apenas da Conplei, mas das muitas missões transculturais filiadas à AMTB.
  • 54
    A origem dos recursos financeiros que apoiam a prática de evangelização entre os indígenas expressa a complexidade e irregularidade dessa dimensão, ou “paisagem”, do fluxo missionário transnacional. Entre essas fontes de recursos, temos as igrejas e denominações religiosas, agências interdenominacionais de apoio ao trabalho de base missionário, organismos e empresas simpáticas ao conservadorismo cristão dessas missões e mesmo programas governamentais, como o “Pátria Voluntária”, do governo federal brasileiro.
  • 55
    Em diálogo direto com a análise de Benedict Anderson (1983)ANDERSON, Benedict. 1983. Imagined communities - reflections on the origin and spread of nationalism. London/New York: Verso/New Left Books., Appadurai entende que as tensões entre os processos de globalização e a realidade do Estado-nação nos força a viver não apenas no interior de “imagined communities”, mas também em “imagined worlds”.
  • 56
    Maioria e minoria, lembra Appadurai, são categorias de invenção recente, surgidas no contexto de formação das grandes concentrações urbanas após a revolução industrial e a datar do desenvolvimento de técnicas e procedimentos administrativos modernos, como o mapeamento da população e a realização de levantamentos censitários.
  • 57
    A participação decisiva de Sheridan na guerra travada contra os povos indígenas americanos é um fato fartamente documentado, mas ele negou ter dito a frase comumente associada à sua biografia: "The only good Indians I ever saw were dead". As declarações de Bolsonaro sobre os indígenas, entretanto, estão registradas em dezenas de periódicos da imprensa brasileira e internacional.
  • 58
    Pronunciamento de Jair Bolsonaro, quando deputado federal pelo PPB (atual PP), em 15 de abril de 1998.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2021
  • Aceito
    13 Out 2022
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