RESENHA
Pedro Paulo A. Funari
Coordenador associado do Núcleo de Estudos Estratégicos e professor do Departamento de História Unicamp
Augé, Marc & Colleyn, Jean-Paul. L'Anthropologie, Paris, PUF, 130 pp.
Nada mais difícil do que sintetizar, tarefa a que se dispuseram Augé e Colleyn. O desafio, no entanto, foi muito bem resolvido, no que resulta ser um compêndio não tanto de introdução, como de discussão, tanto epistemológica como empírica, dos debates contemporâneos da disciplina. Marc Augé, autor de inúmeras obras, muitas delas já traduzidas, é diretor de estudos da prestigiosa École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde também atua como conferencista Colleyn; o que insere o título, antes de tudo, na antropologia social e cultural francesa, ainda que os autores não descuidem de referir-se a outros contextos como, em primeiro lugar, o mundo de língua inglesa. De maneira programática, explicitam que a obra não almeja pela transmissão de valores consagrados, mas mostrar a diversidade de pontos de vista sem deixar de mencionar suas próprias posições.
Os autores constatam que todo pensamento humano é social e, portanto, toda antropologia é também sociologia. A aprendizagem das rotinas, a aquisição dos hábitos espirituais e corporais, torna-se mesmo involuntária, por sua incorporação irrefletida das normas de conduta em sociedade. Eles advertem contra a tendência inicial da disciplina a exagerar a coerência interna das culturas, como se fossem por demais homogêneas. De fato, em uma mesma sociedade coexiste uma pluralidade de formas, e a bagagem cultural varia segundo a idade, o sexo, a educação, a fortuna, a profissão, as convicções políticas e religiosas e assim por diante. Desse modo, criticam a noção de aculturação, que pressupõe duas culturas originais homogêneas em contato, e lembram que todas as sociedades são caracterizadas por conflitos e mudanças.
No capítulo dedicado aos objetos da antropologia tratam da discussão entre os dois grandes pólos: os que defendem a existência de leis econômicas universais e aqueles para os quais as relações sociais e a interpretação simbólica do mundo impõem à produção suas características. Sociedades vivendo num mesmo meio apresentam grandes diferenças, enquanto sociedades em ambientes diversos mostram semelhanças; mas, na década de 1950, se tornou popular o determinismo ecológico de Julian Steward e o materialismo cultural de Marvin Harris. A multiplicação dos estudos etnográficos de caráter monográfico levou ao questionamento profundo da própria noção de adaptação e ao crescente interesse pela diversidade de tipos de mediação entre os grupos humanos e o não-humano. Essas considerações são particularmente relevantes no contexto brasileiro, pois a interpretação do nosso passado pré-colonial continua, em parte, inserida no determinismo ecológico do Pós-Segunda Guerra Mundial. No campo das relações de poder e de sentido, o conceito elaborado por Augé, de "ideo-lógica", procura dar conta das relações entre a construção simbólica e a política. Na seqüência, os autores emprestam a Michel Foucault e Paul Veyne o conceito de regimes de verdade, vários dos quais existem em um mesmo momento e até em um único indivíduo, para entender a diversidade de interpretações da religião. Remontam à noção de habitus, remodelada por Pierre Bourdieu, a Mauss e à sua fonte original, Aristóteles, para entender os mecanismos de incorporação de posturas e da encenação da vida quotidiana (como quer Erving Goffman).
Colleyen é etnógrafo e autor de uma série de filmes etnográficos. Desse modo, não falta, no volume, uma avaliação do cinema antropológico, tantas vezes visto, ingenuamente, como neutro e objetivo, como se o documentarista pudesse ter um conhecimento positivista do que eigentich gewesen, para parafrasear Leopoldo von Ranke. Ao contrário, o filme é sempre de autoria, tal como uma monografia antropológica.
Em seguida, tratam dos campos afins que se beneficiam da disciplina; e, segundo os autores, muitos historiadores foram os que melhor fizeram uso da antropologia, como no caso notável do estudo das crenças na Grécia Antiga. O trabalho de campo merece também um capítulo, no qual se retorna a Émile Durkheim para lembrar que a realidade não é um dado, uma construção do pesquisador, e a experiência é fundamental para a formação do antropólogo. Um pensador excepcional como Marcel Mauss, que não era um homem de ir a campo, confirma a regra da importância da vivência direta, do aprendizado da língua, da convivência plena em campo.
Nem por isso, Augé e Colleyn deixam de ressaltar a necessidade de se ler outros autores. Dedicam, ainda, um capítulo à escrita antropológica, cujo estilo já postula uma teoria, uma filiação intelectual e um engajamento ético. Defendem o caráter científico do discurso antropológico, que não se pode confundir com a ficção. Na conclusão, inserem a disciplina em suas três grandes raízes: nos greco-romanos, no Iluminismo e na industrialização. Valorizam a postura antiessencialista dos chamados "estudos pós-coloniais", sua análise crítica dos modos de expressão da cultura em contextos históricos específicos.
A antropologia, surgida no bojo da expansão imperial, tem sido, cada vez mais, submetida à crítica interna da própria história e de seus pressupostos. Os modelos normativos, que consideram a sociedade como todos homogêneos, têm sido questionados tanto em termos teóricos como a partir de estudos de caso. Augé e Colleyn mostram a vitalidade da disciplina que constitui, com efeito, uma das mais importantes fontes de modelos interpretativos para os estudiosos da sociedade, como historiadores e arqueólogos. Embora os autores centrem-se na experiência francesa e, por isto, não tratem, em detalhe, das características originais da antropologia norte-americana, o volume constitui uma excelente introdução às principais questões epistemológicas da disciplina no início do século XXI.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Ago 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004