Acessibilidade / Reportar erro

A “libertação” entre cristãos e o conceito antropológico de ritual1 1 Agradeço a Otávio Velho, Amir Geiger e Ciméa B. Bevilaqua pelos valiosos comentários e incentivos dos mais diversos ao longo da elaboração deste texto. Sou grato também à leitura cuidadosa realizada pelos(as) pareceristas.

“Deliverance” among Christians and the anthropological concept of ritual

RESUMO

Este artigo advém de pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2016 com católicos na cidade de São Paulo/SP e se volta ao tema da “libertação”. Trata-se de descrever que para esses cristãos libertar, quando envolve o demônio, não acarreta necessariamente formas ditas rituais. Com isto em perspectiva, o propósito da argumentação é sublinhar algumas questões relativas ao recorrente entrelaçamento analítico entre a libertação e o conceito antropológico de ritual. Debato que este conceito, ao sugerir a replicação de um padrão, tem pouco alcance analítico diante de formas de vida cristãs carismáticas, pois empalidece algo crucial: as ações divinas não são passíveis de serem subsumidas a uma classe de eventos que se caracteriza por sucessões, sequências ou repetições.

PALAVRAS-CHAVE:
Libertação; ritual; padrão; etnografia; Cristianismo

ABSTRACT

Based on fieldwork developed between 2013 and 2016, this article discusses the “deliverance from demons” among Catholics in the city of São Paulo, Brazil, aiming to describe that deliverance does not necessarily imply so-called ritual forms. By taking this into account, the article highlights some issues related to the recurrent analytical interweaving between deliverance and the anthropological concept of ritual. It is argued this concept has little analytical reach in the face of Charismatic Christians forms of life because, by invoking the replication of a pattern, it hazes something crucial for them: divine actions cannot be subsumed within a class of events characterized by ordered successions, sequences, or repetitions.

KEYWORDS:
Deliverance; ritual; pattern; ethnography; Christianity

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe responder a seguinte pergunta: quais são as implicações teóricas decorrentes da manutenção do suposto de que ocorrências ditas rituais, que invocam constantemente algum tipo de padrão, vicejam entre pessoas que geralmente as rejeitam? Tentarei assinalar que essas implicações dizem respeito às qualidades específicas das abstrações que o conceito antropológico de ritual costumeiramente impulsiona, quando as consideramos em relação aos modos de pensar dos católicos carismáticos com quem convivi na cidade de São Paulo/SP.

Buscarei posicionar o lugar dos acontecimentos denominados rituais na vida dessas pessoas e simultaneamente destacar como a persistência daquele conceito, no que tange à “libertação”, obscurece algo fundamental: os vínculos (ou a aliança) que se estabelecem com Deus não se amoldam a nenhum padrão porque, entre esses adeptos, Ele é imprevisível e insondável. Ressalto que a problematização aqui proposta da noção de ritual se restringe a mundos cristãos. Ainda assim, quando se considera a importância do Cristianismo na gênese dessa noção (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79. [1988]), alguns aspectos da discussão podem assumir certa generalidade, como procurarei destacar em algumas passagens. A vertente cristã a ser especificamente discutida é a carismática através de sua derivação católica (Csordas, 1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press., 1997CSORDAS, Thomas J. 1997. Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press.; Carranza, 1998CARRANZA, Brenda. 1998. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.). A argumentação a ser desenvolvida provém de minha tese de doutorado e fundamenta-se em pesquisa etnográfica transcorrida entre os anos de 2013 e 2016 (Costa, 2017COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre Católicos na cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), cujo tema é a libertação. As observações a seguir são oriundas principalmente dos momentos em que convivi com o Grupo de Oração São Pio (doravante Grupo de Oração ou Grupo), fundado por Ester.

Um grupo de oração carismático (Steil, 2004STEIL, Carlos Alberto. 2004. “Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou saída do Catolicismo? uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS)”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 24, n. 1: 11-36.) - ou seja, inspirado pelo Espírito Santo - é uma instância destinada à proliferação dos “carismas”, dos dons da Terceira Pessoa divina: cura, palavra de ciência, variedade de línguas (glossolalia), milagres, profecia, discernimento dos espíritos etc. A criação do Grupo remonta a aproximadamente trinta anos. Durante uma década esteve incorporado à Renovação Carismática Católica (doravante RCC). Atualmente, integra a Missão Eucarística Clamor dos Pobres - uma comunidade católica de leigos que conta com a aprovação da Igreja (Carranza e Mariz, 2009CARRANZA, Brenda e MARIZ, Cecília Loreto. 2009. “Novas comunidades católicas: por que crescem?”. In: CARRANZA, B. et al. (orgs.), Novas comunidades católicas: em busca do espaço pósmoderno. Aparecida, Ideias e Letras, pp. 139-170.) -, fundada pelo filho da irmã de Ester, Luís.

Quando comecei a pesquisa, ainda em 2013, estive em uma “missa de cura e libertação” celebrada pelo padre Felipe, a quem fui apresentado por Ester e outras pessoas, as quais se tornaram minhas amigas. Depois da entoação de alguns louvores que desafiavam o demônio, uma mulher que o padre dizia ter sido oferecida a um “espírito de Cão” começou a latir vigorosamente diante do presbitério. Retornarei a esse evento e ao padre sucintamente na seção final. Por ora, gostaria de ressaltar que não é incomum que essas “manifestações” tidas como demoníacas sejam consideradas emblemáticas do que se alcunha habitualmente, na literatura relativa a cristãos católicos e pentecostais, de “ritual de libertação” (Csordas, 1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press.; Carranza, 1998CARRANZA, Brenda. 1998. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.; Meyer, 1998MEYER, Birgit. 1998. “Make a complete break with the past’: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse”. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3: 316-349., 1999MEYER, Birgit. 1999. Translating the Devil: religion and modernity among the Ewe in Ghana. Trenton and Asmara, Africa World Press.; Maués, 2002MAUÉS, Raymundo Heraldo. 2002. “Mudando de vida: a ‘conversão’ ao Pentecostalismo Católico”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2: 37-64.; Steil, 2006STEIL, Carlos Alberto. 2006. “Os demônios geracionais. A herança dos antepassados na determinação das escolhas e das trajetórias pessoais”. In: DUARTE, L. F. D. et al. (orgs.), Família e religião. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, pp. 219-239.; Bialecki, 2011BIALECKI, Jon. 2011. “Quiet deliverances”.In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians. New York and Oxford, Berghahn Books, pp. 249-276., 2015; Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.; Robbins, 2011bROBBINS, Joel. 2011b. “Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 31, n. 1: 11-31.; Bonfim, 2012BONFIM, Evandro. 2012. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), por envolverem a expulsão de um espírito maligno.

Inicialmente, situações como a da mulher que soltava latidos, ao serem circunscritas à definição da libertação como “um ritual”, remeteriam ao subconjunto de palavras que em algumas análises antropológicas pertencem também a esse conceito. Além do padrão, já mencionado, é possível também sublinhar: excepcionalidade, ruptura, separação, transição, agregação, liminaridade, sequenciamento, ordem, sistema, significado, representação, interpretação, simbolismo, repetição etc. Todavia, essa pletora de vocábulos ofusca que a libertação, na vida das pessoas com quem estive, é um dos motores principais da relação com Deus. Tal relação desdobra-se como um pacto cujo sentido bíblico abrange tanto o “Código da Aliança” (Êxodo, 19-20, 24) quanto questões relativas à “fuga ao cativeiro” (Velho, 2007aVELHO, Otávio. [1987] 2007a. “O cativeiro da Besta-Fera”. In: VELHO, O., Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro, Topbooks, pp. 103-133. [1987]: 120). Aliança e fuga repercutem duas expressões igualmente disseminadas em suas vidas: a “abertura para Deus” e a “caminhada”. A “liberdade”, segundo elas, é uma doação divina que ocorre de maneira imprevisível, pois “só Deus sabe como libertar”. É usual encontrar ao longo da convivência com gente que se define cristã conceitos caros à antropologia. Como assinalei acima, refiro-me aqui ao de ritual. Essas simultaneidades ocasionam, muitas vezes, a captura da diferença pela familiaridade. Por isso, o desafio me parece tentar enfrentar a seguinte interrogação: como lidar com gente que é do “nosso” mundo, mas está diferencialmente nele, considerando que essas pessoas estão enredadas em um modo de existência que auxiliou na constituição do vernáculo da teoria social dos antropólogos (Keane, 2007KEANE, Webb. 2007. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley, University of California Press.: 28)?

É improvável negligenciar que o termo ritual é, entre outras coisas, um produto de tensões históricas que se desenrolaram no seio do Cristianismo (católico e protestante) (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 55-58; Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 3; Bialecki, 2017BIALECKI, Jon. 2017. ““Religion” after religion, “ritual” after ritual”. Chapter published in The Routledge Companion to Contemporary Anthropology. Mimeo. Bíblia Sagrada Ave Maria: edição de estudos. 2011. São Paulo, Editora Ave-Maria.: 7-11). O aspecto familiar dessa religião não deve, contudo, dar lugar quer a sua banalização, quer a sua exotização. A maneira como aquele termo se revela nas etnografias de coletivos cristãos permite, ao contrário, entrever certas limitações atinentes à sua aplicação normativa “(...) como uma categoria da experiência e de análise” (Bell, 1992BELL, Catherine. 1992. Ritual theory, ritual practice. Oxford, Oxford University Press.: 6). Atentar para esse conjunto de questões cria um solo que é simultaneamente irredutível ao banal e ao exótico e fértil para a descrição de especificidades contidas nas remissões dos católicos com quem estive à libertação e aos acontecimentos ditos rituais. É o que tentarei apresentar aqui.

O texto, além desta Introdução e das Considerações Finais, divide-se em duas seções. A primeira traz à baila observações acerca da adesão positiva ao conceito antropológico de ritual em certas análises do Cristianismo carismático, ao revés do caráter negativo que alguns desses adeptos atribuem às formas alcunhadas de rituais. Em acréscimo, ocupa-se da maneira pela qual a libertação na literatura é muitas vezes equacionada com o individualismo, sendo que o último termina por ser encarado geralmente enquanto uma característica moderna da pessoa cristã. A segunda seção problematiza as questões suscitadas na primeira. Inicia com as atividades do Grupo de Oração São Pio, passa pelas considerações de sua fundadora, Ester, e alcança as missas de cura e libertação celebradas pelo padre Felipe.

1. OS CRISTÃOS, O CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE RITUAL E A LIBERTAÇÃO

O conceito de ritual, tal como o de religião (Asad, 2010ASAD, Talal. [1993] 2010. “A construção da religião como uma categoria antropológica”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19: 263-284. [1993]: 264), parece ter passado nos últimos anos por mudanças que conduziram ao esvaziamento de sua especificidade por meio da presunção de que ele pode se referir a qualquer “atividade humana densamente padronizada” (Bialecki, 2017BIALECKI, Jon. 2017. ““Religion” after religion, “ritual” after ritual”. Chapter published in The Routledge Companion to Contemporary Anthropology. Mimeo. Bíblia Sagrada Ave Maria: edição de estudos. 2011. São Paulo, Editora Ave-Maria.: 1), em lugar de se restringir às formas religiosas, ao extraordinário ou a determinadas transições de cunho social.

Martin Lindhardt aponta, na introdução da coletânea Practicing the Faith: The Ritual Life of Pentecostal-Charismatic Christians, que a motivação principal para a realização da mesma concerne à reintrodução da importância do conceito de ritual entre coletivos de cristãos carismáticos, incluindo pentecostais, em maior medida, e católicos. Ele sublinha que na literatura antropológica relativa a esses adeptos a “maior lacuna” (Robbins apudLindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 1) residiria nos estudos dos fenômenos designados rituais: “Uma razão provável para a negligência parcial do ritual em grande parte da literatura [antropológica] é que muitos pentecostais/carismáticos insistem na ausência do ritual em sua vida na igreja” (Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 2).

A situação corresponderia aos modos como as situações nomeadas rituais são minoradas por esses adeptos, visto que diriam respeito a uma liturgia prescrita, ,convencional e formal. Esta seria contraposta à valorização de modalidades espontâneas, sinceras, interiores, espirituais e informais de devoção. Seguindo Joel Robbins, Lindhardt salienta que essas considerações cristãs acerca do “ritual” teriam se mostrado irredutíveis às “(...) perspectivas [antropológicas] mais clássicas [ou convencionais] sobre o ritual (...) como (...) comportamento essencialmente público com pouca margem para a expressão emocional espontânea” (2011: 2), o que neutralizou a atenção dos estudiosos em relação ao tópico.

Todavia, Lindhardt põe em relevo que “(...) a análise acadêmica não deveria necessariamente ser informada por tais usos êmicos [sic] dos termos [relacionados ao “ritual”]” (2011: 2). Ao revés dessa limitação etnográfica, o autor aposta - arbitrariamente, a meu ver - no conceito de ritual por meio de sua problematização e reformulação, porque “(...) o comportamento mais informal e espontâneo [e/ou criativo] e as experiências de fluxo espiritual são de fato culturalmente prescritos, ensinados e coordenados dentro de um meio ambiente ritual controlado e estruturado” (2011: 4). Nessa mesma coletânea, Robbins, Simon Coleman e Thomas J. Csordas também desenvolvem alguns apontamentos sobre essa questão.

Robbins faz a seguinte observação: “Colocando um alto valor sobre a espontaneidade e a autenticidade, os pentecostais condenam o ritual como muito rotineiro, mecânico” (2011a: 50) ou “não espiritual” (Albrecht apudRobbins, 2011aROBBINS, Joel. 2011a. “The obvious aspects of Pentecostalism: ritual and Pentecostal globalization”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 49-67.: 50). Apesar disso, ele reitera que o “(...) recurso ao ritual é um aspecto óbvio da vida social pentecostal” (Robbins, 2011aROBBINS, Joel. 2011a. “The obvious aspects of Pentecostalism: ritual and Pentecostal globalization”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 49-67.: 50). A vida dita ritual desses cristãos se localizaria no âmbito face-a-face da “atenção mútua” e do “arrebatamento emocional”, o que levaria à “sincronização corporal” (2011a: 58). A “moldura [frame] ritual”, “orar, louvar, adorar, curar” (2011a: 58), por ser compartilhada, seria ativada em qualquer ocasião. O autor admite, porém, que essa imediatidade ofusca o “(...) senso de separação que os acadêmicos veem frequentemente como central para a definição de ritual” (Bell apudRobbins, 2011aROBBINS, Joel. 2011a. “The obvious aspects of Pentecostalism: ritual and Pentecostal globalization”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 49-67.: 50).

Coleman aponta que há uma “imagem” persistente do “ritual” entre carismáticos de cariz pentecostal: a do “ritual” como uma “palavra suja” (2011: 198). Ele delimita, no entanto, que a ausência de uma “liturgia prescrita” na vida carismática (pentecostal) não escapa de outros tipos de “(...) replicação, aquelas da mimese e da participação mútua - retórica, encorporada, espacial - entre os participantes dentro e além do salão de encontros” (2011: 198-199).

Csordas repara, com base em pesquisa entre católicos carismáticos norte-americanos, que se as circunstâncias alcunhadas de ritual fossem abordadas enquanto momentos extraordinários da vida dessas pessoas teriam pouco rendimento. Importaria defini-las preferencialmente pela forma como elas “(...) transforma[m] [a] vida cotidiana, gera[m] um novo habitus” (Csordas, 2011CSORDAS, Thomas J. 2011. “Ritualization of life”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians. New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 129-151.: 129, 147-148). Em conformidade com outros de seus escritos, ele está afirmando que formulações mais clássicas do conceito de ritual não dão conta da “ritualização da vida” (Csordas, 1997CSORDAS, Thomas J. 1997. Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press.: 74, 2011) ou da “prática” (1997: 198) entre seus amigos. Nesses termos, ele acentua que os eventos ditos rituais, tais como encontros de oração, modelizaram o “Pentecostalismo Católico” (Csordas, 1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press.: 21) devido ao seu potencial para alcançar domínios chamados de não rituais.

Notemos que os modos como coletivos de cristãos carismáticos remetem-se negativamente aos acontecimentos alcunhados de rituais impulsionam a necessidade de as análises de Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas recuperarem o conceito de ritual, o qual para se manter pertinente “[c]resce em complicação, e nessa mesma medida cai em termos de aplicação e replicação” (Velho, 2007bVELHO, Otávio. [2002] 2007b. “Mudanças epistemológicas e os estudos da religião”. In: VELHO, O., Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas . Rio de Janeiro, Topbooks , pp. 327-338. [2002]: 337), ou seja, vai perdendo “(...) o seu poder de convencimento” (2007b: 337). A partir de um problema similar, proponho tomar o caminho contrário: irei adiante com a maneira específica pela qual meus amigos denegavam “o ritual”, apostando assim em algumas das implicações teóricas de tal recusa (Holbraad e Pedersen, 2017HOLBRAAD, Martin e PEDERSEN, Morten Axel. 2017. The ontological turn: an anthropological exposition. Cambridge, Cambridge University Press.: 3-4). Não se trata de postular os limites gerais do conceito de ritual na antropologia, mas de discuti-lo atendo-me a uma situação particular que, no entanto, resvala em discussões mais amplas acerca do próprio arcabouço cristão desse conceito.

Talal Asad ressalta que no século XVIII, antes da emergência da definição antropológica, “o ritual” concernia às diretrizes de um livro, ou manual, cuja finalidade era determinar o modo como deviam se desenrolar as cerimônias (ou “ritos”) religiosas cristãs (1993: 56). Ele acrescenta que a doutrina da Reforma Protestante criou um primeiro hiato entre mundo exterior e crença interior. As ditas ritualizações católicas foram consideradas espúrias porque a ênfase “normativa” na prática consonante ao livro (mediata) ofuscava a importância daquilo que deveria permear a relação sincera ou interior com Deus (imediata), através da “crença”.

Matthew Engelke aponta que na “perspectiva (pós-)protestante/naturalista” de Edward B. Tylor os “(...) católicos romanos sofreriam de uma inabilidade como aquela dos primitivos para distinguir entre a representação e a coisa” (2012: 220; ver também Fenella Cannell (2007CANNELL, Fenella. 2007. “How does ritual matter?”. In: ASTUTI, R. et al. (orgs.), Questions of anthropology. London School of Economics Monographs on Social Anthropology, 76. Oxford, Berg, pp. 105-136.: 114)). Misturariam o que seria estritamente espiritual com a materialidade repulsiva do “ritual”, sendo acusados de “ritualistas” (Keane, 2007KEANE, Webb. 2007. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley, University of California Press.: 2).

Esses comentários me conduzem aos católicos com quem convivi, visto que foram alcançados pelas ressonâncias dessa história cismática e, portanto, atualizavam-na de alguma forma. Sempre me pareceu surpreendente que prevalecia, entre eles, o substantivo “rito” para designar a missa. Certa vez, toquei no assunto relativo à distinção entre rito e ritual com Luís, o fundador da Missão Eucarística Clamor dos Pobres, que tinha em 2013 trinta e nove anos. Sua pele era branca. Trabalhava como serralheiro. Ele afirmou que a diferenciação entre ambos era uma “coisa do povo [das pessoas que frequentavam a Igreja]. A palavra ritual está presente nos documentos da Igreja”. As “coisas do povo” diziam respeito muitas vezes às conclusões de que as pessoas que desejavam causar algum dano a outras “faziam um ritual” ou “levavam alguma coisa [um objeto] para ser consagrada em um ritual”.

A missa recebia assim a denominação de rito, criando um contraste com “o ritual”, que seria realizado no “Ocultismo, na feitiçaria, no Esoterismo, no Espiritismo, na Maçonaria, na Igreja Universal do Reino de Deus (doravante IURD) etc”. Não é um exagero afirmar que “o ritual” seria em tais circunstâncias considerado como algo “desorganizado”. O rito, entretanto, seguia os livros litúrgicos, enquanto delegações que emanavam de Deus. Ester e outras pessoas sempre me apontavam: “A mesma leitura do dia [na missa] é feita em todas as igrejas do mundo”.

Daquele primeiro hiato entre mundo interior e exterior, assinalado acima, advém um segundo: a mudança da ênfase nas diretrizes contidas em um manual em direção à performance transformou “o ritual”, no início do século XX, analiticamente em algo representacional, uma prática simbolizável (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 59-60, 77-78). Ou seja, o que era “(...) literalmente um roteiro [script] (...)” foi em direção ao “(...) comportamento, que em si mesmo é comparado a um texto (...)” (1993: 58). Tornou-se importante revelar o significado simbólico ou imaterial que subjaziria a um determinado comportamento.

Em suma, a predominância do caráter imaterial da interioridade/subjetividade conduziu à valorização da “crença” e também da “significação”. A transformação das coisas e das práticas em signos de valores imateriais sugere, assim, que uma determinada preocupação antropológica com o significado deriva de certa forma do próprio desenvolvimento do pensamento oriundo do reformismo protestante (Engelke e Tomlinson, 2006ENGELKE, Matthew e TOMLINSON, Matt. 2006. “Meaning, anthropology, Christianity”. In: ENGELKE, M. e TOMLINSON, M. (orgs.), The limits of meaning: case studies in the anthropology of Christianity. New York, Berghahn Books, pp. 1-37.: 1-2; Asad, 2010ASAD, Talal. [1993] 2010. “A construção da religião como uma categoria antropológica”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19: 263-284.: 265-268): aquele em que um sujeito, desde dentro, com sinceridade ou autonomamente, interpreta/significa uma realidade dada e externa.

Uma das lições mais importantes de Asad consiste em interrogar em que proporção a gênese moderna do simbolismo “(...) foi umas das pré-condições para a grande transformação conceitual da vida heterogênea [ou da diversidade cultural] (...) em um texto que se pode ler (...)” (1993: 79). Ele considera que na imaginação teórica propiciada pelo conceito igualmente moderno ou antropológico de ritual os “(...) símbolos precisam ser decodificados (...)”, o que salienta “(...) a preocupação de estabelecer o mais autoritativamente possível os significados das representações onde as explicações oferecidas pelos discursos indígenas são consideradas etnograficamente inadequadas ou incompletas” (1993: 60).

A suposta insuficiência das conceptualizações “indígenas” leva ao exercício intelectual em que elas são, primeiramente, construídas “(...) como simbólicas [desmaterializadas] (...) antes de se tornarem candidatas à interpretação (...)” (1993: 61). Além disso, “(...) é o etnógrafo quem identifica e classifica os símbolos” (1993: 61). Isso acentua uma forma de imaginar em que os acontecimentos denominados rituais são valorizados, entre outras coisas, devido à possibilidade de instauração de um padrão que pode estar prescritivamente na cultura, na moldura [frame], na replicação e no habitus (cf. Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas acima).

Ao contrário de suas atribuições positivas nas análises apresentadas no início desta seção, os fenômenos ditos rituais são quase sempre negativos entre alguns pentecostais e para meus amigos católicos: entre os primeiros, seriam um atributo do “outro” porque conduziriam ao formalismo e à introdução de mediações materiais e humanas espúrias, em detrimento do que seria exclusivamente espiritual. Entre os segundos, seriam também um atributo do “outro”, porque ocorreriam no Ocultismo, na feitiçaria, no Esoterismo, no Espiritismo, na Maçonaria, na IURD etc. e pela ausência de um livro, o que confere ao rito - seguindo com as inferências deles, expostas acima - um senso de ordem provinda diretamente de Deus.

Aqui cabe um acréscimo que reúne a um só tempo alguns analistas, católicos e pentecostais. A compreensão da celebração eucarística em termos simbólicos, uma operação que advém da Reforma Protestante, era rechaçada na vida de meus amigos por obscurecer o que eles diziam ser a verdade: a presença real de Deus na Eucaristia. Afirmar que esta é simbólica consiste em uma metaforização, um prolongamento da “linguagem protestante” (Bateson, 1996BATESON, Gregory. [1972] 1996.Metadiálogos. Lisboa, Gradiva. [1972]: 61). Desse modo, o metaforismo que as formas ditas rituais podem ampliar é negativo e antropocêntrico em relação à “linguagem católica” (1996: 61; cf. Engelke acima). A última afasta-se também de dois aspectos que são apontados como centrais para a definição de ritual em uma “linguagem acadêmica” particular: o simbolismo e a representação.

Feitos esses apontamentos, desejo ressaltar que jamais poderia tratar a vida de meus amigos como símbolos que se tornariam textos passíveis de leitura. Questionar se a libertação é “um ritual”, em conformidade com as ponderações deles, consiste em marcar sua insubmissão às imagens teóricas do padrão, do texto, da simbolização, da representação, da imaterialidade e da transcendência. Em vez disso, esses católicos afirmavam que Deus “está em tudo” e o Diabo “pode estar em tudo”. Essas presenças determinam um modo específico de conhecimento em que o divino e o maligno são “terceiros” irredutíveis a qualquer tentativa analítica que, ao “falar [arbitrariamente] sobre” a “vida nativa”, acaba por suprimi-los (Latour, 1994LATOUR, Bruno. [1991] 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro, Editora 34. [1991]: 38-40). Meus amigos, como notaremos, “falam junto com” e “a partir de” Deus. Volto-me agora à libertação, considerando as implicações concernentes à sua definição na literatura enquanto uma circunstância dita ritual. Retomo com mais vagar o que foi esboçado na Introdução.

Reparemos que não é incomum que a libertação, ao revés das nuanças negativas da “ritualidade” em mundos cristãos, seja amplamente abordada como um “evento”, cuja especificidade a define como “um ritual” (Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 2-3) que envolve uma “batalha espiritual” (Mariz, 1999MARIZ, Cecília Loreto. 1999. “A teologia da batalha espiritual: uma revisão da bibliografia”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, n. 47: 33-48.) e a expulsão de demônios (Csordas, 1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press.: 166-167; Meyer, 1998MEYER, Birgit. 1998. “Make a complete break with the past’: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse”. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3: 316-349.: 321; Bialecki, 2011BIALECKI, Jon. 2011. “Quiet deliverances”.In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians. New York and Oxford, Berghahn Books, pp. 249-276.: 250-251; Robbins, 2011bROBBINS, Joel. 2011b. “Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 31, n. 1: 11-31.: 17-19). Há uma narrativacentralnosestudosdo Cristianismoemquealibertação,“ritualmente”, teria como consequências padronizadas a “conversão” (Maués, 2002MAUÉS, Raymundo Heraldo. 2002. “Mudando de vida: a ‘conversão’ ao Pentecostalismo Católico”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2: 37-64.: 38) e, portanto, a transformação (a emergência acalentada de um novo eu), a “ressignificação” de si e da própria vida (Carranza, 1998CARRANZA, Brenda. 1998. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.: 153), e a ruptura (o enquadramento intencional do “antes e depois”) (Meyer, 1999MEYER, Birgit. 1999. Translating the Devil: religion and modernity among the Ewe in Ghana. Trenton and Asmara, Africa World Press.: 215; Robbins, 2007ROBBINS, Joel. 2007. “Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1: 5-38.: 10-11; Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 38 n. 12). A ênfase na descontinuidade ou na mudança ou na ruptura (sociais e interiores), enquanto aspectos centrais da conversão cristã, é o que faz Chris Hann (2012HANN, Chris. 2012. “Personhood, Christianity, modernity”. Anthropology of this Century, London, n. 3. Disponível em: Disponível em: http://aotcpress.com/articles/personhood-christianitymodernity/ Acessado em 20 de maio de 2018.
http://aotcpress.com/articles/personhood...
) insistir em algo digno de nota. Esse autor salienta, em consonância com a discussão de Asad (cf. acima) acerca do “ritual”, que alguns estudos, incluindo a análise paradigmática de Robbins (2004ROBBINS, Joel. 2004. Becoming sinners: Christianity and moral torment in a Papua New Guinean Society. Berkeley, University of California Press.), permanecem por conta daquela ênfase “(...) desatentos ao viés protestante que colore seus entendimentos do Cristianismo e da modernidade” (Hann, 2012HANN, Chris. 2012. “Personhood, Christianity, modernity”. Anthropology of this Century, London, n. 3. Disponível em: Disponível em: http://aotcpress.com/articles/personhood-christianitymodernity/ Acessado em 20 de maio de 2018.
http://aotcpress.com/articles/personhood...
; consultar também Cannell (2005CANNELL, Fenella. 2005. “The Christianity of anthropology”. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 11, n. 2: 335-356.: 340) e Mark S. Mosko (2015MOSKO, Mark S. 2015. “Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1: 361-393.: 363)). Essa ponderação de Hann pode ser estendida à libertação quando ela é apresentada enquanto um correlato da liberdade e do individualismo em seus sentidos modernos. Ao fim e ao cabo, a libertação é habitualmente associada à inferência de que a individualização seria o aspecto inerente à pessoa cristã nos vários Cristianismos existentes. Diria respeito, então, à feitura dita “ritual” de sujeitos autônomos, emancipados, autocontrolados, confundindo-se com noções usuais de liberdade que, ao privilegiarem a invenção de uma existência subjetivada, justapõem os modos de pensar de fiéis e analistas.

Em todo caso, libertar entre meus amigos não diz respeito à individualização e tampouco ao “ritual”. Partindo desses católicos, proponho que a libertação, para se tornar descritível em seus próprios termos, deve também ser apresentada também em relação a algo fundamental para eles: o fato de que os atributos de Deus são expressos pelo elemento de composição oni, o mesmo que tudo, todo. Se vou em direção a essas pessoas, elas diriam que “a libertação é diária”, pois o demônio “vai e volta”, assim como a pessoa “cai e levanta”. Ao mesmo tempo, a multiplicariam, porque, conforme uma de suas observações habituais, “Deus pode libertar do jeito que Ele quiser”. Isso abrange a ocorrência da libertação nas seguintes instâncias de suas vidas: na “Confissão”, na “cura interior”, na “cura de uma maldição”, na “cura de um trauma”, no “louvor”, no “amor”, no “perdão” e, sobretudo, de maneira inesperada, pois “só Deus sabe como libertar”.

Para a boa economia do argumento, dada a multiplicidade da libertação, manterei minha atenção no demônio, o que me levará ao Grupo de Oração, a Ester e, em seguida, à missa de cura e libertação celebrada pelo padre Felipe. Nas próximas páginas, procurarei salientar o modo como, segundo esses católicos, o “maligno” pode ser repelido. O intuito é apresentar novas inferências acerca da libertação que permitirão vislumbrar uma resposta a seguinte pergunta: que especificidades deteria uma teoria da libertação entre alguns católicos que denegam as circunstâncias ditas rituais?

A discussão adiante visa tentativamente assinalar que a libertação, na situação etnográfica em que estive, não pode ser considerada um fenômeno intitulado de ritual. Em síntese, procurarei destacar o caráter negativo desse fenômeno entre esses adeptos (cf. Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas acima) e, a partir disso, propor que entre eles libertar é vincular a Deus, que liberta de maneiras imprevisíveis, incalculáveis e insondáveis.

2. A LIBERTAÇÃO NA VIDA DOS MEUS AMIGOS

Quando conheci Ester, no ano de 2013, ela ainda tingia os cabelos em um tom violeta bem escuro, contrastando com sua pele branca. Tinha cinquenta e dois anos, era divorciada e trabalhava como auxiliar de cozinha em uma grande empresa na capital paulista. O ápice das reuniões do Grupo de Oração São Pio, fundado por ela, era a “adoração”, a exposição de Jesus Sacramentado (ou transubstanciado) no ostensório. Sem cessar, Ester insistia que o Grupo destinava-se ao “louvor”, por meio de canções, e às “orações de cura interior”: dos traumas, das maldições, do ressentimento, do rancor etc. que “abriam brechas” para um ataque maligno. Essas orações ocorriam ao longo dos “atendimentos individuais” realizados pelo “Ministério de Oração” que Ester conduzia como a principal “intercessora”, isto é, o “instrumento, o veículo, a ponte” que suplica, junto a Deus, pelos frequentadores do Grupo ou por quem quer que seja. Uma reunião semanal do Grupo durava em média duas horas e podia chegar a ter mais de cinquenta pessoas. As reuniões ocorriam na sala da edificação em que Ester morava com os pais e diversos outros familiares, onde havia uma pequena capela com pouco mais de três metros quadrados. As pessoas vinham da jornada de trabalho diretamente para o Grupo. Acomodavam-se em bancos, cadeiras e nos três sofás distribuídos pela sala, que em nenhum momento era esvaziada do vaivém das crianças e dos adultos que moravam na habitação. Depois que a maioria das pessoas ia embora, não era incomum que os intercessores ficassem na capela caso houvesse algum atendimento individual.

“FALE DE LIBERTAÇÃO”

Em uma noite de maio de 2013, Ester afirmou que Deus “ia me ajudar no estudo”. Ela se remetia ao “Seminário de Libertação” que tinha ocorrido no Grupo entre os meses de março e abril daquele mesmo ano. Não é incomum que grupos de oração carismáticos realizem seminários baseados em assuntos específicos. Encontros como esses envolvem oração, pregação e louvor. O intuito é que o aprendizado vincule as pessoas ainda mais intensamente com Deus.

Na capela, Ester afirmou: “Eu não sabia que você estava estudando, especificamente, libertação. E Deus me pediu para fazer isso [o Seminário], logo em seguida você me pediu autorização [para realizar a pesquisa]. Eu, simplesmente, estava numa missa, e Deus me falou: ‘Fale de libertação’... Você vê como o Espírito Santo age [inesperadamente]...”.

Olívia, uma amiga de Ester, foi quem a alertou que eu estava pesquisando a libertação:

“Ela [Olívia] pensou que eu estava fazendo o Seminário já para te ajudar, porque eu, pela Ester humana, queria ajudar. Eu falei: ‘Não! Deus quis ajudar o Ypuan. Ele [Deus] me inspirou o Seminário de Libertação...’. Até então [as pessoas] dizia[m]: ‘Libertação vai ter só se você for à missa [de cura e libertação] do padre Felipe... Se você for nessas igrejas pentecostais: [tem] sessão de descarrego, essas coisas todas...’. Não! ”.

Recordo-me que inicialmente estava vacilante acerca da maneira como poderia ir adiante com o trabalho porque propusera lidar com a libertação de demônios. A utilização do genitivo me trouxe uma limitação etnográfica. As pessoas se remetiam à libertação como uma coisa da vida, em vez de uma circunstância que se caracterizaria conceitualmente como ritual pelo ato de expulsar de um espírito maligno. A relevância do Seminário, conforme as palavras de Ester, era sobretudo uma maneira de fugir da ênfase na libertação enquanto algo que repercute na “gritaria” e no sensacionalismo ou no “exagero” e, digamos assim, no “ritualismo”. Este era atribuído indiretamente aos pentecostais, pois eles realizariam “sessões de descarrego”.

Ter a libertação como o assunto de um Seminário realça um dos modos como se afasta o demônio. Não há como desfiar os encontros aqui. Digo apenas que ao longo das pregações que o preencheram as relações com Deus foram salientadas por meio de noções de presença, proximidade, afastamento e, no limite, ausência, pois alguém podia tê-Lo perdido de vista. O pecado, por exemplo, gradualmente afastaria de Deus, todavia tal afastamento causaria outra proximidade: a do demônio. A distância criava o que meus amigos chamavam de “esquecimento de Deus” em suas vidas, devido ao “caminho” pelo qual alguém se enveredasse.

É crucial enfrentar algo incontornável: a irredutibilidade da vida dessas pessoas a qualquer conceptualização que obscureça a qualidade de vínculo do seu conhecimento (Garcia, 2019bGARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353.). Trata-se de um modo de saber em que se fala “junto com” e “a partir de” Deus. Essa qualidade confunde-se com a própria maneira como a pessoa era definida em termos, por assim dizer, moventes: a “pessoa com ou próxima de Deus” (que fala junto com e a partir d’Ele) ou a “pessoa longe de Deus” (que fala exclusivamente através de “seu humano”). Elas correspondem, respectivamente, aos termos livre e junto (próximo de Deus) e autônomo e afastado (distante de Deus) (ver Garcia, 2018GARCIA, Ypuan. 2018. ““Libertação” e conhecimento: autotransformação ou vínculo?”. Debates do NER, Porto Alegre, v. 1, n. 33: 137-173., 2019bGARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353.). Se o conhecimento é uma questão de “caminhar junto”, um aspecto central da libertação, as formas em que ele pode se tornar opaco e confuso incidem no cativeiro: a distância em relação a Deus, correlativa à proximidade com o demônio.

O Seminário trouxe à tona outra questão importante. O reconhecimento da libertação como uma dádiva divina dependia, conforme meus amigos, de “tomar posse” dessa dádiva. A expressão tomar posse tem menos a ver com se tornar proprietário de algo que com a descoberta de Deus na própria vida, o que redunda no ato de segui-Lo, de caminhar com Ele. Toma-se posse da cura e da graça não para ser o dono delas, mas para “testemunhá-las”, um ato de redistribuí-las com a própria vida (Garcia, 2018GARCIA, Ypuan. 2018. ““Libertação” e conhecimento: autotransformação ou vínculo?”. Debates do NER, Porto Alegre, v. 1, n. 33: 137-173.). As pessoas “têm” libertações no sentido de que descobrem e ressoam em suas próprias vidas a origem daquelas doações e o fato de “precisarem” delas. Por isso, é fundamental não negligenciar que a forma como as dádivas acontecem independe geralmente de propiciações ditas rituais; afinal, “só Deus sabe como libertar”. Sugerir, então, que a libertação decorre de acontecimentos denominados rituais obscurece que ela é uma coisa tão geral da vida quanto o ato de caminhar. Considerando que a libertação advém da aliança com Deus, esta pode ocasionar ao longo da caminhada, diriam meus amigos, a imprevisível doação divina dos dons carismáticos. Remeto-me, nas próximas páginas, a apenas um deles: a “palavra de ciência”.

A “VISÃO” E O “ATENDIMENTO INDIVIDUAL”

A palavra de ciência é o dom carismático por meio do qual a visão se revela. Geralmente, é definida pelas pessoas com quem convivi da seguinte forma: “Deus te dá ciência de alguma coisa que você não teria como saber se não fosse uma palavra direta d’Ele”. Haveria um sem-número de maneiras de me remeter às “visões” no Grupo de Oração. Em termos gerais, aqui estou de acordo com Csordas: a “visualização”, ou “visão”, compreende um “(...) modo de orientação no mundo (...)” (1994: 74). O sentido mais amplo dela, conforme meus amigos, é levar ao “encontro com Deus”, à “abertura” para Ele.

A verbalização não era o único modo pelo qual uma palavra de ciência era proferida: o dom manifestava-se, segundo esses católicos, por meio da visão (“ver diante de você”), da visualização (“ver mentalmente” e “ouvir mentalmente”) e também por meio de calafrios, acelerações no batimento cardíaco, dores de cabeça, bocejos etc. Não pretendo realizar uma discussão mais detida acerca da visão em universos carismáticos, mas sim destacar como, no Grupo de Oração, as visões ocorriam muitas vezes nos atendimentos individuais. Ainda assim, não era incomum que acontecessem durante a adoração a Jesus Sacramentado e, ao mesmo tempo, não se reduziam às reuniões, pois chegavam subitamente durante as orações pessoais matinais, vespertinas e noturnas, a caminho do trabalho, em uma ligação telefônica, no sonho etc. O atendimento possui uma relação de sinonímia com a “oração individual”. A oração torna-se individual pelo pedido da pessoa que a requer. Designá-la de individual nada mais é do que atender à solicitação. Não é aquilo que é feito para um só.

É muito mais um modo de se orar por alguém. Ora-se individualmente por alguém que precisa da “intercessão”.

Ainda em abril de 2013, Ester não opôs resistência ao meu pedido de assistir aos atendimentos individuais. Determinou, entretanto, que eu jamais citasse nominalmente quem recebia o atendimento. Além disso, sempre fez questão de dizer para as pessoas que eu estava ali porque acompanhava as orações por conta de um “trabalho” que eu realizava.

Na capela, as pessoas assentavam-se em uma cadeira e ficavam com o ostensório, que permanecia sobre um pequeno altar, a pouco mais de cinquenta centímetros da vista. A proximidade fazia com que o atendido ficasse face a face com Deus. Perguntava-se se havia o desejo de “partilhar” aquilo que o afligia “diante de Jesus”. O tom da rogação era sempre ameno. O início do atendimento era precedido por esse pedido, embora nem sempre se quisesse satisfazê-lo. Ficava-se calado. A visão era antecedida muitas vezes pelas seguintes súplicas conduzidas por Ester:

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. Senhor, Pai amado, Pai de misericórdia. Em nome de Jesus Cristo, pelo Espírito Santo, com a poderosa intercessão da Virgem Maria, São Miguel Arcanjo, Santo Padre Pio e do Santo Anjo da Guarda. Clamamos sobre ele[a], em nome dele[a], o sangue do Senhor. Ele[a] se coloca diante da Tua presença com todas as fraquezas, com todas as limitações. Venha em seu auxílio. Vem em socorro das necessidades dele[a]. Lava, Senhor. Cura, liberta”.

Orava-se em línguas (de maneira glossolálica) e, concomitantemente, com a “imposição de mãos” - estas abertas verticalmente e em direção às costas, cabeça e ombros do atendido -, recitava-se uma Ave-Maria e, tão logo a prece terminava, as visões eram “proclamadas” pelos intercessores.

“ELE MOSTRA O QUE ELE QUER E QUANDO ELE QUER”

Após o atendimento da família de uma jovem de vinte anos, em março de 2014, fiz a seguinte pergunta para Ester no interior da capela: “Quando você tem uma visão, isso “vem da sua cabeça” ou você vê?”. Ela respondeu: “Às vezes vê, como no caso agora do tacho; às vezes vem na sua mente, formando uma história”. Fiz mais uma indagação: “Mas quem faz isso [vir na sua cabeça]?”. Ela não titubeou: “O Espírito Santo. Não é uma coisa que você está esperando. Não é uma coisa que você maquina. Você está rezando, vem”. Não me dei por satisfeito e realizei outro questionamento: “Mas quando você já conhece o caso da pessoa, já muda um pouco? Se você atende a pessoa muitas vezes...”. Ela realçou: “Depende de como que Deus vai agir. Às vezes, você conhecendo a história, você se foca. Eu queria saber se tinha uma contaminação, e Deus mostrou. Agora, quando eu não sei história nenhuma e rezo, Ele mostra o que Ele quer e quando Ele quer”.

Entre meus amigos a libertação não se circunscrevia a momentos específicos e padronizáveis que a limitariam às propiciações advindas de enunciações ditas “rituais” e/ou “religiosas” (Csordas, 1997CSORDAS, Thomas J. 1997. Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press.: 212; Keane, 1997KEANE, Webb. 1997. “Religious language”. Annual Review of Anthropology, California, v. 26: 47-71.: 62-63; Lindhardt, 2011LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.: 5-6). Trata-se preferencialmente, como veremos adiante, de um assunto que desponta no discernimento, o qual se desdobra em meio à onipresença de Deus e à quase onipresença do demônio.

Nas próximas páginas me voltarei a uma situação específica do atendimento: o caso de Emily, que passava por um assédio severo do demônio. Essa circunstância torna saliente a maneira como a intercessão de Ester se efetuava de modo a evitar que houvesse manifestações do demônio na capela e, consequentemente, na sala. Além disso, realça que nem sempre as visões podem ocorrer, porque o atendimento não pode se concretizar, algo que deve ser discernido. Ressaltarei que a libertação, na oração, é algo que as pessoas têm e de que precisam, como dito anteriormente. Elas nunca diriam que alguém teve ou precisou de um “ritual de libertação”.

“AGORA QUE ELA ESTÁ CAMINHANDO, ELA VAI CONSEGUIR MAIS LIBERTAÇÕES”

A porta corrediça da capela foi aberta em uma noite de outubro de 2013. No interior estávamos Ester, mais três intercessores e eu. Emily pedira a oração individual depois do encerramento de uma reunião do Grupo. Trabalhava como enfermeira e tinha trinta anos. A cor de sua pele era branca. Ela partilhou o que segue: “Eu namorei muito tempo com um cara que frequentava... Não era Centro Espírita. Na verdade, era uma coisa mais pesada. Depois que eu terminei, eu comecei a frequentar a missa de cura e libertação”.

Disse que começou a se sentir bem com as idas à missa, porém diversos infortúnios começaram a assolá-la no trabalho e nas relações amorosas. Ela reputava isso ao ex-namorado: “Eu sei que ele fez trabalho [feitiçaria] em cemitérios”. Ester, dada a sua experiência nas orações, procedeu da seguinte maneira: “Emily, você vai fazer agora uma oração espontânea diante de Jesus. Você fala o seu nome todo. Renuncio a todo o mal, a todas as insídias de Satanás na minha vida e Te aceito, Jesus, como meu único Senhor e salvador. Obrigada, Senhor”. A oração de renúncia não chega a ser uma promessa solene, contudo possui uma propriedade vinculativa com Deus. Permanece-se frente a Jesus Sacramentado no ostensório. Ester atuava como a intercessora que criava uma trilha para a execução da oração. Ela iniciou: “Eu, Emily Gonçalves, renuncio a toda obra do mal [ela gagueja] na minha vida, a todas as insídias de Satanás na minha vida...”. Ester fez mais uma interrogação: “Você sabe rezar o Creio [Credo ou profissão de fé]?”.

Emily respondeu afirmativamente e iniciou, mas a gagueira que ela tivera na primeira oração ficou ainda mais intensa no Creio; logo depois, a voz embargou, levando-a a dizer aflitivamente: “Ah, eu não consigo”. A incompletude da enunciação foi discernida por Ester: “Realmente, esse rapaz fez uma maldadezinha com você, mas vai passar”. O propósito da fundadora do Grupo consistia em observar a severidade do assédio do demônio. A variação dessa intensidade levava a pessoa a ser orientada a procurar um padre. Indicava-se principalmente o padre Felipe devido à sua “unção”, porque atendia individualmente e pela maneira como Ester considerava que a intercessão do leigo não poderia se sobrepor à de qualquer sacerdote.

Não posso deixar de sublinhar que à proporção que Ester conduzia Emily a falar junto com e a partir de Deus a dificuldade em completar o Creio se evidenciava. Considerando o insucesso da moça, Ester pôs-se a inquiri-la acerca do tempo que não se confessava. Ela contou que não o fazia. Ester recomendou que ela se confessasse e sugeriu: “Da mesma forma que você está vindo até nós para colocar [o seu arrependimento] diante de Jesus, que está aqui, você vai colocar [também] diante do sacerdote (...) para ele te libertar de tudo isso que você passou. E, a partir daí, ter um novo contato com Deus, um novo convívio”. Emily não escondia a raiva que sentia do ex-namorado. Recebeu mais uma orientação. Uma das intercessoras presentes, Graziela, que estava perto de completar quarenta anos, tinha pele parda e trabalhava em uma empresa que desenvolvia aromas artificiais, interveio: “Reze por ele [o mesmo que interceder pelo ex-namorado], para que Deus te dê essa libertação. Perdoe ele... Deus vai curando... Basta você dar esse passo”.

Mesmo que a salvação seja pessoal, isso se dá pelo modo como uma pessoa intercede pela salvação das outras. Antes de seguirmos adiante, é preciso sublinhar que a intercessão possui um caráter recursivo: passa pela maneira como Ester intercede pelas pessoas nas orações, como estas mobilizam a intercessão da Virgem Maria, dos anjos, dos santos, e como as pessoas que recebem as orações devem também interceder por alguém que as agrediu. A generalização do ato de interceder tem a ver com a propagação da ação quando o terceiro, Deus, é irredutível. De início, considera-se (discerne-se), conforme meus amigos, que se é ou instrumento ou veículo ou ponte de Deus. Ninguém denegava, todavia, que uma pessoa podia ser “usada” pelo demônio. Em suma, interceder é algo que se faz junto com e a partir de Deus e a intenção é levar o “irmão” para mais próximo do “Pai”. A intercessão é também uma relação de sujeição irreversível a Ele, o que se afasta do suposto de que a libertação seja um correlato da liberdade em termos corriqueiramente modernos, isto é, como propulsora da autonomia e da emancipação.

Ester, além de avisar a Emily que não faria a oração devido à ausência da Confissão, explicitou algo importante: “Isso é um tratamento... Você precisa da libertação, Emily”. Não devemos concluir que Ester estivesse afirmando que “precisa[r] de libertação” consistia em momentos ditos rituais e terapêuticos, pois não é possível deduzir que a libertação se conclua quando o tratamento finda. Dá-se o contrário. No caso de Emily, como em qualquer outro, a libertação tem a ver com a caminhada, com a aliança e com a abertura para Deus. Não surpreende que Ester só rezaria para Emily sob as seguintes condições:

“Depois que você chegar aqui e falar: ‘Eu confessei, eu fui à missa, eu comunguei’. Antes disso, só você que vai falar com Jesus, e nós vamos ficar rezando... Isso faz parte da cura. Tem que ter o teu querer junto com o querer de Deus... e daí você ser liberta através da Confissão; através da Comunhão; depois, você vem para ser liberta através do louvor”.

Um dos aspectos centrais da libertação baseia-se na descoberta de que Deus é onipresente (“está em tudo” - inclusive no arbítrio humano, uma doação divina), logo as pessoas insistiam na primazia divina nos assuntos relativos a ela. Assim que Emily deixou a capela, Ester assinalou que a jovem provavelmente “manifesta[ria]” de maneira demoníaca se fosse ao padre Felipe. O fato de ter gaguejado quando rezou o Creio foi o que impeliu Ester, por meio do discernimento, a não insistir na oração:

“Ela podia cair [manifestar] aqui. Eu vou trabalhar amanhã cedo. Não pode nem falar nada. Daí ela confessa... Na hora que ela conseguir, reza um Pai Nosso. Se engasgar o Pai Nosso, é bispo. Não conseguir falar ‘e não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal’, é bispo [A incapacidade de recitar essa passagem do “Pai Nosso” indicaria um caso de “exorcismo”]”.

Ester, em primeiro lugar, não “cutuca[va]”, não provocava, o demônio, o que era um estilo do seu atendimento, uma maneira de conduzir a oração. Ela adotava uma maneira indireta para enfrentar o demônio. Em segundo lugar, ao se reter na cura interior, lidava com o maligno revelando outra relação: a com a Igreja. A estridência de uma manifestação demoníaca era delegada a um padre. Já seu Ministério devia libertar através de formas de luta espiritual tão fortes quanto o confronto direto, mas menos ruidosas: o amor, o louvor, o perdão etc. Em terceiro lugar afirmava, como esmiuçarei adiante, que enfrentar o demônio diretamente tinha consequências danosas. Por isso, estabelecia um meio de fazê-lo através de orações que atacavam as brechas onde o maligno se “agarrava”, pois ele “pode estar em tudo”.

Atentando a essas questões, penso que esperar pelas manifestações, por pessoas se contorcendo e gritando, circunscreveria como veremos abaixo a análise da libertação tanto ao sensacionalismo que meus amigos atribuiriam aos pentecostais quanto corroboraria a “ritualização” assinalada por alguns antropólogos. Não surpreende que muitos desses católicos permanecessem céticos a respeito de manifestações demoníacas nas missas de cura e libertação.

Emily retornaria mais duas vezes. No início da segunda quinzena de novembro, ela contou que a Confissão tinha acontecido. Esse seria seu último atendimento, a despeito de confirmar seu retorno na semana seguinte. Ester reiterou: “Ela ainda precisava de libertação... Agora que ela está caminhando, ela vai conseguir mais libertações. Pode ser até com lágrima”.

Não se soube ao certo quais libertações Emily conseguiu, mas o fato de Ester enunciar a libertação no plural é que me deixa à vontade para sublinhar que, considerando o caso que apresento, provavelmente ela não é “um ritual” devido ao seguinte motivo: à proporção que as ações de Deus são imprevisíveis, indefinidas e inconformes a um padrão ou a uma circunstância passível de marcação no tempo e propiciação em lugares determinados, não há como associá-las a encadeamentos ou fases sucessivas ou sequências, a repetições, a ordenações, a estados cambiantes, a prescrições culturais, a uma moldura [frame], a replicações, a um habitus etc. (cf. Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas na seção anterior). Ester concluiu: “O caminho que Deus usa para curar [e/ou libertar] só Ele sabe. Às vezes, uma porta bate, e a pessoa é curada [e/ou liberta]. De repente, a pessoa dá um espirro... ‘Nossa, eu preciso parar de usar droga’...”.

No lugar analítico a partir do qual se poderia interpretar ou “ler” (Asad 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 79) sequenciamentos, padronizações e ordenações que seriam tipicamente conferidos ao “ritual”, meus amigos reafirmavam uma “ordem” divina cujas qualidades específicas eram paradoxalmente as que seguem: onipresença, incomensurabilidade, incontrolabilidade, indeterminação etc. O desafio, portanto, é escapar de conceptualizações canônicas na disciplina que obscureceriam esse aspecto fundamental da vida dessas pessoas.

“... QUE O PRÓPRIO ESPÍRITO SANTO SOPRE NESTE LUGAR!”

Ao contrário do que Ester fazia no Grupo, era o padre Felipe quem enfrentava o demônio sem qualquer ocultamento. Aliás, não foram poucas as vezes que ouvi a primeira dizer que o segundo lidava com o maligno de maneira arriscada, porque o defrontava. Vou em direção ao sacerdote agora e ao modo como ele celebrava as “missas de cura e libertação”. Quando o conheci, ele tinha pouco mais de trinta anos. A pele era parda. O corpo magro e ágil permitia-lhe conduzir as missas cantando e dançando ao som de vários ritmos musicais que avivam temas cristãos. Destacavase pela forma como “arrastava multidões”, tendo obtido uma rápida popularidade através dos meios de comunicação voltados para os católicos. Eu fui levado até ele pelas pessoas que conheci no Grupo, onde era dito que seu “Ministério de Cura e Libertação” era formidável. Rapidamente ele soube que eu pretendia estudar a libertação e jamais criou qualquer oposição às minhas idas às missas.

Uma missa de cura e libertação é tida, entre essas pessoas, como “forte” e costuma ter uma duração prolongada. Na verdade, ela se diferencia de outras celebrações pela importância do louvor e da adoração a Jesus Sacramentado no ostensório. Nela, como se verá, há lugar para dois problemas mencionados acima: o da “ritualização” e o do exagero, de certo sensacionalismo que ela comportava. A suposta “ritualização” é problemática porque ela depende costumeiramente da ponderação de que há algo para interpretar ou que seja simbolizável (cf. Asad acima). No entanto, como disse na seção anterior, imputar à Eucaristia o simbolismo acarreta a metaforização envolvida na “linguagem protestante” (Bateson, 1996BATESON, Gregory. [1972] 1996.Metadiálogos. Lisboa, Gradiva.: 61). A importância que dou ao exagero consiste em marcar que há modos distintos ou quase concorrentes de lidar com as orações de cura e libertação na vida dos meus amigos.

Mesmo que o padre Felipe fosse, reconhecidamente, um intercessor poderosíssimo, isso não impedia que algumas pessoas discernissem com frequência que o “humano dele” não suportaria um combate tão intenso com o Inimigo, o Diabo, e que em suas celebrações ocorriam mais “surtos psicológicos” que “manifestações”, de fato, demoníacas. O Ministério de Oração do padre não diferia em natureza daquele de Ester. O contraste residia no grau em que ambos confrontavam o demônio.

Em uma de suas celebrações no mês de maio de 2013, ele rogou à Virgem Maria e ao Espírito Santo pela libertação e acrescentou: “A Igreja Católica faz uma afirmação clara: se o padre pede a libertação, vai ser libertado”. Nesse momento, ele estava na parte central do presbitério. Na condição de “Pessoa de Cristo [in Persona Christi]”, começou a exalar pela boca o sopro de Deus, o mesmo que fazer o ruah, termo hebraico para Espírito, mas que primariamente quer dizer vento, movimento, sopro. A onomatopeia amplificada pelo microfone era a de um vento forte:

“Shhhhhhhh: por Deus Pai, Criador, eu peço a cura física [o padre voltou a soprar]. Por Deus Filho, Redentor, eu peço a cura emocional [isto é, interior; e soprou novamente]. Por Deus Espírito Santo, Consolador, eu peço a libertação espiritual [soprou mais uma vez]... Há uma pessoa aqui que vai uivar e latir como um cão! Essa pessoa foi oferecida a um espírito de Cão! Vem, Espírito Santo! Vem curar, libertar e incendiar! Pelo nome de Jesus, seja posto em fuga todo mal para que o próprio Espírito Santo sopre neste lugar!”.

Irrompeu pela parte central da nave uma mulher branca, já mencionada na Introdução, com aproximadamente 30 anos, que latia compulsivamente diante do presbitério. O sacerdote ia em frente: “Não é para ficar olhando quem cai no chão. Porque a libertação é de espírito de Cobra... espírito Escarnecedor...”. Uma risada sarcástica foi ouvida por todos, além de uma mais estridente e alguns urros. Outra mulher chegou diante do presbitério e seu corpo logo foi ao chão, serpenteando.

Meus amigos afirmavam que o Espírito Santo “sopra onde quer” (João 3, 8). Considerando que Deus liberta da forma como quiser, de modo indeterminado, não surpreende que eles discordassem, ainda que discretamente, da intensidade com que esse sacerdote realizava o enfrentamento do demônio, algo que rendeu a ele problemas incontornáveis. Foi convidado pelo bispo a se retirar da Paróquia devido aos exageros que envolviam sua condução da celebração e ao som alto que incomodava a vizinhança. Em novembro de 2013, o padre contava que tinha retirado da entrada da Paróquia um “despacho de macumba” que, segundo ele, tinha a finalidade de afastá-lo do local. De modo jocoso, dizia que o “macumbeiro” era de “meia-tigela”, porque “não tinha dinheiro nem para comprar uma galinha” e a substituiu por “caldo Knorr”. O despacho tinha farofa amarela, o seu nome e o de outro padre. No mesmo mês, o sacerdote foi desligado da Paróquia, tornando-se, com a autorização do bispo, um padre liberado de obrigações diocesanas. Posso afirmar que alguns dos católicos com quem convivi diriam que fizeram “um ritual para ele”.

Ester, que tinha intimidade com o padre, afirmou que o seu “temperamento” o fizera cair em uma “cilada do demônio”. Certa vez, ela me levou a uma “missa de cura e libertação” realizada por outro padre em que as maneiras de desafiar o demônio eram mais brandas: “Você viu que não tem aquela gritaria do padre Felipe. É a mesma coisa, só que de outro jeito. Fiz isso para você comparar”. Dizia que esta era a maneira “mais correta” porque o padre, mesmo estando “na Pessoa de Cristo”, humanamente não aguentaria encarar francamente o demônio por muito tempo.

Apesar dessas diferenças, é possível afirmar que a libertação não acontece simplesmente pela ação de Ester e do padre. Ambos não realizavam “um ritual”, segundo as noções acadêmicas que apresentamos anteriormente. Libertar vai ao encontro da vinculação, do compromisso, da aproximação cada vez mais forte com Deus, um ser imprevisível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retorno agora à pergunta com que iniciei o artigo: quais são as implicações teóricas decorrentes da manutenção do suposto de que ocorrências ditas rituais, que invocam constantemente algum tipo de padrão, vicejam entre pessoas que geralmente as rejeitam?

Presumo que a dificuldade observada na literatura acerca do Cristianismo surja da presunção de que libertar seja um correlato de noções corriqueiras de liberdade e, por conseguinte, forneça imagens modernas em que pessoas são desatadas, desembaraçadas. Essa ênfase repercute também o “(...) grande valor que a conversão protestante coloca nos poderes humanos de autotransformação [interiores], o que contribui para ou compartilha de uma característica definidora das visões euro-americanas de modernidade” (Keane, 2007KEANE, Webb. 2007. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley, University of California Press.: 179) e da própria “ritualização” da liberdade. Esses aspectos terminam por equacionar os eventos ditos rituais (transformação) com a libertação (autotransformação), empalidecendo o modo como as pessoas com quem convivi recusavam esse entrelaçamento. Descuidar-se disso me levaria equivocadamente, na situação etnográfica em que estive, a “descrever ou observar rituais”, o que iria em direção oposta às considerações de meus amigos.

Propositivamente, recupero a indagação que encerra a seção anterior (que especificidades deteria uma teoria da libertação entre alguns católicos que denegam as circunstâncias ditas rituais?) e afirmo que essa teoria deve voltar-se ao modo como eles conceptualizavam a liberdade, que era tida especificamente enquanto aliança ou vínculo com Deus em Sua incomensurabilidade. Isto se distingue dos destinos de um sujeito autônomo ou emancipado: aquele que, por um lado, se “libertou” de maneira moderna e/ou protestante das aparências enganosas de uma realidade dada, externa e material e que, por outro, constrói o mundo desde dentro (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.; Keane, 2007KEANE, Webb. 2007. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley, University of California Press.: 179), através de uma condição existencial que valoriza a imaterialidade do significado.

Em consonância com a interrogação logo acima, faço então uma última: em que medida o conceito de ritual discutido nas páginas anteriores é relevante para a análise de qualquer “(...) atividade (...) densamente padronizada” (Bialecki, 2017BIALECKI, Jon. 2017. ““Religion” after religion, “ritual” after ritual”. Chapter published in The Routledge Companion to Contemporary Anthropology. Mimeo. Bíblia Sagrada Ave Maria: edição de estudos. 2011. São Paulo, Editora Ave-Maria.: 1) de meus amigos? Chama a atenção que a própria replicação de padrões, regularidades e ordenações - ou seja, de um meta-padrão que por ser inerente ao conceito de ritual perdura em suas inúmeras conceptualizações - é o que permite imputar arbitrariamente a feitura de atividades tidas como rituais a pessoas que geralmente, e de modo diferencial, recusavam “o ritual”: alguns pentecostais e meus amigos católicos. Desse modo, é que este artigo foi em um sentido contrário à persistência daquele conceito por meio de suas flexões enquanto prescrição cultural, moldura [frame], replicação e habitus etc. (cf. Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas), apostando em seu caráter negativo entre as pessoas com quem convivi.

Não negligencio a importância que essas abordagens detêm em outras situações etnográficas. Ainda assim, considero crucial assinalar como a singularidade de meus amigos me permite abrir outro flanco para enfrentar as questões trazidas à baila aqui acerca da libertação. Sugiro que o conceito antropológico de ritual e suas recuperações e revisões, no caso que apresento, revelam-se teoricamente contraproducentes, à medida que a esses católicos não importa tanto se as aparições divina e demoníaca são, por exemplo, formais ou informais, mas sim que Deus está em tudo e o Diabo pode estar em tudo. Isto torna improvável circunscrever os assuntos da libertação a qualquer modalidade de padrão que os ditos rituais revelariam, pois a onipresença de Deus implica que tanto Ele quanto os vínculos que com Ele são mantidos não se amoldam a nenhuma padronização ou redução analítica. Em suma, a imprevisibilidade, indeterminação, insondabilidade, incontrolabilidade e incomensurabilidade são algumas das qualidades específicas da “ordem” advinda d’Ele, o que torna pouco convincente subsumi-la a uma classe de eventos que ao permitir que se esboce uma ordem fomenta abstrações que privilegiam sucessões, sequências ou repetições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ASAD, Talal. 1987. “On ritual and discipline in medieval Christian monasticism”. Economy and Society, London, v. 16, n. 2: 159-203.
  • ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.
  • ASAD, Talal. 1996. “Comments on conversion”. In: van der VEER, P. (org.), Conversion to modernities: the globalization of Christianity New York and London, Routledge, pp. 263-273.
  • ASAD, Talal. [1993] 2010. “A construção da religião como uma categoria antropológica”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19: 263-284.
  • BATESON, Gregory. [1972] 1996.Metadiálogos Lisboa, Gradiva.
  • BELL, Catherine. 1992. Ritual theory, ritual practice Oxford, Oxford University Press.
  • BIALECKI, Jon. 2011. “Quiet deliverances”.In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians New York and Oxford, Berghahn Books, pp. 249-276.
  • BIALECKI, Jon. 2014. “Does God exist in methodological atheism? on Tanya Luhrmann’s When God talks back and Bruno Latour”. Anthropology of Consciousness, v. 25, n. 1: 32-52.
  • BIALECKI, Jon. 2017. ““Religion” after religion, “ritual” after ritual”. Chapter published in The Routledge Companion to Contemporary Anthropology Mimeo. Bíblia Sagrada Ave Maria: edição de estudos 2011. São Paulo, Editora Ave-Maria.
  • BONFIM, Evandro. 2012. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • CANNELL, Fenella. 2005. “The Christianity of anthropology”. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 11, n. 2: 335-356.
  • CANNELL, Fenella. 2007. “How does ritual matter?”. In: ASTUTI, R. et al. (orgs.), Questions of anthropology London School of Economics Monographs on Social Anthropology, 76. Oxford, Berg, pp. 105-136.
  • CARRANZA, Brenda. 1998. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências Campinas, Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
  • CARRANZA, Brenda e MARIZ, Cecília Loreto. 2009. “Novas comunidades católicas: por que crescem?”. In: CARRANZA, B. et al. (orgs.), Novas comunidades católicas: em busca do espaço pósmoderno. Aparecida, Ideias e Letras, pp. 139-170.
  • COLEMAN, Simon. 2011. “Presence and prophecy in charismatic ritual”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 198-219.
  • COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brechapara o demônio: alibertaçãoentre Católicos na cidade de São Paulo São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.
  • CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing Berkeley, University of California Press.
  • CSORDAS, Thomas J. 1997. Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press.
  • CSORDAS, Thomas J. 2011. “Ritualization of life”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 129-151.
  • DUARTE, Luiz Fernando Dias. 2012. “O paradoxo de Bergson: diferença e holismo na antropologia do Ocidente”. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3: 417-448.
  • ENGELKE, Matthew e TOMLINSON, Matt. 2006. “Meaning, anthropology, Christianity”. In: ENGELKE, M. e TOMLINSON, M. (orgs.), The limits of meaning: case studies in the anthropology of Christianity New York, Berghahn Books, pp. 1-37.
  • ENGELKE, Matthew. 2012. “Material religion”. In: ORSI, R. A. (org.), The Cambridge Companion to Religious Studies New York, Cambridge University Press, pp. 209-229.
  • GARCIA, Ypuan. 2014. “A “libertação de demônios” como cotidianidade: esboço de um estudo etnográfico”. Perifèria. Revista de Recerca i Formació en Antropologia, Barcelona, v. 19, n. 1: 4-27.
  • GARCIA, Ypuan. 2018. ““Libertação” e conhecimento: autotransformação ou vínculo?”. Debates do NER, Porto Alegre, v. 1, n. 33: 137-173.
  • GARCIA, Ypuan. 2019a. ““Irmãos em Cristo”, “mãe na fé” e “pai espiritual”: filiação a Deus e parentesco humano”. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 39, n. 1: 77-100.
  • GARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353.
  • GARCIA, Ypuan. 2019c. ““Libertação”, “caridade” e o regime da troca com Deus”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 34, n. 101: 1-20.
  • HANN, Chris. 2012. “Personhood, Christianity, modernity”. Anthropology of this Century, London, n. 3. Disponível em: Disponível em: http://aotcpress.com/articles/personhood-christianitymodernity/ Acessado em 20 de maio de 2018.
    » http://aotcpress.com/articles/personhood-christianitymodernity/
  • HOLBRAAD, Martin e PEDERSEN, Morten Axel. 2017. The ontological turn: an anthropological exposition Cambridge, Cambridge University Press.
  • HUMPHREY, Caroline. 2007. “Alternative freedoms”. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v. 151, n. 1: 1-10.
  • KEANE, Webb. 1997. “Religious language”. Annual Review of Anthropology, California, v. 26: 47-71.
  • KEANE, Webb. 2007. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter Berkeley, University of California Press.
  • LATOUR, Bruno. [1991] 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica Rio de Janeiro, Editora 34.
  • LEACH, Edmund R. 1966. “Ritualization in man in relation to conceptual and social development”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences, London, v. 251, n. 772: 403-408.
  • LINDHARDT, Martin. 2011. “Introduction”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 1-48.
  • MALINOWSKI, Bronislaw. 1923. “Supplement I: the problem of meaning in primitive languages”. In: OGDEN, C. K. e RICHARDS, I. A, The meaning of meaning: a study of the influence of language upon thought and of the science of symbolism New York, Harvest Book, pp. 296-336.
  • MARIZ, Cecília Loreto. 1994. “Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo”. In: ANTONIAZZI, A. et al. (orgs.), Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do Pentecostalismo. Petrópolis, Vozes, pp. 204-224.
  • MARIZ, Cecília Loreto. 1999. “A teologia da batalha espiritual: uma revisão da bibliografia”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo, n. 47: 33-48.
  • MAUÉS, Raymundo Heraldo. 2002. “Mudando de vida: a ‘conversão’ ao Pentecostalismo Católico”. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2: 37-64.
  • MAYBLIN, Maya et al.. 2017. “Introduction: the anthropology of Catholicism”. In: MAYBLIN. M. et al. (orgs.), The anthropology of Catholicism: a reader California, University of California Press, pp. 1-29.
  • MEYER, Birgit. 1998. “Make a complete break with the past’: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse”. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3: 316-349.
  • MEYER, Birgit. 1999. Translating the Devil: religion and modernity among the Ewe in Ghana. Trenton and Asmara, Africa World Press.
  • MOSKO, Mark S. 2015. “Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person”. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1: 361-393.
  • ROBBINS, Joel. 2004. Becoming sinners: Christianity and moral torment in a Papua New Guinean Society. Berkeley, University of California Press.
  • ROBBINS, Joel. 2007. “Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1: 5-38.
  • ROBBINS, Joel. 2011a. “The obvious aspects of Pentecostalism: ritual and Pentecostal globalization”. In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians . New York and Oxford, Berghahn Books , pp. 49-67.
  • ROBBINS, Joel. 2011b. “Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 31, n. 1: 11-31.
  • STEIL, Carlos Alberto. 2004. “Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou saída do Catolicismo? uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS)”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 24, n. 1: 11-36.
  • STEIL, Carlos Alberto. 2006. “Os demônios geracionais. A herança dos antepassados na determinação das escolhas e das trajetórias pessoais”. In: DUARTE, L. F. D. et al. (orgs.), Família e religião Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, pp. 219-239.
  • STRATHERN, Marilyn. 1996. “1989 debate The concept of society is theoretically obsolete. Part I: the presentations. For the motion (1)”. In: INGOLD, T. (org.), Key debates in anthropology London, Routledge, pp. 50-55.
  • TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. [1979] 1985. “A performative approach to ritual”.In: TAMBIAH, S. J., Culture, thought, and social action: an anthropological perspective Cambridge and London, Harvard University Press, pp. 123-166.
  • TURNER, Victor W. [1969] 1974. O processo ritual: estrutura e antiestrutura Petrópolis, Vozes.
  • VELHO, Otávio. [1987] 2007a. “O cativeiro da Besta-Fera”. In: VELHO, O., Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas Rio de Janeiro, Topbooks, pp. 103-133.
  • VELHO, Otávio. [2002] 2007b. “Mudanças epistemológicas e os estudos da religião”. In: VELHO, O., Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas . Rio de Janeiro, Topbooks , pp. 327-338.
  • WAGNER, Roy. 1984. “Ritual as communication: order, meaning, and secrecy in Melanesian initiation rites”. Annual Review of Anthropology, California, v. 13: 143-155.
  • 1
    Agradeço a Otávio Velho, Amir Geiger e Ciméa B. Bevilaqua pelos valiosos comentários e incentivos dos mais diversos ao longo da elaboração deste texto. Sou grato também à leitura cuidadosa realizada pelos(as) pareceristas.
  • 2
    Os nomes dispostos ao longo do artigo são majoritariamente fictícios
  • 3
    No início do doutorado, eu pretendia estudar a “libertação de demônios” na RCC, a partir de seus grupos de oração. Contudo, meu intento malogrou quando tentei me comunicar com a coordenação estadual do Ministério de Cura e Libertação da RCC do estado de São Paulo/SP (Costa, 2017COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre Católicos na cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Em meio a essa situação, uma antropóloga que havia trabalhado com outra comunidade católica na capital paulista me levou a uma das reuniões do Grupo. Ester não opôs qualquer resistência ao pedido subsequente que fiz para realizar a pesquisa. A importância que atribuí ao saber dela e de outras pessoas foi decisiva para o cultivo, na situação etnográfica em que me encontrava, de uma intimidade que nos tornou amigos. A grande paciência que tiveram comigo diante da pouca familiaridade que eu tinha com o Cristianismo e, por consequência, com suas variações só pode ser descrita como um gesto marcante de amizade. Esse esclarecimento, atinente às minhas relações com essas pessoas, está presente com poucas mudanças em Garcia (2019aGARCIA, Ypuan. 2019a. ““Irmãos em Cristo”, “mãe na fé” e “pai espiritual”: filiação a Deus e parentesco humano”. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 39, n. 1: 77-100.: 79, 98 n. 5).
  • 4
    As traduções dos textos e dos termos em língua estrangeira são de inteira responsabilidade minha.
  • 5
    Meus amigos costumavam chamar os cristãos de qualquer denominação protestante de “evangélicos” e, em menor medida, de “pentecostais”.Aqui, em consonância com eles, estou adotando o vocábulo pentecostal com o intuito de marcar a diferença entre formas de Cristianismo protestantes e católicas que dão grande importância aos carismas e à relação cotidiana com Deus. Em nenhum momento, negligencio que o termo pentecostal é extremamente abrangente e que antecede o surgimento do Carismatismo. Em suma, a alusão a ele é apenas para destacar que há carismáticos católicos e não católicos.
  • 6
    Os trabalhos anteriores de Thomas J. Csordas (1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press., 1997CSORDAS, Thomas J. 1997. Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press.) são fundamentais em relação ao Catolicismo Carismático.
  • 7
    Insistir irrefletidamente na “(...) nitidez de um dualismo imaginado entre protestantes/católicos em termos de religiosidades [respectivamente] mentalista/ materialista (...)” (Meyer apud Mayblin et al., 2017MAYBLIN, Maya et al.. 2017. “Introduction: the anthropology of Catholicism”. In: MAYBLIN. M. et al. (orgs.), The anthropology of Catholicism: a reader. California, University of California Press, pp. 1-29.: 24) pode acarretar em uma limitação de perspectiva. As diferenças são apresentadas aqui através de seu valor heurístico.
  • 8
    Embora à primeira vista tal enunciado possa suscitar um “padrão”, veremos abaixo que este não necessariamente coincide com o padrão advindo do conceito antropológico de ritual. Digo isso porque a “ordem” que meus amigos enfatizavam detém uma qualidade específica, entre outras: é divinamente incomensurável, não possuindo correspondência com qualquer ordem estabelecida em termos exclusivamente humanos uma designação que em regra é conferida nas análises ao, já teoricamente contestado (Strathern, 1996STRATHERN, Marilyn. 1996. “1989 debate The concept of society is theoretically obsolete. Part I: the presentations. For the motion (1)”. In: INGOLD, T. (org.), Key debates in anthropology. London, Routledge, pp. 50-55.), conceito moderno de sociedade. Ademais, para esses católicos, “a sociedade” por retirar sua força das limitações irremediáveis da vontade humana (cf. adiante) tem, digamos assim, um potencial entrópico, desorganizador.
  • 9
    Seria possível acrescentar que o caráter pragmático, social e simbólico atribuído às formas ditas rituais levou à sua universalização como conceito e introduziu formas díspares de defini-lo. Resumidamente, apresento algumas delas: uma tentativa de lidar pragmaticamente com o meio ambiente (Bronislaw Malinowski); um mecanismo regulatório que dá continuidade às estruturas sociais temporalmente (Alfred R. Radcliffe-Brown); umaforma de comunicação em que as mensagens culturaissão transmitidas (Edmund R. Leach; ver também Roy Wagner (1984WAGNER, Roy. 1984. “Ritual as communication: order, meaning, and secrecy in Melanesian initiation rites”. Annual Review of Anthropology, California, v. 13: 143-155.: 143-144) e Stanley J. Tambiah (1985 [1979]TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. [1979] 1985. “A performative approach to ritual”.In: TAMBIAH, S. J., Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge and London, Harvard University Press, pp. 123-166.: 126, 128)); um momento em que a própria estrutura social pode ser transformada (ver Victor W. Turner (1974 [1969]TURNER, Victor W. [1969] 1974. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis, Vozes.: 157)) (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 60). Desse conjunto de definições, nos reteremos adiante, somente nos contornos pragmáticos e comunicativos imputados ao “ritual”.
  • 10
    Mais à frente, nos reportaremos à abordagem que Asad desenvolveu com o intuito de se afastar dessa tendência semiótica que enforma o conceito de ritual.
  • 11
    A esse respeito, ver os comentários de Asad sobre o trabalho de Alfred Gell na Melanésia (apudAsad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 61 n. 7). Consultar também Wagner (1984WAGNER, Roy. 1984. “Ritual as communication: order, meaning, and secrecy in Melanesian initiation rites”. Annual Review of Anthropology, California, v. 13: 143-155.:146-148) e as críticas de Asad (1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 60 n. 5) a Wagner.
  • 12
    Essa juntura está longe de ser descuidada e tampouco acidental pois, como bem sublinha Luiz Fernando Dias Duarte, tangencia a “(...) substituição do entranhamento sacramental “tradicional” (encarnado na posição católica) pela racionalização da “metáfora”, distanciada, moderna e protestante, num resumo do longo processo de racionalização da cultura ocidental” (2012: 421; ver também Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 78).
  • 13
    Carlos A. Steil, embora denomine a libertação de ritual, escapa habilmente em seu trabalho entre católicos de cariz carismático, na cidade de Porto Alegre/RS, da sua subsunção ao conceito canônico de “conversão”:uma “(...) adesão à revelação objetiva de uma verdade bíblico-teológica e moral” (2006: 233 n. 13). Sobre uma crítica pertinente do conceito de conversão, consultar Asad (1996ASAD, Talal. 1996. “Comments on conversion”. In: van der VEER, P. (org.), Conversion to modernities: the globalization of Christianity. New York and London, Routledge, pp. 263-273.: 265-266).
  • 14
    Convém salientar que Birgit Meyer sublinha, a partir de seu trabalho seminal em Gana, que o “(...) pentecostalismo busca romper com uma ‘tradição’ ou ‘passado’ que ele mesmo ajudou a construir, empenhando-se assim em uma dialética de lembrança e esquecimento” (1998: 318). Em todo caso, a autora marca a existência da “analogia” entre “(...) a conversão [protestante/ pentecostal] em termos de uma ruptura com o passado e a autodefinição da modernidade em termos de progresso e renovação contínua” (1998: 317). Essa analogia perdura nos estudos do Cristianismo. Meyer é seguida por Lindhardt, que realizou pesquisa no Chile. Ele corrobora a imagem de que a “(...) ênfase do ritual na ruptura é o elemento dramático que o conecta com uma ampla gama de experiências humanas (...) Além disso, as experiências de ruptura na conversão e na pósconversão (como as lutas em curso com o “mundo” e as forças demoníacas) compartilham elementos importantes com outras experiências de rupturas pessoais e sociais” (Lindhardt, 2011: 38 n. 12). Robbins, que realizou seu trabalho de campo na Melanésia, também é influenciado por Meyer e assevera que os “(...) ritos [ou rituais] de libertação (...) operam para desconectar as pessoas dos relacionamentos passados” (Robbins, 2011bROBBINS, Joel. 2011b. “Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião e Sociedade , Rio de Janeiro, v. 31, n. 1: 11-31.: 19, 25, 2007ROBBINS, Joel. 2007. “Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1: 5-38.: 11).
  • 15
    Cecília Loreto Mariz, oportunamente, assinala que a liberdade, entre os pentecostais que se recuperaram do alcoolismo, “se reporta a uma submissão a Deus” (1994: 207). Destaca igualmente que “ser livre não é seguir os desejos individuais” (1994: 207).Trata-se, preferencialmente, de seguir os desígnios d’Ele. Todavia, ao enfatizar que a libertação conduz ao âmbito “ético-racional do “indivíduo”” (1994: 205), a autora acaba por equacionar a relação com Deus com a efetivação de formas de vida modernas, eticizadas e racionalizadas (1994: 220). Esta observação está reproduzida, com ligeiras modificações, em Garcia (2019bGARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353.: 339 n. 18).
  • 16
    Algumas passagens deste parágrafo encontramse reproduzidas, com algumas alterações, em Garcia (2019bGARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353.: 328-329).
  • 17
    O ostensório é uma peça de ourivesaria ricamente ornada em que se deposita a hóstia já consagrada.
  • 18
    Adiante, retornarei a esses atendimentos.
  • 19
    Além de Ester, o Ministério de Oração era composto de cinco intercessores que geralmente se revezavam, pois os atendimentos podiam ocorrer nos dias em que as reuniões do Grupo aconteciam ou, dependendo da severidade da aflição, a qualquer momento. Enfim, nem sempre todos estavam simultaneamente presentes.
  • 20
    Os temas do Seminário, que durou cinco semanas, foram consecutivamente os seguintes: “A verdade que liberta”, baseada no Evangelho segundo São João (8, 32): “conhecereis a verdade e a verdade vos livrará [ou libertará]”; “A liberdade em servir a Deus”; “Só o amor liberta”; “O perdão que liberta”; “O louvor que liberta”. Para uma apresentação detalhada de cada um deles, ver Costa (2017COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre Católicos na cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 226-247).
  • 21
    A expressão “Ester humana” refere-se a outra: o “humano da pessoa”, que muitas vezes é assimilado ao vocábulo “fraqueza”. A pessoa, desde a “Queda do Paraíso”, é definida por esses católicos como essencialmente “fraca”. Em geral, é por meio do “discernimento”, um dom divino, que se distingue se a origem de uma inspiração é divina, maligna ou humana. O demônio, segundo meus amigos, “age na fraqueza, confunde”, obscurecendo o discernimento.
  • 22
    À primeira vista, essa afirmação pareceria replicar algo já dito por Csordas (cf. acima). No entanto, a análise que empreendo, partindo de meus amigos, baseia-se no fato de que não bastaria problematizar, tal como esse autor, as formulações canônicas do “ritual” e voltar-se à “ritualização da vida” (1997: 74, 2011). Na análise de Csordas, isso redunda na reafirmação do conceito de habitus (2011: 148), o qual daria conta da reprodução de disposições que operam “culturalmente” por repetição. Entretanto, ir adiante com essas asserções ofusca algo capital entre os católicos com quem convivi: o caráter incalculável das ações de Deus em qualquer instância de suas vidas. Mais à frente, retornarei a esse assunto.
  • 23
    O trabalho de Csordas (1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press.) é o mais extenso na problematização desse carisma.
  • 24
    Destaco que não está entre os propósitos deste artigo abordar a libertação por meio da cura, um de seus aspectos centrais. Justifico a omissão porque o assunto já foi debatido anteriormente (Garcia, 2014GARCIA, Ypuan. 2014. “A “libertação de demônios” como cotidianidade: esboço de um estudo etnográfico”. Perifèria. Revista de Recerca i Formació en Antropologia, Barcelona, v. 19, n. 1: 4-27.; Costa, 2017COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre Católicos na cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).
  • 25
    Dizia-se o prenome da pessoa que estava sendo atendida.
  • 26
    Vir da cabeça corresponde ao humano da pessoa; ver, a Deus.
  • 27
    A remissão ao utensílio de cozinha correspondia ao fato de que a jovem tinha comido um alimento “contaminado” o mesmo que “consagrado” em “um ritual”, afirmariam meus amigos na casa do namorado, que não contava com a aprovação de seus pais. Ester aconselhou que ela fosse bebendo a água benta para que se “descontaminasse”, consultasse um médico, pois ela tinha problemas renais,e fosse à missa: “O padre abençoa a água e você vai bebendo para curar e libertar”.
  • 28
    A unção é a ação do Espírito Santo na pessoa em um determinado momento. A pessoa consegue escutar de Deus o que precisa ser falado, agindo em nome d’Ele.
  • 29
    A libertação em relação ao exorcismo é, em termos etnográficos, notadamente mais extensiva. A necessidade de realizar um exorcismo, chamado nos documentos eclesiásticos de “ritual”, decorre de algo fundamental e que o torna raro para os meus amigos, que aliás pouco falavam acerca dele: a dissolução total da distância entre a pessoa e o demônio, um “mau” movimento por assim dizer aniquilador, está implicada no fato de o verbo “possuir”, designado exclusivamente a Deus, tornarse atributo da ação demoníaca.
  • 30
    Acerca da possibilidade de a libertação ocorrer de modo brando também entre pentecostais, ver Bialecki (2011BIALECKI, Jon. 2011. “Quiet deliverances”.In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians. New York and Oxford, Berghahn Books, pp. 249-276.: 251-253). Essa similaridade decorre, a meu ver, do caráter ilimitado que é reputado à ação divina em mundos cristãos, em lugar de serem, como sugerem Csordas (1994CSORDAS, Thomas J. 1994. The sacred self: A cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley, University of California Press.: 168-174) e igualmente Bialecki (2011BIALECKI, Jon. 2011. “Quiet deliverances”.In: LINDHARDT, M. (org.), Practicing the faith: the ritual life of PentecostalCharismatic Christians. New York and Oxford, Berghahn Books, pp. 249-276.: 250), transformações intrínsecas ao clichê de que a libertação é um evento dito ritual.
  • 31
    Um(a) parecerista, a quem sou grato, sublinhou oportunamente que minha tentativa de delinear o pouco alcance analítico do conceito de ritual, a partir da circunstância etnográfica em que me baseio, pode soar artificial pois o atendimento individual reverbera uma forma de “ritualização”. Um(a) segundo(a) parecerista, a quem também agradeço, fez uma observação semelhante e igualmente pertinente a respeito do atendimento, o qual delimitaria uma “sequência” de feição ritual. O(A) primeiro(a) avaliador(a) sugeriu que a análise escaparia desse impasse por meio de autores, tais como Malinowski (1923MALINOWSKI, Bronislaw. 1923. “Supplement I: the problem of meaning in primitive languages”. In: OGDEN, C. K. e RICHARDS, I. A, The meaning of meaning: a study of the influence of language upon thought and of the science of symbolism. New York, Harvest Book, pp. 296-336.), Leach (1966LEACH, Edmund R. 1966. “Ritualization in man in relation to conceptual and social development”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences, London, v. 251, n. 772: 403-408.) e Tambiah (1985TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. [1979] 1985. “A performative approach to ritual”.In: TAMBIAH, S. J., Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge and London, Harvard University Press, pp. 123-166.), que atentaram para o caráter pragmático da linguagem. A conclusão de que “o ritual” é um fenômeno comunicativo presente em qualquer atividade humana coaduna-se com a inferência de que a “(...) proferição das palavras é em si um ritual” (Leach, 1966LEACH, Edmund R. 1966. “Ritualization in man in relation to conceptual and social development”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological Sciences, London, v. 251, n. 772: 403-408.: 407). No que diz respeito especificamente à tentativa de caracterizar as enunciações humanas, penso que a questão principal consiste em ressaltar como as remissões às circunstâncias ditas rituais, entre meus amigos, escapam da universalização de dilemas particulares do pensamento científico ocidental, os quais são potencializados pelo conceito moderno ou antropológico de ritual: os “(...) problemas complexos colocados por uma bifurcação inicial de pensamento e ação” (Bell, 1992BELL, Catherine. 1992. Ritual theory, ritual practice. Oxford, Oxford University Press.: 6). Em geral, o propósito aqui não é estabelecer uma negação em termos absolutos do que é ou não “um ritual”, mas sim relacionais. Trata-se de um questionamento às qualidades específicas das abstrações que o conceito antropológico de ritual (cf. Introdução) na maior parte das vezes estimula. Considerando que essas qualidades mostram pouco fôlego quando a libertação está etnograficamente implicada, é preciso criar um solo onde ela se torne descritível, sem que esteja sujeita à opacificação.
  • 32
    Aqui tendo a concordar com a observação precisa de um(a) dos(as) pareceristas de que, ao longo do artigo, “(...) há um excessivo atrelamento de “ritual” com uma abordagem semiótica, interpretativista, em detrimento de outras abordagens”. No entanto, as argumentações de Lindhardt, Robbins, Coleman e Csordas tentam repor a qualidade de sistema do conceito de ritual. O(A) parecerista notou que o próprio Asad (1987ASAD, Talal. 1987. “On ritual and discipline in medieval Christian monasticism”. Economy and Society, London, v. 16, n. 2: 159-203.), em um artigo no qual analisou os “ritos disciplinares” na vida monástica medieval, desenvolveu uma abordagem que efetua um deslocamento em relação ao emprego do conceito moderno de ritual. Os ritos disciplinares que levavam à constituição do “self virtuoso” ou seja, “obediente” a Deus (1987: 164-165) do cristão medieval incluíam modos adequados de ler, comer, dormir, trabalhar, rezar etc. que se afastavam da disjunção entre motivações internas e comportamento público, ou pensamento e ação (Bell, 1992BELL, Catherine. 1992. Ritual theory, ritual practice. Oxford, Oxford University Press.: 6), fomentadas por aquele conceito. Dadas essas singularidades, Asad acentua: a “(...) disciplina (...) me parece um conceito analítico mais viável para tal investigação do que ritual” (1987: 193) pois o último, ao ser empregado de modo “a-histórico” (1987: 164) na antropologia, é reificado. A meu ver, a limitação de Asad, não obstante sua argumentação magistral, está em posicionar de um lado a “disciplina” medieval e do outro a “crença” e o “simbolismo” modernos (Asad, 1993ASAD, Talal. [1988] 1993. “Toward a genealogy of the concept of ritual”. In: ASAD, T., Genealogies of religion. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, pp. 55-79.: 58, 2010: 269; Costa, 2017COSTA, Ypuan Garcia. 2017. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre Católicos na cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 127-130). Essas distintas formas históricas de “construção do self” dependem de um conceito reducionista de “poder” como artefato explicativo que as engloba. Negligencia-se, assim, a possibilidade de levar a sério a preeminência divina (Bialecki, 2014BIALECKI, Jon. 2014. “Does God exist in methodological atheism? on Tanya Luhrmann’s When God talks back and Bruno Latour”. Anthropology of Consciousness, v. 25, n. 1: 32-52.) nas concepções de vontade e vida humanas em mundos cristãos medievais e modernos.
  • 33
    Eu jamais ouvi as pessoas que eram atendidas individualmente ou que iam às missas dizerem que estavam indo a ou passavam por ou precisavam de “um ritual”.
  • 34
    Vai além do escopo deste artigo esmiuçar a especificidade do conceito de liberdade de meus amigos, um esforço já realizado em Garcia (2018GARCIA, Ypuan. 2018. ““Libertação” e conhecimento: autotransformação ou vínculo?”. Debates do NER, Porto Alegre, v. 1, n. 33: 137-173., 2019bGARCIA, Ypuan. 2019b. ““Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 25, n. 54: 323-353., 2019cGARCIA, Ypuan. 2019c. ““Libertação”, “caridade” e o regime da troca com Deus”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 34, n. 101: 1-20.). Ainda assim, cabe ressaltar que as questões colocadas pelo modo como a liberdade é singularmente formulada, entre eles, se aproximam das considerações de Caroline Humphrey (2007HUMPHREY, Caroline. 2007. “Alternative freedoms”. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v. 151, n. 1: 1-10.), as quais indicam, em importante análise, o caráter restrito de nossas ideias familiares de liberdade quando elas são exportadas, por exemplo, para o mundo russo, onde a noção de liberdade possui sentidos diversos. Se o conceito de ritual parece limitado em face da libertação, nossas concepções ordinárias de liberdade talvez passem por uma insuficiência análoga. Entre meus amigos católicos, a libertação como vínculo afasta-se de perspectivas liberais/universais acerca da liberdade (Humphrey, 2007HUMPHREY, Caroline. 2007. “Alternative freedoms”. Proceedings of the American Philosophical Society, Philadelphia, v. 151, n. 1: 1-10.: 1, 7), já que encarar a libertação como uma “ritualização” (uma padronização, sequenciamento e ordenamento) da liberdade (da emersão de um eu autônomo, emancipado, racional e rompido com o passado) a circunscreveria no máximo a uma retórica voltada para a compreensão de coletivos protestantes.
  • FINANCIAMENTO:

    Não de aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2018
  • Aceito
    15 Ago 2020
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com