Acessibilidade / Reportar erro

“Não é só um comprimido!”: conflitos, moralidades e a gestão de um “saber” sobre viver com HIV/Aids indetectável

"It’s not just a pill”: conflicts, moralities and the administration of a “knowing” about living with indetectable HIV/AIDS

RESUMO

Este artigo busca examinar as tensões, conflitos e ajustamentos que têm sido mobilizados a partir da emergência da indetectabilidade viral para o HIV/Aids, enquanto política global de saúde. A análise parte das diferenças geracionais que, ao serem associadas a outros marcadores sociais, modulam formas de sentir, perceber e vivenciar as experiências cotidianas com HIV/Aids indetectável e, mediante a isso, implicam na produção de enquadramentos políticos. Portanto, se insere num cenário recente de disputas entre gerações do ativismo e que complexifica a centralidade biomédica queaindapermeiaaconduçãodapolíticade Aids. Sãotomadascomofocodereflexão duas situações etnográficas que fazem parte de um campo mais amplo da pesquisa desenvolvida entre 2016 e 2021 junto à Rede de Jovens + RJ.

PALAVRAS-CHAVE:
HIV/Aids; moral; geração; corporalidades; movimentos sociais

ABSTRACT

This paper tries to examine the tensions, conflicts and adjustments that have been mobilized since the emergency of a viral undetectability to the HIV/AIDS as a global health policy. The analysis begins from the generational differences that, when associated with other social markers, modulate ways of feeling, perceiving and living the daily experiences with the undetectable HIV/AIDS and, thereby, they imply the production of political frameworks. Thus, it places itself in a recent scenery of disputes among generations of the activism and brings complexification to the biomedical centrality still crossing the conduction of AIDS politics. Two ethnographic situations are taken as focus of reflections and are part of a more amplified field of researches developed between 2016 and 2021 in the Rede de Jovens + RJ.

KEYWORDS:
HIV/AIDS; moral; generation; corporalities; social movements

INTRODUÇÃO

As tecnologias de saúde recém desenvolvidas na esfera científica de controle sobre o HIV possibilitaram uma série de mudanças práticas, que vão da constituição de políticas públicas à ressignificação da percepção sobre viver com HIV/Aids. Constituemse como desdobramentos de uma agenda de movimentos sociais em torno da aparição da Aids, segundo as diferentes estratégias e produção de enquadramentos desde meados da década de 1980 aos dias atuais. As mudanças que recompõem este histórico do ativismo são reflexos de diferentes adventos - científicos, políticos, epidemiológicos, sociais etc. - que, combinados, conformam o que temos como a atual política de Aids no Brasil.

Não há dúvidas de que a distribuição dos medicamentos antirretrovirais pelo Sistema Único de Saúde é um direito importante que remonta a trajetória dos movimentos sociais em HIV/Aids, como precisam Parker (1997PARKER, Richard.1997. Políticas, Instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar/ABIA.) e Galvão (2000GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: ABIA; São Paulo: Editora 34.). Porém, é importante por sob a mesa de análise a centralidade e, por vezes, a exclusividade dada à estratégia biomedicalizante que ainda sustenta nas políticas de Aids.

Esse apontamento se faz necessário por, pelo menos, três fatores: primeiro, pelos resultados históricos pouco produtivos de políticas centradas em modelos exclusivamente biomédicos; segundo, porque há atualmente outras estratégias que compõem o arsenal político de prevenção ao HIV/Aids; e, por fim, pelo reconhecimento, inclusive científico, de que fatores estruturais e subjetivos constituem diretamente as experienciações cotidianas de quem vive com HIV/Aids.

Considerando estas questões, o que implica, o afincamento sobre o caráter biomédico na política de Aids?

Devido ao recorte proposto neste artigo, destacarei brevemente1 1 Essa exposição também facilitará a compreensão das situações etnográficas que serão analisadas mais à frente. , quais fatores favoreceram a consolidação do formato recente em que se encontra a política de tratamento de Aids no Brasil, mais especificamente sobre os insumos medicamentosos. Juntamente a outras modificações que aqui não serão apresentadas, num aspecto mais amplo essas transformações são resultado da ratificação do país à Meta 90-90-90, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em parceria com a Organização Mundial de Saúde (OMS)2 2 Como forma de produzir resultados concretos para esta finalidade, foi desenvolvida uma estratégia, nomeada como Meta 90-90-90, pela UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ AIDS), em 2014. A aposta central da Meta consiste na ampliação de investimento medicamentoso para tratamento de quem tem resultado positivo para HIV/ Aids, tendo como base os estudos HPTN 052, PARTNER e Opposites Attract Study, anteriormente mencionados. Como estratégia complementar sugere-se o alargamento de informações, testagem e oferta de serviços especializados para pessoas vivendo com HIV/Aids. . Conforme a meta estabelecida, como política global, os Estados Nacionais ficariam incumbidos de construir meios próprios para garantir “o fim da Aids”. Em termos específicos, ficariam “obrigados” a construir políticas e mecanismos autossustentáveis de permanência ininterrupta do tratamento de “pessoas vivendo com HIV/aids”, com amplo investimento em tecnologias que garantam diagnósticos mais acessíveis e medicações antirretrovirais com maiores índices de tolerância e eficácia.

Em 2013, foi criado no Brasil o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas de Tratamento de Adultos com HIV e AIDS, pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2013). Conforme as orientações da Organização Mundial da Saúde, as Diretrizes são consolidadas pelo uso de medicamentos antirretrovirais para tratar e prevenir infecções de HIV, sendo publicadas no mesmo ano. Neste documento, determinava-se que a terapia antirretroviral, de combinação tripla - Fumarato de Tenofovir Desoproxila (300 mg), Lamivudina (300 mg) e Efavirenz (600 mg) - seria disponibilizada em um único comprimido. Este medicamento ficou conhecido como “três em um” (representado como 3 x 1), cuja fórmula conjugava três medicações antirretrovirais de duas classes diferentes - sendo os dois primeiros “Inibidores Nucleosídeos da Transcriptase Reversa” e o último “Inibidor Não Nucleosídeo da Transcriptase Reversa”. Essas classes, ao serem combinadas, agem diretamente no bloqueio da reprodução do vírus na cadeia de DNA, impedindo, assim, a sua multiplicação e modificação das células de defesa do organismo.

Durante a pesquisa etnográfica, um novo protocolo passou a recomendar a utilização do “dois em um + um” (2 x 1 + 1), que combinava o Fumarato de Tenofovir Desoproxila (300 mg) e o Lamivudina (300 mg) em um único comprimido, a ser administrado juntamente ao comprimido do Dolutegravir Sódico (50 mg)3 3 Ao final de 2021, houve nova atualização, com aprovação da Anvisa, de recomendação para o tratamento, mantendo a administração apenas dos fármacos Lamivudina (300 mg) e Dolutegravir Sódico (50 mg). Esta nova terapia antirretroviral tem sido compreendida por ativistas, pacientes, gestores e profissionais da saúde como mais eficaz e de menor efeito adverso, inclusive à longo prazo. A retirada do Fumarato de Tenofovir Desoproxila (300 mg) garante menor toxidade renal ao paciente, sem comprometer, com isso, a eficácia do tratamento. , que é um “Inibidor de da Integrase”. Como efeito, substituía-se o Efavirenz (600 mg) pelo Dolutegravir (50 mg). Assim, era mantida a utilização de duas classes diferentes, sendo este último voltado para a inibição de replicação do vírus, bem como da capacidade de infectar novas células. Esta combinação está disponível como política de dispensação de antirretrovirais desde 2017, restritamente para pacientes diagnosticados após este período.

À época de divulgação destes protocolos, ativistas comemoraram o feito, na maioria das vezes racionalizando o alcance desse sobre a adesão à terapia antirretroviral para pessoas vivendo com HIV/aids. Muitos interlocutores sinalizaram que a redução do quantitativo de drogas a serem ingeridas não somente facilitaria a inserção dos insumos, como também atenuaria os efeitos colaterais de quem faz ingestão de grande quantidade de drogas, principalmente os estomacais. Também mencionaram que o menor quantitativo possibilitaria o armazenamento e possível uso em ambiente público de forma mais discreta, como um “truque que a gente bota junto com uma vitamina, um colágeno e pronto”.

Como decorrência deste processo, neste artigo é trazido como questão central as tensões em torno dos arranjos que estabelecem uma “nova cultura preventiva em HIV/Aids”, pressuposta pelo uso irrestrito da Terapia Antirretroviral e seu potencial garantidor da condição “indetectável” para o HIV. A “eficácia” que estabelece a “indetectabilidade viral” foi garantida por meio do desenvolvimento de estudos científicos internacionais. São eles: HPTN 052 (2011), PARTNER (2014) e Opposites Attract Study (2017), legitimados pelo selo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS)4 4 Como resultado da pesquisa que foi desenvolvida, a categoria “indetectável” é empregada neste artigo como uma das estratégias da política de prevenção ao HIV/Aids, a “Terapia como Prevenção” (TcP). Ela compõe o conjunto de estratégias preventivas - conhecida como Prevenção Combinada - que, como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), tem sido gerenciada de modo a evitar novas taxas de infecção pelo HIV por meio do uso regular de insumos medicamentosos. Esta última, contudo, é consumida por pessoas que não têm diagnóstico positivo para o HIV. . Em 2017, a indetectabilidade viral ganhou forma mais real e o crescente número de evidências científicas possibilitou sua incorporação às políticas de saúde Coerente a esse status, a noção de indetectabilidade viral passou a ser amplamente difundida nos espaços de saúde, como hospitais de referência, centros de testagem e postos de saúde, e no interior do ativismo em HIV/Aids.

Portanto, se insere num cenário recente de disputas de sentidos entre gerações do ativismo em HIV/Aids, sob as quais as experiências cotidianas, diferencialmente sentidas, são política e moralmente gerenciadas como ponto de reflexão sobre a condução da política de Aids. A interseccionalidade, que tem sido operada como perspectiva local de complexificação de saberes, noções e produção de enquadramentos, orienta a análise proposta.

Dada a relevância que incide sobre esta categoria, faz-se necessário explicitar o valor atribuído à indetectabilidade, a partir de três frentes principais de interpretação. Em termos biomédicos, indetectável é o indivíduo que conseguiu “neutralizar” a replicação do vírus HIV sobre o seu sangue, a um nível tão mínimo (no Brasil o protocolo é de <40 cópias/mm³), que a quantidade do vírus não consegue ser suficiente para “transmissibilidade”. Também, as cédulas T CD4 e CD8, componentes auxiliares do grupo de linfócitos, deixam de ser atacadas pelo vírus, de modo que o corpo não adoece por Aids.

A dimensão política em torno da indetectabilidade viral estabelece uma analogia entre a potencial “intransmissibilidade” que dela advém e o chamamento do “fim da Aids”. Ou seja, o “fim” empregado na atual política global é da Aids como epidemia, a partir da perspectiva de promoção da condição indetectável ao maior número de pessoas que vivem com HIV/Aids que, por sua vez, não transmitirão o vírus.

Dentro do trabalho pedagógico desempenhado pela Rede de Jovens+RJ, como também por outros espaços do ativismo em HIV/Aids, se tornar indetectável corresponde a uma posição máxima a ser adquirida, numa lógica pautada por um compromisso ético de “cuidado”. Por isso, remete a um complexo feixe de contradições e “ajustes de conduta”, como forma de aproximar os sujeitos dos limites normativos de uma identidade “normalizada”, mais do que uma busca pela noção saudável da saúde (Coitinho Filho, 2021aCOITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021a. Mais próximos do fim: o meio - agenciamentos políticos, saúde e sexualidade entre Jovens Vivendo com HIV/Aids, na emergência da indetectabilidade viral. Niterói, Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense.). Assim, diferentemente do que se poderia supor, como um dado a priori, constitui-se por meio de disputas de sentidos e de ampla negociação pelos seus membros.

Os dados analisados são resultados de uma pesquisa de doutoramento, realizada entre 2016 e 2021, cuja etnografia foi desenvolvida a partir do intercurso de certos interlocutores, membros da Rede de Jovens+ RJ, que politizavam suas experiências de forma interseccionada ao HIV/Aids “indetectável”5 5 Para a discussão ora proposta, o marcador geracional é tornado central, em razão dos dados etnográficos que referenciam a análise). Como aposta central, estes sujeitos visavam borrar noções estanques sobre viver com HIV/Aids, presentes não apenas no senso comum, mas também em um “discurso oficial” biomédico e político que permeia o mundo social da Aids (Valle, 2008VALLE, Carlos Guilherme. 2008. “Apropriações, conflitos e negociações de gênero, classe e sorologia: etnografando situações e performances no mundo social do HIV/AIDS (Rio de Janeiro)”. Revista de Antropologia, vol. 51, n. 2: 651-698. DOI 10.1590/S0034-77012008000200009
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200800...
) e que estabelece tipos ideais de conduta para as “pessoas vivendo”.

Algumas mudanças na organização política da Rede de Jovens + RJ (cf. Cunha, 2018CUNHA, Cláudia Carneiro da. 2018. “Configurações e reconfigurações do movimento de jovens vivendo com HIV/Aids no Brasil: identidades e prevenções em jogo”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 29: 249-312. DOI 10.1590/1984-6487.sess.2018.29.14a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
) aproximou, aos espaços de tomada de decisão e de maior visibilidade nas instâncias de poder, pessoas que tinham como características a origem e vivência em lugares da periferia, sendo majoritariamente pretos e pardos e que faziam parte de coletivos e/ou participavam de estudos acadêmicos nas ciências humanas e/ou da saúde6 6 Ao longo da tese pude explorar mais detidamente as mudanças ocorridas na Rede de Jovens + RJ e, sobretudo, as principais implicações que isso significou em termos de reorganização e condução política (cf. Coitinho Filho, 2021a). Cabe destacar, dentre elas, a mudança geográfica dos locais de encontro mensal da Rede de Jovens + RJ, saindo da região central do Rio de Janeiro para bairros mais periféricos, e das diretrizes para desempenhar funções de gestão no interior deste espaço e a utilização de linguagens e estratégias direcionadas para o público jovem, que culminaram na modificação do perfil predominante dos participantes. . Esse novo perfil representou significativas mudanças em torno dos enquadramentos no ativismo dos “jovens da rede”, principalmente pela emergência da categoria biomédica “indetectável” e seus usos políticos.

Cabe destacar que não há precedência dos jovens no movimento social em HIV/Aids, embora estes sejam levados à evidência pela forma como se espera que deem continuidade ao ativismo político e, sobretudo, pela mobilização de estratégias e demandas públicas, que se diferenciam dos demais. Conforme destaca Cunha (2014CUNHA, Cláudia Carneiro da. 2014. “Modos de fazer sujeitos na política de Aids: a gestão de jovens vivendo com HIV/Aids”. Século XXI - Revista de Ciências Sociais, vol. 4, n. 2: 91-132. DOI 10.5902/2236672517039
https://doi.org/10.5902/2236672517039...
), a emergência do “Jovem Vivendo com HIV/Aids”, como um “novo personagem” da Aids, faz parte de um investimento político-moral na política de Aids, instituído por meio de diferentes estratégias educacionais. A autora destaca que, embora seja requerida e incentivada a participação dos jovens nesta seara, as estratégias são enredadas por “certos modos de produzir, moldar e modelar” (Idem: 93) a atuação deles.

Assim como identificado por Aguião (2014AGUIÃO, Silvia Rodrigues. 2014. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. CAMPINAS, TESE DOUTORADO, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS.) e Carvalho e Carrara (2015CARVALHO, Mario Felipe de Lima; CARRARA, Sérgio. 2015. “Ciberativismo trans: Considerações sobre uma nova geração militante”. Contemporânea - comunicação e cultura, vol. 13, n. 2: .382-400. DOI 10.9771/contemporanea.v13i2.13865
https://doi.org/10.9771/contemporanea.v1...
), compreendo a emergência e/ou novas formas de participação social nestes espaços de interação socio-estatal como características das políticas de governo de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). A abertura propiciada por esta nova forma de governo, foi fundamental na articulação de convenções, reconfigurações e nexos relativos à expansão do escopo, em conteúdo e forma, do ativismo em HIV/Aids. Inclusive, será o rompimento a este modo de governo, a partir do golpe em 2016, que engendrará instabilidades nos segmentos do movimento de Aids e, consequentemente, a busca pelo consenso de uma nova agenda e formato de atuação ativista, já tendo a indetectabilidade viral como mote central de disputas de sentidos e mobilização ativista (Coitinho Filho, 2021bCOITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021b. A PEC n. 55/2016 e o medo que dela sobrevém: Agenciamentos, disputas e enquadramentos no ativismo em HIV/Aids. Antropolítica, n. 52: 271-296. DOI 10.22409/antropolitica2021.i52.a42144
https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
).

Ancorado numa perspectiva antropológica voltada para a ênfase sobre o caráter relacional e multivocal que integra a experiência cotidiana de políticas públicas (Langdon; Grisotti; Maluf, 2016LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia; MALUF, Sônia Weidner. 2016. “Reflexões antropológicas sobre as políticas públicas.” In: LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia. Políticas públicas: reflexões antropológicas. Florianópolis: Ed. Da UFSC pp. 7-13.), me aproprio de algumas situações vivenciadas em campo para abordar a relação que há entre as políticas públicas pautadas em evidências científicas e as micropolíticas dos interlocutores da pesquisa - suas vivências e o modo como as politizam.

Entendo assim que, para além da produção de ajuda mútua, ativismo e sociabilidade, a Rede de Jovens+RJ constitui-se como um campo discursivo de disputas e que atua por meio de diferentes estratégias de visibilidade. Por isso, quando os jovens vivendo com HIV/Aids se colocam em diálogo com outros atores do movimento de Aids, sobretudo quando marcados por fatores geracionais, provocam fissuras num discurso que se quer hegemônico, se revelando como importante ator social e político na coprodução (Jasanoff, 2004JASANOFF, Sheila. 2004. States of knowledge: the co-production of science and social order. New York: Routledge .) de saberes, políticas e práticas. A emergência da indetectabilidade viral provocou que muitas dessas noções, há muito engessadas, revelando seus fragmentos, alterando a produção de enquadramentos dentro do movimento em HIV/Aids.

ENTRE NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS: A “NOVA REALIDADE” DE VIVER COM HIV/ AIDS INDETECTÁVEL E O CARÁTER GERACIONAL NO ATIVISMO

Recorro aqui a uma atividade promovida no Rio de Janeiro, em 2017, na qual participantes de diferentes segmentos do movimento social em HIV/Aids e outros atores que atuam de modo correlato a este - na medida em que os interlocutores da minha pesquisa não se identificam estritamente como movimento social -, reuniam-se para discutir e projetar ações em torno do 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta contra a Aids. Conforme já mencionado, o trabalho de campo foi conduzido a partir dos eventos promovidos pela Rede Jovens+RJ, mas, principalmente, pelo fluxo de alguns interlocutores-chave, que agregam noções e pautas do movimento de HIV/ Aids com outros movimentos sociais, como o feminista, racial, LGBTI+ e universitário.

O contexto sociopolítico do país, que já acenava para um cenário de repressão a manifestações, acentuou a vigilância sobre movimentos sociais com pautas consideradas “de esquerda” a partir do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Neste ínterim, mediante a propositura da PEC 241/55 de 2016, acaloraram-se as emoções no que se referia ao papel dos movimentos sociais em HIV/ Aids para a construção de uma agenda pró-direitos (Coitinho Filho, 2021bCOITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021b. A PEC n. 55/2016 e o medo que dela sobrevém: Agenciamentos, disputas e enquadramentos no ativismo em HIV/Aids. Antropolítica, n. 52: 271-296. DOI 10.22409/antropolitica2021.i52.a42144
https://doi.org/10.22409/antropolitica20...
)7 7 PEC é a sigla para Proposta de Emenda Constitucional, elaborada a fim de alguma parte específica de matéria constitucional, à luz de novas interpretações, sem, para tanto, precisar convocar uma nova constituinte. Neste sentido, a PEC 241/55 de 2016 foi proposta como medida de limite de gastos públicos à variação da inflação. Este novo regime fiscal de controle dos gastos gerou ampla discussão e mobilização política de diversos setores e movimentos da sociedade civil, visto que o limite de gastos com previsão na inflação decresce a demanda mínima para determinadas pastas, como é o caso da “saúde” e da “educação”. A medida foi iniciada já no ano de 2017, com liberação de recursos primários, acrescidos pela correção no percentual de 7,2%, com exceção da “saúde” e da “educação”. O ano de 2018, teve como base a inflação entre os períodos de junho de 2016 e junho de 2017. Para obter acesso à proposta, suas modificações e o texto final, acessar o site: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/ materias/-/materia/127337.. .

Desta forma, a pauta passou a ser dedicada ao impacto econômico, compreendido como mote de ampliação das desigualdades sociais no país e, consequentemente, de aprofundamento das dificuldades de acesso e/ou permanência das políticas de saúde em HIV/Aids (Farmer, 1996FARMER, Paul. 1996. Social inequalities and emerging infectious diseases. Emerging Infectious Diseases, vol. 2, n. 4: 259-269. Disponível em Disponível em https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/2/4/96-0402_article . Acesso 4 set. 2022
https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/2/4/96...
; Inhorn e Brown, 2004INHORN, Márcia; BROWN, Peter. 2004. The anthropology of infectious disease: international health perspectives. New York: Routledge.). Essa temática permeia os enquadramentos políticos de movimentos sociais em razão da histórica minimização da pauta sobre desigualdades sociais na construção e reavaliação de políticas de saúde global.

Em situação análoga, contribui à argumentação aqui defendida a análise de Márcia Grasotti (2016) sobre a epidemia do Ebola. Foi somente quando os casos da epidemia romperam as fronteiras dos países africanos, passando a atingir também os Estados Unidos e a Europa, que esta questão passou a ser encarada como um problema de saúde global e, em consequência, foram construídas medidas - pesquisas, vacinas, políticas - para a sua contenção. As milhões de mortes por diarreia ocasionadas no continente africano pela epidemia de Ebola eram, até então, negligenciadas. Como também foi o caso da Aids, anteriormente mencionado.

O que se esperava deste momento era a elaboração de um documento, mas, sobretudo, de uma racionalidade que fomentasse novas abordagens de enfrentamento ao HIV/Aids, que se pretendia “mais unificada”, “representativa da realidade brasileira” e que fosse, principalmente, “proativa”.

As falas iniciais, feitas por representantes com grande visibilidade e “tempo” no universo político da Aids - escolhidas já na intenção de demarcar a seriedade sobre o assunto e a posicionalidade dos sujeitos que a enunciavam - acentuavam um temor pelo que poderia estar por vir. Dentre as temáticas levantadas, todas relativas ao acesso às políticas públicas de saúde que se relacionam, direta ou indiretamente, às pessoas vivendo com HIV/Aids, destacaram-se as novas tecnologias de saúde, o acesso gratuito e de qualidade aos antirretrovirais, a permanência do Sistema Único de Saúde, pesquisas e disponibilização de novos medicamentos etc. De uma forma geral, as preocupações, o medo e outras emoções que compunham as falas, evidenciam a dimensão da vulnerabilidade associada a estes sujeitos.

No entanto, a construção narrativa destas falas se caracterizou, inicialmente, por dispositivos de acusação entre os presentes, compreendidos como parte representativa do movimento social em HIV/Aids. A percepção sobre agenciamentos sociais e novas formas de pensar a vulnerabilidade e a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/Aids como demandas políticas estavam marcadas pela distinção geracional entre os presentes, numa perspectiva mais geral, e, por outros marcadores sociais, como raça, classe, gênero e sexualidade, menos dimensionados.

Simões (2018SIMÕES, Júlio Assis. 2018. “Gerações, mudanças e continuidades na experiência social da homossexualidade masculina e da epidemia de HIV-Aids”. Sexualidad, Salud y Sociedad , n. 29: 313-339.), ao analisar mudanças e continuidades na articulação entre homossexualidade masculina e a epidemia de HIV/Aids, reflete sobre aspectos que, por fazerem parte de distintas “sensibilidades geracionais” (Henning, 2014HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, tiozões, tias e cacuras: envelhecimento, meiaidade, velhice e homoerotismo na cidade de São Paulo. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.), demarcam e produzem vivências diferenciadas entre os sujeitos na experiência de viver com HIV/Aids.

As mudanças decorrentes dos avanços tecnológicos para tratamento e prevenção ao HIV/Aids revela diferenças entre os sujeitos que viveram antes e após esse marco, em 1996. Para o primeiro grupo, que faz parte da “velha Aids”, o enfrentamento da discriminação, o adoecimento e morte causados pela aids, o temor pela falta de compreensão sobre o vírus e a doença e a ausência de políticas provoca um sentimento de trauma numa trajetória de vida que é marcada pela experiência daqueles anos iniciais da epidemia (Zamboni, 2014ZAMBONI, Marcio. 2014. Herança, distinção e desejo: homossexualidade em camadas altas na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.). Para estes sujeitos, há uma sensação de nova fase da epidemia, ou “nova Aids”, dadas as implicações da Terapia Antirretroviral (TARV) sobre o controle do vírus pelo organismo e seus resultados na gestão do cuidado de jovens que vivem com HIV/Aids. É como se o fato de não terem passado pelas angústias daquele contexto inicial os posicionasse num lugar privilegiado e, por isso, menos preocupados com o curso das ações ativistas.

Dados das pesquisas de Henning (2014HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, tiozões, tias e cacuras: envelhecimento, meiaidade, velhice e homoerotismo na cidade de São Paulo. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.), Zamboni (2014ZAMBONI, Marcio. 2014. Herança, distinção e desejo: homossexualidade em camadas altas na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.) e Simões (2018SIMÕES, Júlio Assis. 2018. “Gerações, mudanças e continuidades na experiência social da homossexualidade masculina e da epidemia de HIV-Aids”. Sexualidad, Salud y Sociedad , n. 29: 313-339.) conferem uma demarcação da diferença entre as gerações de pessoas vivendo com HIV/Aids, em que o “esforço de transmissão das experiências” dos mais velhos, por serem percebidas como pouco apreciadas pelos mais jovens, resultam em embates e mesmo depreciação de um grupo para com o outro.

Somados a essas análises, apresento a seguir, uma das situações etnografadas que expõem o que venho destacando nesta seção.

[Carlos] Eu pergunto a vocês. Onde estão os jovens aqui nesta manhã? Rio de Janeiro, praia, noitada, curtição [...] o que vocês imaginam?

[Augusto] É exatamente isso que venho falando. Os jovens de hoje não sabem o que é viver com medo de morrer amanhã. Não viveram o que nós vivemos e, por isso, não sabem o que é lutar, literalmente, para se manter vivo. Não viveram aquele momento em que você, de repente, tomava conhecimento da morte de algum conhecido ou amigo e, logo no dia seguinte, de mais outro, e outro, e assim sucessivamente. O que a gente sabia era apenas que a qualquer momento poderia ser um de nós.

[Simone] E aquela foto estampada do Cazuza! A manchete daquela época ainda vem na minha cabeça, mais pra lembrar mesmo que os tempos são outros.

[Marcos] O problema é que esse tempo mudou, gente! Graças a Deus, é claro. A gente não vive mais isso e eu nem sei se ficar lembrando disso vai ajudar em alguma coisa. É preciso entender o hoje, o agora. [Augusto] Os tempos são os mesmos! Nada mudou [...] quer dizer, pouca coisa mudou. E o que mudou fomos nós que provocamos a mudança. Nós saíamos nas ruas, dávamos a nossa cara, enfrentávamos o estigma do preconceito da Aids, ali mesmo na nossa cara, todos os dias.

Eu não sei como se faz para entender o hoje e o agora, se não for através de um pensamento que nos faça compreender todo o processo. E é exatamente nisso que estamos pecando. Deixamos tudo para os jovens, para os “militudos” da era digital, para os “closeiros”. Porque os jovens só querem é isso.

Eu realmente fico indignado! Eles não tentam, minimamente, compreender a importância do que nós já fizemos, como forma de seguir adiante. Veja só: hoje em dia basta tomar um comprimido e você está a salvo. Na minha época eram mais de 20 comprimidos por dia, com efeitos que me deixavam quase morto e sem a esperança de um amanhã, de uma vida. É por isso que eles não se preocupam, porque não precisam mais.

[Simoni] Sem falar que hoje só querem “pele na pele”, porque sabem que tem um comprimido que resolve tudo. Vão pra balada, bebem, transam e não se preocupam com nada além do próprio prazer. (Cadernos de campo - Rio de Janeiro - novembro de 2017).

A discussão parecia ter identificado o que lhes parecia o problema central: os jovens e a forma pela qual estes constroem estratégias de agenciamentos políticos no contexto atual, reconfigurando, assim, o que nomeiam como ativismo dos movimentos de HIV/Aids.

É importante destacar que as categorias “militudos” e “closeiros” foram acionadas de forma acusatória numa retórica que buscava distinguir modos de ativismo. Para além da temporalidade, expressa em “nossa época” e “os dias de hoje”, são também inscritos sobre os corpos e as subjetividades experienciadas em torno do HIV/ Aids uma marca que visa destoar as diferentes formas de agenciamentos políticos.

Por fim, e não menos importante, destacou-se a nova concepção sobre o HIV (já diferenciado da Aids, que era, à época, associada à morte) a partir das novas evidências científicas sobre o uso medicamentoso da terapia antirretroviral e das tecnologias associadas a este. Para tanto, firma-se a ideia que “hoje em dia, basta tomar um comprimido”.

Outras questões foram sendo apresentadas ao longo da discussão feita na parte da manhã dentro daquelas temáticas anteriormente mencionadas. As anotações feitas em um data show apontavam para a consolidação de ações a curto, médio e longo prazo que, definidas, moveriam a construção de agendas dentro dos segmentos representativos do movimento de HIV/Aids. Na parte da tarde, contudo, a presença de quatro jovens da Rede de Jovens + RJ provocou uma redefinição da condução da atividade que havia sido dada até aquele momento.

Após a fala inicial, de retorno às discussões, foi recolocada a necessidade de interlocução dos representantes presentes, a fim de promover uma narrativa que contemplasse o que foi nomeado como “realidade das pessoas vivendo no estado do Rio de Janeiro”. Relatos de fracionamento de medicação - que deveriam ser entregues para o período mínimo de um mês e estavam sendo disponibilizadas para período semanal ou quinzenal, a depender da unidade de retirada -, exposição da identidade sorológica por profissionais de saúde, dificuldades para marcação da primeira consulta ou consulta de rotina/retorno com médico infectologista, demora para realização de exames, cancelamento de gratuidade no transporte público etc., foram mencionados como problemas enfrentados no Rio de Janeiro (neste caso, só haviam representantes do município).

A intenção destas “denúncias”, em específico, visava a construção de um documento que mapeasse as Unidades de Saúde com os problemas relatados para a marcação de uma reunião do movimento social em HIV/Aids com a Secretaria Municipal de Saúde. Desta forma, o que se esperava era a resolução dos problemas, a partir das demandas coletadas.

Os jovens presentes apresentaram relatos semelhantes aos mencionados acima, o que foi percebido como contribuição relevante para a construção do referido documento. Eles reintroduziram uma discussão apresentada na parte da manhã sobre adesão à terapia antirretroviral, a partir da complexificação de fatores que implicavam diretamente sobre ela. Desdobrou-se, neste momento, o que já havia sido mencionado no período da manhã.

Augusto, homem branco, com aproximadamente 50 anos de idade, de identidade gay, morador da zona norte do Rio de Janeiro e que vive com HIV/Aids há 23 anos, reproduziu a mesma fala da manhã. Nesta oportunidade, além de minimizar a problemática em torno da adesão à terapia antirretroviral e culpabilizar os jovens, em geral, pela disseminação do vírus - na medida em que acredita ser o fato de não terem vivido as décadas de 1980 e 1990, em que a morte era atrelada ao HIV, o fator motriz para não se prevenirem - também se utilizou da fala para questionar a forma como têm sido levantadas temáticas outras que, segundo ele, “não cabem aqui”.

Ele se referia a questões relativas à LGBTIfobia, ao machismo, racismo, sexismo, às questões de classe, geração e espaço/território etc. Em sua fala mencionou que “o problema é que agora tudo é ‘mimimi’. E que [devido a isso] o foco tá sendo desviado para falar de outras coisas que não contribuem para resolver o que se propõe”. Ele afirmou enfaticamente que “a gente aqui fala sobre HIV/Aids e ponto”. E continua:

Nos anos 80 [1980] e 90 [1990] a gente não sabia se iria dormir e amanhecer vivo. Lutamos dia após dia, fomos às ruas, fizemos acordos, brigamos com o pessoal do governo, exigimos direitos. Perdemos pessoas que estavam ao nosso lado instantes anteriores de morrer. Agora, a galera que chegou, principalmente os mais jovens, já com tudo pronto e fazendo uso de apenas um comprimido diário que logo fica indetectável, quer fazer “intervenção”, militância pela internet e aguardar que os direitos permaneçam, ou seja, adquiridos por si só. (Cadernos de campo - Rio de Janeiro, novembro de 2017).

Pode-se observar que o modelo biomédico é normativo, a ponto de que os usuários das políticas públicas, e não apenas seus formuladores, ratificam um lugar privilegiado à racionalidade biomédica. Não que se esteja aqui negando ou minimizando a eficácia ou a relevância dos adventos biomédicos. No entanto, cabe destacar que ignorar outros elementos estruturais e o modo como os sujeitos percebem, valoram e os experienciam, enquanto sujeitos participativos, não contribui para a real avaliação do alcance das políticas públicas.

Como objeto de questionamento, dois dos jovens presentes imediatamente solicitaram a fala. Em uma exposição oral que se complementava uma à outra, apresentaram uma série de argumentos que colocavam em xeque a fala anterior. Dentre os argumentos, vê-se a seguir a forma como articularam a devolutiva e contribuíram para a discussão.

Primeiramente, condenaram a culpabilização da juventude pelo aumento expressivo dos casos de diagnóstico em HIV/Aids, ainda que este segmento seja o mais atingido atualmente, conforme os dados disponíveis abaixo. O registo do Boletim Epidemiológico de 2018 (cf. Figura 1), que tem como referência os dados notificados entre 2007 e 2017, demonstram que, no perfil etário, jovens entre 20 a 29 anos são os de maior expressividade em novos diagnósticos, com grande acentuação, se comparados ao período inicial, composto de adolescentes entre 13 e 19 anos.8 8 Para acesso ao referido documento, acessar: http://www.Aids.gov.br/pt-br/pub/2018boletimepidemiologico-hivAids-2018. Acessado em: 17/03/2019..

Figura 1
Crescimento dos casos de notificação de infecção por HIV no Brasil segundo diferentes grupos etários entre 2007 e 2017.

Neste aspecto, na discussão mencionada, os jovens destacaram que a ausência de políticas públicas e de ações voltadas para adolescentes e jovens eram dirimidas numa tentativa de deslocar do Estado a responsabilidade que lhe cabe. Lembraram, neste ínterim, que as campanhas de carnaval e de 1º de dezembro, realizadas na grande maior parte das vezes por ONGs financiadas pelo governo (Galvão, 2000GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: ABIA; São Paulo: Editora 34. e outros) e/ou por parceria com movimentos sociais LGBTI+ e de HIV/ Aids, são as únicas que falam mais abertamente sobre a problemática, mas num período muito específico e insuficiente.

Dito isto, mencionaram a importância de uma educação em saúde sexual que seja contínua e que não seja “prensada” em moralidades religiosas ou numa cultura do medo (Terto Junior, 2015TERTO Junior, Veriano. 2015. “Diferentes prevenções geram diferentes escolhas? Reflexões para a prevenção de HIV/AIDS em homens que fazem sexo com homens e outras populações vulneráveis”. Revista Brasileira de Epidemiologia, n. 18, vol 1: 156-168. DOI 10.1590/1809-4503201500050012
https://doi.org/10.1590/1809-45032015000...
). Neste sentido, atentavam para a necessidade de ações sociais em educação, comunicação, cultura e política que visassem o enfrentamento do estigma social relacionado ao corpo, ao sexo, às liberdades individuais e à construção de identidades, que produzissem nexos com as vulnerabilidades às novas taxas de infecção de HIV, bem como ao adoecimento por Aids.

Quanto à minimização da problemática que envolve a adesão à terapia antirretroviral, João, que é um jovem negro, gay e morador da Zona Oeste do Rio de Janeiro, envolvido com movimento social negro da periferia, fez uma importante colocação. Nesta oportunidade, mencionou que a adesão à terapia antirretroviral estava sendo pautada por uma “visão essencializada” e “acortinada por uma forma não coerente com o contexto e a cultura vigente”.

Caracterizou, assim, que a noção de que “hoje em dia é mais fácil, pois é só tomar um comprimido”, mascara os desafios que viver com HIV/Aids ainda representam, mesmo num momento temporal em que o diagnóstico não é mais lido, necessariamente, como “sentença de morte anunciada”. E, que, por fim, essa perspectiva se dava pelo fato de que se acreditava que falar de HIV é algo atemporal, flexionado apenas quanto à inserção das novas tecnologias sem, no entanto, compreender a forma como, mesmo estas, impactam na vida cotidiana das pessoas. Diretamente relacionado à adesão à terapia antirretroviral está o que foi caracterizado como “questões outras”, acima descritas. No entanto, conforme já apresentado, não há um consenso neste quesito, sobretudo por quem participou do ativismo em HIV/Aids nos vinte primeiros anos da epidemia.

No que se refere à temática em tela, entretanto, João fez uma importante consideração. Ele disse:

Não é só um comprimido, ainda que seja só um, para os novos diagnosticados [à época, a utilização do 3 x 1 estava restrita para novos pacientes. No entanto, a quantidade de insumos medicamentosos já era reduzida ao nível comparativo feito por Augusto, referente aos primeiros anos da epidemia], e mesmo que o fosse para todos nós aqui presentes. Mas eu preciso dizer a vocês que ter adesão não é só tomar um comprimido todo dia e, principalmente, que o discurso da militância não pode se utilizar desta ideia que contribui para mascarar a necessidade de uma política pública, na medida em que isso não está sendo pautado como um problema social. Não é só um comprimido e não seria isso o suficiente mesmo. Me parece que são vocês, e não nós jovens, que estão acatando com muita passividade e satisfação o que o “Estado dá” [fez o símbolo das aspas com as mãos]. Somos nós que temos protagonizado novas necessidades das ‘pessoas vivendo’, que são mais específicas e aprofundadas. Vocês precisam compreender que a luta que vocês iniciaram foi muito importante, mas que precisa ser modificada, inclusive a forma emqueapensamosestrategicamente. As pessoas que estão lá [nas instituições de saúde, como Ministério da Saúde, Secretarias estaduais e municipais de saúde, Organização das Nações Unidas e UNAIDS, por exemplo] também são outras.

(Cadernos de campo - Rio de Janeiro, novembro de 2017.).

E foi complementado por Elisa:

Recentemente, eu ajudei um jovem que estava sem trabalho e que por isso, não tinha o que comer. Já ouvi inúmeros relatos de pessoas que estão passando por depressão pós-diagnóstico, em alguns casos, mesmo o diagnóstico sendo de mais de anos. Convivi com uma mina, que nasceu com HIV, que era espancada pelo companheiro dela. Vi muitos jovens morrer, porque não conseguiam administrar a vida pessoal com o fato de ter contraído o vírus.

Pensa nas pessoas desempregadas neste país e que estão passando necessidades para ter o que comer; nas pessoas que tomam um monte de outros comprimidos para outros tratamentos e tem que conciliar com os antirretrovirais; nos moradores de rua, nas trans que usam hormônios corporais, nas crianças que ainda nascem com HIV [...] imagina o efeito que os ARVs [antirretrovirais] fazem nestas pessoas. Eu mesma, em tanto tempo de militância, já desisti e já fui ajudada. Ao longo desse tempo, tenho marcas no meu corpo [aponta para as bochechas e para as pernas, resultado da lipodistrofia], meus olhos são da geração que tem como fundo o amarelado. Quantas vezes me questionei quem era a real culpada, do tipo, olhar pro comprimido e ver nele um mal, que me faz lembrar quem eu sou.

Vocês ainda vão insistir que é mesmo só uma questão de querer ou não tomar um comprimido e que essa problemática está a nível pessoal?

(Cadernos de campo - Rio de Janeiro, novembro de 2017).

As três contra-argumentações feitas por João e Elisa denotam a diferença de perspectiva que há entre as gerações que dialogavam sobre as (novas) abordagens e o enquadramentos do ativismo em HIV/Aids e, principalmente, que conduziam o que compreendem e demandam politicamente como direitos à saúde.

A noção em torno do “é só tomar um comprimido” revela uma assimetria das interações políticas entre os segmentos que compõem o campo discursivo da Aids, que, pautadas por uma ótica geracional, culpabilizam os jovens. Mais ainda, é necessário destacar que a produção de uma agenda sobre “prevenção ao HIV/ Aids”, que tem centralidade nas ações desenvolvidas em torno do 1º de dezembro, reproduz estereótipos sociais e é moralmente dotada de valor.

Os discursos produzidos pelos jovens enquanto regimes de visibilidade repercutem uma série de outras disputas internas, que acontecem na Rede de Jovens+ RJ. Fazem parte de negociações e conflitos que visam estabelecer uma narrativa política sobre jovens vivendo com HIV/Aids do Rio de Janeiro, por meio da politização das singularidades que marcam suas experiências coletivas.

Torna-se produtivo, neste contexto, problematizar o marcador geracional mobilizado por alguns segmentos ao demarcarem as ações dos “jovens”. Mais do que se referir ao pertencimento a um grupo etário em si, o que está em jogo é a forma como “outras narrativas”, complexificadas por meio de “novos” nexos de articulação, são produzidas e politizadas dentro deste campo.

Esta forma de diferenciação entre “o nós” x “os jovens” representa “lugares” que são acionados como práticas discursivas (Brah, 2006BRAH, Avtar. 2006. “DIFERENÇA, DIVERSIDADE, DIFERENCIAÇÃO”. Cadernos Pagu, vol. 26: 329-376. DOI 10.1590/S0104-83332006000100014.
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200600...
) produzidas em razão das demandas que estes últimos defendem e que são lidas como algo que “não cabe aqui”, nas relações sociopolíticas do movimento social em HIV/Aids.

Há uma outra lógica organizadora destes conflitos que se relaciona - em termos de aproximação e de afastamento - da perspectiva geracional de quem a aciona. É o que Brah (2006BRAH, Avtar. 2006. “DIFERENÇA, DIVERSIDADE, DIFERENCIAÇÃO”. Cadernos Pagu, vol. 26: 329-376. DOI 10.1590/S0104-83332006000100014.
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200600...
: 362) compreende enquanto a “diferença como relação social”:

[Um] grupo geralmente mobiliza o conceito de diferença neste sentido quando trata das genealogias históricas de sua experiência coletiva. De fato, diferença e comunalidade são signos relacionais, entretecendo narrativas de diferença com aquelas de um passo e destinos coletivos compartilhados.

Esses “lugares” que são afixados, na realidade, se compõem pela fluidez do discurso, ainda que pautados por diferentes temporalidades sobrepostas. Semelhante à análise de Carmo (2018CARMO, Íris Nery. 2018. O rolê feminista: autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.), em sua pesquisa de doutoramento sobre os ideais de “autonomia” e “horizontalidade” entre participantes do Rolê Feminista, pude perceber que a diferenciação discursiva não se determina pela idade de quem o enuncia, mas pela relação com o ideal do que representa o “novo”.

CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE 1º DE DEZEMBRO

Um dos consensos possíveis, resultado da discussão acima, foi a utilização de abordagens multicêntricas como estratégia de visibilidade da prevenção ao HIV/Aids. Em todos os anos anteriores, desde quando iniciei minhas primeiras aproximações neste campo, as atividades desenvolvidas pelos interlocutores da pesquisa eram realizadas exclusivamente na Cinelândia, em razão da localização central e de grande integração entre transeuntes. Porém, a centralidade atribuída a esta região passou a ser questionada, na medida em que parte expressiva do perfil de pessoas consideradas vulneráveis e com baixo acesso a informações e cuidados com a saúde não circulava por ali. As atividades passaram a ser descentralizadas para outras regiões da cidade do Rio de Janeiro.

Neste sentido, acredito que a descentralização pode oferecer mais oportunidades de conhecimento sobre prevenção, por meio da visibilidade temática, mas também pelo alcance das atividades promovidas por/para este público. No entanto, esta estratégia só se tornou possível na campanha do ano seguinte, devido à necessidade de maior articulação com setores públicos e privados, bem como dos movimentos sociais em HIV/Aids.

Neste sentido, na campanha de 1º de dezembro de 2018, além dos stands de testes rápidos e de vacinação de Hepatite B, disponibilizados pela prefeitura municipal do Rio de Janeiro, em parceria com ONGs que fazem testes rápidos e acolhimento9 9 Neste contexto, o acolhimento consiste numa abordagem inicial, com maior concentração de esforços para a entrega de resultados dos testes rápidos. A intenção se desdobra entre fornecer informações relativas à prevenção, principalmente sobre as profilaxias (PrEP e PEP), e à camisinha, mas também criar um ambiente favorável para um possível diagnóstico reagente, no qual o sujeito poderá se sentir “entre iguais”.. , também foi oferecida uma programação com atividades produzidas pelos ativistas do movimento social em HIV/Aids.

Em razão da aproximação com alguns interlocutores e da minha perspectiva analítica em torno dos “marcadores sociais da diferença”, optei por acompanhar as atividades desenvolvidas por um grupo de jovens, em articulação com os demais segmentos organizadores, que foram para o parque central de um bairro de grande proporção populacional no chamado subúrbio, na zona norte do Rio de Janeiro.

Duas ONGs, promovidas por meio de financiamento privado, realizavam, à parte dos stands da secretaria municipal de saúde, testes rápidos e aconselhamento, em meio ao som de música eletrônica alta. Uma delas, identificava-se por meio de equipe uniformizada e a outra, com camisa específica da campanha. Enquanto a primeira chamava atenção por meio de homens brancos com os corpos atléticos, a segunda recorreu ao trabalho, já realizado periodicamente, de drag queens montadas.

De modos distintos, cada um desses atores chamava e atendia o público, fornecendo panfletos informativos sobre prevenção, uso da camisinha externa e interna, bem como do gel lubrificante para sexo anal e “sinais de alerta” sobre ISTs e HIV/Aids. Juntamente aos panfletos, havia três camisinhas externas e um gel em sachê. Para pessoas com vagina, havia camisinhas internas, mas que acabaram logo pelo início da manhã, sendo substituídas pelas camisinhas penianas.

Durante a parte da manhã, os jovens voluntários colaboraram com o trabalho das ONGs, como acima descrito. Majoritariamente, atuaram com a ONG que levara as drag queens. Na parte da tarde, entretanto, eles promoveram suas próprias atividades.

A primeira delas foi a confecção de cartazes com mensagens curtas e direcionadas a públicos-chave, inclusive do próprio movimento social. Algumas chamaram minha atenção, em particular: “Transe. Previna-se. E goze!”, “Seu corpo, suas regras. Prevenção é a primeira regra.”, “Senta aqui, jovem: vamos falar de prevenção?” [em alusão a um meme que circulava nas redes sociais à época, no qual um personagem aleatório (urso, gato, criança etc.) convidava um jovem a conversar, como forma de auxiliá-lo em algo que estivesse o incomodando], “Prevenção gera prevenção”, “Você sabe o que é o HIV e a AIDS?”, “Prevenção não é brincadeira”, “Ainda precisamos falar da prevenção”, “Eu sei minha sorologia, e você?”, “Diga não ao preconceito contra as pessoas que vivem com HIV/Aids”, “Cuidado: sou soropositivo e eu transmito amor!”, “Cuide-se: seu bem mais valioso é a vida - seja ela como for”.

Outros cartazes, que tive autorização para fotografar - pois foram feitos por interlocutores da minha pesquisa -, e que denotam questões semelhantes às mencionadas estão disponíveis abaixo:

Figuras 2 a 7
Cartazes produzidos para atividades de sensibilização durante o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, na Cinelândia, Rio de Janeiro.

Os cartazes foram pendurados em um grande varal, que precisou de mais barbante e certo improviso para a fixação (por meio de colagem com fita crepe). Eles ficaram expostos de modo que as pessoas, quando transitavam em meio à praça, tivessem fácil visualização. De forma complementar, foram feitas intervenções pelos jovens presentes que denotavam o valor da mensagem ali inscrita. Por vezes, recorriam a alguns dos cartazes, de modo a evidenciar a relação entre o que estava sendo dito, com o que havia sido anteriormente escrito.

Estas intervenções compunham a segunda atividade. Foram assim distribuídas: intervenção com os transeuntes, com perguntas de fácil resposta ou que reproduziam estereótipos e estigmas sobre o HIV/Aids e/ou às pessoas vivendo; roda de conversa, a partir de questões propostas pelos dinamizadores - pessoas escolhidas para desenvolverem uma abordagem “dinâmica”, por vezes caracterizada pela comicidade; e um ato final de abraço coletivo entre os participantes e demais pessoas que circulavam ou que olhavam de longe, enquanto faziam movimentos livres no ar, por meio de fitas de crepom amarradas a um bastão feito de jornal, ao som da música “Dance queen”, do grupo ABBA. Em todas as atividades mencionadas, o direcionamento era em torno da temática da prevenção, à luz da noção da indetectabilidade viral, e feito com auxílio de microfone, que amplificava tudo o que era dito, por meio de caixas de som espalhadas pelo parque.

Dentre estas atividades, tomarei como material analítico um dos momentos da roda de conversa, tanto pelo desdobramento de uma questão que não era percebida como relevante até o momento, mas também pela relação que mantém com o que está sendo ora discutido.

Foi estendido no chão um grande peça em lona com a representação do esquema da Mandala da Prevenção Combinada10 10 Recurso disposto em formato de mandala, cujas principais métodos de prevenção ao HIV, às Infecções Sexualmente Transmissíveis e às Hepatites Virais são apresentados a fim de gerar a combinação de dois ou mais, segundo expectativas e possibilidades pessoais.. . As pessoas que estavam dispostas nas cadeiras em formato de círculo dentro de uma tenda cedida para as atividades dos jovens - e onde os varais com cartazes foram posteriormente anexados - eram convidadas ao centro para mencionar/refletir sobre as escolhas preventivas.

Figura 8
Reprodução do esquema da mandala de prevenção combinada feita em lona e utilizada durante as atividades do Dia Mundial de Luta contra a Aids.

A dinâmica consistia em indicar, com auxílio dos pés e/ou das mãos, qual(ais) daquelas estratégias representadas na mandala compunham a prevenção individual. A proposta visava enfatizar a noção de “prevenção combinada”, em que se sugeria a combinação de mais de um dos itens como forma de amplificar o potencial preventivo.

Eu mesmo, que estava com um pequeno caderno de anotações, um lápis e um celular para eventuais registros fotográficos, fui convidado a participar. Apoiei a mão esquerda sobre o item “Usar preservativo masculino, feminino e gel lubrificante”, a mão direita sobre o item “Testagem regular para o HIV, outras IST (Infecções

Sexualmente Transmissíveis - anteriormente conhecidas como DSTs) e HV (hepatites virais)” e um dos pés sobre “Imunizar para HBV (hepatite B) e HPV (papilomavírus humano)”.

Fui parabenizado pelas minhas escolhas, que compunham uma “combinação” de diferentes estratégias. Em seguida, fui convidado a refletir se me incluía dentro do grupo das populações-chave e/ou prioritárias, de modo a perceber as condições estruturais de vulnerabilidade, assim como os demais participantes. Como homem gay e, à época, considerado jovem (com 29 anos de idade), fui orientado sobre a importância de estar atento sobre as estratégias preventivas ao HIV e às demais ISTs.

Outro jovem, que é pessoa vivendo e participava da dinâmica, ao ser convidado, sinalizou como estratégias “Tratar todas as Pessoas Vivendo com HIV/Aids”, “Usar preservativo masculino, feminino e gel lubrificante” e “Imunizar para HBV e HPV”. Ele mencionou que em momento anterior, também já foi necessário “Diagnosticar e tratar as pessoas com IST e HV”, pois ele tinha contraído sífilis11 11 O tratamento é feito à base de penicilina, cuja administração, sob orientação médica, dependerá da fase de evolução da doença no organismo. , uma infecção sexualmente transmissível.

Em seguida, ele mencionou que veio de outro estado, do nordeste do Brasil, devido a busca por uma projeção de vida no Rio de Janeiro. Disse que após o diagnóstico percebeu a necessidade de viver mais intensamente os seus sonhos. Porém, também encontrou dificuldades para se manter aqui, num bairro localizado na zona Oeste, e que percebia o racismo como algo ainda mais evidente do que no seu estado.

Ao tentar fazer uma analogia entre sua adesão à terapia antirretroviral (uma das estratégias de prevenção acima mencionadas, que é o Tratamento como Prevenção - TcP) e estes desafios cotidianos, que percebia como agravados por fatores de raça, classe e sexualidade, foi imediatamente interrompido.

Outro participante - um homem branco, gay, classe média baixa, na faixa etária dos 40 anos de idade e morador da zona norte do Rio de Janeiro -, membro de uma das ONGs presentes, que acompanhava a atividade como convidado, questionou a relevância deste tipo de fala para eventos cujo público-alvo são pessoas que não vivem com HIV/Aids.

Neste sentido, sua crítica inicial parecia indicar uma “dica” de alguém que já está há mais tempo no movimento social sobre abordagens de prevenção para um público leigo. Isso ficou ainda mais evidente pela forma como fez a sua fala: pegou o microfone (o que lhe dava o direito à fala), mas não fez uso dele. No entanto, ao longo da sua exposição, foram feitas algumas colocações que mais do que uma “dica”, punham em xeque uma narrativa que foi considerada como “desnecessária”.

Segundo ele, há atualmente uma facilidade para atingir a indetectabilidade viral, por meio do uso diário da medicação, o que garante a sua eficácia. E, para ele, autoapresentado como ativista, “pessoa vivendo” e profissional da saúde, é isso que precisa ser divulgado. Exemplifica seu argumento ao contrapor a atualidade a períodos anteriores, posto que, para ele, o HIV é hoje algo que pode ser controlado, semelhante ao diabetes e à hipertensão arterial.

Também destacou que enfatizar fatores que desfavorecem a pessoa vivendo com HIV/Aids, como os que a colocam numa condição do que ele caracterizou como vítima, só contribui para ampliar o estigma. Para superar este último, incentiva que as pessoas procurem pontos positivos da sua vida após o HIV - algo muito presente no movimento social de HIV/Aids (cf. Coitinho Filho, 2018COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2018. Uma “rede” de muitos significados: a positivação pedagógica da “experiência soropositiva”. Sexualidad, salud y sociedade, n. 29: 195-241. DOI 10.1590/1984-6487.sess.2018.29.09.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
). Ele assinala que o período inicial do diagnóstico foi difícil, mas logo superou àquela situação. Diz que atualmente se sente uma pessoa livre e feliz, e que o HIV nem faz parte do seu dia-a-dia, exceto na hora que o seu celular desperta para tomar a medicação. Finaliza, acentuando que “viver com HIV/Aids” não modificou em nada a sua vida.

O jovem que havia tido sua fala interrompida, constrangido, tentou se desculpar frente aos demais, mencionando que falara algo que passava em sua mente naquele momento, no decorrer dos diálogos. Ao que outros jovens, já engajados com essa discussão, fizeram uma importante consideração. Uma delas, gravada por um aplicativo do próprio celular que eu estava em mãos, destacava que:

É preciso sair da nossa caixinha do ego e entender que cada um tem a sua própria experiência. Nós vivemos com HIV, mas, cada um, de forma muito diferente do outro. Aqui é mesmo um espaço para falar sobre prevenção, mas alertar que não é algo tão fácil como parece ser, também não é uma forma de chamar atenção para a realidade e, assim, contribuir para desmistificar o HIV e a Aids? Eu acho muito importante a sua fala, muito bem elaborada, sobre não tratar a prevenção a partir de um discurso do medo, como era feito anteriormente. Mas, também, não é mais possível que a gente tenha que se prender a um discurso único, que impossibilita que a realidade de muitos de nós soropositivos, principalmente nós brasileiros, pobres, pretos etc., seja revelada. (Cadernos de campo - dezembro de 2017, Rio de Janeiro).

Importante atentar a esta fala, pois ela problematiza mais do que uma narrativa que se propõe homogênea ou um ponto de vista, mas, antes, uma concepção engessada sobre o que (ainda) se espera do ativismo das redes, movimentos e ONGs atuantes em HIV/Aids.

Mediante a isto, o que procuro destacar é que as experiências individuais têm sido acionadas por Jovens Vivendo com HIV/Aids engajados numa perspectiva interseccional como importante nexo complexificador de políticas, discursos, noções, vivências e até mesmo de uma evidência científica, no sentido stricto senso. No caso acima relatado, a prevenção ao HIV/Aids não foi tida como distante das questões sobre desigualdades sociais, lógica de privilégios e experiência sorológica, que impactam diretamente na adesão à terapia antirretroviral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conflitos originados em razão dos enquadramentos políticos evidenciam diferentesperspectivassobreumaagendapró-direitosdaspessoasvivendocom HIV/ Aids, em contexto de contenção dos gastos públicos na esfera da saúde. As estratégias de visibilização das experiências dos jovens vivendo, ao serem interseccionadas, extrapolam enquadramentos engessados de um movimento que se fortaleceu por meio de protestos, negociações com setores do poder público e privado, alianças com ONGs e movimentos LGBTI+ (ou, em certo período, movimento homossexual) etc. Mediante a produção e a politização de novas demandas, complexifica-se a ideia de um sujeito social homogêneo - o paciente que precisa apenas de “um único comprimido”.

A análise buscou não polarizar o campo em sujeitos antagônicos entre si, mas destacar o modo como os discursos se produzem em termos de relações sociais e políticas advindas das trajetórias em outras temporalidades e vivências experienciais. A impossibilidade de um discurso único, mencionada no trecho acima, por um jovem que questiona a realidade de pretos e pobres como uma das possibilidades de exercício de relativização, contribui em acentuar a fluidez das demandas de um coletivo que não pode ser lido como estanque.

De certo, a indetectabilidade reflete importantes avanços biomédicos, epidemiológicos e sociais sobre a vida das pessoas vivendo com HIV/Aids. No entanto, não esvazia realidades outras, como as dificuldades na adesão à terapia antirretroviral, marcadas por fatores sociopolíticos que acentuam as desigualdades já características do cenário nacional e local. Viver com HIV/Aids - “Não é só um comprimido!” - e, por isso, não se reduz à dispensação de antirretrovirais. Tampouco pode única ou predominantemente a esfera biomédica representar a política nacional de HIV/ Aids, cuja epidemia, ainda que mais “próxima do fim” (cf. Coitinho Filho, 2021aCOITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021a. Mais próximos do fim: o meio - agenciamentos políticos, saúde e sexualidade entre Jovens Vivendo com HIV/Aids, na emergência da indetectabilidade viral. Niterói, Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense.), requer esforços significativos para seu enfrentamento.

As narrativas, que representam as diferentes perspectivas sobre viver com HIV/Aids e os ativismos que se produzem em torno disso, fazem parte da significação da própria realidade em um “saber corporificado” (Haraway, 1995) que é, ao mesmo tempo, produto e produtor de subjetividades. Quando estas são postas sob óticas geracionais, associadas a outros fatores como classe, papel social e mesmo interesses (Grisotti, 2016GRISOTTI, Márcia. 2016. “Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde.” In: LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia. Políticas públicas: reflexões antropológicas. Florianópolis: Ed. Da UFSC, pp.63-82.), permitem compreender uma dinâmica de transformações históricas, políticas e sociais na cultura por meio da apropriação material do corpo e dos sentidos que o desperta. Evidencia que a experienciação cotidiana está para além da política de dispensação de medicamentos, desestabilizando um saber epistemológico que se arroga único / universal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AGUIÃO, Silvia Rodrigues. 2014. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. CAMPINAS, TESE DOUTORADO, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS.
  • BRAH, Avtar. 2006. “DIFERENÇA, DIVERSIDADE, DIFERENCIAÇÃO”. Cadernos Pagu, vol. 26: 329-376. DOI 10.1590/S0104-83332006000100014.
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332006000100014
  • CARMO, Íris Nery. 2018. O rolê feminista: autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.
  • CARVALHO, Mario Felipe de Lima; CARRARA, Sérgio. 2015. “Ciberativismo trans: Considerações sobre uma nova geração militante”. Contemporânea - comunicação e cultura, vol. 13, n. 2: .382-400. DOI 10.9771/contemporanea.v13i2.13865
    » https://doi.org/10.9771/contemporanea.v13i2.13865
  • COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021a. Mais próximos do fim: o meio - agenciamentos políticos, saúde e sexualidade entre Jovens Vivendo com HIV/Aids, na emergência da indetectabilidade viral. Niterói, Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense.
  • COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021b. A PEC n. 55/2016 e o medo que dela sobrevém: Agenciamentos, disputas e enquadramentos no ativismo em HIV/Aids. Antropolítica, n. 52: 271-296. DOI 10.22409/antropolitica2021.i52.a42144
    » https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i52.a42144
  • COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2018. Uma “rede” de muitos significados: a positivação pedagógica da “experiência soropositiva”. Sexualidad, salud y sociedade, n. 29: 195-241. DOI 10.1590/1984-6487.sess.2018.29.09.a
    » https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.29.09.a
  • CUNHA, Cláudia Carneiro da. 2014. “Modos de fazer sujeitos na política de Aids: a gestão de jovens vivendo com HIV/Aids”. Século XXI - Revista de Ciências Sociais, vol. 4, n. 2: 91-132. DOI 10.5902/2236672517039
    » https://doi.org/10.5902/2236672517039
  • CUNHA, Cláudia Carneiro da. 2018. “Configurações e reconfigurações do movimento de jovens vivendo com HIV/Aids no Brasil: identidades e prevenções em jogo”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 29: 249-312. DOI 10.1590/1984-6487.sess.2018.29.14a
    » https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2018.29.14a
  • FARMER, Paul. 1996. Social inequalities and emerging infectious diseases. Emerging Infectious Diseases, vol. 2, n. 4: 259-269. Disponível em Disponível em https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/2/4/96-0402_article Acesso 4 set. 2022
    » https://wwwnc.cdc.gov/eid/article/2/4/96-0402_article
  • GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: ABIA; São Paulo: Editora 34.
  • GRISOTTI, Márcia. 2016. “Interfaces entre ciências sociais e saúde e reflexões sobre políticas de saúde.” In: LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia. Políticas públicas: reflexões antropológicas. Florianópolis: Ed. Da UFSC, pp.63-82.
  • HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, tiozões, tias e cacuras: envelhecimento, meiaidade, velhice e homoerotismo na cidade de São Paulo. Campinas, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas.
  • INHORN, Márcia; BROWN, Peter. 2004. The anthropology of infectious disease: international health perspectives. New York: Routledge.
  • JASANOFF, Sheila. 2004. States of knowledge: the co-production of science and social order. New York: Routledge .
  • LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia; MALUF, Sônia Weidner. 2016. “Reflexões antropológicas sobre as políticas públicas.” In: LANGDON, Esther Jean; GRISOTTI, Márcia. Políticas públicas: reflexões antropológicas. Florianópolis: Ed. Da UFSC pp. 7-13.
  • PARKER, Richard.1997. Políticas, Instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar/ABIA.
  • SIMÕES, Júlio Assis. 2018. “Gerações, mudanças e continuidades na experiência social da homossexualidade masculina e da epidemia de HIV-Aids”. Sexualidad, Salud y Sociedad , n. 29: 313-339.
  • TERTO Junior, Veriano. 2015. “Diferentes prevenções geram diferentes escolhas? Reflexões para a prevenção de HIV/AIDS em homens que fazem sexo com homens e outras populações vulneráveis”. Revista Brasileira de Epidemiologia, n. 18, vol 1: 156-168. DOI 10.1590/1809-4503201500050012
    » https://doi.org/10.1590/1809-4503201500050012
  • VALLE, Carlos Guilherme. 2008. “Apropriações, conflitos e negociações de gênero, classe e sorologia: etnografando situações e performances no mundo social do HIV/AIDS (Rio de Janeiro)”. Revista de Antropologia, vol. 51, n. 2: 651-698. DOI 10.1590/S0034-77012008000200009
    » https://doi.org/10.1590/S0034-77012008000200009
  • ZAMBONI, Marcio. 2014. Herança, distinção e desejo: homossexualidade em camadas altas na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.
  • 1
    Essa exposição também facilitará a compreensão das situações etnográficas que serão analisadas mais à frente.
  • 2
    Como forma de produzir resultados concretos para esta finalidade, foi desenvolvida uma estratégia, nomeada como Meta 90-90-90, pela UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ AIDS), em 2014. A aposta central da Meta consiste na ampliação de investimento medicamentoso para tratamento de quem tem resultado positivo para HIV/ Aids, tendo como base os estudos HPTN 052, PARTNER e Opposites Attract Study, anteriormente mencionados. Como estratégia complementar sugere-se o alargamento de informações, testagem e oferta de serviços especializados para pessoas vivendo com HIV/Aids.
  • 3
    Ao final de 2021, houve nova atualização, com aprovação da Anvisa, de recomendação para o tratamento, mantendo a administração apenas dos fármacos Lamivudina (300 mg) e Dolutegravir Sódico (50 mg). Esta nova terapia antirretroviral tem sido compreendida por ativistas, pacientes, gestores e profissionais da saúde como mais eficaz e de menor efeito adverso, inclusive à longo prazo. A retirada do Fumarato de Tenofovir Desoproxila (300 mg) garante menor toxidade renal ao paciente, sem comprometer, com isso, a eficácia do tratamento.
  • 4
    Como resultado da pesquisa que foi desenvolvida, a categoria “indetectável” é empregada neste artigo como uma das estratégias da política de prevenção ao HIV/Aids, a “Terapia como Prevenção” (TcP). Ela compõe o conjunto de estratégias preventivas - conhecida como Prevenção Combinada - que, como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), tem sido gerenciada de modo a evitar novas taxas de infecção pelo HIV por meio do uso regular de insumos medicamentosos. Esta última, contudo, é consumida por pessoas que não têm diagnóstico positivo para o HIV.
  • 5
    Para a discussão ora proposta, o marcador geracional é tornado central, em razão dos dados etnográficos que referenciam a análise).
  • 6
    Ao longo da tese pude explorar mais detidamente as mudanças ocorridas na Rede de Jovens + RJ e, sobretudo, as principais implicações que isso significou em termos de reorganização e condução política (cf. Coitinho Filho, 2021aCOITINHO FILHO, Ricardo Andrade. 2021a. Mais próximos do fim: o meio - agenciamentos políticos, saúde e sexualidade entre Jovens Vivendo com HIV/Aids, na emergência da indetectabilidade viral. Niterói, Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense.). Cabe destacar, dentre elas, a mudança geográfica dos locais de encontro mensal da Rede de Jovens + RJ, saindo da região central do Rio de Janeiro para bairros mais periféricos, e das diretrizes para desempenhar funções de gestão no interior deste espaço e a utilização de linguagens e estratégias direcionadas para o público jovem, que culminaram na modificação do perfil predominante dos participantes.
  • 7
    PEC é a sigla para Proposta de Emenda Constitucional, elaborada a fim de alguma parte específica de matéria constitucional, à luz de novas interpretações, sem, para tanto, precisar convocar uma nova constituinte. Neste sentido, a PEC 241/55 de 2016 foi proposta como medida de limite de gastos públicos à variação da inflação. Este novo regime fiscal de controle dos gastos gerou ampla discussão e mobilização política de diversos setores e movimentos da sociedade civil, visto que o limite de gastos com previsão na inflação decresce a demanda mínima para determinadas pastas, como é o caso da “saúde” e da “educação”. A medida foi iniciada já no ano de 2017, com liberação de recursos primários, acrescidos pela correção no percentual de 7,2%, com exceção da “saúde” e da “educação”. O ano de 2018, teve como base a inflação entre os períodos de junho de 2016 e junho de 2017. Para obter acesso à proposta, suas modificações e o texto final, acessar o site: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/ materias/-/materia/127337..
  • 8
    Para acesso ao referido documento, acessar: http://www.Aids.gov.br/pt-br/pub/2018boletimepidemiologico-hivAids-2018. Acessado em: 17/03/2019..
  • 9
    Neste contexto, o acolhimento consiste numa abordagem inicial, com maior concentração de esforços para a entrega de resultados dos testes rápidos. A intenção se desdobra entre fornecer informações relativas à prevenção, principalmente sobre as profilaxias (PrEP e PEP), e à camisinha, mas também criar um ambiente favorável para um possível diagnóstico reagente, no qual o sujeito poderá se sentir “entre iguais”..
  • 10
    Recurso disposto em formato de mandala, cujas principais métodos de prevenção ao HIV, às Infecções Sexualmente Transmissíveis e às Hepatites Virais são apresentados a fim de gerar a combinação de dois ou mais, segundo expectativas e possibilidades pessoais..
  • 11
    O tratamento é feito à base de penicilina, cuja administração, sob orientação médica, dependerá da fase de evolução da doença no organismo.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Os dados apresentados neste artigo foram desenvolvidos durante a pesquisa de doutoramento, realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, com bolsa Capes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2021
  • Aceito
    18 Mar 2022
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com