Resumos
Este artigo discute um aspecto do conhecimento pa'ikwené chamado púkúha, que significa tanto "entender" quanto "contar". Ele explora a numerologia indígena e a relação próxima, não menos imaginativa do que empírica, entre a matemática e a lingüística, que nem sempre aparece em sociedades não orais como a nossa. O sistema matemático pa'ikwené é conceitualmente inventivo e lexicalmente profuso: alguns numerais têm mais de duzentas diferentes formas no uso corrente, graças a um intensivo processo de transformações de morfemas baseado no acréscimo de afixos. Portanto, uma palavra-número pode pertencer a vinte e uma classes numéricas que se relacionam a cinco diferentes categorias semânticas, que incorporam diversos estados e atributos discretos (macho/fêmea, concreto/abstrato, animado/inanimado, natural/sobrenatural), assim como idéias aritméticas e geométricas específicas. Assumindo uma abordagem antiplatônica, o artigo descreve a matemática pa'ikwené como um modo de conhecimento inato, corporificado e metafórico (Lakoff & Nuñez, 2000), que classifica e expressa o mundo em que se vive. Propõe também que os números pa'ikwené operam simultaneamente nos níveis literal e figurativo, ou seja, ambos como símbolos com significados fixos e determinados, e como imagens polissêmicas de diferentes classes de coisas que compõem o universo nativo.
Amazônia; Pa'ikwené; conhecimento ameríndio; etnolingüística; etnociência; etnomatemática; tipologia indígena dos números; classificação; metáfora
This article addresses an aspect of Pa'ikwené knowledge called púkúha, which means both "to understand" and "to count". It explores the indigenous numerology and the close relationship, no less imaginative than empirical, between mathematics and linguistics that is not always apparent in non-oral societies such as ours. The Pa'ikwené mathematical system is conceptually inventive and lexically profuse, some numerals having over two hundred different forms in current usage thanks to an intensive, affix-based process of morphemic transformations. Thereby, a numberword can belong to twenty-one numerical classes relating to five distinct semantic categories incorporating diverse discrete states or qualities (male/female, concrete/abstract, animate/inanimate, natural/supernatural) as well as particular arithmetical and geometrical ideas. Taking an anti-Platonic approach, the article describes Pa'ikwené mathematics as an innate, embodied and metaphorical (Lakoff & Nuñez, 2000) mode of knowledge for classifying and expressing the lived-in world. It proposes furthermore that Pa'ikwené numbers simultaneously operate at the literal and figurative levels, i.e., both as symbols with fixed, determined meanings, and as polysemic images of the different classes of things that comprise the Native universe.
Amazonia; Pa'ikwené; Amerindian knowledge; ethnolinguistics; ethnoscience; ethnomathematics; indigenous typology of numbers; classification; metaphor
CONHECIMENTO ENCORPORADO
Do um à metafora.1 Para um entendimento da matemática pa'ikwené (Palikur)2
Alan Passes
RESUMO
Este artigo discute um aspecto do conhecimento pa'ikwené chamado púkúha, que significa tanto "entender" quanto "contar". Ele explora a numerologia indígena e a relação próxima, não menos imaginativa do que empírica, entre a matemática e a lingüística, que nem sempre aparece em sociedades não orais como a nossa. O sistema matemático pa'ikwené é conceitualmente inventivo e lexicalmente profuso: alguns numerais têm mais de duzentas diferentes formas no uso corrente, graças a um intensivo processo de transformações de morfemas baseado no acréscimo de afixos. Portanto, uma palavra-número pode pertencer a vinte e uma classes numéricas que se relacionam a cinco diferentes categorias semânticas, que incorporam diversos estados e atributos discretos (macho/fêmea, concreto/abstrato, animado/inanimado, natural/sobrenatural), assim como idéias aritméticas e geométricas específicas. Assumindo uma abordagem antiplatônica, o artigo descreve a matemática pa'ikwené como um modo de conhecimento inato, corporificado e metafórico (Lakoff & Nuñez, 2000), que classifica e expressa o mundo em que se vive. Propõe também que os números pa'ikwené operam simultaneamente nos níveis literal e figurativo, ou seja, ambos como símbolos com significados fixos e determinados, e como imagens polissêmicas de diferentes classes de coisas que compõem o universo nativo.
Palavras-chave: Amazônia, Pa'ikwené/Palikur, conhecimento ameríndio, etnolingüística, etnociência, etnomatemática, tipologia indígena dos números, classificação, metáfora.
ABSTRACT
This article addresses an aspect of Pa'ikwené knowledge called púkúha, which means both "to understand" and "to count". It explores the indigenous numerology and the close relationship, no less imaginative than empirical, between mathematics and linguistics that is not always apparent in non-oral societies such as ours. The Pa'ikwené mathematical system is conceptually inventive and lexically profuse, some numerals having over two hundred different forms in current usage thanks to an intensive, affix-based process of morphemic transformations. Thereby, a numberword can belong to twenty-one numerical classes relating to five distinct semantic categories incorporating diverse discrete states or qualities (male/female, concrete/abstract, animate/inanimate, natural/supernatural) as well as particular arithmetical and geometrical ideas. Taking an anti-Platonic approach, the article describes Pa'ikwené mathematics as an innate, embodied and metaphorical (Lakoff & Nuñez, 2000) mode of knowledge for classifying and expressing the lived-in world. It proposes furthermore that Pa'ikwené numbers simultaneously operate at the literal and figurative levels, i.e., both as symbols with fixed, determined meanings, and as polysemic images of the different classes of things that comprise the Native universe.
Key-words: Amazonia, Pa'ikwené/Palikur, Amerindian knowledge, ethnolinguistics, ethnoscience, ethnomathematics, indigenous typology of numbers, classification, metaphor.
1 é 1 e sempre 1, em qualquer língua;
em inglês, claro, é "one";
em francês algo diferente.
(Goody, 1977, p. 122)
Joanna Overing (2003, p. 293) conta como os Piaroa, a quem seus vizinhos consideram "os intelectuais do Orinoco", apreciam o debate, particularmente sobre os aspectos metafísicos do cotidiano. Meu interesse aqui é sobre o aspecto físico da vida cotidiana, como ele se revela por meio do discurso matemático e numérico dos Pa'ikwené, o povo talvez não menos intelectual (eu gostaria de acreditar) do rio Oiapoque, no norte do Brasil/Guiana Francesa. Muito do trabalho que realizei sobre a linguagem cotidiana pa'ikwené examinou a prática incorporada e o valor sociológico de tchimap, que significa tanto "ouvir" quanto "entender" (Passes, 1998; 2000; 2001; 2002; 2004, p. 8). Este artigo trata de outra forma de entendimento e conhecimento pa'ikwené, chamada púkúh(a). Púkúh(a), de forma semelhante, significa "entender" e também tem um segundo significado: "contar". Em Pa'ikwené (uma língua arawak), você pode usar números para descrever comportamento social, ações e estados de ser. Assim, você pode dizer de um homem retraído ou isolado que ele "um-izou" a si mesmo, Ig pahavwihwé, ou que dois indivíduos se "dois-aram" a si mesmos, Egkis piyanméhwé, ou seja, eles se casaram.
Este artigo pretende lançar alguma luz sobre o fenômeno da metáfora matemática na fala indígena. Será argumentado que os números pa'ikwené são ao mesmo tempo literais e figurativos, tendo não apenas um significado numérico fixo, mas múltiplos significados que se relacionam às imagens associadas com diferentes classes de coisas. Com relação ao componente matemático do artigo, eu gostaria de registrar minha dívida com o trabalho de uma colega pesquisadora, Diana Green, do Summer Institute of Linguistics (Green, 2001, 2002a, 2002b, 2005, s/d; Aikhenvald & Green, 1998). A maior parte do material numerológico e matemático pa'ikwené apresentado aqui é fruto do trabalho dela e não do meu.3
Sobre a metáfora e a matemática
No pensamento racionalista ocidental, a metáfora e a ciência, da qual a matemática, por convenção, é uma parte, são consideradas opostos hostis. Uma (a ciência) sendo vista como universal, objetiva, racional, verdadeira; a outra (metáfora) como culturalmente diferenciada, subjetiva, irracional, poética. Mas, como Overing (1985a, 1985b, 1990), Horton (1967), Lakoff (1987) e outros demonstraram, a metáfora e a ciência não são irreconciliáveis, e a metáfora em si mesma é de fato algo da razão e da lógica que informa, e é instrumental não apenas na arte e na religião, mas também na filosofia e na ciência. Mais recentemente, Lakoff e Nuñez (2000) propuseram a congruência entre a metáfora e a matemática especificamente; eles argumentam além disso que a última depende da primeira.4
Comparada à América Central, com seu famoso conhecimento matemático maia e asteca, relativamente pouca atenção etnográfica foi dada aos sistemas numéricos sul-americanos. Destaca-se a exploração que Urton (1997) faz do sistema dos Quechua, no tocante a como ele se manifesta no dispositivo do quipu, e Ferreira (2002), que oferece uma pesquisa comparativa interessante (ver também Griffiths, 1975; Costa de Souza, 1995). Na antropologia, de um modo mais geral, fora exceções notáveis, tais como Lancy (1983), Mimica (1992), Peat (1994) e Crump (1997), a matemática e os números têm aparecido menos como tema de estudo do que como ferramenta de estudo aplicada a sistemas como a demografia e a economia. É também, claro, central no trabalho de Lévi-Strauss sobre parentesco e mitologia, que se apóia na base matemática da lingüística estruturalista. Aqui, eu quero combinar a matemática e a linguagem de forma diferente, para conseguir ver como elas podem compor um processo trop(e)ical que é constitutivo das relações cognitivas do ser humano com o mundo.
Na visão platônica (defendida por modernos, tais como Frege, Russell e Whitehead), os fatos matemáticos não são corporificados, e existem de forma independente do mundo humano num reino abstrato além da mente e da matéria, embora acessível por meio do pensamento racional. Uma visão contrastante que endosso é de que a matemática, mesmo a matemática "pura" que enfoca a teoria e ignora a aplicação prática, é inicialmente uma forma de conceber, entender e expressar o mundo em si, tanto humano quanto extra-humano, e ela faz isso por meio da metáfora.
Na origem, quantificar e medir o mundo não são ações abstratas, mas existenciais e pragmáticas. Estão enraizadas na percepção: a experiência física, psicológica e sensorial do ambiente que os indivíduos começam a ter na infância e depois continuam a aplicar às preocupações concretas, tanto sociais quanto práticas - coisas que se relacionam a espaço, tempo, economia e assim por diante - , e, a partir daí, passam a projetar além, a questões ainda mais amplas, tais como os sistemas solar, lunar e estelar e das esferas cósmicas sobrenaturais. As fórmulas matemáticas, que incluem as de tipo geométrica e algébrica, são formas que os humanos têm de conceber o meio baseando-se em sua exploração e experiência perceptiva a respeito dele. A idéia de uma base fenomenológica ou sensorial para entender a ciência matemática não é nova no pensamento ocidental. No final do século XVII, Locke considerou a geometria uma questão tanto de tato quanto de visão, enquanto para Berkeley, no começo do século XVIII, é essencialmente uma ciência tátil (Rée, 1999, p. 335-7).
Como a língua e a música, e com esta última ela parece ter afinidade (Crump, 1997, p. 105ff, 112ff), a matemática é abstrata num nível: assim como as palavras e as notas, os números podem ser códigos formais e signos arbitrários sem significado (cf. Rée, 1999, p. 116, 258, 261). Mas, em outro nível, cada um opera com significado dentro de contextos concretos e sociais que atribuem significado. Novamente, como as palavras (e notas musicais), os números são também sons. De fato, não nos esqueçamos, números são palavras faladas mesmo antes de serem escritas pela primeira vez, pelo menos nas formas gráficas convencionais que eles têm hoje (Crump, 1997, p. 41ff).5 Algumas vezes, inclusive, números são letras como no hebreu, o mesmo signo sonoro/visual pode ser usado para ambos. Mas, diferente dos números escritos que são descontextualizados socialmente e fixos pelo próprio ato de anotação, os números falados nas sociedades orais, tais como a pa'ikwené, ainda operam num mundo livre daquilo a que Goody (1977, p. 122) chama de "reducionismo gráfico". Como ele observa, ao substituir fonemas e lexemas, as fórmulas gráficas visuais como logogramas para números tornaram as coisas mais abstratas e também universalizaram os números a expensas de suas diferentes particularidades específicas a cada cultura. Daí a observação de Goody (ibid.) mencionada acima de que , quando independente de qualquer sistema fonético particular, o símbolo escrito 1 é 1 em qualquer língua, mas em inglês falado "um" (one) não é o mesmo "um" do francês falado. Este, claro, é un ou une dependendo do gênero do item a que o "um" francês se refere. Como veremos, há uma multiplicidade de diferentes tipos morfológicos de "um" pa'ikwené, dependendo das diferentes classes de coisas (incluindo gênero) a que esse número se refere.
(Entre parênteses, parece-me que, enquanto enfatiza o caráter monossêmico dos signos numéricos, Goody passa por cima do seu status polissêmico como símbolos que atribuem aos números significados que estão além do matemático fixo. Em algumas culturas, por exemplo, números escritos tais como 0, 1, 3, 4, 5, 7, 666 possuem conotações sexuais, ou sagradas, ou mágicas ou outras conotações metafísicas.6)
Devemos ser cautelosos para não caracterizar a matemática das sociedades ditas "primitivas" como um simples exercício matemático rudimentar de contar nos dedos ou adicionar conchas e cocos (cf. Peat, 1994, p. 153-218; Crump, 1997, p. 31-46; Ferreira, 2002). Nem deve a matemática ser vista como uma especialidade limitada às ditas "civilizações avançadas" (ocidentais ou orientais). Parece ser o caso, no entanto, de que alguns povos empregam um sistema numérico muito simples. Por exemplo, considerando a América do Sul nativa, os Kampa têm apenas três palavras-números, "um", "dois" e "três", segundo Green (2002b, s/d), que também mostram o uso freqüente do mesmo termo para "três" e "muitos", um procedimento existente no latim (Koestler, 1964, p. 622). Na língua canela há apenas quatro termos genéricos: "sozinho", "par", "alguns", "muitos" (ibid.). De forma semelhante, segundo Campbell (1989, p. 32) informa, os Wayãpi, vizinhos dos Pa'ikwené, também não têm palavras para números maiores do que quatro. Os Pa'ikwené não compartilham esse minimalismo numérico. Eles têm termos para números de um a dez e cem e, pela construção gramática sobre essas bases com classificadores, podem ampliar a ordem numérica de dez a noventa e nove e estendê-la de cento e um a milhares. Do outro lado da escala, os Pa'ikwené também conhecem zero: yúma. Antes de descrever esse sistema numérico, que Green (s/d, p. 2) chama de "talvez o sistema mais complexo de todos", considerando-se os povos indígenas do Brasil, há duas questões que preciso abordar rapidamente: a classificação e a metáfora.
Como a visão platônica da matemática, a classificação é vista por alguns como preexistente "lá fora". Assim, da perspectiva durkheimiana, os sistemas classificatórios não estão enraizados no indivíduo mas no "social" destacado - apoiado não em qualquer capacidade cognitiva humana a priori, mas na organização, nas instituições e nas funções sociais. Contra isso, Berlin (1992), Ellen (1993) e outros sugeriram uma predisposição humana inata e pré-cultural para a classificação. E James Fernandez (in Rapport & Overing, 2000, p. 49-50) enfatiza o papel-chave da metáfora para moldar a classificação e também para esclarecer as nossas experiências corporais freqüentemente vagas, que permitem aos indivíduos em diálogo construir um sentido mais concreto de identidade pessoal e social.
Para Lakoff (1987; Lakoff & Johnson, 1980), a metáfora em si é corporificada, está enraizada na percepção humana do ambiente e interage com o conhecimento de nossos corpos que desenvolvemos desde bebês. O primeiro conhecimento e percepção experimental que nós humanos temos é do nosso próprio corpo, e, com base nisso, derivam esquemas conceituais relacionando-o com fenômenos básicos tais como gravidade, ligação e movimento, ou seja, noções de em cima-embaixo, frente-atrás, dentro-fora, aqui-ali. Nós transformamos esses esquemas estendendo metaforicamente o conceito de raiz, conectando o domínio de experiências corporais a domínios extracorporais, que vão se expandindo do concreto e social para o crescentemente abstrato. Por exemplo, relações interpessoais são freqüentemente experimentadas com base numa primeira imagem de ligação, o cordão umbilical que une a mãe ao ego recém-nascido, portanto, "cortar os vínculos sociais", "amarrar" (no casamento) etc. Outro exemplo: a experiência perceptual da elevação da nossa temperatura corporal leva a metáforas tais como "sangue quente" e "meu coração derreteu de amor".
Segundo essa tese, a metáfora não integra apenas a linguagem (contra Aristóteles). Ela também é constitutiva da conceituação, e assim desempenha um papel cognitivo fundamental na definição das realidades cotidianas. Como evidência, Lakoff (1987) cita os muitos exemplos transculturais de sistemas classificatórios, baseados na associação metafórica radial mais do que na hierarquia vertical de substantivos, como muitas das classificações ocidentais o são.7 Tendo embasamento somático e sendo ativa na conceituação da realidade, a metáfora é, assim, tanto "experimentada" (ou seja, subjetiva) quanto "imaginativa" (ou seja, criativa). Esses atributos permitem muitos conhecimentos culturalmente diferenciados da realidade perceptível, em oposição à idéia objetivista de uma única realidade verdadeira.
O livro de Lakoff e Nuñez, Where Mathematics Comes From (2000), propõe que a matemática tem uma base metafórica e, contra Platão, corporificada. Diferente de Lévi-Strauss ou Polanyi,8 ele não define a corporalidade como uma condição inteiramente situada no cérebro. Apóia-se, no entanto, na premissa de que, antes mesmo da fala, os bebês humanos têm a capacidade de computar, sendo capazes de distinguir o tamanho de grupos de até quatro itens e reconhecer adição e subtração. Para Lakoff e Nuñez, a matemática deriva da extensão dessa capacidade a números maiores pelo uso e pela combinação de metáforas da experiência corporal.
Ou seja, adição, subtração, multiplicação e medição, bem como noções de zero, números negativos e infinidade, desdobram-se de metáforas enraizadas nas experiências corporais básicas da criança em desenvolvimento: recolher e empilhar objetos, medir os objetos do ambiente em relação ao próprio corpo e movimentar-se através do espaço, ou seja, engatinhar e depois andar.9 Sendo assim, a habilidade inata de distinguir quantidades, junto com as referências internalizadas das primeiras experiências incorporadas e sua metaforização projetada aos domínios extracorporais, está subjacente na criação de idéias matemáticas cada vez mais complexas e abstratas. Agora, passo à etnografia.
Números pa'ikwné
O estudo de Diana Green (2002b, s/d) sobre os termos numéricos indígenas no Brasil observa a existência de sistemas baseados em um (por exemplo, Kampa, Kulina, Makú), dois (por exemplo, Xavante, Arara, Bororo, Kayapó), três (por exemplo, Atroari), cinco (por exemplo, Munduruku), dez (por exemplo, Pa'ikwené) e, aparentemente o que predomina, vinte (por exemplo, Karaja, Kadiwéu, Makushi, Tikuna, Paresi). Green (2002a, 2001, 2005) sugere que possivelmente o sistema numérico dos Pa'ikwené baseado em dez números substituiu, depois do contato, um sistema anterior baseado em sete números, que teve início em meados do século XVII ou talvez mais cedo (ver Passes, 2002b, p. 179ff). Termos para "sete" (e "seis") são aparentemente raros nas línguas indígenas brasileiras, mas "sete" parece ter tido significado cultural para os Pa'ikwené, como se sugere pela prática recentemente abandonada de trocas entre os clãs de artefatos chamados de imti, um tipo de combinação de calendário e cartão de convite, que apresenta sete barbantes decorados, com os quais se contavam os dias que faltavam para eventos importantes, tais como uma cerimônia anual de lamentação pelos mortos. Historicamente, também, os Pa'ikwené contavam em séries de sete dias, além de terem séries de dez. A série de sete dias é chamada paka, que significa "semana" e, atualmente, também significa "domingo" - que é o único dia da semana que manteve o seu nome nativo, sendo os demais empréstimos de crioulo. Esse uso de sete possivelmente estava relacionado a outra data pa'ikwené importante: o breve período seco de uns sete dias, entre a primeira e a segunda chuva (final de fevereiro e começo de março).
A raiz de "um" é paha. A raiz de "dois" é pina. A palavra para "três" é mpana.10 Esses termos são consistentes com raízes proto-arawak, segundo reconstituição feita por Payne (1991): pa ou ba, pi ou bi, mapa ou mada. Como veremos, o "um" e "dois" pa'ikwené atravessam extensas transformações de morfemas, por meio da adição de sufixos e, no caso de "dois", infixos que concordam com qualquer classe com a qual os números estejam ligados. "Três" e "quatro", pashnika, são também modificados por afixos conforme a classe, embora nem tanto. Outros numerais são ainda menos modificados. A palavra pa'ikwené para "cinco" é pohowkú, que é composto de paha (um) + ú (nosso) + wakú (mão). "Seis" é púgúnkúna. "Sete" mesmo é ntéúnenké, e "oito" e "nove" são respectivamente ntéúnenké akak pahat arauna e ntéúnenké akak pitana arauna (etimologicamente, "sete e mais um adicionado" e "sete e mais dois adicionados").
"Dez" é madikaukú, que significa "fim (das) mãos". O termo para "dezena" é madikwa; "vinte" é "duas dezenas", pina madikwa; e "trinta" é "três dezenas", mpana madikwa; e assim por diante até "oitenta" e "noventa", quando tanto o radical quanto os afixos se tornam mais elaborados. "Cem" pode ser madikaukú madikwa ("dez dezenas") ou sah, um empréstimo da língua crioula. Termos para múltiplos de cem são bilíngües, por exemplo, quatrocentos é pashnika-pút sah, "quatro vezes cem". Isto é composto do nativo pashnika ("quatro") + pút (morfema que indica multiplicação) + o sah importado. "Mil" é madikaukú sah ("dez centenas") ou, quando não é usado para contar dinheiro, madikaukú-pút madikaukú madikwa (dez vezes dez dezenas).
Como você terá percebido, a língua pa'ikwené, como muitas línguas amazonenses, é aglutinativa. A maioria das palavras é formada por um radical acrescido de uma multiplicidade de afixos, ou morfemas, designando/expressando conceitos, básicos e também sofisticados, que indicam uma capacidade extremamente desenvolvida para pensamento abstrato e analítico, inclusive no campo da matemática. A maioria das palavras para número pa'ikwené entre um e cem levam afixos (geralmente, mas nem sempre, na forma de sufixos) que modificam o substantivo ou verbo ao qual um numeral se refere. Como uma palavra-número pode ser usada com uma variedade de classificadores, modificadores, afixos aritméticos, afixos sintáticos e, no caso do "um", marcadores de concordância de gênero, muitos numerais pa'ikwené têm mais de duzentas formas correntes na conversação cotidiana. Eu não vou nomear cada um deles ou todos os afixos. Apenas para números de um a dez , há mais de cem termos, cada palavra-número modificada por pelo menos doze afixos. Os afixos servem como classificadores, identificando vinte e uma diferentes classes de coisas,11 que se relacionam a cinco categorias semânticas principais, pertencentes aos seguintes conceitos matemáticos: unidades, conjuntos, frações, abstrações e séries.
Existem onze UNIDADES tangíveis. A primeira compreende coisas animadas: pessoas, espíritos, animais, pássaros, peixes, lua, sol, estrelas e diversos fenômenos naturais. O sufixo classificador de numeral desta unidade para "um" é v ou p (pronúncia alternativa); o infixo, classificador de numeral para "dois", é ya. Números de "dois" em diante não levam classificadores, portanto, paha-v-ú himano ("uma menina"), pi-ya-na gú-kebi-kis himano-pyo ("duas meninas") e mpana gú-kebi-kis himano-pyo ("três meninas"). O termo kebi significa "unidade" e geralmente é um afixo de números acima de "um" quando se refere a unidades tangíveis. Com coisas animadas, o termo é declinado por outros afixos pronominais que concordam com o substantivo em gênero, pessoa e número, por exemplo, pashnika gú-kebi-kis bakimnai, "quatro meninas bebês": quatro + feminino + unidades + formador do plural + criança + formador do plural. Para coisas inanimadas, o termo torna-se a-kebi, e significa "unidade neutra". Assim mpana a-kebi paït, "três casas": três + unidade neutra + casa.
O número "um" também leva o sufixo mpú para itens mortos pertencentes a uma unidade animada. Novamente, único entre todos os números, "um" concorda com o gênero dos itens vivos, por exemplo, pahavwi awaig ("um homem"), pahavú tchino ("uma mulher"). Homens, animais ou peixes grandes, e "maus" espíritos e "más" criaturas, tais como cobras, ratos e insetos, são masculinos, assim como o são entidades viventes "humanas" tais como lua, sol, estrelas, trovão e relâmpago. Mulheres, pequenos animais e peixes, "bons" espíritos e "boas" criaturas, como pássaros, tartarugas e borboletas, são femininos. No entanto, outras coisas femininas como plantas e fenômenos naturais, tais como fogo, rios, arco-íris, e praticamente todos os objetos redondos, quadrados e côncavos, bem como aqueles feitos de madeira ou metal, são classificados como inanimados, e assim não há concordância de gênero. O gênero de todas as outras coisas inanimadas, tais como outros formatos, idéias e ações abstratas, é neutro, e de novo há uma concordância de gênero quando se trata de números. (Em resumo, as coisas masculinas tendem a ser grandes e más, enquanto as coisas femininas são pequenas, boas e fortes. E coisas neutras são suaves, flexíveis e fracas.)
Há oito unidades tangíveis inanimadas, todas classificadas em termos de formato geométrico segundo a conceituação nativa de três dimensões - altura, largura, profundidade, mais, quando adequado, o perímetro dos objetos - , que Green considera evidência de noção nativa de uma quarta dimensão.12 Essas unidades são: (1) objetos redondos ou quadrados; (2) objetos redondos e longos (ou seja, cilíndricos); (3) objetos chatos; (4) objetos chatos e profundos (côncavos) e objetos metálicos; (5) objetos extensos (em termos de linearidade); (6) objetos extensos que têm extremidades (em termos de altura, ou profundidade, ou largura, ou perímetro - por exemplo, campo, cachoeira, buraco); (7) objetos irregulares; e (8) objetos irregulares que tenham forma de folha (ou seja, com ramificações). Para cada uma dessas classes de unidades inanimadas, as palavras-números levam um ou mais afixos. Estes são sempre associados a "um", em menor grau, a "dois" e, às vezes, a outros números também (ver apêndice 4 Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green) ).
Há também duas unidades tangíveis relacionadas a partes do corpo: mão (cheia) e boca (cheia). Cada uma tem seu próprio classificador de numeral (ver apêndice 4 Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green) ).
Existem seis CONJUNTOS de unidades tangíveis, animadas ou inanimadas; cada uma com um classificador de numeral específico (ver apêndice 4 Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green) ): (1) conjunto de itens inerentemente desconectados, por exemplo, grupos de unidades individuais (rebanhos de animais, bandos de pássaros, multidões de pessoas); (2) conjunto de itens inerentemente conectados (um cacho de bananas, um colar de contas etc.); (3) conjunto de itens não inerentemente conectados que estão presos juntos, ou seja, para montes de coisas (flechas, folhas, uma vassoura, um cordão de peixes); (4) conjunto de itens não inerentemente conectados que estão embrulhados juntos; (5) conjunto de itens não inerentemente conectados que estão reunidos num cesto; e (6) conjunto de itens não inerentemente conectados que estão juntos dentro de um pote.
A categoria de ABSTRAÇÕES tem um único classificador de numerais (afixo t) para se referir a coisas intangíveis, tais como doença, trabalho, palavra ou qualquer ação específica. Como os nomes de coisas abstratas tendem a ocorrer com o termo de unidades neutras, a-kebi, o classificador provavelmente indica unidades intangíveis, por exemplo, pitana a-kebi yúwit, "duas palavras".
Números na categoria SÉRIES levam o afixo classificador i. Já que os Pa'ikwené entendem o tempo em termos de série e não de ciclos, o classificador pode também ser usado para palavras de tempo (hora, dia, noite, semana, mês...) e para conjuntos de numerais. Também o classificador multiplicador, pút, é usado para indicar repetição (multiplicação) em relação a coisas como ações e eventos.
A categoria FRAÇÕES tem um classificador de numeral para "um" e um classificador diferente para "dois", que são para indicar os lados de um objeto. Outros números não têm um classificador. Para indicar uma parte ou um pedaço de algo, existe um classificador dedicado a "um" apenas (ver apêndices 2 Apêndice 2: Variedades de "um" pa'ikwené (segundo os classificadores) e 4 Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green) ).
Além dos utilizados com relação a multiplicação e frações, existem também afixos classificadores especiais para uso com os outros conceitos aritméticos de ordem numérica, limites numéricos, adição, subtração, totalidade e conjuntos matemáticos (de unidades, ações simultâneas e ações seqüenciais) - ver apêndices 2 Apêndice 2: Variedades de "um" pa'ikwené (segundo os classificadores) e 4 Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green) .
Classificadores numéricos pa'ikwené e metáforas possíveis
Quando encontrei as palavras-números pa'ikwené pela primeira vez, sua possibilidade de transformação fonética hiperativa, sua espetacular capacidade de aglutinar e declinar e sua profusão taxonômica pura me fascinaram e me confundiram (cf. Grinevald & Seifart, 2004). Tentando apreender o sistema, me chamou a atenção que possa ser um exemplo de uma conceituação metafórica. Não pesquisei o assunto até anos depois quando, procurando tema para um artigo, me vi voltando à minha questão original: o número pa'ikwené é uma expressão metafórica? Foi metaforizado em conexão com os objetos com os quais costuma ser usado? As qualidades da coisa referenciada (como percebidas por quem faz a referência) foram mapeadas com o símbolo oral numérico referente graças aos diversos classificadores apensos a ele? A resposta, eu acredito, deve estar nos classificadores em si mesmos, porque o que são eles além do figurativo corporificado, das imagens codificadas, significativas.
Green (2001, p. 7-8) nos informa que os classificadores de numerais pa'ikwené não são quantificadores mas qualificadores. Isto é porque os sufixos pa'ikwené para quantidade e tamanho não são classificadores, mas modificadores, já que podem ocorrer não apenas com numerais, mas com qualquer substantivo. Um numeral, no entanto, opera dentro de parâmetros semânticos de vinte e uma classes, pertinentes a cinco categorias de unidades, conjuntos, frações, abstrações e séries. Portanto, ele não expressa "quantos" ou "de que tamanho". Na verdade, ele é qualificador, ou modificador, das coisas com as quais ele se relaciona, comportando-se sintaticamente como um adjetivo. Ele alcança isso por meio dos afixos apropriados à função de adjetivos, que complementam qualquer outro classificador relevante que um numeral possa ter num dado contexto. Os afixos que adjetivam indicam coisas tais como gênero, negação, ênfase e diferentes condições de ação.13 Os afixos que adjetivam também expressam qualidades próprias de classes tais como espaço, formato, tempo e animação.
Exemplos de números como adjetivos (Green, 2001):
1) Ner-as bakim-nai mpana-nené gi-kebi-kis
: tradução literal, "Aquelas crianças masculinas sendo três", ou seja, "Aqueles três meninos". [Análise:
Ner
(aquele) +
as
(afixo para o plural masculino) +
bakim
(criança) +
nai
(forma o plural) +
mpana
(três) +
nené
(afixo para ação contínua e estado duradouro em relação a masculino) +
gi
(masculino) +
kebi
(unidades) +
kis
(forma o plural).] Aqui, "três" é adjetivo.
2) Ig ner kaibúné ig paha-iwotneyé
: tradução literal, "Aquela cobra é uma", ou seja, "Aquela cobra [é uma] uma vez só [tipo]", ou seja, "venenosa". [Análise:
Ig
(ele singular) +
ner
(aquela) +
kaibúné
(cobra) +
ig
(ele) +
paha
(um) +
i
(afixo para classe de série) +
wot
(afixo para limitação) +
né
(afixo para ação contínua) +
yé
(afixo para duradouro em relação ao masculino).] Aqui, "um" é adjetivo.
Em tais casos ocorre, como eu interpreto, uma adjetivação em dois sentidos. Os classificadores dão características de um objeto a um numeral, o que permite que o numeral, por sua vez, descreva o objeto. Portanto, no exemplo 2, segundo a lógica pa'ikwené, o veneno da cobra se afirma não só pelo uso de um adjetivo específico acrescentado à palavra "cobra", mas pelo uso de diversos sufixos ligados à palavra "um" (ou seja, classe de série, limitação, ação contínua, estado duradouro). Portanto, aqui, "um" infere essa condição da cobra de ser venenosa.
Sintaticamente, os numerais pa'ikwené também funcionam como advérbios, pronomes, substantivos e verbos quando levam classificadores apropriados para aquelas partes da fala. Por exemplo, nomeando os substantivos e verbalizando os verbos.
Exemplo de um número como advérbio:
Úsúh ai pi-ya-nma-pú
: "Estamos ambos aqui juntos". [Análise:
Úsúh
(nós) +
ai
(aqui) +
pi
(dois) +
ya
(infixo para classe animada) +
nma
(dois) +
pú
(classificador de plural).]
Exemplo de um número substituindo um substantivo como um pronome:
Donna gú-pashnika-n ka-kagahiyé
: tradução literal, "O de Donna [dela] quarto [criança masculina] tem doença", ou seja, "O quarto filho de Donna está doente". [Análise:
Donna
(Donna) +
gú
(feminino) +
pashnika
(quatro) +
n
(afixo relacional) +
ka
(tem) +
kagahi
(doença) +
yé
(afixo para estado duradouro em relação ao masculino).]
Exemplo de número como substantivo:
Igkis keh paha-tra-min-ka a-dahan parek-wiyé
: tradução literal, "Eles fazem um para entrar", ou seja, "Eles formaram uma fila para poder entrar". [Análise:
Ig
(ele) +
kis
(formador do plural) +
keh
(fazem) +
paha
(um) +
tra
(afixo para classe extensa) +
min
(afixo para ampliação) +
ka
(formador do nome) +
a
(afixo para neutro) +
dahan
(para) +
parek
(entrar) +
wiyé
(afixo para ação incoativa).]
Para numerais que funcionam como verbos, devo voltar aos dois exemplos que dei no começo:
a)
Ig pahavwihwé
: tradução literal, "Ele se um-zou", ou seja, "Ele se retraiu/se isolou". [Análise:
Ig
(ele singular) +
paha
(um) +
v
(afixo para classes animadas) +
wi
(afixo para masculino) +
h
(que forma o verbo) +
w
(afixo para reflexivo) +
é
(sufixo para ação que completa).]
b)
Egkis piyanméhwé
: tradução literal, "Eles se dois-aram", ou seja, "Eles se casaram". [Análise:
Eg
(ela) +
kis
(formador do plural) +
pi
(dois) +
ya
(afixo de classe animada) +
nmé
(dois) +
h
(que forma o verbo) +
w
(afixo para reflexivo) +
é
(afixo para ação que completa).]
Em todos esses casos, a declinação das palavras-números pa'ikwené tem uma função semântica, bem como sintática - e também, me parece, permite um valor semântico. Porque pode se dizer que um número modificado não só denota "qualificação", mas também conota algo da identidade do item com o qual é conjugado. Eu sugiro que o que está acontecendo com os números de substantivos e verbos é essencialmente um processo de metaforização, no qual os atributos percebidos de um domínio são projetados sobre o domínio dos numerais. Cada numeral é fixo semanticamente em termos de fórmulas computacionais, mas a morfologia permite-lhe também a capacidade criativa de múltiplos significados qualitativos. Portanto, cada numeral não é apenas um índice abstrato lógico. É também uma variedade de imagens baseadas no mundo físico e concretamente expressas nas palavras faladas.
Como Lévi-Strauss (1974), Overing (1985, 1990), Lakoff e outros afirmaram, embora os sistemas classificatórios das sociedades de povos ditos "primitivos" sejam tipicamente metafóricos, isso não implica que sejam ilógicos ou irracionais, menos ainda não verdadeiros. No entanto, apesar do reconhecimento da racionalidade e lógica da metáfora, a aceitação da afinidade entre a metáfora e a classificação pode às vezes ser sentida sem certeza. Veja, por exemplo, a observação de Yalman (1968, p. 71) sobre as ferramentas conceituais do pensamento abstrato nativo: "Em vez dos [símbolos] p e q do pensamento matemático, nós [...] temos Onças e Porcos Selvagens relacionados um ao outro na lógica formal". A justaposição feita aqui entre diferentes tipos de representação é, no meu ponto de vista, ambígua. Estaria Yalman dizendo apenas que os povos ocidentais usam signos matemáticos e os ameríndios usam animais para o mesmo objetivo de lógica classificatória? Ou não, estaria ele também, e talvez inconscientemente, implicando que, diferente dos povos ocidentais, ameríndios não pensam matematicamente mas (apenas) metaforicamente? No entanto, como vimos, segundo Lakoff e Nuñez (2000), não apenas o ser humano pensa de ambas maneiras, metaforicamente e matematicamente, mas também as duas são inter-relacionadas cognitivamente - a matemática (em si um tipo de classificação) sendo derivada de uma metáfora corporificada. E, como alguém (esqueci quem) perguntou uma vez, pode a matemática ocidental ser ela mesma uma forma de metáfora?
É verdade que os Pa'ikwené não representam a matemática em termos de criaturas da selva ou em equações no estilo ocidental. Nem eles parecem relacionar o físico ao metafísico tão intensamente como numa tradição como a dos Blackfoot (Peat, 1994) ou, para lembrar uma cultura não ameríndia, a kabala, o conhecimento místico judeu, que une física e metafísica, o humano e o infinito, por meio da ação de números (Crump, 1997, p. 57-9; Halevi, 1995). No entanto, a percepção e o conhecimento pa'ikwené das coisas, tanto animadas quanto inanimadas, de seu meio social, natural e sobrenatural, claramente ofereceram os dispositivos conceituais e lingüísticos, incluindo a metáfora, com os quais eles expressam o mundo numericamente e matematicamente. Considere, por exemplo, a flexibilidade da noção dos Pa'ikwené para a forma redonda, a qual, pela adição do sufixo patip, que significa "igual", ao radical "redondo", húwi, permite que objetos redondos e quadrados estejam na mesma classe inclusiva.17
Independente, portanto, de se "um, dois, três, quatro" é paha, pina, mpana e pashnika e não jibóia, tatu, tucano e anta, eu penso que a metaforização está ocorrendo na matemática pa'ikwené. Como eu entendo, graças a seus classificadores, um número indígena não apenas enumera ou simplesmente qualifica (ou ambos). Ele também expressa qualidades, originando e sendo transferido de objetos aos quais o número se refere, pelo menos no caso de coisas concretas (tangíveis ou intangíveis). Portanto, nem todos os "uns" pa'ikwené são necessariamente a mesma coisa. E, deixando de lado seus aspectos quantificadores e qualificadores de classe, pahavú, o "um" pa'ikwené em "uma mulher" é, eu especulo, qualitativamente diferente de pahampú, o "um" em "um animal morto", ou pahakti, o "um" em "uma flor".
Conclusão
É difícil saber até que ponto o processo metafórico é consciente ou inconsciente nos seres humanos, e há sempre o perigo na antropologia de forçar universalizações. Apesar disso, metaforizar parece ser um aspecto inato, natural, universal da cognição humana, embora não, eu penso, nos termos da dicotomia absolutista de Lévi-Strauss (1974): "pensamento selvagem" metafórico e "pensamento científico" metonímico. Este artigo argumentou que a matemática em si é metafórica e que a terminologia numérica indígena descreve com imaginação os elementos que compõem o mundo tanto quanto ela os denota e computa. Em outras palavras, proponho que os números pa'ikwené são ao mesmo tempo literais e figurativos - eles têm tanto um significado numérico fixo quanto significados múltiplos que relacionam as imagens associadas com diferentes classes de coisas.
O caso pa'ikwené revela, como Green (passim) nos mostra, a ligação próxima entre a lingüística e a matemática que ficou encoberta pelo mundo da aritmética escrita. Também mostra que o conhecimento matemático de algumas culturas orais e ditas primitivas é altamente desenvolvido, sofisticado e de valor potencial para a ciência mundial.
Desnecessário dizer, a matemática pa'ikwené não existe num vácuo. Longe de ser uma abstração platônica, ela está firmemente plantada no contexto social, cultural, pragmático e experimentado fenomenologicamente do mundo vivenciado que molda e reflete o que é o pensar e agir pa'ikwené. Assim, a matemática pa'ikwené é parte do estoque rico e diverso, mas (graças às pressões incessantes do transnacionalismo e da aculturação) ameaçado das percepções e dos entendimentos nativos amazonenses sobre a realidade que sustentam as diversas formas tipicamente ameríndias de ser humano no mundo. Estes são conhecimentos - mundanos e arcanos, profanos e sagrados, corporificados e intelectuais, emocionais e morais - que Joanna Overing trabalhou longa e criativamente para iluminar e trazer à atenção do mundo mais amplo. Seguindo seu exemplo, meu artigo, como as outras contribuições a este volume, tentou celebrar tal conhecimento.
Notas
Bibliografia
Aceito em janeiro de 2006.
Tradução de Inês Rosa Bueno.
Apêndice 1: Alguns numerais pa'ikwené
1 paha-t (classe abstrata de um afixo)
2 pi-ta-na (classe dois abstrata de dois infixos)
3 mpana
4 pashnika
5 pohowkú ("uma mão")
6 púgúnkúna
7 ntéúnenké
8 ntéúnenké akak paha-t arauna ("sete e mais um")
9 ntéúnenké akak pi-ta-na arauna ("sete e mais dois")
10 madik-aukú ("final [das] mãos")
20 p-i-na madikwa ("série de dezenas classe-dois de dois afixos")
25 p-i-na madikwa akak pohowkú arauna ("duas dezenas + cinco")
50 pohowkú madikwa ("cinco dezenas")
100 madikaukú madikwa ("dez dezenas") ou sah
199 madikaukú madikwa akak ntéúnenké madikwa akak pina madikwa arauna akak ntéúnenké akak pitana arauna akiú ("dez dezenas + sete dezenas + duas dezenas + sete + dois")
1.000 madikaukú sah ("dez centenas") ou madikaukú-pút madikaukú madikwa
"Unidades" de categoria (animadas):
Paha-v-wi unidade de um-animada classe masculina
Paha-v-rú unidade de um-animada classe feminina
Paha-mpú unidade um-animada classe mortos
"Unidades" de categoria (inanimada):
Paho-ú classe um-redondo/quadrado
Paha-t classe um-cilíndrico
Paha-k classe um-chato
Paha-mkú classe um-chato e profundo
Paha-tra classe um-estendido (linear)
Paha-ikú classe um-estendido (alto/profundo/largo [e perímetro])
Paha-a classe um-irregular
Paha-kti classe um-em forma de folha
Paha-úkú classe uma-mão (cheia)
Paha-biyú classe uma-boca (cheia)
Categoria "conjuntos":
Paha-brú classe um-grupo
Paha-twi classe um-agrupamento
Paha-ki classe um-amarrados juntos
Paha-imkú classe um-embrulhados juntos
Paha-ih classe um-num cesto juntos
Paha-yap classe um-em um pote juntos
Categoria "frações":
Paha-bak classe de um-lado
Paha-úhri classe um-parte/peça
Categoria "abstrações":
Paha-t classe um-abstrações
Categoria "séries":
Paha-i classe um-séries
Ordem numérica:
Pitat-yé "primeiro" (adjetivo, não numeral)
Limitação numérica:
paha-i-wo-wa "uma vez apenas/uma vez"
Adição:
paha-kti-wa "mais uma coisa (com forma de folha)"
paha-úhri-wa "mais uma (peça)"
Subtração:
paha-twi-é "um que sobra"
Multiplicação:
Não se aplica a "um"
Totalidade:
paha-vwi-té "um inteiro (ser animado masculino)"
Conjuntos de unidades:
pahavwi-t ("cada ser animado masculino")
Em Pa'ikwené existe a noção matemática de um "conjunto", que consiste de apenas um elemento. (O morfema indicando "conjunto" é t ou seus alomorfos it e mat.)
Conjuntos de ações seqüenciais:
paha-i-impi "um por um" (morfema empi ou seus alomorfos indicando "seqüencial")
Conjuntos de ações simultâneas:
Não se aplica a "um"
Apêndice 3: Alguns são declinações (segundo Diana Green)
Categoria de unidade animada e seus classificadores de numerais: Sufixo classificador para "um" é p ou v. Sufixo ou infixo classificador para "dois" é ya. Números maiores não levam classificadores. Único entre todos os números, "um" (raiz: paha) concorda com o gênero de itens incluídos naquela unidade, por exemplo, pahavwi awaig (um homem), pahavú tchino (uma mulher). Para itens mortos na unidade animada, o classificador é mpú (aplica-se a "um" apenas). Números acima de "um" freqüentemente são seguidos pelo termo kebi (unidade), declinados por outros afixos pronominais que concordam com o substantivo em gênero, pessoa e número, por exemplo, mpana gú-kebi-kis bakimnai (três meninas): três + feminina + "unidades" + formador do plural + criança + formador do plural.
Categoria de unidades inanimadas e seus classificadores de numerais:
1) Objetos redondos ou quadrados. Classificadores ú para "um", so para "dois". Nenhum afixo para numerais maiores que "dois".
2) Objetos redondos e longos (ou seja, cilíndricos). Classificador t (aplica-se apenas a "um" e "dois").
3) Objetos chatos. Classificadores k, para "um" e "dois", e bú, para números maiores.
4) Objetos chatos e profundos (côncavos) e objetos metálicos (atribuídos a alguma classe). Classificador mkú para todos os números.
5) Objetos extensos (em termos de comprimento). Classificador tra para todos os números.
6) Objetos extensos com extremidades (em termos de altura e profundidade ou largura ou perímetro [por exemplo, um campo]). Classificador ikú para todos os números (allomorph rik para "dois").
7) Objetos irregulares. Classificadores a para "um", sa para "dois". Números maiores não levam afixo.
8) Objetos irregulares ou em forma de folha. Classificador kti para todos os números.
Números maiores que "um" levam o classificador a-kebi (significando "unidade neutra") quando se referem a coisas inanimadas tangíveis, por exemplo, pashnika a-kebi paït (quatro casas) [quatro + unidade neutra + casa].
Mais duas unidades tangíveis se relacionam a partes corporais: (1) mãos (cheias) - classificador wakú para "um" e "dois" apenas. (2) bocas (cheias) - classificador biyú, aplica-se a todos os numerais.
Categoria de conjuntos e seus classificadores de numerais: 1) Conjunto de itens inerentemente desconectados: classificador brú, pronúncia alternativa dgú (para grupos de unidades individuais, por exemplo, manada de animais, bando de pássaros, multidão de pessoas).
2) Conjunto de itens inerentemente conectados: classificador twi (para itens firmemente conectados, tais como um cacho de bananas, um colar de contas...).
3) Conjunto de itens não inerentemente conectados que são amarrados juntos: classificador ki (para maços de coisas como flechas ou folhas, ou uma vassoura ou um cordão de peixes).
4) Conjunto de itens não inerentemente conectados que são embrulhados juntos: classificador imkú.
5) Conjunto de itens não inerentemente conectados que são reunidos numa cesta: classificador psi.
6) Conjunto de itens não inerentemente conectados que são reunidos num pote: classificador yap.
Categoria de abstrações e seus classificadores de numerais:
A categoria de "abstrações" usa um classificador, afixo t, para referência a coisas intangíveis, tais como doença, trabalho, palavra, costume ou qualquer noção específica. Como os nomes de coisas abstratas tendem a ocorrer com o termo para unidades neutras, akebi, o classificador provavelmente indica unidades intangíveis. Por exemplo, pi-ta-na akebi yúwit, que significa "duas palavras".
Categoria de séries e seus classificadores de numerais:
Números na "série" de categoria levam o afixo classificador i. Como os Pa'ikwené entendem o tempo em termos de uma série e não de ciclos, o classificador de séries também é usado para palavras que indicam tempo (hora, dia, noite, semana, mês...) e para conjuntos de numerais. Também, como classificador de multiplicação pút, é usado em relação à repetição de tais coisas como ações e eventos.
Categoria de frações e seus classificadores de numerais:
A categoria "frações" usa o classificador bak no numeral "um" e bkak em "dois" para indicar os lados de um objeto. Outros números não carregam um classificador. Para indicar uma parte ou peça de algo, o classificador é úhri para "um" apenas.
Afixos de numerais únicos:
Assim como o classificador de numeral para multiplicação (pút) e frações (bak; bkak; úhri), afixos especiais são reservados para uso com outros conceitos aritméticos, que são:
Ordem numérica
O termo pa'ikwené para "primeiro", pitat-yé, não é um numeral, mas um adjetivo. Os outros numerais ordinais ("segundo", "terceiro", "quarto" etc.) recebem um prefixo pronominal (ou gi [dele], ou gú [dela], ou a [da coisa ou do animal]) e o sufixo que ou indica gênero de ou uma relação de tipo genitivo com o objeto que está sendo referenciado. Com números ordinais numa frase de substantivo, os sufixos adjetivos convencionais pi (que indicam estado estativo) ou yé (estado duradouro) são necessários. Para termos maiores que "sete", pode-se usar a frase "um (substantivo) fazendo (o numeral necessário)", por exemplo, paha-i haukri keh-pi-yé ntéúnenké akak p-i-na arauna: "um dia fazendo sete com dois mais", ou seja, "o nono dia".
Limites numéricos
Morfema o ou seu alomorfo wo
Adição
Morfema wa
Subtração
Morfema é
Totalidade
Morfema té
Conjuntos matemáticos de unidades
Morfema t ou seus alomorfos mat e it
Conjuntos matemáticos de ações simultâneas
Morfema nam
Conjuntos matemáticos de ações seqüenciais
Morfema empi ou alomorfos impi, rúmpi
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Apêndice 2: Variedades de "um" pa'ikwené (segundo os classificadores)
Apêndice 4: Categorias pa'ikwené de classificadores de numerais (segundo Diana Green)
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Set 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2006
Histórico
-
Aceito
Jan 2006 -
Recebido
Jan 2006