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Fazendo corpos: reflexões sobre morte e canibalismo entre os Wari' à luz do perspectivismo

Resumos

A partir de uma etnografia detalhada do ritual funerário endocanibal, este artigo tem por objetivo refletir sobre o significado da morte e do canibalismo para os índios Wari' (Pakaa Nova, Rondônia, Brasil), a partir da noção de corpo como sede da visão de mundo e da diferença entre os seres. Conclui-se que a ingestão dos mortos é antes de tudo um meio de desumanizá-los, situando-os na posição de presas, diferenciando-os assim dos vivos que, por atuarem como predadores, adotam para si a posição de humanos. À luz do material wari', questiona-se algumas interpretações recorrentes a respeito dos rituais endocanibais das terras baixas sul-americanas, que se caracterizam por despir o ato de comer de uma de suas características essenciais: o seu potencial classificatório.

canibalismo; morte; Wari'


On the basis of detailed ethnographic analyses, the present article reflects on the significance of death and cannibalism among the Wari' (Pakaa Nova) of Rondonia, Brazil, specifically through consideration of the notion that the body, as the center of one's worldview, is the basis of differentiating between categories of beings. It is concluded that ingestion of the body through ritual endocannibalism is a means of dehumanizing the dead and simbolically transforming them into prey, as thus differentiates them from the living who, as predators, are perceived as human. Through the Wari' etnhographic material, several recurrent interpretations regarding ritual endocannibalism in South America are criticized, particularly insofar as they ignore one of its most essential characteristics: its classificatory potential.

canibalism; death; Wari'


Fazendo corpos: reflexões sobre morte e canibalismo entre os Wari' à luz do perspectivismo.

Aparecida Vilaça1 Notas 1 Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. A Finep, a Fundação Ford e a Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research financiaram o trabalho de campo entre os Wari. Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro as longas discussões que deram origem a este artigo, e a Tânia Stolze Lima a leitura crítica de uma de suas versões.

RESUMO: A partir de uma etnografia detalhada do ritual funerário endocanibal, este artigo tem por objetivo refletir sobre o significado da morte e do canibalismo para os índios Wari' (Pakaa Nova, Rondônia, Brasil), a partir da noção de corpo como sede da visão de mundo e da diferença entre os seres. Conclui-se que a ingestão dos mortos é antes de tudo um meio de desumanizá-los, situando-os na posição de presas, diferenciando-os assim dos vivos que, por atuarem como predadores, adotam para si a posição de humanos. À luz do material wari', questiona-se algumas interpretações recorrentes a respeito dos rituais endocanibais das terras baixas sul-americanas, que se caracterizam por despir o ato de comer de uma de suas características essenciais: o seu potencial classificatório.

PALAVRAS-CHAVE: canibalismo, morte, Wari'.

Introdução

Certo dia, perguntei a Orowam, xamã que tem seu espírito vivendo como onça pintada, se esses animais, humanos que são, também choravam e comiam seus mortos, ao modo dos Wari'.

"Chorariam se (ela) não vivesse . Mata-se onça com flecha e ela revive e parte. Vai até os seus. 'Eu cheguei. Estragaram o meu corpo'. 'É mesmo? O que te atingiu?' 'Uru (horok - Odontophorus gujanensis) me chupou'. Ela chega. Os animais olham a marca da flecha. Uwi, uwi (som)". [Orowam, 1996]

Orowam não quis dizer com isso que os Wari' jamais tenham sido bem sucedidos em matar uma onça: aos olhos do caçador a presa está morta. No entanto, seu espírito associa-se imediatamente a um novo corpo de onça, e volta para casa, para junto dos seus, trazendo consigo marcas que lembram vagamente o que lhe sucedeu: o ferimento em seu corpo é traduzido como uma bicada de ave.

Assim como as onças, todos os animais dotados de espírito têm o dom de não perceber a morte. É o caso dos veados, tema da continuação de minha conversa com Orowam, que contou com a interferência de Dina.

Aparecida: O veado também não sabe chorar?

Orowam: Choraria se fosse Wari'. Ele morre e vai embora. Mata-se o animal e ele aparece de novo [...] Os animais revivem.

A: E vocês, não revivem?

O: Revivemos. Nós vamos para a água. Foi isso o que eu te disse.

A: O espírito de vocês?

O: É, o nosso (inclusivo) espírito. Nosso espírito vai para a água.

A: Então, por que vocês choram? É como se não tivessem espírito.

Dina: Se revivêssemos na nossa casa... Mas não, só lá. Não voltamos.

Os Wari', ao morrerem, também revivem, mas em outro lugar. Seu espírito vai para o mundo subaquático dos mortos (a "água" mencionada por Orowam), onde, com aparência humana, passa a viver entre os seus parentes já falecidos. Se desejam retornar à terra, seja para ver os parentes, passear ou comer frutos, só podem fazê-lo na forma de queixada, quando são mortos pelos vivos, que os percebem como simples presas. Como os demais animais dotados de espírito, os queixadas não sofrem a própria morte, refazendo-se imediatamente em corpo idêntico e, no caso dos mortos wari', retornando à água. E assim eternamente.

A mortalidade, que seria aqui a consciência da morte, está vinculada a uma mudança de mundo físico e social, conseqüência de uma troca de corpo, entendida como trans-especiação. Os animais não morrem porque têm sempre o mesmo tipo de corpo, o que lhes permite viver eternamente entre as mesmas pessoas. Os Wari' morrem justamente porque passam a ter um corpo significativamente diferente, o que implica a impossibilidade de permanecerem no mesmo mundo, entendido como habitat e universo social2 Notas 1 Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. A Finep, a Fundação Ford e a Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research financiaram o trabalho de campo entre os Wari. Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro as longas discussões que deram origem a este artigo, e a Tânia Stolze Lima a leitura crítica de uma de suas versões. . A morte, por implicar afastamento, gera tristeza, choro e luto, e também produz um corpo, o cadáver, que os Wari' escolheram comer. A transformação do corpo, se concretizada na vida depois da morte, é iniciada antes, no momento em que ele se faz cadáver, e que esse cadáver é comido. Essa transformação, veremos, é na verdade a objetivação de um corpo que de outro modo é tomado como inexistente. A produção de corpos é o tema deste artigo.

***

Povo falante de língua da família Txapakura, os Wari' vivem no oeste do estado de Rondônia, Brasil, e somam hoje cerca de 1800 pessoas. Conhecidos na literatura antropológica, até os anos 1960, como Pakaa Nova, constituem, juntamente com os Moré, que habitam a Bolívia, os últimos remanescentes desta família lingüística. Wari' não é um etnônimo; em sua língua, significa "gente", "nós", "seres humanos", e é esta a forma como são conhecidos pelos Brancos da região. Até o final dos anos 1960 - quando quase todos os grupos wari' decidiram se aproximar pacificamente dos Brancos, com quem vinham guerreando desde pelo menos o início deste século - costumavam comer seus mortos e os inimigos que matavam. Ficaram por isso conhecidos publicamente, através de reportagens que evidenciavam a prática das duas formas de canibalismo, o funerário e o guerreiro. Atualmente, os mortos são enterrados, e não se mata mais os inimigos. A prática do canibalismo, entretanto, persiste na forma figurada ou puramente simbólica: os Wari' comem presas animais que concebem como humanas e matam e comem metaforicamente os seus afins, embriagando-os com chicha de milho azeda3 3 Para uma análise do abandono do canibalismo, ver Vilaça, 1996 b. .

A morte como perspectiva

O objetivo deste artigo é refletir sobre o significado da morte e do canibalismo funerário para os Wari' a partir da noção de corpo como sede da visão de mundo e da diferença entre os seres. O que se pretende é responder a duas questões centrais, estreitamente relacionadas: por que só os Wari' morrem? Por que comem seus mortos?

Viveiros de Castro observou que, para diversos povos ameríndios, "o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos" (1996:115). Não se trata de múltiplas representações do mundo, como postula o relativismo, já que "todos os seres vêem ('representam') o mundo da mesma maneira - o que muda é o mundo que eles vêem." (:127). Esse "perspectivismo" caracteriza-se como "multinaturalismo", visto que o que se tem é uma diversidade de "naturezas" e uma só "cultura". Os animais, por exemplo, "vêem da mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos" (:128). O ponto de vista é uma propriedade do espírito, já que só os seres dotados de espírito são sujeitos, humanos, mas "a diferença entre os pontos de vista (e um ponto de vista não é senão diferença) não está na alma, pois esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte - a diferença é dada pela especificidade dos corpos." (Viveiros de Castro, 1996)4 3 Para uma análise do abandono do canibalismo, ver Vilaça, 1996 b. .

Os Wari' são um caso exemplar desse pensamento perspectivista. Para eles o corpo (kwere - , sempre seguido de sufixo indicador de posse) é o lugar da personalidade, é o que define a pessoa, animal, planta ou coisa. Tudo o que existe tem um corpo, que é o que lhe dá características próprias. Os Wari' costumam dizer: "Je kwere" ("meu corpo é assim"), que significa: "esse é meu jeito", "eu sou assim mesmo". E também quando se referem a animais ou coisas. Se perguntamos a eles por que os queixadas andam em bando, eles dirão: "Je kwerein mijak"("o corpo do queixada é assim")5 3 Para uma análise do abandono do canibalismo, ver Vilaça, 1996 b. ; ou por que a água é fria: "Je kwerein kom" ("o corpo da água é assim").

A presença do espírito (jam -, sempre acompanhado de sufixo indicador de posse) é exclusiva a alguns tipos de seres: Wari', inimigos (índios de outras etnias e Brancos), determinados mamíferos (onça, queixada, anta, caitetu, macaco-prego, veado roxo e veado vermelho, dentre outros), todos os peixes, algumas aves, todos os tipos de abelhas e cobras, além de alguns poucos vegetais6 3 Para uma análise do abandono do canibalismo, ver Vilaça, 1996 b. . O espírito é o que caracteriza a humanidade, o que torna qualquer ser, wari' ("nós" no plural inclusivo, "ser humano", "gente").

Assim, os animais dotados de espírito são tidos como humanos. Têm um corpo humano, que pode ser visto pelos xamãs, vivem em casas, bebem chicha de milho e comem alimentos assados e cozidos. Desse modo, enquanto o corpo (kwere-) é o lugar da diferença - é o que diferencia as espécies e os indivíduos - , o espírito é o lugar da semelhança. Todos os seres dotados de humanidade têm, digamos assim, uma mesma cultura, que é a cultura dos Wari'. Por isso caçam, matam inimigos, usam o fogo para preparar seus alimentos, cultivam o milho etc. No entanto, esse é o modo como eles vêem as coisas. Os Wari' sabem que a onça mata as suas presas com seu corpo e com seus dentes, e que as come cruas. Mas para a onça, ou melhor, do ponto de vista da onça (que o xamã pode partilhar, mas não os demais Wari'), ela flecha a sua presa como um Wari' mata uma caça ou um inimigo, leva-a para sua casa e a entrega à sua esposa, que vai prepará-la usando o fogo.

A humanidade é um ponto de vista sobre o mundo, que é o da cultura wari'. Desse modo, a diferença entre os seres dotados de espírito não é da ordem da cultura, mas do corpo, da natureza. É porque o corpo da onça é assim que ela vê o sangue que bebe como se fosse chicha de milho, enquanto que para a anta, por exemplo, a chicha é o barro. Entretanto, o que se entende aqui por corpo não é o mesmo que nós entendemos. Não se trata de um substrato físico cuja constituição é determinada parte geneticamente, parte pelo ambiente. O corpo contém afeto, memória, que não podem ser traduzidos imediatamente em termos de 'composição química' ou 'processo fisiológico'. Como observou Viveiros de Castro:

O que estou chamando de "corpo", portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas. [Viveiros de Castro, 1996:128]

O corpo é também subjetividade, e a sua expressão é o ponto de vista. Voltaremos a esse ponto na análise do ritual funerário, quando nos detivermos na visão diferenciada do cadáver do avô por netos de idades diferentes.

É importante perceber a reflexividade do perspectivismo: um determinado ser (exceção feita aos xamãs) só vê como humano a si mesmo e a seus companheiros de espécie, ou seja, àqueles que compartilham com ele o mesmo corpo. Percebendo-se como humanos (wari'), os seres dotados de espírito vêem os Wari' como presas, karawa ("animal", "comida"), que é o modo como são percebidos pelos Wari'. Podem então predá-los, flechando o seu espírito. Algumas vezes, essa agressão é concebida como uma caçada, em que os animais vêem os Wari' como presas animais (karawa). Em outras, é concebida como guerra: os animais percebem os Wari' como inimigos (wijam) e atacam. Mas se inimigos e presas são de algum modo equivalentes, é preciso dizer que a categoria mais abrangente, e que se opõe a wari', é karawa e não wijam. Os inimigos são presas, karawa, como fica claro no modo dos Wari' tratarem os Brancos. Somos todos wijam, e assim se referem a mim quando não estou por perto ou quando não sabem o meu nome. Diante de mim, entretanto, essa referência é tida como uma enorme falta de cortesia, como revelou uma mãe ao chamar a atenção de sua filha pequena que, ao ver que eu me aproximava, pôs-se a gritar: "wijam está chegando!". "Se ela fosse karawa estaria andando de quatro!", repreendeu a mãe. A predação tem como modelo a predação cinegética, meio pelo qual se obtém comida7 7 Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996. .

Se cada tipo de ser vê a si mesmo como humano, podemos dizer que seu corpo é invisível para ele, dada a identidade entre o que vê e o seu espírito. Do ponto de vista dos Wari', por exemplo, somente os animais têm um corpo objetivo, visível, diferente de seu espírito. A visibilidade de seu próprio corpo está nos olhos dos animais e dos xamãs. Tudo se passa como se o corpo humano, por ser comum, não servisse à diferenciação, ou não pudesse ocupar o lugar do corpo. Como observou Viveiros de Castro:

Não por acaso, então, a objetivação social máxima dos corpos, sua máxima particularização expressa na decoração e exibição ritual, é ao mesmo tempo sua máxima animalização [...], quando eles são recobertos por plumas, cores, grafismos, máscaras e outras próteses animais [...] O modelo do espírito é o espírito humano, mas o modelo do corpo é o corpo animal. [Viveiros de Castro, 1996:131]

O que ocorre aqui é uma assimetria decorrente justamente da propriedade reflexiva do perspectivismo: o próprio corpo é, por definição, invisível, em oposição ao corpo do outro que é visível, e sempre como um corpo animal (modo como os animais também percebem os Wari'). A visibilidade do corpo animal, ou do corpo como animal, está na sua identidade contrastiva. Em outras palavras, o modelo de corpo é o corpo animal, como notou Viveiros de Castro, porque os animais conseguem, aos olhos dos Wari', produzir um corpo que singulariza a sua espécie. Ser bicho não é ser objeto, outra coisa que humano; ser bicho é ser um tipo de humano que sabe se fazer diferente aos olhos dos Wari'.

Esse é o momento de voltarmos ao tema de abertura deste artigo: a mortalidade dos humanos em contraposição à imortalidade dos animais. A minha hipótese é que essa diferença está intrinsecamente relacionada ao problema da assimetria entre humanos e animais devido à visibilidade dos corpos. Os animais são imortais porque já têm um corpo visível, um corpo animal. A morte é, para os humanos, uma necessidade lógica, porque só morrendo são capazes de produzir um corpo. E não me refiro somente ao corpo definitiva e completamente animal que terão depois de mortos (queixadas), mas também ao cadáver que, inerte, inchado e podre, não é mais um simples e genérico corpo humano; o cadáver é um corpo de Wari'. É interessante aqui uma comparação com os Yanomami através das observações de Clastres e Lizot sobre o cadáver:

Car ce n'est véritablement plus le même, celui qui vivait il y a un instant, personne en relation à d'autres personnes, et mué soudain en autre chose: corps privé de vie, mais doué pourtant d'une "présence" toute-puissante ou, pour dire encore comme Bataille, "hanté" par l'esprit qui l'animait; chose sacrée, si dissemblable de la personne et si proche d'elle, qu'on ne sait bien souvent de quel mot la nommer. "La grande chose non petite", disent les indiens guarani du cadavre. [Clastres e Lizot, 1978:111]

O cadáver, que os Wari' chamam jama, é evidentemente outra coisa que um corpo de vivo. Para Clastres e Lizot, o cadáver yanomami revela não uma ausência, a do espírito, mas uma presença, a do indivíduo, concebido aqui como "sujeito, indivíduo singular" (:111). Poderíamos dizer que os Yanomami percebem a si mesmos como indivíduos quando na presença de um corpo que é distinto, o que sugere que, também para eles, o corpo humano, dos vivos, é demasiadamente genérico e pouco marcado para servir de diferenciador. No entanto, o que parece estar em evidência aqui é o indivíduo, e não a espécie, como no caso wari'. Se, ao contemplarem o cadáver, os Wari' podem finalmente ver o seu próprio corpo, como se diante de um espelho, usufruindo de um privilégio antes exclusivo aos xamãs, o que estão percebendo antes de tudo é o corpo da sua espécie, o corpo de Wari', como já disse. Mas trata-se de uma questão de escala: o importante é essa propriedade do cadáver, que é um corpo, de tornar visível uma singularidade, seja do indivíduo, seja da espécie. A morte é certamente um momento privilegiado de resolução da assimetria de perspectivas que apontei acima. Mas só para alguns. Os parentes próximos do morto continuam a ver no cadáver o ente querido. Será preciso que os não-parentes comam o cadáver para que os primeiros possam finalmente enxergá-lo.

Para que essa relação entre mortalidade e invisibilidade do corpo possa ser afirmada, é preciso mostrar que o morto é identificado a uma presa, a um corpo animal, visto que este é o modelo do corpo. Isso não é problema, como já observei, para o morto enquanto antepassado: o seu corpo será definitivamente um corpo animal. No que diz respeito ao cadáver, essa identidade é claramente expressa no ritual funerário, quando ele é comido. É o que veremos a seguir.

O canto fúnebre

Para a descrição do funeral, tomarei como referência básica as diversas entrevistas que realizei recentemente (1996) sobre esse tema. Os informantes, todos com mais de sessenta anos, participaram eles mesmos de diversos funerais "tradicionais". Procurarei, na medida do possível, descrever o funeral utilizando diretamente o discurso wari'.

Quando uma pessoa se encontra gravemente doente, seus parentes sentam-se em torno do corpo inerte, tocam-no em suas diversas partes, choram e cantam o canto fúnebre. A melodia é arrastada e se fala sobre a vida do moribundo e sua relação com o cantador. Lembro-me do dia em que Maxun Hat feriu-se em um jogo de futebol. Sentindo muita dor, gritando, ele foi carregado até sua casa, onde permaneceu deitado sobre uma esteira (os Wari' dormem no chão, sobre esteiras). Logo, sua mãe sentou-se junto a ele, acomodando sua cabeça em seu colo. Em torno estavam seus irmãos homens e mulheres, seu pai e sua esposa. Cada um cantava por si, lembrando ora as caçadas que realizaram juntos, ora a generosidade do doente em oferecer comida, dentre outras coisas. Não se usa nomes próprios, mas somente termos de parentesco consangüíneo ("meu pai", "minha mãe", "meu filho", "meu avô" etc.), ou então a tecnonímia, quando o parentesco é criado através da primeira geração descendente. Diz-se então: "pai de meus filhos", "mãe de meus filhos", "avó de meus filhos" etc. O próprio doente chora e canta. Maxun Hat dizia: "eu vou morrer e só tenho uma filha, só uma!" Ao que alguém respondia, cantando: "ele vai morrer e só tem uma filha". Felizmente, isso não aconteceu. Em alguns dias Maxun Hat estava curado de sua costela quebrada.

No momento da morte o choro se intensifica. É então que começa a ficar mais evidente uma dicotomia já presente na relação com o doente: aquela entre os parentes e os não-parentes. Os primeiros são aqueles que choram de verdade; os outros, não choram, ou o fazem como que por educação, para se solidarizarem com os parentes. A diferença entre parentes e não-parentes ou, como dizem os Wari', entre os parentes verdadeiros, iri nari (onde iri é verdadeiro), e os xukun wari' (onde xukun é outro, entendendo-se aí "outra gente") ou nari paxi ("parentes mais ou menos") é central no rito funerário, e por isso é preciso explicar o que entendem por parente verdadeiro e falso.

Os Wari' concebem a possibilidade do parentesco em diferentes graus. No sentido mais amplo possível, dizem-se todos parentes entre si, por fazerem parte de uma mesma "natureza". Partilhar uma visão de mundo implica necessariamente parentesco, como me explicou Paletó:

Não somos parentes de verdade entre nós. Somos parentes à toa. Veja esse aqui (apontando para Harein), esse outro. Somos parentes entre nós. Não somos como você que só é parente do teu irmão mais novo, Dudu, do teu pai, tua mãe. Vocês gostam uns dos outros à toa. Por que vocês também não se fazem parentes? [Paletó, 1996]

Isso não quer dizer que esse parentesco que se estabelece com pessoas distantes seja puramente fictício e se resuma ao uso de termos de consangüinidade como vocativo e referência. Para os Wari', a simples constatação de que se vê o mundo do mesmo jeito (fala-se a mesma língua, têm-se os mesmos hábitos) supõe alguma consubstancialidade, que é o caráter definidor das relações de parentesco. E essa consubstancialidade, como já vimos, não é um dado genético, mas fruto da convivência, seja direta, de pessoas que vivem juntas, seja indireta, mediada por pessoas que são parentes. Desse modo, uma pessoa de outra etnia, se passar a viver com os Wari', alimentando-se como eles e com eles, e tomando cônjuge entre eles, transformar-se-á em Wari' e, como disse, todo Wari' é um parente. É por isso que Paletó me chama de filha. Não se trata de uma brincadeira, como ele fez questão de me explicar: com a nossa convivência estou me transformando em sua filha de verdade.

Os Wari' procuram enfatizar esse parentesco generalizado, buscando se referir a todas as pessoas com quem convivem, especialmente aos co-residentes, por um termo de consangüinidade. Vale acrescentar aqui que a terminologia de consangüinidade wari', de tipo "Crow" (com uma equação "Omaha"), não engloba posições de afinidade, que são classificadas por um conjunto distinto. Entretanto, esses termos raramente são utilizados como vocativos para os afins reais, usando-se, em seu lugar, o nome próprio. Como referência, usam-se termos de consangüinidade originários de relações genealógicas distantes (o casamento é interditado entre parentes próximos), ou a tecnonímia. Assim, um cunhado é chamado "pai de meus sobrinhos" ou um sogro "avô de meus filhos". O que se pretende nesses casos é não somente uma máxima extensão da consubstancialidade, mas também o mascaramento da afinidade, relação que os Wari' entendem como intrinsecamente tensa, foco de disputas e cisões. Os cônjuges, concretizado o casamento, são tornados consubstanciais por meio da intensa troca de substâncias corporais que ocorre entre eles: sêmen, líquidos vaginais e suor8 7 Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996. .

No sentido mais restrito, entretanto, parentes são aqueles que vivem juntos ou próximos, e com quem se pode traçar laços genealógicos precisos, especialmente os membros da família nuclear, com ênfase nos germanos de mesmo sexo. Possuem o mesmo corpo, dizem os Wari'. Avós, pais, irmãos dos pais e seus filhos, germanos, filhos, filhos dos germanos e netos, além dos cônjuges, seriam essencialmente o que os Wari' chamam de "parentes verdadeiros". Este seria o grupo mínimo dentro do qual as relações sexuais são consideradas incestuosas - com exceção evidente dos cônjuges - e a ingestão do cadáver impossível. Os outros são mais ou menos parentes, dependendo dos laços genealógicos, da proximidade física e dos interesses do momento. Serão aqui chamados de não-parentes, que é o modo como os Wari' costumam se referir a eles nas descrições dos funerais.

Se a diferença entre parentes próximos e distantes, e entre afins e consangüíneos é, com algum sucesso, mascarada no dia-a-dia, ela é necessariamente explicitada no funeral, e essa dicotomia, como já disse, é a parte central deste rito. Os não-parentes, "outra gente" ou "parentes distantes" são aqueles que vão preparar o funeral, cortar, assar e comer o cadáver. São preferencialmente afins reais, já que, dizem os Wari', dentre os não-parentes eles seriam os mais próximos, estando por isso dispostos a conduzir o funeral respeitando as instruções e os desejos dos parentes verdadeiros.

O período do apodrecimento

Pouco tempo depois da morte, um parente próximo, preferencialmente um irmão mais velho, pede que se retire o estrado de paxiúba de sua casa (sobre o qual se dorme), e que se coloque em seu lugar, no chão, uma esteira velha, para onde o cadáver é levado. Este irmão ou outro parente pede então a alguns rapazes não-parentes que partam correndo em direção a outras aldeias a fim de avisar e chamar os parentes verdadeiros que vivem longe. Durante todo o funeral, os diálogos rituais, entre parentes e não-parentes, são travados em forma de canto, na melodia do canto fúnebre. Os não-parentes são definidos por Paletó como sendo aqueles que, nesse momento, não choram, ou choram só um pouco.

"Os outros Wari', que não choram, que não são parentes. Se mandassem o Abraão (filho de Paletó) chamar... O Abraão não é parente, não chora. Chora só um pouquinho [...] Chora só um pouco, não chora completamente. Não fica triste completamente o que chora à toa. Os parentes dele (do morto) é que choram muito. Vão se arrastando até ele e dizem: Abraão, vá correndo chamar OroIram em Santo André para ele chorar o meu parente. 'Está bem'. Ele vai. Os que choram ficam esperando, esperando". [Paletó, 1996]

Como se vê, mesmo sendo "aqueles que não choram", os não-parentes, idealmente afins reais, mostram-se algo tristes, e volta e meia podem se aproximar do cadáver para cantar o canto fúnebre, quando chamam o morto por termos de parentesco consangüíneo ou por tecnonímia. Estes são os únicos meios pelos quais podem se referir ao morto, estando os termos de afinidade interditados nessa ocasião. Desse modo, o canto fúnebre, em oposição às tarefas rituais, é o lugar de uma certa mistura entre parentes e não-parentes. Isso fica evidente no choro do pai de Paulo, quando na morte de seu sogro (WF).

Paulo: O nosso pai se lamentava: "Morreu o avô de meus filhos, morreu o avô de meus filhos".

Aparecida: Como ele chorava?

Paulo: "Kawiji te" ("meu filho"). Ele (o morto) chamava o meu pai de pai. Nosso pai o chamava de "filho do meu irmão mais velho" (o mesmo termo que "filho" para ego masculino).

Avisados da morte, os parentes que vivem longe choram muito, e logo se dirigem para a aldeia do morto, numa viagem apressada, em que não levam consigo qualquer pertence. Paulo conta como sua mãe recebeu o aviso da morte do próprio pai.

Paulo: Meu avô estava muito pequeno (encolhido por velhice). Minha mãe pegava água e dava banho no pai dela. Então nosso pai foi para outra aldeia, Tain Kawijein. Foi para onde fomos. Foi minha mãe andar, meu avô morreu. Deixamos o nosso (inclusivo) avô e ele morreu.

Aparecida: Qual era a sua idade?

P: Como o Nelson (uns 10 anos). De manhãzinha chegou a pessoa que foi chamar a minha mãe. O pai de Awo Xohwara.

A: Que não era parente?

P: Que não era parente. Que era parente longe (nari pira). Ele veio andando. "Por que você veio, Maxun Taparape?" Ele disse, a minha mãe estava lá: "Teu pai morreu. Teu pai morreu de noite." "Wao, wao" (som do choro da mãe), chorou minha mãe. Minha mãe chorou muito. Meu pai chorou muito também.

Os parentes permanecem junto ao corpo, chorando e cantando, enquanto esperam a chegada dos parentes que vivem longe, o que pode demorar dois ou três dias, dado o tempo necessário para os deslocamentos. Enquanto isso o corpo apodrece: "O cabelo dele vai se soltando e ele incha completamente".

Paletó: Espera-se os Wari' que foram chamar. Espera-se, espera-se... Os rapazes vão para o caminho e ficam lá (esperando). Voltam. Nada (de chegarem os parentes). Diz aquele que chora, parente do morto: "Eles já deviam ter chegado!" Ele está angustiado, quer cortar logo o morto. Já está ficando podre [...] "Meu parente está ficando mole". "Se eles tivessem chegado..." "Espere, vamos esperar", dizem para ele (os seus parentes). "O sol vai subir. Se não chegarem, nós cortaremos."[...] Os rapazes ouvem no caminho: "Hei hei hei, aji te" (canto fúnebre). Eles voltam correndo para onde está aquele cujo parente morreu: "O teu irmão mais velho chegou!"

Aparecida: Quem é que fala isso?

Paletó: Os outros Wari' (xukun wari'). Não são os que choram que falam. Chega outro Wari', que só anda, que não chora: "Chegou o teu parente! Chegou o teu irmão mais velho!" Então ele chora forte. "Corram até o meu irmão mais velho! Deixem-no (o morto) aparecer para ele!" Eles o carregam. Aqui está o caminho por onde vem o irmão mais velho dele. Trazem o morto (jama) e deixam ali. Só fica o líquido dele (no lugar onde ele estava) [...] O morto tem que aparecer. É como se ele ficasse de pé . A língua sobressai na boca (devido ao inchamento). Os parentes que estão chegando vêem o morto e choram forte (Paletó faz o som). Correm para se agarrar no morto. Os que chegam ficam fedendo (porque o morto já está podre).

O inchamento é conseqüência do apodrecimento, que, segundo os Wari', é conseqüência da espera. Os parentes fazem questão de ver o cadáver íntegro.

Aparecida: Não dá para cortar rápido?

Paletó: Não dá. Espera-se, espera-se.

A: Se já tiverem cortado...

Paletó: Fica com raiva. "Vocês deveriam saber que eu estaria chegando!" (diria o parente).

O cadáver é depositado novamente sobre a esteira na casa em que estava sendo chorado. Ao que parece, o corpo permanecia sem ser cortado por cerca de dois dias. Nesse período, os parentes, e somente eles, tocam-no todo o tempo, encostam-se nele, abraçam-se a ele. A diferença entre parentes e não-parentes é evidente não só porque cabe aos últimos a execução das tarefas, mas também porque estes, mesmo que chorosos, não demonstram qualquer desespero e não procuram contato físico com o cadáver.

Paulo, ao relatar a morte de seu avô paterno, conta que, ao chegarem na aldeia onde estava o morto, ele, que tinha cerca de dez anos de idade, subiu no cadáver e se agarrou em seu pescoço, abraçando a cabeça enquanto chorava.

Paulo: Nosso avô estava deitado. "Io, io, io" (som de choro). Eu o peguei aqui (pelo pescoço). Montei nele (montado no peito, como que à cavalo).

Aparecida: Por que você montou? Falaram para você fazer isso?

P: Sei lá. Ninguém mandou. Eu estava chorando. Veio a Wem Xu (irmã mais nova de Paulo) e subiu na barriga do nosso avô. Os mais velhos ficavam no chão. Só nós é que subimos no nosso avô. Eu segurei a cabeça dele: "I, i, jeo te" (canto fúnebre, chamando o morto de avô, jeo) (Imita uma voz bem fina, como de criança). Eu era muito pequeno. Eu me lembrava muito do meu avô. Wem Xu também chorava: "Ei, ei, jeo te" (voz mais fina ainda) [...] Choramos, choramos. Paramos de chorar e fomos brincar em outras casas. Depois vinha a lembrança do nosso avô e sentávamos e chorávamos.

Um procedimento comum é deitarem-se sob o cadáver, uma pessoa sobre a outra, formando uma pilha de gente com o cadáver por cima. Diz-se que o cadáver sobe muito alto. Os que estão sob a pilha, sufocados, são retirados pelos não-parentes, que estão sempre por perto, vigilantes, prontos para controlar os acessos de desespero. Fica evidente aí a procura de uma identificação com o cadáver, já apontada por Conklin (1995:80), e que acontecerá em vários outros momentos, como veremos.

Enquanto as crianças pequenas mortas eram sempre levadas ao fogo antes do apodrecimento, possivelmente pelo fato de sua morte causar menos comoção e suportar um lamento mais breve, eram raros os adultos que não apodreciam. Alguns casos ocorreram com vítimas dos Brancos, quando os Wari' estavam em fuga: apressavam-se para assar e comer os mortos, e prosseguir o seu caminho. Tudo dependia, entretanto, de uma decisão dos parentes. Caso estivessem demasiadamente angustiados diante do cadáver em putrefação, poderiam pedir que fosse logo cortado. Parece ter sido o caso do avô de Paulo.

Paulo: De manhã bem cedinho cortaram-no. Nosso avô não inchou.

Aparecida: Por que não inchou?

Paulo: Sei lá. Tiveram pena de nós com nosso choro. "Cortem o nosso pai por causa do nosso sobrinho e da nossa sobrinha (referindo-se à Paulo e à sua irmã)!", disse o nosso tio materno, Wao Em.

No entanto, mesmo que os Wari' digam que a espera dos parentes é responsável pela demora em se dar início aos preparativos para o assamento, parece haver um interesse ativo na permanência do cadáver e em seu apodrecimento. A espera tem como conseqüência primeira um demorado período de contemplação do cadáver pelos parentes que já se encontram lá. Além disso, não podemos tomar como natural o fato dos demais parentes fazerem questão de ver o cadáver íntegro, a ponto de se fazerem raivosos se forem privados dessa visão. O que se evidencia aqui é, antes de tudo, um desejo de contemplação do cadáver que, em apodrecimento, é cada vez mais diferente de um corpo humano. A oportunidade de ver o próprio corpo, como sugeri acima, é valorizada pelos Wari', mesmo que os parentes não sejam plenamente capazes de ter essa visão diante do corpo íntegro; é preciso que ele seja esquartejado, assado e comido. De todo modo o apodrecimento não é uma simples conseqüência da espera, mas um modo de se transformar o corpo em cadáver. E essa transformação, se temos em conta a equivalência, na língua wari', entre "fresco" e "cru" (nenein), seria equivalente a um cozimento, como sugeri em outra ocasião (Vilaça, 1992).

Devemos considerar ainda o que dizem os Wari' sobre os cadáveres que são assados ainda frescos: são gostosos como carne de caça e comidos com prazer, com alguma voracidade até - comportamento que desagrada os parentes.

Paletó: É como caça quando não está podre. É quando todos os Wari' comem muito. Veja a minha esposa que foi morta por Branco, a mãe de Luisa. Logo que morreu, carregaram-na e deitaram-na, cortaram-na. Cortaram o cabelo dela, cortaram-na em pedaços e assaram-na.

A: Fresca (nenekem)?

Paletó: Realmente fresca. Assaram-na fresca. Se o Branco não a tivesse matado...

O apodrecimento é, portanto, uma espécie de cozimento extra, que constitui o cadáver enquanto tal, distinguindo-o mais e mais do corpo dos vivos, e que o diferencia das presas animais e dos inimigos, que são assados ainda frescos e comidos com prazer. Com isso os parentes tornam mais difícil o serviço a ser prestado pelos afins, que é o de comer o cadáver para mostrar que agora ele é outra coisa que um parente.

Cortando o cadáver

Segundo Paletó, o cadáver deve ser cortado na mesma hora do dia em que a morte ocorreu.

Paletó: Quando o sol já está dessa altura: "Já faz muito tempo que o nosso (inclusivo) irmão mais velho está deitado. Não quero mais." (dizem os parentes para os que chegaram). "Está bem". Então falam para aqueles que foram chamar, que não são parentes dele. Os que foram chamar é que vão cortar. "Vão para lá! Fiquem no estrado de paxiúba!" "Está bem!" Eles partem. Todos partem. Vão para a casa dos homens (onde dormem os rapazes solteiros). Todos os que vão cortar o morto vão embora, como se todo mundo fosse cortar. Chegam na casa dos homens e se sentam. Choram, choram (os parentes). Quando não querem mais chorar, dizem: "Vamos até eles. Vamos falar para eles do fogo para o nosso (inclusivo) irmão mais velho. Nosso irmão mais velho já devia estar assado." Choram, choram. Levam o morto também. Levam-no para falar do fogo dele. É como se o morto pedisse para ser cortado. Colocam o morto sobre uma pessoa que está de quatro no chão. (É assim: o morto fica como que montado sobre um cavalo, ereto, porque duas pessoas seguram os seus braços). "Tere, tere, tere "(som do deslocamento).

Aparecida: Por que o morto vai até a casa dos homens?

Paletó: "Vou falar do meu fogo!"

A: Como se estivesse vivo?

Paletó: É. Como se fosse dizer: "Cortem-me!"

A: Como é que se fala? Quem fala?

Paletó: Quem fala é gente de verdade (iri wari'), que está vivo.

A: O que ele diz?

Paletó: Ele diz: "Não queremos mais (ver) o nosso irmão mais velho. Cortem o meu irmão mais velho!". "Não, não quero, não quero" (diz o cortador). Ele não quer tocar o líquido podre. Está podre. "Cortem, cortem, não quero mais o meu irmão mais velho." "Não quero." "Fique de pé. Diga sim para ele. Por que você teima? Cortem rápido", diz um velho ficando de pé (repreendendo os que se recusam a prestar o serviço). Chora, chora (o que não é parente). Então fica de pé, pega uma faca e diz: "Vamos atrás de árvore!" Eles cortam uma árvore, para colocar ele (o morto) em cima.

O cadáver é levado de volta à casa do parente em que estava sendo chorado, e os rapazes não-parentes, ao que parece em número de dois, partem em busca de lenha de uma árvore determinada, de nome kijam. De volta, levam a lenha até a casa dos homens. Ela é amarrada em feixes, untada com urucum e enfeitada com penas de aves. O moquém (kitam) funerário é montado na casa onde o morto está sendo chorado. Ele é composto por esteios de casas da aldeia, que podem também servir de lenha, e untado com urucum. Pelo que pude entender de uma descrição, esse moquém tem uma forma triangular, com três, e não quatro extremidades, já que uma de suas hastes de sustentação é um dos esteios da casa.

Tudo pronto, o cadáver será cortado em pedaços, mas para isso os cortadores, geralmente os mesmos dois rapazes que buscaram a lenha, sugerem aos parentes que eles se retirem. Eles não suportam ver a mutilação do cadáver.

Paletó: "Que o parente dele vá para longe!" Se o teu pai morresse: "vá para longe, Aparecida! Para que você não veja mais o teu parente".

Aparecida: Os parentes vão para longe porque não querem ver o morto sendo cortado?

Paletó: Não se quer ver cortar Wari'.

A: Para onde eles vão?

Paletó: Vão para todas as outras casas. Ficam lá.

O cadáver será cortado sobre uma esteira nova, com uma lâmina de bambu afiada. É comum que um dos parentes verdadeiros, geralmente um homem, coloque-se sob o cadáver no momento do corte, de modo que os líquidos que escapam do corpo caiam sobre ele (que estará de barriga para baixo, de costas para o cadáver), evidenciando novamente uma tentativa de identificação com o cadáver:

"Parecia que estavam cortando o que estava vivo" [Paletó, 1996]

Paletó: Chega Wari' que gosta do parente dele: "Coloquem o meu irmão mais velho sobre mim, para que cortem o meu irmão mais velho." Levam-no.

Além dele, pode acontecer de permanecer junto ao parente morto uma outra pessoa, freqüentemente uma mulher, que irá receber em seu colo os órgãos internos do morto, e chorar sobre eles. Paulo descreve o momento em que seu avô foi cortado.

Paulo: Todos os filhos dele se afastaram. Nosso avô ficou deitado na esteira. Era um homem grande. "Façam com ele!" (Cortem-no!)

Aparecida: Os parentes vêem cortá-lo?

P: Não. Só os outros Wari' vêem. Eles vão embora. Têm pena uns dos outros. Todo mundo vai embora. Só aqueles que são pouco parentes do nosso avô é que vêem. "Façam com ele!". Cortaram a barriga do nosso avô. Wuiiik (som da barriga se abrindo).

A: Tem parente que ficou debaixo dele?

P: Não. Ficou lá a irmã mais nova deles, Xa Mijein. Cortou aqui (toda a cintura, separando o corpo em duas metades). Colheram os intestinos e pegaram o fígado e o coração. Deram para Xa Mijein. "E o que cortamos agora?" perguntaram entre si. "A cabeça", disse um. "A barriga", disse outro.

A: Uma pessoa cortava aqui, outra ali, e outra acolá?

P: Só duas pessoas cortaram: Maxun Taparape, a cabeça (acho que se refere à parte de cima) e Hwerein Piram, a barriga (parte de baixo). Cortaram-no aqui (no ombro), ali (cotovelo), cabeça. Bate com lenha nas costelas e aí parte. Não se corta a perna por aqui (na virilha). Corta-se aqui (por trás). E aí sai. Corta-se aqui (por baixo do joelho). Não se corta aqui (no joelho propriamente). Lava-se todo com água.

A: Os parentes ainda estão longe?

P: Espere. Só quem via eram os outros Wari'. Ainda não estavam (os parentes). Lavaram. Juntaram as partes e colocaram sobre o moquém.

Paletó, em sua narrativa sobre um funeral genérico, acrescenta alguns detalhes, como a esteirinha que os cortadores usavam para proteger o rosto dos líquidos que espirravam do cadáver sendo cortado. Mostrou-me ainda a maneira como se deve quebrar o pescoço do cadáver colocando-o de bruços, de modo a permitir a separação da cabeça.

Aparecida: Como corta? (faço gesto de corte longitudinal na barriga).

Paletó: Não, só se corta assim (transversalmente). Parecia que estavam cortando aquele que estava vivo (o que estava por baixo do cadáver). Ele pegou uma esteirinha (para se proteger dos líquidos que espirravam). Tssiiiuu (som da explosão do abdômen inchado). Plerc (som do estouro). O outro pegou uma esteirinha (hojam), aquele que está cortando. A irmã mais nova dele (do morto) estava lá e ele (o cortador) juntou as tripas e disse: "Aqui estão as tripas do teu irmão mais velho!" A mulher estava lá e segurou. Tem muito líquido podre. "He, he, aji te, aji te " (canto fúnebre). Ela vai embora. Corta a cabeça (quebra). A cabeça e as tripas ficam separadas (do corpo). Corta as pernas na altura das coxas, os braços na altura dos ombros.

A: Cortam nos joelhos e cotovelos também?

Paletó: Cortam.

A: Não é muito duro?

Paletó: Não. Corta-se por trás e depois quebra. Corta o peito na frente e separa as costelas em duas metades (direita e esquerda). Coloca-se sobre um pau.

Depois disso as partes do cadáver são lavadas. Os cortadores lavam-se bem e, segundo alguns, untam-se com urucum, a que se atribui a propriedade de neutralizar os efeitos do sangue (que atrai onças). As partes do corpo são então colocadas sobre o moquém. A cabeça vai primeiro, com os olhos voltados para o fogo. Dos órgãos internos, somente o coração e o fígado são comidos, sendo assados em um embrulho de folhas. O restante dos órgãos, assim como a genitália, são jogados diretamente no fogo e queimados.

Paletó: Pegam água (as mulheres que não são parentes) e lavam o líquido podre. Pegam a cabeça e colocam sobre o jirau (olhando para o fogo). O fogo queima rápido os olhos. Colocam rápido a cabeça no fogo. Os olhos queimam. Vira outra pessoa, fica irreconhecível. Queimam o pênis dele. Acaba.

É interessante a explicação de Paletó para a pressa em assarem a cabeça. O mesmo me disse Paulo:

Aparecida: Primeiro queimam os olhos? Por quê?

Paulo: Se os olhos queimam rápido, não se identifica mais, não se sabe mais que é parente. É assim com Wari'. O fogo pega, queima os olhos. Acaba. Fica irreconhecível. Não se tem mais pena.

Fica claro assim que o esquartejamento, e o assamento que se segue, têm como função desfigurar o morto, tornando-o irreconhecível para os seus, como se a morte e o apodrecimento não tivessem sido suficientes para transformar esse corpo em cadáver, para destituí-lo da sua humanidade. Conklin observa que o desmembramento do cadáver é o momento mais crítico do funeral, porque destrói o corpo que é a sede das relações sociais e do parentesco. É o momento crucial da separação:

Several elders recalled that the most emotionally difficult event in a funeral was the moment when the corpse was taken from its relatives' arms to be dismembered [...] Up to this moment, funeral activities had been dominated by mourners' expressions of physical and affective attachments to the dead person's body. Dismemberment represented a radical alteration of the corpse and mourners' relation to it, a graphic severing of the attachments represented in the body. According to these elders, it was dismemberment, not cannibalism, that provoked the most intense emotional dissonance. [Conklin, 1995:81]

No entanto, o esquartejamento não é um método como qualquer outro para a desfiguração de um corpo que é sede das relações. O esquartejamento é antes de tudo uma etapa, a primeira, do processo culinário. O cadáver não está simplesmente sendo cortado, mas está sendo preparado para ser assado e comido. É no mesmo momento em que deixa de ser um parente, ou um Wari', que o cadáver passa a ser comida, como se não houvesse um outro modo de dizer isso, de mostrar a não-humanidade do morto, tornando evidente uma morte insistentemente negada pelos parentes, que, como vimos e como também observou Conklin, até então tratam o morto como um dos seus, abraçando-se a ele, lembrando os seus feitos; tratando-o como gente, em suma. O esquartejamento é uma etapa da transformação daquele corpo inerte, mas ainda reconhecível pelos seus, em morto, serviço que será prestado aos parentes pelos não-parentes.

O assamento e a ingestão

O fígado e o coração são assados enrolados em folhas, como vimos, e são a primeira parte do corpo a ficar pronta e a ser comida. O restante dos órgãos internos são jogados no fogo e queimados. As demais partes são postas diretamente sobre o moquém. No caso de bebês, todo o corpo é enrolado em folhas para ser assado (ver também Conklin, 1995:81). Os não-parentes que esquartejaram o cadáver são os mesmos que irão cuidar do seu assamento.

Paulo: Vira-se, vira-se (as partes do cadáver sobre o fogo) e ele fica pronto (assado). No sol alto, nosso avô estava pronto (logo, o assamento durou de cerca de 6 da manhã até meio-dia ou uma da tarde). Pegaram uma esteira para descer (do moquém) o corpo do nosso avô. Era muita carne. Era como carne de anta. Era Wari' muito grande. "Comam o meu pai", disse o nosso irmão mais velho (MB) Wao Em.

Aparecida: Os parentes conseguem ver o corpo sendo assado?

Paulo: Conseguem.

Os parentes não só estão presentes no assamento como são comuns as tentativas de suicídio por parte de alguns que se sentem mais desesperados com a morte.

Paletó: "Tenho pena do meu irmão mais velho aí!". Fala logo que o fogo começa a queimar. "Sinto pena do meu irmão mais velho ali". O parente dele quer entrar (no fogo) [...] "Segurem o nosso irmão mais velho! Segurem o nosso irmão mais velho!" (para evitar que ele se jogue no fogo). Seguram-no. Ele se afasta. O fogo acende completamente. O coração fica pronto. Quando as pessoas se distraem, ele sai correndo e se joga no fogo. Olham para trás e: "Peguem-no! Peguem-no!" (Sons de gemidos). Não queimou. As vezes queima e às vezes não queima.

Aparecida: Por que ele se joga no fogo?

Paletó: Porque tem pena do parente dele no fogo. Como se ele dissesse: "Se o meu irmão mais velho não tivesse morrido..."

A: Ele quer morrer também?

Paletó: Quer morrer também. Há o caso de uma pessoa que morreu no fogo. Ele se queimou. Bem, choram, choram, choram. "Está pronto (assado)". O fígado dele está pronto. Eles assaram as entranhas dele em folhas.

A: Os parentes do morto podem vê-lo sendo assado?

Paletó: Eles vêem. Veja esse que quis se jogar no fogo. Depois que cortam o morto, quando vão assá-lo, eles voltam. Choram. "Está pronto!"

A: Quem é que diz isso?

Paletó: Os que cortam. São eles que tiram as partes de cima do jirau quando estão prontas.

Paulo conta que o irmão de sua mãe, Wao Em, tentou se jogar no fogo que assava o corpo do pai:

Wao Em queria se queimar no fogo. As pessoas o seguraram. "O meu pai morreu. Vou me queimar e assim o meu espírito vai encontrar meu pai", pensou Wao Em. [...] Todo mundo o segurava: "Não se queime com o seu pai!", diziam para ele. Seguravam-no. Veio um outro filho dele e correu para se jogar no fogo. Manim o pegou: "Não se queime junto com teu pai!" Choraram o pai dele. [Paulo, 1996]

Explicita-se assim a relação entre o desaparecimento do corpo e a liberação do espírito. No entanto, à diferença do pai, que estava sendo assado sobre o moquém, ao modo da carne de caça, o filho suicida tentou jogar-se sob o moquém, no lugar da lenha, que queima e não assa. Os informantes deixam clara essa diferença ao usar o verbo "queimar" para o suicida e "assar" para o cadáver. O interessante é que esse detalhe sugere uma excessividade do canibalismo em relação ao destino escatológico do morto. O queimar, evidencia o suicida, é suficiente para que o espírito chegue ao seu destino: o mundo dos mortos sob a água.

Os parentes do morto, especialmente os que vêm até então liderando o ritual, retiram do moquém o embrulho com o fígado e o coração, que ficam logo assados, e desfiam a carne em pedaços muito pequenos, que espalham sobre uma esteira. As mulheres não-parentes já haviam preparado pamonha de milho assada, que entregam aos parentes. A pamonha é acompanhamento imprescindível da carne do cadáver, que não pode ser comida pura (carnes em geral não devem ser comidas sem acompanhamento vegetal). Partida em pedaços igualmente pequenos, será colocada sobre a mesma esteira que a carne. A carne do corpo propriamente dito, depois de pronta, será ingerida do mesmo modo.

Os parentes que se responsabilizaram pelo funeral, com o corpo curvado, quase agachados, deslocam-se em direção aos não-parentes. Chegando perto, abraçam-se à pessoa e, na melodia arrastada do canto fúnebre, como que sussurrando ao seu ouvido, solicitam que ela coma do cadáver.

"O parente de vocês está pronto" (dizem os não-parentes). Pegam uma esteira pequena (os parentes). Desamarram o fígado dele. Chegam para um homem: "Coma o fígado do meu irmão mais velho". Diz o verdadeiro parente dele. "Coma o fígado do meu irmão mais velho, o coração do meu irmão mais velho."9 7 Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996. "Está bem" [Paletó, 1996]

Homens e mulheres, rapazes e moças, são comedores possíveis (crianças algumas vezes também comem, mas apenas os miolos), entretanto, de acordo com os relatos, as mulheres muitas vezes evitavam comer do cadáver, devido ao seu gosto podre. Mesmo entre os homens, havia aqueles que se recusavam a comer.

Paletó: Vai falando com um por um, até que chega em um que diz: "Não, não quero. Não sei comer Wari'"

Aparecida: Havia gente que não queria comer? Por quê?

Paletó: Havia. Porque está podre. Havia os que vomitavam, havia os que não vomitavam.

A: Pensei que fosse porque tivessem pena do morto.

Paletó: Não, é porque está podre.

A: Os parentes do morto ficam com raiva desses que não comem?

Paletó: Não. "Não sei comer Wari'". "É mesmo?" O que come: "Coma o fígado do meu irmão mais velho" "Está bem!". Há os especialistas, as pessoas que sabem comer cadáver. Corta um pedaço de pau e espeta o pedaço do fígado. Diz: "Está bom!" Come todo o fígado.

A: Para ele é como carne de caça?

Paletó: Sei lá. Parece que Wari' gosta à toa de podre. Wari' danado. Está muito podre. Quando a carne propriamente dita está pronta, o parente dele desfia. Pega pamonha e corta em pedacinhos (do tamanho de uma unha).

A: Pamonha assada ou cozida?

Paletó: Assada, em outro jirau pelas mulheres. Desfiam a carne em pedaços bem pequenos. Deixam lá. Espetam a pequena pamonha e depois a carne. Comem.

A: Comem com as mãos?

Paletó: Não, pega-se um pau. Não é assim: "Esse é teu irmão mais velho?" Arranca um pedaço e come. Os parentes do morto vão ficar com raiva da gente.

A: Por que ficam com raiva?

Paletó: Ficam com raiva à toa.

A: Por que fica parecendo caça?

Paletó: É, como caça. "Você não gosta do meu irmão mais velho", dizem para os que tiram um pedaço da carne para comer. Só é bom quando comer com pauzinho. Os parentes do morto ficam com raiva: "Vocês não gostam do meu irmão mais velho!". Comem, comem, comem até acabar.

Como fica claro na descrição de Paletó, a raiva dos parentes não recai sobre os que se recusam a comer do morto, mas sobre os que comem com alguma avidez, sem utilizar os pauzinhos, arrancando a carne diretamente dos ossos e levando à boca com as mãos, exatamente como se come carne de caça e de inimigo10 7 Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996. . O trabalho ritual dos parentes é justamente desfazer essa identidade, deixando a carne apodrecer antes de assar - o que não se faz com outras carnes - , desfiando-a em pequenos pedaços. Mesmo assim os não-parentes, ao menos alguns deles, devem ingeri-la, provando a sua comestibilidade. É interessante notar ainda que, segundo Paletó, os que se recusam a comer do morto não o fazem porque estão tristes demais devido às relações que mantinham com ele, mas porque a carne está excessivamente podre, como se os parentes tivessem exagerado na diferenciação desse repasto. Foi também essa a justificativa fornecida por Jimon para a recusa:

Aparecida: Como é a carne?

Jimon: Como carne de macaco-aranha. É escura.

A: O gosto é bom?

J: É podre.

A: Tem gente que não come?

J: Tem gente que evita comer. Os que têm bom senso não comem porque é podre.

De todo modo, são os parentes os não-comedores legítimos ou típicos, e suas razões os situam em uma posição simetricamente oposta à dos comedores. Enquanto para estes o não comer está relacionado a uma qualidade da carne, que é o seu gosto podre, para os parentes a evitação se deve à constatação primeira de que aquilo não é carne e, portanto, não é comestível. Trata-se de pontos de vista radicalmente diferentes sobre o cadáver.

Aparecida: Por que os parentes não comem?

Jimon: Temos pena uns dos outros. Se fôssemos um tipo de caça qualquer...

Não posso deixar de dizer aqui que parece terem existido algumas pessoas que simplesmente não suportavam comer cadáveres, não só por causa da sua podridão, mas também porque jamais conseguiam deixar de enxergar a sua humanidade, mesmo não sendo parentes. É o caso de Paletó:

Aparecida: Por que você nunca comeu cadáver?

Paletó: Eu só olhava. Se não fosse Wari' para mim... Era Wari' para mim. Se fosse caça para mim, eu comeria da caça. Morria-se. "Comam-no!". Estava podre. Assavam já podre. Comiam o podre. Com pequenos pedaços de pamonha. Desfiava-se a carne, pegava-se um pedaço de pau e espetava-se. "Está comendo bem?". "Estou". Wari' estava mentindo. Estava podre. Wari' comia à toa. Era muito podre.

Voltando aos não-comedores típicos, os parentes, algumas pessoas associaram a evitação a um excesso de semelhança fisiológica: comer da carne de um parente morto seria como comer a si mesmo, levando à morte. É o que pensam também os informantes de Conklin:

Consumption of a close consanguine or spouse's flesh is strongly prohibited, because eating a close relative 9with whom one shared body substance) would be tantamount to eating one's own flesh, or autocannibalism. It is believed to be fatal. [Conklin, 1995:81]

A autora, em nota, faz paralelos entre esta e outra forma de auto-canibalismo. Observa que um xamã, que partilha substâncias corporais com determinado animal, não deve comer da carne de animais desta espécie, ou cairá gravemente doente (Conklin, 1995: 96, n.10). A esse exemplo podemos acrescentar a evitação do matador de inimigo, que tem dentro de si o sangue de sua vítima, em comer de sua carne; os comedores serão os outros, os não-matadores. Esse é um ponto no qual devemos nos deter.

Se a evitação é relacionada por alguns a possíveis conseqüências do ato,11 7 Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996. ela me parece anterior à idéia dessas conseqüências. Em outras palavras, entendo que o ato de comer do morto parece despropositado aos parentes não porque eles tenham consciência de que, se comerem, morrerão, mas simplesmente porque não conseguem ver aquela carne como comida. A resposta de Paulo à minha pergunta sobre um tipo de tentativa de suicídio da qual ouvira falar, parece confirmar essa hipótese:

Aparecida: Tem gente querendo se matar comendo a carne do pai?

Paulo: Nós evitamos a carne de nossos parentes. Nem chegamos a morder. Quem morde e come são as outras pessoas [...]

A: Por que não se pode comer o pai?

P: Não dá. Lembra muito dele.

A comparação com o caso dos xamãs é também reveladora, e no mesmo sentido. Jamais ouvi um xamã justificar a evitação em comer da carne do animal da mesma espécie daquele no qual o seu espírito se transforma pelo temor de doenças. Dizem apenas que não conseguem ver o animal como bicho, mas somente como gente, wari'. Por isso não conseguem comê-lo e nem mesmo flechá-lo. Alguns chegam a estender essa impossibilidade a todos os animais dotados de espírito, todos igualmente vistos pelo xamã com a forma humana. Um homem que se torna xamã torna-se também um mau caçador, e essa é uma queixa freqüente das suas esposas. Como me explicou Topa, esposa de Maxun Hat, que se tornou xamã queixada há pouco tempo, seu marido, ao ver os bichos como gente, tem pena e não consegue matar.

Não estou querendo negar com isso a realidade dos princípios fisiológicos, dessa "idéia anti-homeopática" presente "no xamanismo e na etnomedicina wari'", de que fala Conklin (:96, n.10)12 12 Dentre todos os contextos, o lugar em que esse princípio parece operar mais claramente é na guerra. Os Wari' não dizem que os matadores evitam comer do inimigo porque se lembram dele, como no caso dos parentes dos mortos, ou porque o vêem como gente, como no caso dos xamãs em relação aos animais. O que se diz claramente é que comer do inimigo provocaria problemas de ordem fisiológica (vômito, inchamento etc), que poderiam levar à morte. . O importante, entretanto, não é a noção de que substâncias idênticas são fisiologicamente incompatíveis, mas a de que substâncias idênticas são uma dentre outras características de corpos idênticos, que partilham a mesma visão sobre o mundo e sobre si mesmos: vêem-se como humanos. Trata-se, portanto, antes de uma questão relacionada aos sentidos do que à fisiologia, mesmo que se tenha em mente que os processos fisiológicos também informam os sentidos. Os xamãs, que se caracterizam pela posse de dois corpos simultâneos, um humano e outro animal, podem alternar esses dois pontos de vista através de uma manipulação do sentido da visão. Assim, quando deseja alterar a sua visão, o xamã coça demoradamente os olhos. Se está vendo gente como bicho, adotando o ponto de vista animal, passa a ver como gente; se, ao contrário, está vendo bicho na forma de gente, passará a ver como um animal qualquer, e poderá mesmo flechar e comer desse animal. O problema, como me explicou Topa, é que os diferentes pontos de vista se alternam muito rapidamente, e o xamã corre o risco de perceber subitamente que o animal que pensou haver flechado é, na verdade, um parente. Isso o deixará profundamente triste. Orowam, que é xamã, conta que, como onça, já cometeu esse tipo de "engano", atacando e comendo uma pessoa por tê-la enxergado do ponto de vista das onças, como inimigo ou presa.

Aparecida: Você também pode não ver direito?

Orowam: Já aconteceu da minha visão acabar. Eu não vi bem Wari'. Eu flechei Wari' também.

A: Wari' de verdade? Gente daqui?

O: É. Wari' conterrâneo nosso.

Um outro dado, relacionado ao funeral, confirma a idéia de que o que impede (e o que propicia) a ingestão é o ponto de vista. De acordo com algumas pessoas, era comum que fosse solicitado a uma criança, neta verdadeira, que quebrasse, com uma pedra ou um pau, o crânio do cadáver já assado, e que comesse um pouco dos seus miolos. Paulo comeu os miolos do seu avô:

Paulo: Nosso irmão mais velho (MB), Manim, disse: "Quebrem o crânio do avô de vocês. Chupem os miolos do avô de vocês." O avô de vocês havia dito: "Se eu morrer, meninos, chupem os meus miolos." Wao Em desfiou a carne da cabeça de nosso avô. Desfiou, desfiou.

Aparecida: O cabelo já tinha acabado?

P: Já. Ele estava assado! Estava careca. [...] Fui eu quem quebrou a cabeça. "Bata no teu avô. Chupe os miolos dele!", disseram. Eu era como Nelson (menino de 10 anos). "Está bem!" (disse Paulo). Deram-me uma pedra e eu bati aqui: toc, toc, toc (som da batida). Furou aqui (atrás da orelha). Tiramos (ele e outros meninos) os miolos e comemos os miolos de nosso avô. Não acabava. Era muito miolo. Comi um pouco e parei.

A: Brancos?

P: Brancos.

A: Tem gordura?

P: Não. É como miolo de tudo quanto é bicho.

A: Era gostoso?

P: Não. Amargo. Tinha partes podres. "Não queremos mais os miolos de nosso avô!" Os outros Wari' correram: "Vamos chupar os miolos de nosso morto!". Acabou a cabeça do nosso avô.

Ora, os netos são concebidos como parentes consangüíneos próximos. Avós e netos não podem se casar entre si, e um avô chora desesperadamente no funeral de seu neto, como vi acontecer na morte de uma criança no posto Negro-Ocaia em 1986. A idéia de um avô ou avó comendo da carne de seu neto é inconcebível para os Wari'13 12 Dentre todos os contextos, o lugar em que esse princípio parece operar mais claramente é na guerra. Os Wari' não dizem que os matadores evitam comer do inimigo porque se lembram dele, como no caso dos parentes dos mortos, ou porque o vêem como gente, como no caso dos xamãs em relação aos animais. O que se diz claramente é que comer do inimigo provocaria problemas de ordem fisiológica (vômito, inchamento etc), que poderiam levar à morte. , assim como a idéia de um neto adulto comendo o seu avô. Jimon, com quem conversei sobre o funeral de seu pai, considera absurda a idéia de que netos ou filhos, mesmo crianças, possam comer os miolos do morto: "não nos comemos entre nós". Ele afirma ainda que só adultos podem comer do morto. Para Paletó, Paulo, e diversas outras pessoas, entretanto, as crianças, especialmente aquelas que são consangüíneas do morto, são os comedores mais indicados de seus miolos. Paletó chega a incluir nessa categoria os filhos do morto, com quem as relações de consubstancialidade são ainda mais estreitas. Mas só as crianças.

Paletó: Comem, comem, comem (a carne) até acabar. Então aparece um parente dele, como esse daí, um filho dele de verdade: "Bata na cabeça do teu pai." "Está bem."

Aparecida: Ele não fica com pena?

Paletó: Não, não fica com pena do pai dele. Dão um pau para o filho dele e mandam ele bater: tou, tou, tou (som). Pou! (estoura). "Coma os miolos do teu pai!"

A: Já estavam assados?

Paletó: Já estavam.

A: Era menino ainda?

Paletó: É, porque ainda não tinha pena do pai. Havia (os filhos) que choravam muito.

A: Os filhos crescidos não comiam?

Paletó: Não, tinha pena do pai. "Meu pai morreu, meu pai morreu!" Pega (os miolos) e come, junta (uma porção) e come (a criança).

A: Come com as mãos?

Paletó: Com as mãos. Acaba.

A diferença entre um filho (ou neto) adulto e criança, ou seja, entre dois irmãos, não está na constituição física, considerando que os Wari' concebem os germanos de mesmo sexo como substancialmente idênticos, mas no tempo de vida, na experiência, que determina um ponto de vista sobre as pessoas e o mundo. Enquanto o adulto vê naquele corpo assado o seu pai, a criança, que não teve ainda tanto contato com ele, pode vê-lo como comida.

Aparecida: O cabelo já tinha acabado?

Paulo: Já. Ele estava assado. Estava careca. Desfiaram (a carne). Os dentes... pareciam dentadura. Eu tive pena dele. Eu chorei.

A: Você ainda o reconhecia como avô?

P: Não. Parecia caça.

É o momento de retomarmos a discussão sobre a concepção de corpo wari', esboçada na primeira parte deste artigo. Como afirmei então, o corpo wari' parece ser algo mais do que um conjunto de processos fisiológicos, mesmo que eles possam fazer relações entre estes processos e as percepções cognitivas e experiências emocionais, como observou Conklin:

Not only are kinship and social status physically constituted, but many cognitive and emotional processes are conceptualized as organic changes in the heart and blood, and behavior is considered to be rooted in the body. [Conklin, 1995:86]

Não estou negando, portanto, que os Wari' tenham consciência de que emoção e fisiologia possam estar conectados. O que desejo mostrar é que, como fica claro em suas explicações sobre a impossibilidade dos parentes em comerem do morto, eles não concebem esses diferentes níveis como ligados por uma direta e necessária relação de causa-efeito, que é a forma que caracteriza o nosso pensamento. Quando os Wari' relacionam a memória ao ponto de vista, não estão colocando os processos orgânicos em primeiro plano, mas pensando o corpo como uma espécie de locus intermediário entre a matéria orgânica e a fisiologia, de um lado, e a subjetividade do espírito, do outro, como observou Viveiros de Castro no texto reproduzido no início deste artigo. O exemplo da diferença entre germanos criança e adulto é esclarecedor. A minha opinião é que os Wari' não poderiam explicitar a diferença entre o olhar de cada um deles usando argumentos de base puramente biológica, justamente porque a identidade biológica entre germanos de mesmo sexo é algo que procuram enfatizar todo o tempo. Quando afirmam que essas pessoas vêem o avô morto de modos diferentes, porque os mais velhos se "lembram" dele, estão dizendo que a visão é algo mais do que processo orgânico14 12 Dentre todos os contextos, o lugar em que esse princípio parece operar mais claramente é na guerra. Os Wari' não dizem que os matadores evitam comer do inimigo porque se lembram dele, como no caso dos parentes dos mortos, ou porque o vêem como gente, como no caso dos xamãs em relação aos animais. O que se diz claramente é que comer do inimigo provocaria problemas de ordem fisiológica (vômito, inchamento etc), que poderiam levar à morte. .

Voltando à questão da evitação dos parentes em comer, e à sua relação com um ponto de vista específico, a existência de não-comedores é essencial para permitir a ingestão, compondo uma espécie de reserva simbólica da humanidade do que está sendo comido. Assim também na guerra, quando os matadores não comem a carne do inimigo morto; assim na predação cinegética, quando os xamãs não comem a carne de determinados animais. Alguém precisa lembrar aos outros de que aquilo é gente. Foi o que Viveiros de Castro observou para o canibalismo guerreiro Tupinambá, onde o matador é o único que não come da sua vítima.

O canibalismo só é possível porque um não come [...] Ritualmente morto (o matador), é o único propriamente humano durante a devoração[...]. [Viveiros de Castro, 1986:695]

No caso wari', o que se quer preservar com a abstenção é a humanidade do morto e não a dos vivos, como é o caso Tupinambá, e o modo de se fazer isto é deixando de comê-lo. Humanidade e comestibilidade são categorias mutuamente exclusivas, o que implica que o que se come é não-humano, ou melhor, passará a sê-lo no momento em que for ingerido. Daí a insistência dos Wari' em que se coma ao menos uma pequena porção do cadáver, o que evidencia novamente a excessividade do canibalismo, agora como procedimento funerário: não se come para destruir o corpo, para fazê-lo desaparecer; os Wari' sabem que a cremação seria perfeitamente eficaz para isso (cf. também Conklin, 1989:463; 1995:87). Essa insistência fica clara no caso de mortos que, por razões diversas, encontravam-se em adiantado estado de putrefação ao serem assados, o que tornava a ingestão bastante difícil. Era o caso, por exemplo, de algumas pessoas mortas por Brancos que os Wari' quiseram resgatar a todo custo, mas que não puderam fazê-lo imediatamente, devido à permanência do inimigo no local. Paletó relata o que aconteceu após o massacre da aldeia onde vivia. Na ocasião, morreram, dentre outras pessoas, seu pai, sua esposa e sua filha. Os sobreviventes fugiram:

"Corremos, corremos, corremos e aí paramos. 'Vamos voltar para cortar os mortos!' Ainda estava lá o inimigo. Quando ele foi embora os mortos já estavam podres. Os urubus comeram a minha filha: 'Olhe o pé dela!' (alguém mostrando para Paletó o pé comido da menina). Meu pai também. Os urubus comeram a bunda dele. Chuparam seus olhos também. Todo mundo; os urubus comeram todos. Acenderam o fogo para os restos podres. Estavam muito podres. Fizeram fogo. Assaram. Comeram mesmo estando muito podre. Podre, muito podre. Muitos vermes. Lavaram. Os Wari' comeram à toa. Foi assim que o Branco nos matou." [Paletó, 1992]

Diferentemente da antropofagia guerreira tupinambá, que tinha como premissa básica a "exigência que todo mundo dela participe" (H. Clastres, 1972:80, citada em Viveiros de Castro, 1986:694), com exceção do matador, no canibalismo funerário wari' bastava que apenas uma pessoa comesse. O consumo de uma pequena parte do cadáver, por poucas pessoas ou somente uma, era logicamente suficiente, apesar de, na prática, isso raramente ocorrer15 15 Conklin (1995: 82) observa que o ideal era que os cadáveres fossem completamente comidos. . Fica claro que o que se obtém aí não é proteína, como desejariam alguns autores (Harner, 1977), e nem mesmo atributos específicos do morto, como parece ser o caso em algumas formas de canibalismo funerário (McCallum, 1996). O que se ganha ao comer, como evidenciou Viveiros de Castro (1986:669) para o canibalismo tupinambá, é uma posição. No caso wari', tratar o morto como presa é colocar os vivos na posição de predadores, de humanos, portanto. O que os Wari' querem, e dependem de seus afins para isso, é se diferenciarem do morto guardando para si a humanidade. E o modo de o fazerem é comendo desse morto, como se a comestibilidade fosse a única prova irrefutável da não-humanidade.

Isso não quer dizer, é importante notar, que essa desumanização ou objetificação promovida pelo ato da ingestão, tanto dos mortos, quanto dos inimigos e dos animais, tenha alguma coisa a ver com a dominação que o pensamento ocidental associa à predação e ao consumo. Como procurei mostrar acima, a predação é concebida pelos Wari' como uma relação que se dá entre sujeitos que, nesse ato, têm suas posições definidas: são humanos os predadores, e não-humanos (não-sujeitos; objetos, portanto) as presas. Trata-se de posições essencialmente reversíveis, visto que a relação se dá entre sujeitos que se equivalem. É preciso que fique claro, entretanto, que o fato da predação wari' - que tem na ingestão uma de suas formas de expressão - não comportar a noção de dominação ocidental, não quer dizer que não produza uma objetificação da presa, já que esse é o objetivo central do ato: definir posições diferenciais dentro de um continuum de humanidade. A diferença essencial da nossa concepção está no fato dessa objetificação ter como base a temporariedade e a possibilidade de reversão do processo.

No entanto, para que eu possa afirmar que a comestibilidade seria a única prova irrefutável da não-humanidade, preciso explicar porque diversos animais não-humanos não são comidos pelos Wari', e também porque determinados animais humanos, como as cobras, não são jamais comidos. Comecemos pela última questão. A ingestão só é necessária na ausência de predação, que tem como modelo a predação cinegética. Isso fica claro no caso do canibalismo guerreiro, quando comer da carne da vítima constituía uma espécie de luxo a que se entregavam quando era possível. Essa mesma lógica é válida para os animais concebidos como humanos que não são comidos: eles são sempre flechados e mortos pelos Wari', especialmente os não-comestíveis, como as onças e as cobras. A ingestão, ou a atribuição da comestibilidade, é complementar à predação, podendo ocupar o lugar dela, e sendo necessária na sua ausência, como no caso dos mortos wari'.

Passando à primeira questão, que se refere aos animais não-humanos que não são comidos e nem mesmo flechados, poderíamos dizer que a associação entre predação/comestibilidade e não-humanidade diz respeito somente às relações que têm para os Wari' um significado: aquelas que se dão entre sujeitos, entre seres humanos em potência ou essência. A predação só é necessária quando se quer definir posições dentro de um continuum de humanidade indiferenciado por princípio. Quando isso não se faz necessário, pouco importa se os animais são flechados e comidos ou não, e as evitações e predileções associadas às diferentes espécies dizem respeito a uma outra lógica ou a um outro sistema simbólico. Voltemos à descrição do funeral.

Segundo os Wari', a carne deve ser toda comida no mesmo dia, e no mesmo local. Não se costuma levar pedaços de carne para serem comidos em outra aldeia, como se faz com carne de caça e de inimigo, mas algumas vezes isso podia acontecer.

"Quando tem parente que fica longe, vem então uma pessoa, como essa aqui (aponta sua filha de cerca de 16 anos) 'Vou levar carne do meu irmão mais velho' 'Está bem. Aqui está.' A carne dele vai para outra aldeia. A carne assada dele. Levam-no. As pessoas de longe querem ver: 'Vou levar carne do meu irmão mais velho.' Pega um cesto pequenininho e põe lá. Dorme um pouco e parte no meio da noite. Quando parte, chora: 'Hei hei, aji te.' Vai embora. Nas casas a pessoa que não viu o parente dele já chora. 'Chegou a carne do teu irmão mais velho.' Vai-se para outra casa. Come-se tudo. É assim quando cadáver morre." [Paletó, 1996]

A regra, entretanto, é que os parentes se desloquem até o cadáver, e não o contrário: daí o aviso de morte, a espera e o apodrecimento. De todo modo, chama a atenção que os parentes que não puderam ver o cadáver íntegro queiram ver o morto na forma de um pedaço de carne a ser comida. As descrições que os Wari' fazem do funeral nos levam muitas vezes a crer que aos parentes interessam apenas duas visões: a do corpo íntegro, ao qual podem se abraçar e do qual se despedem, e a do corpo desaparecido, comido pelos afins. Quando se dirigem aos não-parentes pedindo que cortem o cadáver, justificam o pedido dizendo que não suportam mais a visão do corpo; querem que ele desapareça, que seja destruído. Foi o que me disse Paulo quando lhe perguntei se os parentes do morto ficavam com raiva daqueles que se precipitavam para a carne, como os que correram a comer o que havia sobrado dos miolos do seu avô:

Aparecida: Os parentes do morto ficam com raiva dos Wari' que comem rápido?

Paulo: Não ficam com raiva. Pediam que comessem. Pediam: "Comam rápido a carne do meu pai, do meu irmão mais velho, para que acabe logo!"

A: Por que queriam que acabasse rápido?

P: Para não verem mais. Acaba.

Pelo modo como se expressam, fica parecendo que o que se passa entre esses dois momentos não é tão importante quanto os momentos em si, como se tivessem que suportar todas as fases intermediárias - o esquartejamento, o assamento e a ingestão pelos outros - para o fim desejado. No entanto, quando sabemos que existem pessoas que se importam em presenciar justamente o meio do processo, ou melhor, uma parte específica dele que é a ingestão, fica claro que este é um momento essencial do funeral para os parentes. O que eles querem não é ver o morto desaparecer, mas vê-lo sendo comido, o que é diferente.

O destino dos ossos e o fim do funeral

Pelo que parece, os parentes decidem o momento de acabar o funeral, mesmo que ainda reste algo da carne do morto. Decidem também o destino dos ossos: serão queimados juntamente com o que sobrou da carne e todos os vestígios do funeral, como esteiras, panelas e o próprio moquém, ou serão parcialmente ingeridos pelos não-parentes, depois de torrados, pulverizados, peinerados e misturados em mel.

Paulo: Bem, comeram o nosso avô. Quando o sol estava aqui (cerca de três horas da tarde), nosso avô acabou com os Wari' (por meio dos Wari'). Acabou. Ainda havia carne dele. Acabou toda a carne das costelas. Não se come o morto um dia, depois outro dia. É tudo num dia só. Fica pronto, come-se, acaba. No entardecer, queima-se o que sobrou.

Aparecida: Há gente que leva um pedacinho da carne do morto para outra aldeia?

P: Há também. Não levaram a carne dele. Comeram-no todo. Queimaram o que ficou.

A: Ossos?

P: Ossos, mas havia carne também. Veio Wao Em (filho do morto) e disse: "Juntem os ossos de nosso pai. Eles vão beber os ossos de nosso (inclusivo) pai." Só pegaram os dois joelhos, cotovelos.

A: Já estavam queimados pelo fogo?

P: Já. Estavam brancos. Pegaram a coluna vertebral. Branco. Pegaram panela e colocaram. Pegam um pau e amassam o osso da coxa (que não vai ser comido) na terra, na terra mesmo. Cavam um buraco bem grande para os ossos dele (os que não vão ser comidos). Enterram. Pisam, pisam (a terra, fechando o buraco). "Procurem o mel dele (para os ossos)." - é o que dizem para os não parentes.

A: Por que queriam comer?

P: Não queriam comer, queriam beber. "Cortem weo wore (tipo de mel)." Pegam. Muito mel. No entardecer, dizem: "pisem os ossos de nosso (inclusivo) pai." Na pedra (móem os ossos do mesmo modo que fazem com o milho). Minha mãe não pisou, só as outras mulheres pisavam (as não-parentes). Pisaram, pisaram, pisaram. Ficou branco. Pulverizaram. Peneiraram. Era como arroz o osso do cadáver (como se peneira arroz). Misturaram com mel em uma panela. Cheiro forte. Falaram para todo mundo. [...] "Chupem os ossos do nosso (exclusivo) pai", disse Wao Em. Está bem. Juntavam (na mão, um bocado do mel com o pó de ossos) e chupavam. Chuparam, chuparam e depois partiram a panela.

A: Havia cadáver de quem se comia os ossos e aqueles de quem não se comia? (usei sem querer o verbo errado, "comer", kao, no lugar de "chupar", xak, que é o ato de tirar o caldo de alguma coisa, sem mastigar, como de uma fruta e da colméia).

P: Só se come de criança pequena. Comem. Morre criança pequena (de cerca de um ano). Torra-se um pouco no fogo e então se come (não é com mel, são os ossos mesmo). Come-se toda a carne de criança. Só se enterra uns ossinhos pequenos. Nos velhos, os ossos são duros.

A: Por que Wao Em quis que se comesse os ossos do pai dele?

P: Tinha pena do pai dele. "Não quero que os ossos de meu pai fiquem deitados. Chupem com mel." (pensou Wao Em). Acabou o nosso (exclusivo) avô.

Um único homem disse-me que os ossos são ingeridos por parentes. Jimon, que negou veementemente que os filhos e netos pequenos pudessem comer os miolos do morto, contou que esses mesmos meninos são aqueles que ingerem preferencialmente os ossos com mel.

Jimon: O fogo se acende e se coleta os ossos, somente os ossos, e colocam em uma panela. Vão procurar mel, weo wore (tipo de mel), e peneiram. As mulheres pisam os ossos, como farinha de milho, branco. Vem o mel, como se fosse açúcar e se chupa. Aí é que as crianças chupam. Eu chupei os ossos da minha avó materna. "Chupe os ossos de tua avó", disse minha mãe. Eu chupei e meus irmãos também.

Aparecida: Os não-parentes também chupam?

Jimon: Não, só os parentes do morto.

A'ain (homem que ouviu a conversa e resolveu participar): Os ossos são bons. Não dá vontade de vomitar.

Aparecida: Vocês não ficavam com pena?

A'ain: Não. Os ossos não ficavam na terra. Só agora com os Brancos. Não dava para os ossos ficarem na terra. Nós os chupávamos.

Jimon é do subgrupo OroWaram, enquanto a maioria de meus informantes é OroNao. Até o momento da invasão dos Brancos, esses subgrupos viviam em territórios distintos e, apesar de realizarem festas em que convidavam uns aos outros, e de ocorrerem alguns casamentos entre eles, mantinham entre si alguma distância, responsável por diferenças dialetais e em determinadas práticas. É provável que isso explique o fato de Jimon considerar os ossos e não os miolos a parte possível de ser ingerida pelos parentes.

Infelizmente não tive a oportunidade e nem a idéia de discutir esse assunto com outras pessoas. De todo modo, é tentador ver aqui alguma identidade entre o canibalismo funerário wari' e a grande maioria dos rituais ditos endocanibais das terras baixas sul-americanas, cuja forma típica é a ingestão dos ossos dos mortos pulverizados, misturados em bebida de origem vegetal (se bem que não se possa dizer que os Wari' concebam o mel na categoria vegetal, visto que as abelhas são classificadas como animais), pelos parentes consangüíneos. (Zerries, 1960; H. Clastres, 1968:70).

No entanto, quando examinamos os pontos em comum entre os relatos dos OroNao e o de Jimon, concluímos que a semelhança na forma entre o ritual wari' e aqueles considerados típicos não passa de aparência. Passemos a esses pontos. Em primeiro lugar, seja o que for que os parentes comam, só o fazem aqueles que têm pouca memória, visto que são as crianças os comedores privilegiados, senão os únicos. Além disso, ossos e miolos podem ser aproximados enquanto partes internas do cadáver, e que permanecem brancas após o assamento, em contraste com o resto da carne, que fica escura "como carne de macaco-aranha". É como se essas partes sofressem um processo peculiar quando no fogo, ficando de algum modo imunes à sua ação. São ainda as únicas porções do cadáver comidas diretamente com as mãos, apesar de algumas pessoas dizerem que, às vezes, também se come desse modo a carne dos dedos dos pés e das mãos, por ser difícil retirá-la dos ossos. Essas constatações nos levam a concluir - se temos em mente o fato de que a base do rito é a diferença entre parentes e não-parentes, que se expressa como diferença entre comedores e não-comedores - que, se as crianças de um modo geral, e os netos em particular, são menos parentes, é provável que miolos assados e ossos tostados e pulverizados sejam também partes menos características do morto, e que por isso podem ser comidas sem evocar a sua memória, ao menos por aqueles que se caracterizam justamente por não terem memória.

Mas essas são apenas conjecturas. Mesmo assim, não podemos deixar de formular algumas perguntas: por que então os netos comem? Por que envolver parentes consangüíneos se os não-parentes estão ali para isso? Haveria um desejo de manter algo do morto entre si, entre parentes, como nos casos de endocanibalismo 'típico', incentivando a ingestão por categorias de pessoas situadas nas fronteiras da consubstancialidade ou, em outras palavras, pessoas cuja fraca memória as situa em um espaço intermediário entre parentes e não-parentes?

Se isso for verdade, então teremos que admitir que os parentes gostariam de comer eles mesmos os seus mortos, sem depender para isso de pessoas estranhas16 15 Conklin (1995: 82) observa que o ideal era que os cadáveres fossem completamente comidos. . Não podem fazê-lo porque a sua memória, expressa na visão, não lhes permite. O mais interessante, entretanto, é que essas pessoas só se tornam estranhas no rito, já que no dia-a-dia os afins reais, comedores privilegiados dos mortos, são tratados como consangüíneos. O funeral é um momento de emergência de uma afinidade que se busca cuidadosamente mascarar no cotidiano. Como se, em meio a um grupo homogêneo, que consegue se manter razoavelmente como tal ainda na fase do choro, os afins fossem obrigados a se mostrar em sua plena diferença, que se expressa em uma visão peculiar do morto. Ao verem o morto como objeto passível de ser ingerido, os afins deixam vir à tona a sua identidade, opondo-se desse modo aos parentes, identificados ao morto, que não conseguem vê-lo senão como humano. Concluímos então que, se a ingestão por crianças consangüíneas de determinadas partes do cadáver aponta para um desejo de que esse cadáver pudesse ser totalmente comido por parentes, a emergência da afinidade, ou a separação do grupo entre consangüíneos e afins, é, também aqui, indesejada, apesar de necessária. Somente depois do funeral, quando retomarem a vida diária e, mais especificamente, no rito do final do luto, é que essa diferença será novamente mascarada.

O varrer

Após a ingestão dos ossos, tudo era queimado: "queimam tudo e enterram a lenha e o que sobrou." Segundo Conklin (1995:82), nesse momento reconstituía-se o estrado de paxiúba da casa onde o morto foi chorado, assado e comido. Iniciava-se então a fase do "varrer" (ton ho), de destruição de todo e qualquer traço deixado pelo morto: "queimávamos o local em que a pessoa trabalhava, onde colocou espera para caça(...)". Os caminhos por onde andou, a sua roça, a sua casa, os lugares em que se sentou, todos os seus pertences, tudo era queimado, em uma atividade que durava cerca de "duas luas" (cerca de dois meses).

Logo depois da morte, especialmente enquanto o varrer ainda estiver em curso, o morto estará muito presente, não só na lembrança dos vivos, mas também na forma de um espectro, que seria como um espírito do cadáver, com a aparência de um corpo em adiantado processo de apodrecimento: inchado, com os olhos saindo das órbitas e a língua para fora. Esse espectro, que recebe o mesmo nome do cadáver, jama, seria irreconhecível se não fosse pelos lugares onde aparece, os mesmos freqüentados pelo morto em vida. Uma pessoa, ao se deparar com um espectro, fica paralisada de medo, e começa a suar. O cheiro do suor espanta o espectro, que desaparece. Esse medo parece estar relacionado à provável intenção do morto em levar consigo os parentes queridos. É por isso que, segundo A'ain, o varrer deve ser realizado por dois parentes do morto, de modo que possam alternar choro e vigília.

Um cuidava do outro. Só um que chorava (dos dois que estavam fazendo o varrer). Se for um só, o espírito do morto mata. Um vai queimando e o outro chora. Cuidavam. O espírito do morto. Se vê que estamos sozinhos, fica com pena da gente. [A'ain, 1996]

O varrer é então uma forma dos parentes se protegerem duplamente. Destruindo as referências materiais do morto na terra, evitam que ele possa se orientar em seu percurso à procura dos entes queridos, além de reduzirem a própria tristeza, o que tem o igual efeito de evitar a vinda do morto17 15 Conklin (1995: 82) observa que o ideal era que os cadáveres fossem completamente comidos. .

O rito do final do luto

Depois de um período de luto, resolvia-se que era o momento de voltar a cantar e a se divertir, e então se preparava o ritual do final de luto (ka hwet mao wa, "o sair").

Harein: Os parentes continuam a chorar. Depois de muito tempo, param de chorar e ficam quietos. Esqueceram o morto. Depois de muito tempo: "Vamos matar caça!"

Aparecida: Quem fala? Os não-parentes?

Harein: Os parentes dele.

Esse período variava de alguns meses a um ou mais anos, dependendo da proximidade da relação entre determinados parentes e o morto. Desse modo, diferentes grupos de parentes poderiam realizar o ritual em momentos distintos. Quando morreu o irmão mais velho de Paletó, já adulto, seu pai demorou muitos anos para sair do luto, enquanto ele, ainda rapaz, logo realizou o rito, por sugestão de seu cunhado:

Paletó: Meu pai também, com o meu irmão mais velho, o pai de Luísa. Nosso irmão mais velho morreu. Ainda não havíamos plantado roça. Nosso irmão mais velho morreu. Meu pai chorou, minha mãe, eu. Os rapazes não sabem chorar completamente. Eu chorei e parei. Logo fui me divertir. Meu cunhado foi matar caça. "Você deve sair do luto do teu irmão mais velho, para que você não fique falando alto brincando enquanto em luto do teu irmão mais velho." (disse o cunhado para Paletó). "Está bem!" (disse Paletó). As pessoas de luto não falam alto, não ficam com raiva. Se ficarem, lembra-se a elas: "Veja o teu irmão mais velho que morreu!" E ficamos tristes.

Meu pai continuou a chorar, a chorar, a chorar. Foi fazer roça em outro lugar. Chorava, chorava. Comemos o milho. Fomos fazer roça em outro lugar. Ele chorando, chorando. Então parou de chorar. Ficava em silêncio, sem falar nada. Fomos roçar em outra roça. Depois em outra. Eu me casei com a viúva do meu irmão mais velho. Tive dois filhos, que o Branco matou. Os filhos do morto cresceram, os irmãos de Luísa, tua irmã mais velha. Cresceu Orowao Jein, cresceu A'am Tara. Wem Parawan era muito pequeno. Luísa era já moça. Então meu pai falou: "Vou falar completamente, meus filhos! As crianças já cresceram!" Fazia muito, muito tempo (da morte). Foi em outros anos. Disse para nós: "matem caça". Disse para Orowao Jein, filho do morto, que foi quem foi matar caça. "Eu quero falar completamente: "Vocês já são adultos! Vai matar caça pelo teu pai!" Ele era bem criança quando o pai morreu. Ele já era grande (agora), já flechava inimigo. Foi quando nosso pai saiu do luto. "Vamos!", disse Orowao Jein. Matou macaco-aranha. Macaco-aranha, macaco-aranha, macaco-aranha (para dizer que é muito). Aquele cujo pai tinha morrido matou macaco.

No relato de um final de luto genérico, Paletó observa que era comum que parentes ainda enlutados participassem da caçada que precedia o ritual.

Paletó: Os Wari' abrem roça, plantam, o milho fica bom, fica duro, o outro milho fica duro, os Wari' fazem mais roça... A mãe parou de chorar. Ela fica em silêncio. Os Wari' abrem roça, abrem roça de novo. E então ela pensa [...] "Vou falar completamente, rapazes!" "É mesmo?" "Matem caça para mim." "Está bem." Ela chora mais.

Aparecida: Quem matava? Os parentes dela também?

Paletó: Os parentes também. Todo mundo. Os que não são parentes também. Aqueles que sabem matar caça. "Vamos por ela!" Ela (a mãe enlutada) pisa farinha de milho. Debulha milho. Os Wari' todos estão de pé. Muita gente. "Vamos por ela. Vamos matar caça." Ela chora mais. Chora o morto de muito tempo atrás. "Hei hei hei hei" (melodia do canto fúnebre). "Vamos!". Ela carrega o milho e a farinha (ela vai também). Chega onde tem muita caça. Macaco-aranha. Ela chora. Quando matam o bicho e ele morre, ela chora. Matam queixada. Muita caça. [...] Colocam os macacos-aranha em um cesto. Uma mulher carrega, outra carrega também, outra também (vários cestos). Muita caça.

A: Demoram muitos dias?

Paletó: Se fosse com espingarda. Era com flecha (demora mais).

A: Assada?

Paletó: Assavam tudo.

A caça é trazida à aldeia já assada. Procura-se chegar de volta à casa na mesma hora do dia em que a morte ocorreu. Já desenhados com jenipapo, untam-se com urucum antes de entrar na aldeia.

Paletó: Bem, quando já havia muita caça: "Vamos com o nosso pai, meninos!" Peguem jenipapo, meninos. Desenhemo-nos!"

Aparecida: Foi teu pai quem disse?

Paletó: Foi. "Desenhemo-nos!" "Está bem!". Ele se desenhou. Passou urucum também. A minha mãe também (no corpo todo). Passou urucum também. Minha mãe era velha. Desenhou-se à toa. "Vamos!" dissemos.

Paletó: "Vamos! Vamos!" O morto morreu de manhã bem cedinho, quando sol não estava alto. É nessa hora que voltam os que estão saindo (do luto). Volta-se para casa na mesma hora do dia em que o defunto morreu. "Meu filho morreu de manhã cedinho". Nessa mesma hora eles voltam para casa e comem o macaco-aranha. Todos os parentes do morto choram.

Chegam na aldeia cantando o canto fúnebre, depositam os cestos no chão e continuam a cantar e a chorar em torno deles, agachados, tocando as suas bordas com as mãos.

Paletó: Todos ficam agachados em volta do cesto com o macaco. Tocam no cesto, outros tocam no macaco. "Hei hei, aji te" (canto fúnebre). Os homens seguram as flechas. Os Wari' que ficaram na casa, que tinham já chicha... Choram também outros mortos que já haviam chorado antes: "wina ta, jeo te, kawiji te". Saem, saem. Ela chora o filho dela: "kwaji te, hi hi hi"(choro convulsivo). Os que ficaram na casa, que já haviam saído do luto antes, dão chicha para ela. Ela enxuga os olhos e bebe. Dão para o pai também. Ele bebe.

Aparecida: Chicha doce?

Paletó: Doce. Que não é azeda. Bebem, bebem. "Encham (de chicha) esse que matou caça!" Levem para cima (a caça). Os Wari' fazem um jirau. Colocam a caça sobre ele e assam mais. Dão para os Wari' que ficaram na casa, que estão oferecendo chicha: "Levem!". Chega outro, leva. Chega outro, leva. Comem. Cada um leva um (uma peça de caça, eu acho, como um macaco inteiro). Não se corta. [...] "Dê-me o cadáver (jama)!" Levam, levam.

Aparecida: Pedem assim: Me dê o cadáver?

Paletó: Me dê o cadáver. É como se o bicho fosse o cadáver. Todos pegam.

A: Queixada também?

Paletó: Levam também. [...] Todos levam. Comem. As pessoas que moram longe ouvem (sabem da notícia). Em outra aldeia. "Os que saíram do luto já retornaram?" "Já. Eles têm muita caça". "Vamos pegar?" "Vamos!" Pegam somente um cesto. São só duas pessoas. "Vamos pegar macaco-aranha com eles! Cadáver com eles!" "Vamos!" O que vai na frente e o outro que leva o cesto. Levam uma flautinha: hiu, hiu, hiu (som). O dono na caça está lá. "Está chegando Wari' pela caça! Está chegando! Vamos cortar o cabelo dele!"

A: Cortam o cabelo?

Paletó: Cortam e depois passam urucum E eles vão embora. Levam muita caça. "Onde está o cadáver?" (perguntam os que chegaram) "Aquele ali. Levem-no". Levam. Põem no cesto. Pegam outro, colocam no cesto. Hiu, hiu, hiu (som da flauta). "Vamos ali na outra caça!" Levam o cesto. "Onde está o cadáver?" "Esse aí." "Levem!" [...] Levam o cesto e depositam ali. Levam e depositam. Levam muita caça. "Vou voltar!" Voltam pelo caminho. Ajudam um ao outro para levantar o cesto. "Deixe a tua caça aí!" (gritam os de casa para os que estão indo embora). "Cortem o cabelo dele!" "Cortem o dele também!" Acaba o cabelo deles. "Tragam o urucum!" "Está bem!" (mulher falando). Passam ali, desenham. E vão até aquele que está carregando o cesto. "Vamos cortar o cabelo daquele ali!" Cortam, cortam. Fica pouco cabelo. Passam urucum. Dão chicha para eles. Vomitam. "Nós vamos!" "Vocês vão." Eles sobem o cesto deles. Hiu, hiu, hiu (tocam a flauta). Chegam em casa. "Cortem mais o nosso cabelo!" (acho que é para acertar o corte). Fica bom. É assim que se pega caça dos outros no final do luto.

Chora-se sobre a caça como se ali estivesse o cadáver, usando, no canto, os mesmo termos de parentesco com que se chamava o morto. No entanto, mesmo os parentes comem da caça.

Aparecida: Os parentes do morto comem também?

Paletó: Todos comem. É caça!

As demais pessoas tratam a caça sem qualquer cerimônia, chegando mesmo a solicitar para si uma peça, o que não acontece no dia-a-dia, quando a carne deve ser oferecida e não pedida. No entanto, como mostrou Paletó, referem-se às peças de carne como "o cadáver". O mesmo disse A'ain em seu relato:

"Então um dos homens que ficou na casa diz: 'Eu quero comer cadáver!' Chamam de cadáver o macaco-aranha, o queixada. Tiram uma pata da caça, pata de macaco-prego, queixada. Comem. Chamam de cadáver o bicho assado." [A'ain Xit, 1996]

Depois do banquete, homens e mulheres põem-se a cantar:

"Ficam de pé e vão para a casa dos homens! 'Venham, vamos cantar tamara (música masculina)!' Se cantamos tamara antes de sair do luto ficamos com feridas. Os que choram não cantam tamara. Não falam nada. Wari' mata caça, sai do luto, canta tamara. [...] 'Venham todos, vamos cantar tamara!' As mulheres chamam as outras: 'venham, vamos ijain je e (música feminina)!' Cantam, cantam, cantam. [Paletó, 1996]

As evidentes relações entre este rito e o funeral parecem confirmar algumas de nossas hipóteses sobre o significado do canibalismo funerário para os Wari'. Para iniciar a nossa análise, devemos começar por formular a primeira pergunta que nos vem à mente quando diante dos relatos sobre o rito: por que, para sair do luto, os Wari' acham necessário realizar uma espécie de reprodução do ritual funerário, colocando animais abatidos no lugar do morto?

Poderíamos dizer, como fez Conklin (1995: 92-3), que esse rito está relacionado antes ao destino final do morto do que ao funeral propriamente dito18 15 Conklin (1995: 82) observa que o ideal era que os cadáveres fossem completamente comidos. . Em outras palavras, a caça abatida representaria o morto não enquanto cadáver, mas na realização plena de seu destino escatológico, que é o de tornar-se animal, especificamente queixada. Por isso, dizem os informantes de Conklin, o encontro com um bando de queixadas na caçada que precede o rito é especialmente valorizado.

An encounter with the white-lipped peccaries could indicate that the deceased was fully integrated into life in the afterworld and, remembering loved ones on earth, had sent the herd to feed them (Conklin, 1995:92)19 19 Os relatos de meus informantes não confirmam essa predileção pelos queixadas. A presa mencionada mais insistentemente nesses ritos é o macaco-aranha, e sobre isso falaremos adiante.

Parece-me, entretanto, que o fato das presas serem insistentemente chamadas "cadáver" sugere uma relação privilegiada do rito do final do luto com o funeral, e não com o destino póstumo20 19 Os relatos de meus informantes não confirmam essa predileção pelos queixadas. A presa mencionada mais insistentemente nesses ritos é o macaco-aranha, e sobre isso falaremos adiante. . Tudo se passa como se aqueles animais abatidos estivessem no lugar do cadáver, e não do morto-queixada, sendo o rito do final de luto uma espécie de continuação e conclusão do ritual funerário, em que o cadáver é finalmente tornado comida aos olhos de todos, especialmente dos parentes, que, apesar de chorarem sobre ele, podem agora vê-lo como caça. Não me parece arriscado dizer que o luto acaba aqui e não no funeral porque somente nesse rito a operação de objetivação do morto, sua transformação em presa, é plenamente realizada aos olhos dos parentes. E o modo de se afirmar isso é novamente através da ingestão; é comendo dessa caça que é cadáver que os parentes mostram que a sua visão mudou, e que se sentem plenamente integrados ao resto do grupo, àqueles que no funeral comeram o morto.

Como disse acima, no rito do final do luto a sociedade wari' se recompõe enquanto todo indiferenciado: afins e consangüíneos novamente se misturam, distinguindo-se, como humanos, porque predadores, do morto-presa. A separação mortos-vivos, esboçada no funeral na forma de uma distinção entre predadores e presas, é aqui plenamente realizada, porque partilhada por todos, e por isso o luto tem seu fim.

O rito do final de luto ilumina em mais de um aspecto o ritual funerário. Em primeiro lugar deixa evidente que uma das funções centrais do funeral é a objetivação do cadáver, a sua transformação em presa. Torna-se então particularmente interessante a insistência de diversos de meus informantes em mencionar a presença do macaco-aranha entre as presas abatidas, mesmo que, quando questionados, afirmassem que o rito poderia perfeitamente ser realizado com outros animais. Ora, o macaco-aranha é um dos poucos animais sem espírito incluídos entre as presas preferenciais dos Wari'; costumam dizer que se trata de iri karawa, animal de verdade. Isso sugere que o morto deve ser representado nesse canibalismo figurado por um animal plenamente animal, puro objeto ou puro corpo, confirmando assim a nossa hipótese de que o funeral é o momento de produção de um corpo, que como tal é associado a um corpo animal.

Mas se o rito do final do luto é focalizado na relação entre os parentes e o morto, o comportamento dos não-parentes aponta algumas questões levantadas por nós na análise do funeral. Nele, os não-parentes devem, pressionados pelos parentes, mascarar a clara visão que têm do cadáver como presa: esperam que a carne assada lhes seja servida, comem-na delicadamente e em silêncio. Qualquer demonstração de voracidade, como vimos nos relatos, é condenada pelos parentes. Como disse um informante, não se pode aproximar do cadáver e tirar um naco. No rito do final do luto, ao contrário, é exatamente isso o que acontece: os não-parentes expressam claramente a sua voracidade, pedindo que lhes seja dado do "cadáver" para comer, o mesmo "cadáver" que está sendo chorado como um parente pelos seus. A impressão que se tem é que no rito do final do luto, diante da transformação da visão dos parentes, que finalmente irão comer do morto, os não-parentes se sentem à vontade para deixar vir à tona uma percepção que experimentavam desde o funeral: o cadáver não é mais gente. A insistência em se chamar os animais de cadáver, tão clara nos relatos, não é senão a afirmação de algo que o funeral como um todo, na voz dos comedores, quer dizer: o cadáver é animal!

Conclusão

Gostaria de concluir refletindo sobre algumas questões suscitadas pelo material wari' em relação à prática do canibalismo no mundo ameríndio. Há muitos anos se vem questionando a dicotomia entre exo- e endocanibalismo, o que levou Lévi-Strauss a concluir que "la distinction devenue tradicionnelle entre exo- e endo-cannibalisme est trompeuse" (Lévi-Strauss, 1984:141). Para isso foi essencial que se problematizasse o estatuto da prática literal em relação às formas figuradas, aproximando, por exemplo, a caça de cabeças jivaro do canibalismo dos antigos Tupinambá, como fez Lévi-Strauss (1984:142).

O material Yanomami analisado por Albert é ilustrativo nesse sentido. Observa-se aí a convivência de um canibalismo mortuário literal, em que se ingere as cinzas dos mortos misturadas em bebida vegetal, com um canibalismo guerreiro figurado, em que o matador devora o sangue/imagem vital de sua vítima (Albert, 1985:351-362). Além disso, toda morte de um membro do grupo é concebida como decorrente de um ato de canibalismo à distância por parte de outro grupo (feitiçaria guerreira) (:213). Como observa o autor, "violência física e simbólica são aqui equivalentes e indissociáveis." (:307, n.27). A mesma relação entre morte e canibalismo figurado pode ser observada para os Piaroa (Overing, 1986:135)21 19 Os relatos de meus informantes não confirmam essa predileção pelos queixadas. A presa mencionada mais insistentemente nesses ritos é o macaco-aranha, e sobre isso falaremos adiante. .

Lévi-Strauss apontou também que, mesmo nos casos de canibalismo literal, o estatuto daquele que é devorado não é evidente como pode parecer. Assim, em um ato de exocanibalismo, o que se ingere é, algumas vezes, um membro do grupo, através do consumo de um inimigo que o havia previamente ingerido. No mesmo sentido, o endocanibalismo poderia ser pensado como "le moyen d'un exo-cannibalisme figuré" (1984:142), modo como Erikson parece entender o endocanibalismo dos grupos de língua pano, definindo-o como um ato de "contra-exocanibalismo" (1986:198): come-se os mortos (os ossos em bebida) para evitar que ele seja comido por outros, visto que o destino de todo cadáver é ser comido (mesmo que por inimigos, vermes, peixes, urubus).

H. Clastres (1968), em sua análise do endocanibalismo guayaki, mostra claramente que o estatuto daquele que é ingerido não é facilmente determinável. Partindo da constatação de que o canibalismo funerário guayaki diferencia-se radicalmente das formas conhecidas de endocanibalismo, por realizar, em relação a elas, uma dupla inversão ("ils mangent la chair, non les os, et se sont des alliés ou des étrangers qui mangent les morts, non des parents" - 1968:69), termina por concluir que o morto do grupo é tratado como um inimigo, já que "non seulement on les mange mais le boucan qui a servi à les rôtir est ostensiblement exposé comme un trophée de guerre." (:70)22 19 Os relatos de meus informantes não confirmam essa predileção pelos queixadas. A presa mencionada mais insistentemente nesses ritos é o macaco-aranha, e sobre isso falaremos adiante. .

As semelhanças entre o caso guayaki e o caso wari' são evidentes, e não somente no que diz respeito à prática propriamente dita. O caso wari' seria uma ilustração perfeita da continuidade entre as diferentes formas de canibalismo. Para os Wari', canibalismo funerário e guerreiro atuam produzindo uma relação específica entre o que come e o que é comido: aquela entre predador e presa, entre humanos e não-humanos, o que o constitui como um ato de predação.23 23 Conklin (1995:75) procura diferenciar endo e exocanibalismo wari' com base nas diferenças entre as práticas rituais e nos sentimentos envolvidos no ato: hostilidade, no caso do exocanibalismo, e respeito, no canibalismo funerário. Concorda, entretanto, que o morto, ao ser comido, é evidentemente associado a uma presa, mas aí metaforicamente, como uma representação do queixada no qual seu espírito será transformado (1989:483; 1995:88).

Chama a atenção, portanto, que um rápido exame da literatura sobre o canibalismo amazônico nos permita constatar que esse tipo de operação está restrita ao exocanibalismo, o único claramente entendido como uma forma de predação. No que diz respeito ao endocanibalismo, a noção de predação não parece ser pertinente. As interpretações dos vários autores que tratam do tema dividem-se, grosso modo, em dois tipos. As primeiras atribuem ao canibalismo funerário uma função essencialmente "amnésica" (Albert, 1985:524-5), constituindo um meio para fazer desaparecer o corpo, sede das lembranças dos vivos e da alma (Guayaki: P. Clastres, 1968:42-3 e H. Clastres, 1968: 69; Kaxinawá: Kensinger, 1996:234). O outro grupo de interpretações insiste não mais no efeito amnésico do canibalismo (ou não só nele), mas em seu potencial regenerador, por propiciar a absorção de atributos do morto (McCallum, 1996:72, para os Kaxinawá; ver também analogias com grupos da Nova Guiné: Poole, 1983; Gillison, 1983).

Na visão de McCallum do canibalismo funerário kaxinawá, a idéia de predação é explicitamente rejeitada.

Consumindo a carne, os parentes podiam talvez reter em si mesmos alguma coisa do morto, liberando a sua alma para voar em direção à floresta. O endocanibalismo era ao mesmo tempo um ato de amor, de compaixão e de auto-proteção (por causa da rápida libertação da alma do corpo). Como era possível desfazer-se do corpo por outros meios, o ato de comê-lo era motivado, sobretudo, pelo amor e pelo parentesco - e não deve ser visto como predação. Ou seja, "outros", tais como feiticeiros, gente ruim, não-parentes, simplesmente não eram comidos. [McCallum, 1996:70]24 23 Conklin (1995:75) procura diferenciar endo e exocanibalismo wari' com base nas diferenças entre as práticas rituais e nos sentimentos envolvidos no ato: hostilidade, no caso do exocanibalismo, e respeito, no canibalismo funerário. Concorda, entretanto, que o morto, ao ser comido, é evidentemente associado a uma presa, mas aí metaforicamente, como uma representação do queixada no qual seu espírito será transformado (1989:483; 1995:88).

A questão central, nesse caso, gira em torno de uma suposta oposição entre predação e compaixão/amor. O problema aqui, fica evidente, é que a noção de predação é interpretada em termos de um suposto valor agressivo e subjugante. Embora os sentimentos envolvidos no ato de comer possam ser relevantes em diversos contextos, não deveriam obscurecer a possibilidade de se perceber, no canibalismo funerário, uma das características centrais da predação: o estabelecimento, em determinado momento, de uma dicotomia entre predador e presa, entendida como uma oposição entre humanos e animais. Fica parecendo que o morto não é suficientemente outro para ser comido como uma presa (ou transformado em presa ao ser comido), quando se sabe que os mortos, no mundo amazônico, costumam ser signos de uma alteridade radical, e como tais podem ser identificados aos inimigos e aos animais, termos de uma relação reconhecidamente predatória.

Não quero dizer com isso que todos os casos de ausência da idéia de predação na interpretação do canibalismo funerário estejam relacionados a essa interpretação particular da predação, onde o que se enfatiza é o sentimento de hostilidade, e tampouco estou negando a validade de outras explicações para os ritos endocanibais. Acredito apenas que o fato dessa ausência deve ser marcado, ainda mais quando se tem como aceita a continuidade lógica entre exo e endocanibalismo, e se sabe que o primeiro se define pela predação.

Poderíamos especular dizendo que tudo se passa como se os antropólogos estivessem adotando a posição dos índios, negando não só a morte, ao considerarem o morto como uma espécie de vivo (parente, ente querido), mas também o fato mesmo do canibalismo, como fizeram os Yanomami de Lizot e H. Clastres.

[...] consommer les os de ses parents n'est pas un comportement cannibale [...] le cannibalisme c'est la démesure, toutes les façons de faire déreglées; c'est, énuméré point par point, tout ce que les Yanomami ne font pas. Eux ne sont pas cannibales. Le cannibale, n'est-ce pas toujours l'autre? [Clastres e Lizot, 1978:126]

2 Não posso resistir a pensar na idéia de "clonagem", tão discutida nos últimos dias (estamos em março de 1997). Imagino que os Wari' não achariam nada surpreendente o feito da clonagem a partir de animais adultos mortos: é exatamente o que os animais que conhecem fazem por si mesmos, sem a ajuda dos homens. Aconselhar-nos-iam, talvez, a não nos preocuparmos em discutir os problemas éticos relativos à clonagem de seres humanos mortos, simplesmente porque esta é impossível. Corpo de gente morta só se reproduz como outro.

4 Para a noção de perspectivismo ver também Lima, 1996.

5 Os Wari' diferenciam os animais somente como espécie. Assim, uma característica de um queixada ou de um bando específico é comum a toda a espécie.

6 Não vou me deter aqui para explicar os porquês da inclusão ou não de determinados animais e vegetais. Remeto o leitor interessado a Vilaça (1992) e Conklin (1989). Antes de prosseguirmos, entretanto, faz-se necessário um parêntese para deixar claro o meu notável desconforto com a tradução do termo jam- por espírito. Não conheço um termo que possa servir de tradução para jam- e por isso evitei, em trabalho anterior (Vilaça,1992), correr o risco de empobrecer o conceito com uma tradução duvidosa, que poderia conduzir o leitor a uma apreensão equivocada. Entretanto, como jam- designa tanto essa projeção 'mágica' do corpo, quanto a sua projeção física (sombra, rastros etc), faz-se necessário o uso de termos diferentes para cada um deles. O jam- que não é simplesmente sombra poderia ser chamado duplo, imagem, ou projeção, mas não acredito que esses termos requeiram menos ressalvas do que a palavra espírito. Optei então por mantê-la, alertando o leitor para que tenha sempre em mente a diferença profunda entre o que costumamos conceber como espírito e o jam- wari'.

8 Para uma análise do sistema de parentesco wari', remeto a Vilaça, 1995.

9 Por meio do uso da terminologia de parentesco, a consangüinidade pode envolver não só o morto mas também o comedor. São comuns frases do tipo: "coma a carne do nosso (inclusivo) irmão mais velho". A diferença é que, enquanto o cantador é um irmão real do morto, o comedor é um irmão classificatório, na maioria das vezes um afim real.

10 Conklin (1995:81) tem outra opinião. Para ela o canibalismo era, para os afins, uma obrigação, e a recusa de homens adultos dessa categoria era tomada pelos parentes do morto como um insulto.

11 Para Conklin (1995:84), os parentes (e mesmo alguns afins que se sentem particularmente tristes) evitam comer do morto não só por causa da semelhança fisiológica, mas também porque se sentem tristes, e a tristeza é incompatível com o comer, especialmente com a ingestão de carne, que expressa "alegria e integração social".

13 Há o caso exepcional de um filho de mãe solteira que foi assassinado por seu tio materno logo após o nascimento e foi enterrado. O seu avô materno, sem conseguir tirar da mente a imagem da criança enterrada, desenterrou, assou e comeu ele mesmo o neto, sem qualquer maneira de mesa.

14 Segundo Conklin (1989:209 e 217), os filhos seriam mais consubstanciais dos pais quando pequenos, já que a puberdade caracterizar-se-ia por uma produção cada vez maior de sangue e substâncias corporais diferenciadas (ver também Conklin, 1995:86). Se tudo não passasse de uma mera questão de substância, portanto, o irmão mais velho teria mais facilidade em comer do avô do que o jovem, já que a consubstancialidade estende-se à parentela bilateral próxima, especialmente, segundo a autora (1989: 181), à parentela matrilateral, na qual estaria incluído o avô ingerido (MF).

16 Conklin (1995: 84-85) nota um desejo dos Wari' de se comerem entre si, ilustrado pelo pedido de uma mulher, prestes a morrer, ao filho de seu irmão (BS) e ao filho deste (BBS), para que a comessem quando morta. Não diz, entretanto, se esses parentes puderam atender ao pedido. Imagino que para o homem adulto não foi possível.

17 Remeto a Vilaça (1992:227-9) para uma descrição mais detalhada do varrer.

18 De acordo com Conklin, o significado último da ingestão do morto também está relacionado ao destino póstumo: "Cannibalism initiated the transformation of death's negativity into a positive, life-affirming image which overlay memories of the dead person with the image of the ancestral peccaries that both forced and aided survivors to adjust to new patterns of social life without the deceased." (1989:487)

20 É preciso observar que o termo jama, que traduzo como cadáver, não costuma ser usado para se referirem ao morto enquanto ancestral. Para isso os Wari' usam o termo coletivo orojima, que poderia ser traduzido como "os mortos". O morto ancestral, mesmo que possa ser identificado como um queixada específico pelos xamãs, é considerado como parte de uma coletividade indiferenciada de mortos.

21 Ver ainda Albert, 1985:213, 307 e 351-62, para os Yanomami; Viveiros de Castro, 1986: 519-20, para os Araweté; Lima, 1995:203, para os Juruna e Vilaça, 1992:112-3, para os Wari'.

22 H. Clastres (1968:70) opta por uma explicação histórica, sugerindo que o funeral guayaki teria relação com o canibalismo guerreiro dos vizinhos Guarani.

24A meu ver, McCallum não explica exatamente porque o canibalismo pano não é predação e nem mesmo "canibalismo" (1996:75). O argumento de que a carne é transformada pelo canto em substância animal e que os ossos são tornados metonimicamente vegetais (:74), não me parece suficiente, já que a autora diz a seguir que "afinal de contas, trata-se realmente de carne humana" (Id., ibid.). Nas conclusões, é a causa de morte e não o canibalismo que a autora procura dissociar da idéia de predação (77).

Bibliografia

Abstract: On the basis of detailed ethnographic analyses, the present article reflects on the significance of death and cannibalism among the Wari' (Pakaa Nova) of Rondonia, Brazil, specifically through consideration of the notion that the body, as the center of one's worldview, is the basis of differentiating between categories of beings. It is concluded that ingestion of the body through ritual endocannibalism is a means of dehumanizing the dead and simbolically transforming them into prey, as thus differentiates them from the living who, as predators, are perceived as human. Through the Wari' etnhographic material, several recurrent interpretations regarding ritual endocannibalism in South America are criticized, particularly insofar as they ignore one of its most essential characteristics: its classificatory potential.

Key-words: canibalism, death, Wari'.

Aceito para publicação em maio de 1998.

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  • Notas

    1 Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. A Finep, a Fundação Ford e a Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research financiaram o trabalho de campo entre os Wari. Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro as longas discussões que deram origem a este artigo, e a Tânia Stolze Lima a leitura crítica de uma de suas versões.
  • 3
    Para uma análise do abandono do canibalismo, ver Vilaça, 1996 b.
  • 7
    Para um desenvolvimento dessa idéia remeto a Vilaça, 1996.
  • 12
    Dentre todos os contextos, o lugar em que esse princípio parece operar mais claramente é na guerra. Os Wari' não dizem que os matadores evitam comer do inimigo porque se lembram dele, como no caso dos parentes dos mortos, ou porque o vêem como gente, como no caso dos xamãs em relação aos animais. O que se diz claramente é que comer do inimigo provocaria problemas de ordem fisiológica (vômito, inchamento etc), que poderiam levar à morte.
  • 15
    Conklin (1995: 82) observa que o ideal era que os cadáveres fossem completamente comidos.
  • 19
    Os relatos de meus informantes não confirmam essa predileção pelos queixadas. A presa mencionada mais insistentemente nesses ritos é o macaco-aranha, e sobre isso falaremos adiante.
  • 23
    Conklin (1995:75) procura diferenciar endo e exocanibalismo wari' com base nas diferenças entre as práticas rituais e nos sentimentos envolvidos no ato: hostilidade, no caso do exocanibalismo, e respeito, no canibalismo funerário. Concorda, entretanto, que o morto, ao ser comido, é evidentemente associado a uma presa, mas aí metaforicamente, como uma representação do queixada no qual seu espírito será transformado (1989:483; 1995:88).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      1998

    Histórico

    • Aceito
      Maio 1998
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