RESUMO
Este texto é dedicado às reflexões acerca da produção do corpo e da construção da pessoa entre os Guarani e Kaiowa e da centralidade das mulheres na organização social e no fazer político. As mulheres possuem uma potência política que atua em diversas esferas da vida social e através de diferentes mecanismos que partem de sua prerrogativa de “sentir mais”. Todavia, a posição que ocupam na organização social, às vezes, permite o endurecimento de suas falas, geralmente aquelas que são feitas para fora da aldeia, buscando a suavidade nas relações internas da tekoha, quando se percebe o risco iminente da vida. Trata-se de uma reflexão sobre os processos de produção corporal e de palavras femininas, enquanto práticas possíveis de uma política “presentativa” em que se identifica o esforço em produzir corpos belos, leves, alegres, mas também guerreiros, que são os corpos que ocupam as trincheiras das retomadas, o centro das grandes assembleias e outras estratégias de ação política guarani e kaiowa no Mato Grosso do Sul.
PALAVRAS-CHAVE:
Política Ameríndia; Mulheres Indígenas; Kaiowa e Guarani
ABSTRACT
This text reflects on the fabrication of the body and construction of personhood among the Guarani and Kaiowa, highlighting the centrality of women in social organization and political action. Women wield a political potency that acts in several spheres of social life, through different mechanisms that all originate in their prerogative of “feeling more.” However, their position in the social organization sometimes allows them to harden their speeches, especially those addressed to the outside of the village, while seeking softness in the internal relations within the tekoha, when imminent risk to life is perceived. We discuss the processes of producing feminine bodies and words, understood as possible practices of “presentative” politics in which we identify the effort to produce beautiful, light, happy, but also warlike bodies. Those are the bodies that occupy the trenches of the land repossessions, the center of the great assemblies, and other strategies of Guarani and Kaiowa political action in Mato Grosso do Sul, Brazil.
KEYWORDS:
Amerindian Politics; Indigenous Women; Kaiowa and Guarani
NOTAS SOBRE UMA POLÍTICA “PRESENTATIVA”
Este texto é resultado de esforços imaginativos acerca de uma possibilidade inventiva sobre uma política da presentação1. Nesta política, como aqui compreendida, a delegação de poder pode ser vista como um diferenciador, põe-se voltada ao centro do pensamento indígena, em que as relações de parentesco estabelecidas na vida cotidiana e na intimidade são fundamentais para uma possibilidade existencial para o exterior e se dá em contraponto com a política da “representação”.
Uma existência enquanto política “representativa” é aparentemente pouco significante em termos gerais, ou mesmo no exercício da política da vida vivida, aqui entendida como a da “presentação” que se apresenta nas redes de relações, mas pouco “representa” para além de interesses desatentos e alguns, deslumbrados, de olhares não indígenas.
Ao buscarem no interior das terras indígenas aquilo que restritamente se entende por política, de modo isolado ou mesmo autônomo, ou ainda a sua efervescência, pouco recebem e/ou pouco percebem o que de fato mobiliza o fazer político entre indígenas para além de figuras ou contextos “magnificados” - aqueles que têm suas agências atravessadas por múltiplas relações cuja inspiração stratherniana faz com que essa figura seja percebida como aquele que contém muitos em si - um “divíduo” (Stztutman, 2012), recorrentemente aproximado ao privilégio de lideranças e xamãs, em seus contextos específicos.
A elaboração aqui apresentada busca, justamente, ecoar a provocação da política “representativa” e “olhar mais de perto”2 como se consolidam na arena política os fazeres políticos femininos, já que as mulheres guarani e kaiowa se mostram preocupadas com o todo e, tendo feito crescerem todos em seu entorno, se percebem habilitadas enquanto vozes fundantes de decisões e ações políticas estratégicas, aquelas de interesses do coletivo e que se aproximam a uma ideia de política “presentativa” aqui perseguida.
Esta ideia parte da elaboração de uma “proposição cosmopolítica” menos acelerada e mais aberta, inclusive à agência do cosmos sobre a política e vice-versa (Stengers, 2018), oferecendo à “política” um alargamento conceitual exigido diante dos regimes de criatividades indígenas, pois, como sugeriu Beatriz Perrone Moisés, “toda política é, de algum modo e por toda parte, cosmopolítica.” (Perrone-Moisés, 2011: 868).
Para pensar esta questão, trago à baila o cenário etnográfico guarani e kaiowa do Mato Grosso do Sul, para que, desta maneira, seja também possível responder, àqueles que retiraram destas mulheres a capacidade do político, bem como da agentividade do conflito, onde as suas habilidades de gestão e de mediação entre mundos já foram amplamente ignoradas, tendo poucos registros das ativações de suas agências políticas e capacidades criativas produzidos, em sua maioria, na última década.
Das 116,4 mil pessoas registradas pelo IBGE (2022) como indígenas no Mato Grosso do Sul, mais da metade são Guarani e Kaiowa. Na América Latina, os Guarani se aproximam ao número de 280 mil pessoas, distribuídos entre Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil, divididos majoritariamente em três grupos: Kaiowa (ou Paĩtavyterã), Mbya e Ñandeva (ou Guarani, ou Xiripa, ou ainda Ava Guarani) (Mapa Guarani Continental, 2016).
Os Kaiowa e Guarani atualmente ocupam mais de 60 áreas, homologadas ou em estudo, em bairros urbanos, em acampamentos e retomadas em áreas de reivindicação (Funai 2015; Seraguza, 2015) no Mato Grosso do Sul. A diversidade de situações territoriais a que estão submetidos Guarani e Kaiowa, desde a fragmentação de seus territórios pela constituição dos chamados territórios nacionais, realça a singularidade de cada um destes indígenas em seus territórios específicos.
No Mato Grosso do Sul, o Estado Brasileiro, entre 1905 e 1928, reservou oito pequenos pedaços de terra para que os Guarani e Kaiowa fossem assentados após serem expulsos, majoritariamente pelos agentes do SPI - Serviço de Proteção aos Índios, atual Funai - Fundação Nacional dos Povos Indígenas, e suas terras liberadas para as frentes de avanço agropastoril, dando lugar a extensos plantios de monocultura, criação de gado e outros interesses não indígenas no início do século XX.
Este processo de assentamento em espaços exíguos de terra - as reservas - foi denominado por Antônio Brand (1997, 1993) de “confinamento”, e fez com que os indígenas permanecessem confinados nas reservas por quase cem anos. Muitos Guarani e Kaiowa resistiram à expulsão empregando-se como trabalhadores nas fazendas, para que pudessem continuar a usufruir do território. Entretanto, a partir dos anos de 1970, estes indígenas foram pressionados ainda mais pelo desmatamento crescente das poucas áreas de mata que ainda restavam no Estado e pela intensificação dos conflitos entre indígenas e os novos fazendeiros não indígenas que ali chegavam.
Estes fatos decisivos, aliados ao inchaço populacional e aos inúmeros conflitos oriundos do confinamento nas reservas, justificaram um processo de retorno às terras - as tekoha -, de onde os Guarani e Kaiowá foram expulsos pelos não indígenas e suas armas, através do que chamam de “retomadas”, como forma de ação política que objetiva pressionar o Estado para a devolução e regularização de suas terras. As retomadas são percebidas como uma política da “presentação” - refere-se ao cotidiano, às urgências da vida, a um levante coletivo, a uma resposta ao modo de vida dos karai kuera - os não indígenas.
É preciso destacar que, nos últimos anos, para além dos termos políticos da “presentação”, outras experimentações políticas de cunho representativo vêm sendo praticadas, como o projeto “Aldear a política” promovido pela Apib3 - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - e que resultou na concordância do Estado, não sem tensionamentos, em incluir em sua rígida estrutura a presença indígena, bem como mulheres indígenas representantes eleitas que, para além das funções públicas, seguem na transmissão de força e coragem às mulheres lideranças em seus diversos territórios.
Parece que a representatividade só é possível quando há quem faça corpos que, fortes o suficiente, sejam aptos a estabelecer relações com o mundo exterior, não indígena, não da vida cotidiana - o que muitas vezes pode ser tomado como o preço da representatividade, diante de uma certa recusa em aceitar tal formato de representação. Num mundo em que é possível coabitar, não sem tensões ou disputas, as duas relações - da política da “representação” e da política “presentativa” -, o fato de a representatividade política na política de estado ser composta por mulheres indígenas nas últimas eleições traz à cena a indagação sobre com quais corpos e com que palavras essas mulheres assumem estas trincheiras.
Assim, em diálogo com o que propõe Renato Sztutman quando sugere que a “[…] política indígena só pode ser compreendida em seus próprios termos […]” (Sztutman, 2013: 17) e que a categoria de “ação política” é percebida “[…] num sentido bastante largo, abarcando tanto a política faccional (engendrada, por exemplo, no sistema de agressões) como a constituição de um domínio político (espaços comuns, locais e supralocais, além de posições de chefia e liderança)” (Idem, 2012: 25), compartilho algumas reflexões etnográficas, pensando em quais são, e em seus próprios alargamentos, os termos que propõem as mulheres em referência ao fazer político guarani e kaiowa, em que me parece que o idioma da corporalidade tem lugar de importância.
Para isto, o texto aqui apresentado se divide em duas seções: a primeira se dedica à reflexão sobre a produção da corporalidade e a construção das pessoas guarani e kaiowa como formas de “ação política”; já a segunda se centrará em uma estética enunciativa feminina guarani e kaiowa, composta por falas suaves e duras que complexificam a dicotomia entre falas boas e más, fornecendo elementos para pensar uma política da “presentação”.
FAZER CORPOS, CRIAR PESSOAS - FORMAS DE AÇÃO POLÍTICA
Sentada no beiral da porta de entrada de sua casa, de frente para mim, que me acomodara na mureta da varanda, Kuña Kuarahy, uma liderança guarani de uma terra indígena na fronteira entre Brasil e Paraguai, me contava que, quando criança, a mãe a trancou num quarto durante a primeira menstruação, com uma peneira, em que ela peneirava milho e arroz para a mãe poder cozinhar. A mãe cuidava da sua alimentação naquele momento - tratava-se de uma dieta alimentar especial para a ocasião. Eu, então, me levantei, fui até o cômodo onde encerrara as minhas tralhas, peguei uma peneira que havia trazido de outra aldeia, mostrei a ela e perguntei: “Era igual a essa daqui?”.
Ela se emocionou ao ver o objeto em minhas mãos, e eu não tive outra reação a não ser presenteá-la. Feliz, emendou muitas histórias desse momento. Contou que não gostou de ter o cabelo cortado, dos banhos de remédios com odores desagradáveis que tomou, da reclusão submetida e da comida restringida4. Não repetiu na mesma intensidade os procedimentos com suas filhas quando estas chegaram à menarca. Porém, o que menos gostou foi que houve um momento em que sua mãe chegou com um socador de pilão, enquanto ela estava acocorada peneirando os grãos, e tentava insistentemente acertar os seus pés. Kuña Kuarahy se desesperou, levantou-se jogando a peneira para o alto e começou a pular, na tentativa de proteger os pés. Quanto mais ela se esquivava do pilador, mais a mãe a perseguia. “Hoje eu entendo que ela estava me formando pra eu saber me defender, ensinando o xondaro5, que os Kaiowa chamam de sambo, estava formando um corpo de guerreira”, disse-me concluindo a história.
É preciso ter corpo de guerreira para viver na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, no front da luta contra a invasão de seus territórios ancestrais. O corpo franzino daquela mulher, que se agiganta com sua história e seus ideais, foi produzido para suportar o dia a dia nas aldeias, as dificuldades de crescer dentro de uma reserva, de se casar, fazer filhos, enterrar o marido, despertar para a luta e fazer dela seu motivo de vida.
Este corpo foi produzido com as rezas de seus avós, com as massagens de sua mãe, com os remédios dos quais ela ainda hoje guarda os saberes, com os alimentos verdadeiros que cultiva em seu quintal, o que a faz uma “dona de seu fogo” (Seraguza, 2023).
O fogo é aqui utilizado como categoria a partir do elaborado por Levi Marques Pereira (1999), quando propôs um modelo etnográfico para o parentesco e suas relações entre os Kaiowa e lançou, como recurso analítico, a categoria nativa de “fogo doméstico” (che ypy kuéra), para elaborar uma proposta para o entendimento da organização social, centrada em diálogos entre o modelo etnográfico e discussões antropológicas acerca da convivialidade e da reciprocidade.
Para Pereira (1999, 2004), as parentelas são dispostas em fogos familiares (che ypy kuéra), em torno de um cabeça de parentela (hi´u, ha´i), uma liderança político/religiosa que é a articuladora da parentela e da rede de solidariedade interna à tekoha. Vários fogos familiares compõem uma parentela, e várias parentelas compõem uma tekoha, ou seja, uma rede de relações priorizada pelas alianças amplas, de caráter político e religioso (Pereira, 1999, 2004). Assim, o fogo doméstico equivale à casa, e são as mulheres que controlam o fogo doméstico, sendo então as “donas do fogo” - mães em potencial (Seraguza, 2023).
Dessa maneira, Kuña Kuarahy é uma “dona do fogo”, é uma ha´i, cabeça de sua parentela, sendo responsável pela criação de cinco filhos. Seu corpo também foi feito com as dores dos amores perdidos, a dor do parto, do medo da morte diante das ameaças nas áreas retomadas ou dentro das reservas e da necessidade de falar no centro das assembleias ou junto ao mundo dos não indígenas para segurar sua luta.
A corporalidade e a construção da pessoa são práticas necessárias à construção do ser humano, já que, “[…] o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano […]” (Viveiros de Castro, Seeger, Da Matta, 1978: 4). Trata-se de um caminho conjunto moldado pelas distintas experiências dos coletivos indígenas a partir de suas existências compartilhadas nas terras em que vivem. Entre os Guarani e Kaiowa, tais cuidados dedicados aos parentes são fundamentais para o reconhecimento enquanto sujeito e membro de um grupo, o que também não acontece de pronto no nascimento.
Após o nascimento e todos os cuidados corporais que isto inclui, como a reclusão, dieta alimentar específica, os remédios, as massagens e a restrição na realização de atividades sociais (seja à caça, às visitas familiares, à participação em rituais, às conversas ou à própria preparação da comida), existe a necessidade da realização de um ritual de nominação - feito a partir da identificação da proveniência da “alma” ñe´ẽ (entendido por palavra alma-fala, linguagem, espírito) da criança por um rezador ou rezadora habilitado para isto -, o que implica o conhecimento dos cuidados com as crianças nomeadas, o que as colocaria como sujeitos coletivos, reconhecidos por seus parentes.
Se o corpo é o lugar onde se assenta a ñe´ẽ e se a terra é onde os corpos se assentam, é preciso recuperar os ensinamentos de Ñandesy Alda, registrados entre os Kaiowa por Diógenes Cariaga (2019), quando ela explicou que “antes do nhe’ẽ se fixar no corpo em gestação, o útero materno é o mitã apyka - assento da criança” (Cariaga, 2019: 30), relacionando a produção da ñe´ẽ diretamente com a existência e a potência cosmopolítica das mulheres.
Por isso é preciso cuidar da ñe´e para que ela se assente com alegria nos corpos e não fique à disposição dos desejos alheios. E essa conduta implica saber escutar os sentimentos profundos emanados através das palavras guarani e kaiowa. Se a base da ñe´ẽ são os sentimentos e falar de ñe´ẽ significa falar dos mais profundos sentimentos guardados no coração, então é preciso saber falar, mas, acima de tudo, saber escutar para poder falar.
Por escutar, hendu, aprendi com meus amigos e amigas guarani e kaiowa como entender e se responsabilizar pelos conhecimentos acessados, o que só se dá pela via do afeto. Deve-se ouvir com o coração, o que ativará o pensamento para a intensidade necessária às reações do corpo e do espírito. Não por acaso, uma das palavras referentes a pensamento em Guarani e Kaiowa pode ser traduzida como py´a ñomongueta6 - que, ao pé da letra, pode ser traduzido como conselho/conversa do coração/estômago/peito.
Os cuidados corporais das mulheres perpassam por aqueles que os recebem e sobre aqueles que os produzem. Na gravidez, muitos cuidados são tomados pelo casal, pois ela é derivada da conjunção das substâncias dos dois - sangue e sêmen -, podendo todo o não cuidado produzir efeitos no casal e na criança e, também, em toda a aldeia.
Após o nascimento, o resguardo deve, idealmente, ser realizado pela mulher e pelo marido em modalidades e intensidades distintas, tanto no manuseio e consumo de alimentos, banhos e infusões com remédios do mato ou mesmo na participação das rezas-cantos. Por isso, até o momento do batismo da criança, todos os cuidados devem ser tomados à risca - sua ñe´ẽ ainda está assentando em seu corpo, tem poucas histórias no coletivo e pode se desapegar com facilidade ou ser seduzida por algum ser não humano, ou mais que humano, como espírito ou animal.
Por isso, fazer as crianças alegres e felizes junto à sua parentela é fundamental e necessita de intensas negociações e diplomacias com todos os seres viventes nos mundos guarani. Assim deve ser feito às mães também, pois é em seus úteros que a criança se assenta para receber sua ñe´ẽ, e de seu leite a criança se alimenta - ele precisa ser transmitido com afeto e generosidade: mborayhu; mas, para isso, as mulheres também precisam de cuidados afetuosos e solidários, porque “A mulher pode adquirir akã tarowa ao longo da sua vida, se vive ou viveu na pressão; se uma mulher guarani fica com cabeça louca é porque alguém a enlouqueceu (S. Benites, 2018: 79).
Sandra Benites descreve que os mais velhos de seu povo “sempre orientam as mães a não falar palavras à toa, por impulso, na hora da raiva, se referindo aos filhos”, pois, segundo a autora, isto pode ocasionar o desejo “de a criança querer voltar para o amba (morada celeste)” (Idem, 2020: 40). Por isso, os cuidados maternos são fundamentais - alimentos, remédios, palavras, cantos e rezas que vão manter a sua ñe´ẽ alegre e, consequentemente, a sua cabeça; assim poderá repassar esses sentimentos profundos e positivos através de suas substâncias, como o leite materno, o sangue, o suor, a saliva, as lágrimas. É o seu sangue que liga a criança ao seu princípio vital e é o seu leite que a mantém em condições para receber e assentar sua ñe´ẽ na vida terrena.
A memória, mandu´a, é ativada no processo da gestação, através dos cuidados dedicados aos outros, tais quais os dedicados a si mesmo. Alimentar é um desses cuidados para o sangue e o pensamento; desde a amamentação ao alimento transformado no fogo e na reza, alimentar pressupõe relações aprofundadas e bagagem de conhecimentos (Seraguza, 2013), o que confere um papel de importância às mulheres. Tanto é que vem daí a autodenominação de “donas do fogo”: são as mulheres, potencialmente, que geram, que nutrem e fazem crescer o futuro, são elas que apresentam as crianças ao coletivo e contribuem para o seu reconhecimento, inclusive afetivo, enquanto Guarani e Kaiowa.
Os rituais dedicados aos cuidados com os diversos tipos de sangue (tuguy/huguy) que vertem, como o sangue puerperal e o da menstruação, o resguardo e os cuidados são distintos, mas geralmente recordados com amargura e dor pelas mulheres que passaram por eles. Como o ritual de primeira menstruação citado no início deste texto, a memória da solidão e a dos cuidados desconhecidos incutem o sentimento de sofrimento e estão relacionadas ao pensamento, já que é, possivelmente, a primeira vez que estas meninas se submetem a uma situação de não convívio social, de ruptura da comensalidade. O silêncio, para Sandra Benites (2018), é fundamental para o cuidado do pensamento nestes momentos, pois provocam reflexões profundas que visam a alegria e o bem-estar das mulheres e de seus parentes; por isso precisam de concentração.
Este é o momento do pensamento, dos cuidados com a “cabeça”, quando todos da família pensam na pessoa reclusa - pais, mães, avós, irmãos e primos -, e a própria menina também pensa em si e na família, fazendo crescer a coragem em si, moldando suas palavras, como no exemplo deixado por Ñandesy ete (Primeira Mãe), que sai andando grávida e sozinha pelo mundo pensando em seus filhos e em seu companheiro, que também pensam nela. Desta maneira, o resguardo praticado pela menina exerce efeitos positivos e de cuidados sobre todo o coletivo e constrói, em seu próprio corpo, a memória do coletivo.
Os rituais de primeira menstruação deixam marcas no pensamento, por isso não se esquece deles. E é por isso que, nestes rituais, dizem “nascer de novo” (Seraguza, 2017), pois deixam de ser meninas crianças para se tornarem mulheres aptas a serem donas de seus fogos, e, para isto, os cuidados com as substâncias e fluidos corporais são fundamentais.
Entre os Kaiowa e Guarani, a composição do sangue se dá por água (y) e conhecimento (arandu) (Seraguza, 2017; Lopes, 2016) - duas matérias vitais para a produção da vida. Por conseguinte, os conhecimentos sobre os cuidados com as substâncias expelidas pelas mulheres têm de ser de domínio comunitário: ao expelir o sangue, verte-se vida vivida que fica exposta, especialmente nestas ocasiões, a todos os seres que compõem o cosmos guarani e kaiowa - trata-se de um elemento percebido como quente (Seraguza, 2013, 2017). O período da menopausa é percebido como o momento em que a mulher cessa o vertimento do sangue (Belaunde, 2006; Hèritier, 1990), o que a colocaria numa condição de corpo resfriado em maior constância - e por isso, de maior possibilidade de circulação.
Desta maneira, também é o momento em que todos sabem que a mulher está no auge da experiência e da mansidão, e que, não coincidentemente, é nestes momentos, principalmente quando se torna avó, que têm suas palavras ainda mais quentes e libertas, podendo acioná-las conforme os seus desejos, sem se preocupar muito com os efeitos, já que o respeito e a admiração por sua trajetória e palavras encantam escutas que se desdobram em ações de respeito - ações que protagonizam com o seu encantamento, evocado por suas substâncias e palavras e os efeitos destas sobre o coletivo.
É com estes corpos que as mulheres ocupam as assembleias, indígenas e as trincheiras da luta, onde são incentivadas por outras mulheres a falarem, a enfrentarem a timidez, a falta de habilidade ou prática e o medo de “falar errado” ou de rememorar a dor - das doenças, da fome, dos pais e avós falecidos, dos filhos perdidos, das violências dos fazendeiros que assolam os seus corações. Entre gritos de mbarete (força) e do chacoalho de seus mbaraka, quando as emoções dominam, as mulheres seguem aprendendo a falar e rezar-cantar para ter corpos de luta também nas formações coletivas com outros corpos de mulheres, mas também de homens, como formas de experimentações políticas.
FALAR COMO MULHERES - LIÇÕES DE POLÍTICA GUARANI E KAIOWA
Há alguns anos venho sugerindo uma observação do quanto as falas das mulheres guarani e kaiowa, quando proferidas, soam com outro peso nos mundos guarani, no que se refere à potência política conferida às mulheres por suas práticas e conhecimentos. A fala dura7, evocada pelas mulheres em determinadas situações, sugere o domínio das palavras naquilo para que a liderança guarani mbya Kerexu Yxapyry chamou atenção em uma conversa comigo durante o 8 de março de 2020, numa assembleia de mulheres guarani realizada em Santa Catarina pela Comissão Guarani Yvyrupa8: para o fato de que “as mulheres precisam recuperar a sua posição no fazer político, principalmente no que se refere aos espaços públicos, ocupados majoritariamente pelos homens”9.
A boa oratória, a generosidade e a capacidade de moderação são atributos de uma liderança entre os Guarani e Kaiowa (Pereira, 1999, 2004; Seraguza, 2013, 2023; Cariaga, 2019; Crespe, 2015). Conhecidos pelas boas e afiadas palavras, estes indígenas tendem a ter nas palavras a potência da chefia indígena, aos termos de Pierre Clastres (2013), ou na liderança, como costumam enfatizar - seja do fogo, da parentela ou da tekoha.
É muito comum ver as lideranças falando nos espaços públicos, como nas Aty Guasu10, as Grandes Assembleias Guarani e Kaiowa, e as pessoas fazendo outras coisas, sem aparentemente ouvi-los - o que dentro do fogo, parece ser diferente - neles, as mulheres recebem uma escuta atenta. Falar é a obrigação do chefe, como nos ensinou Clastres (2013) - e, através das palavras, cativar e preparar as pessoas para a escuta, encantar sua ñe´ẽ.
O dever da palavra também está presente no exercício da liderança, mas parece que, nas lideranças femininas, especialmente nas Guarani e Kaiowa, como líderes/donas de seus fogos, fazem da sua palavra experiência vivida e cuidado. Isso encanta as pessoas para a escuta e, por isso, percebe-se maior atenção às suas palavras - o que corrobora o fato de que a maior expressão que adquirem nas terras recuperadas se relaciona com a atenção que recebem as suas palavras, em detrimento, por exemplo, daquela imposta pelos capitães das reservas11 - palavras que ameaçam, que impõem, que castigam - nunca aceitas por desejo próprio, a não ser por efeito de coerção. Não necessariamente se trata de uma chefia e/ou liderança feminina nos moldes masculinos, mas da potencialização da chefia e/ou liderança com a presença feminina e seus saberes.
A figura do capitão foi construída pelo Estado brasileiro, a princípio, como o personagem das mediações nas brigas internas, da distribuição de bens igualitariamente, da interlocução com o próprio Estado e regulação de entrada e saída de parentes nas reservas: de estilo policialesco, punitivo, falante de Português e legitimado pelo Estado através da atuação do SPI e, posteriormente, da Funai (Valle, 1976; Pereira, 2004). A criação da figura do capitão vem muito a partir da percepção do Estado e dos próprios Guarani e Kaiowa, de que o “problema das reservas era a falta de administração” (Brand, 2001: 72), por proporcionar um modo de vida desconhecido daquele praticado em tempos anteriores. Essa percepção levou a inúmeras demonstrações de poder coercitivo que resultaram num aumento vertiginoso de violações, na tentativa de “administrar” a nova configuração territorial disponibilizada aos Guarani e Kaiowa.
Com o passar dos anos, a figura controversa do capitão tornou-se o ponto de referência na mediação das várias agências do Estado com os Kaiowa e Guarani no Mato Grosso do Sul, especialmente nas áreas de reserva, onde atualmente ocorrem eleições locais para a escolha do capitão, sem, todavia, ainda, ser uma figura consensual enquanto representatividade entre estes indígenas e suas parentelas.
Isto se dá pois, historicamente, possuíam como chefia política e espiritual o hi´u e a ha´i da família - os mais velhos e mais velhas de sua parentela, e agora se viam sob júdice do Estado, através da presença e atuação de um capitão indígena. Alguns desses mais velhos também são conhecidos como ñanderu, entre os homens, e ñandesy, entre as mulheres, sendo pessoas de referências nos cantos-rezas, cuidados corporais e espirituais e figuras importantes na recuperação dos territórios - são os rezadores e rezadoras guarani e kaiowa.
O chefe, nos termos de Clastres (2013), aparenta melhor rendimento em relação aos hi´u e ha´i, aos cabeças da parentela, tendo a liderança sustentada por suas boas palavras e generosidade, mas também dos rezadores/as - das ñandesy e dos ñanderu, que possuem as palavras orientadas pelas divindades - no caso das ñandesy, trata-se de falas potencializadas, por serem mulheres indígenas rezadoras.
Assim, no campo da aproximação, a fala das mulheres se aproxima da fala inspirada dos rezadores, seja por conquistar uma escuta pelo afeto ou mesmo pela predisposição feminina em atentar-se às palavras e conhecimentos dos mais velhos e por isso conhecê-los. Estas falas se opõem radicalmente às palavras elaboradas pelos capitães, que se fazem ouvir através da coerção, da violência, ou mesmo às falas públicas das lideranças masculinas, por conterem em si a intensidade e a experiência de seus sentimentos e corpos femininos.
Ou seja, as falas das mulheres estão presentes nas performances dos rezadores/as, mas, no caso das mulheres, inclusive das mulheres rezadoras, se acrescenta a experiência de produzir corpos e pessoas de seus parentes, com seus afetos e afecções e conhecimentos específicos. Para a antropóloga guarani Sandra Benites, as “Falas são palavras que vêm do py’a [coração/peito/estômago], portanto cada palavra falada tem seu efeito, que são as reações às expressões. […]” (S. Benites, 2020: 39).
Falar é um ensinamento das mulheres. É preciso aprender a falar, e quando as mulheres cantam, conversam, aconselham suas crianças estão ensinando a falar, e as crianças aprendem com elas a reproduzir os sons e os tons das palavras que as conectam enquanto coletivo. Assim, é possível afirmar que a ñe´ẽ, a palavra/alma/linguagem, está conectada às artes da palavra como agência política/cosmopolítica, enquanto resultado de uma relação mãe-filho/a.
A fala das mulheres é associada ao coletivo, sendo expressa em preocupações com o futuro das crianças. Por vezes proferem falas duras, feitas de um lugar ocupado por alguém que é muito admirado, mas que, quando esquenta, assusta e afeta. Pensar nessa lógica possibilita trazer o conflito para a vida das mulheres, pois, nos registros existentes, geralmente estão fora do conflito ou são agentes instituintes do conflito. Sugiro que as falas das mulheres sejam falas com outras etiquetas, não seguindo as que seguem as falas duras do chefe, como as registradas por Clastres (2013). Neste caso, elas podem ser falas duras e quentes, porque são admiradas nas suas falas suaves e frias que desacaloram o coração.
A fala dura da mulher é a fala de quem conhece o teko porã - o bom modo de ser e de viver guarani e kaiowa -, e com isso tem boa percepção para atuar quando ele está ameaçado. Geralmente, é uma fala elaborada para fora da aldeia, no intuito de produzir a alegria ou a festa internamente. Ou seja, a fala de paz, ou de festa, e a fala dura são processos correlatos, desde que a fala dura seja produzida para fora da parentela, levando em consideração o proposto por Perrone-Moisés, de que “A paz só pode existir sobre fundo de guerra” (Perrone-Moisés, 2011: 866). Se não, vejamos.
Em relação aos tensionamentos políticos internos nas redes guarani e kaiowa, por exemplo, recordo de uma Aty Guasu ocorrida em 2017, em Pirakua, quando uma liderança mulher se levantou em meio à Aty Guasu, mesmo não sendo a anfitriã da assembleia, e expulsou representantes de uma outra organização indígena de histórico duvidoso, que foram ao encontro a convite de uma outra liderança masculina. Aos gritos, ela defendia que os caciques verdadeiros eram guiados pelos bons ensinamentos dos ñanderu e das ñandesy, não como aqueles que ali se apresentavam, que respondiam ao dinheiro e aos desejos dos “brancos”, e que era assim, com esses ensinamentos, que elas faziam “crescer a terra”, seguindo as orientações das divindades e preocupadas com o futuro das crianças.
Essa fala é lembrada como uma declaração de guerra, uma postura tomada por quem tem conhecimentos para defender os seus diante da ameaça inimiga. Ainda nesta Aty Guasu, outra mulher liderança interrompeu uma reza de destruição do mundo, que era proferida por um prestigioso rezador com suas lágrimas e em nome das crianças, dizendo: “Pare, meu compadre, nossas crianças precisam viver”.
No âmbito do fogo doméstico, na vida cotidiana, dizem que os homens reclamam que as mulheres não os respeitam porque eles querem dar a palavra final e elas não concordam. Kuña Kuarahy me ensinou que “Essa é a kuña juru guasu (mulher da boca grande), se não concorda vai lá e debate com você, fala o seu ponto de vista, você discorda e você fala mesmo, fala dura, fala pesada, kuña juru atã (mulher da boca dura), quer dizer que é uma boca bem dura que ninguém segura, e você não volta atrás”.
Dizem que precisaram ser assim para defender suas vidas, pois eram cinco mulheres e um menino criança, todos sob a responsabilidade de Kuña Kuarahy, precisavam se defender: “Se não tivesse kuña juru atã ou kuña juru guasu, ninguém defenderia até hoje essa tekoha, eu sou uma mulher bocuda, juru guasu e juru atã, eu vou aonde dão boca pra mim, eu falo na cara da pessoa […]. Quer subir em cima do meu pé, eu tenho que virar juru atã mesmo”. E Kuña Kuarahy questiona: “Como é que uma mulher fala para os homens: me defende? Quantas vezes eu passei sufoco ameaçada, eu nunca fui pedir para homem me defender, eu não, eu sei como vou me defender, eu me defendo, eu falo!”.
Em relação aos enfrentamentos com os não indígenas, Mboy Jegua, Kaiowa de Laranjeira Ñanderu em Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul, fez uma fala dura durante o II Seminário Internacional de Etnologia Guarani realizado em São `Paulo (USP, 2019), importante para o argumento aqui apresentado, quando afirmou que:
[…] Cada um de vocês que está aqui está dentro de nossas casas! Hoje estamos morrendo pela caneta. Caneta do deputado, senado, STF, mandando nos despejar, destruindo os nossos tekoha […]. Eu sou dona de casa, eu sinto a dor, eu vejo ainda meus parentes sendo matados de forma cruel, cada cidade está sendo construída em cima dos corpos dos meus parentes. É aí que entra a palavra igualdade, nós não somos iguais, nunca seremos, temos as nossas diferenças. (Mboy Jegua, nov. 2019).
Esta potência da linguagem feminina se mostra em distintas situações. Recordo-me de algumas delas, como uma em que, após uma discordância com a fala pública do marido, uma rezadora kaiowa pegou o microfone de sua mão durante uma assembleia, deixando-o numa situação de constrangimento, assumiu a liderança da reunião e convocou para que as outras mulheres fizessem o mesmo através da reorganização de um espaço dedicado às discussões a partir do ponto de vista das mulheres (Seraguza, 2014, 2023).
Sendo assim, parece importante “olhar” para as falas das mulheres no fazer político, pois as falas políticas não são as produzidas para fora somente, já que o fogo, enquanto casa, parece ser o grande lugar da política indígena guarani e kaiowa e, desta forma, o lugar da diferença e da diferenciação. O que estou dizendo é que atrelar o fazer político fora da intimidade e do doméstico entre os povos Guarani pode ser um equívoco. Trata-se de algo que pode fazer sentido no mundo não indígena, mas, nos mundos guarani, é o fogo o lugar da transformação, das relações.
Então, isto nos leva ao questionamento de se as falas duras elaboradas pelas mulheres compõem o arcabouço das ñe´ẽ porã, ou se somam ao das ñe´ẽ vai - palavras feias, ruins -, já que há ocasiões em que são proferidas com um certo e sagaz destemperamento.
A fala dura proferida pelas mulheres em seus contextos específicos contrasta drasticamente com as descrições sobre a fala mansa ideal ao modo de vida Guarani e Kaiowa, a ñe´ẽ, registrada nos estudos junto a estes povos. Mas, se a fala é seu sopro de vida, refletido no seu corpo ereto e em sua voz, na palavra elaborada com sentimentos profundos, ela deve ser percebida como uma ñe´ẽ porã: “A linguagem perfeita - ñe´ẽ porã - tem implicações estéticas e morais, aplicando conceitos, fórmulas e enunciados relacionados às funções sociais às quais esse tipo de linguagem se dirige”, e desta forma se contrapõe diretamente à “fala imperfeita - ñe´ẽ vai -, com implicações opostas e relacionadas à fofoca, ao feitiço e aos seres jaguarizados” (Pereira, 2004: 373).
Se a fala boa, elaborada com suavidade, é a fala ideal a ser feita para dentro, me parece que as mulheres também usam de falas duras, para fora, no intuito de estabelecer a suavidade nas relações internas. Se levarmos em consideração o contexto das retomadas e a agência das mulheres nestes espaços, é possível entender que são as relações femininas que parecem conter a potência criadora e transformadora da vida social - visto onde e por que são proferidas. E é justamente sobre este modo específico do fazer político das mulheres que me proponho a refletir enquanto uma política de “presentação”.
Se, como argumento (Seraguza, 2023), as mulheres são produtoras da alegria fundamental à composição do socius guarani e kaiowa, e, através de suas falas, também podem produzir outros efeitos que visam a ofensa e a tristeza, isso só pode se dar a partir da prerrogativa de sua experiência cotidiana e habilidade na manutenção dos fogos - que perpassa pelos conhecimentos de produção corporal e da pessoa de seus próprios parentes enquanto prática política. Esta prerrogativa feminina lhes possibilita romper com a etiqueta da mansidão esperada nas falas dos Guarani e Kaiowa, sob o pretexto de serem portadoras de sentimentos profundos, reconhecidos pelos coletivos e que colaboram na manutenção da coesão social, mas também as habilita aos excessos (Seraguza, 2013, 2016, 2018, 2023), operando, assim, também no sentido inverso, que é o de implodir as relações sociais.
Neste sentido, é possível afirmar que as falas duras, por vezes desmedidas e destemidas das mulheres, permanecem junto ao campo das ñe´ẽ porã, pois são falas produzidas na defesa da vida e na integridade de si e da parentela. Todavia, o limite entre ñe’ẽ porã e ñe´ẽ vai é bastante tênue, por isso é preciso um controle, desde o seu nascimento, através de seus processos corporais, para que sua ñe´ẽ não se distancie dos ensinamentos do teko porã, o modo ideal de ser Kaiowa e Guarani.
A admiração pelas boas palavras femininas proferidas nas casas de rezas também existe em relação às falas duras realizadas nas situações de conflito ou de desordem da coesão do grupo. Contudo, a percepção destas falas, para além das falas públicas realizadas para fora, só ocorre na intimidade do cotidiano; por isso, o trabalho de campo contínuo e o “gostar das mulheres” como sugere Luisa Elvira Belaunde (2016), apesar das intempéries colocadas para a permanência em campo nos mundos guarani, são ações fundamentais (e privilegiadas) que compensam a superação de qualquer dificuldade imposta pelo contexto.
Não se trata de fala cotidiana no sentido das que fazem os líderes12: são falas ativadas diante de situações de perigo iminente para o coletivo e, justamente, os saberes das mulheres, sua experiência e expertises em apaziguar as quenturas da vida, em levantar as pessoas, são acionados para este lugar de fala intensa, desmedida. Obrigar pela palavra, machucar pela palavra é somente tolerado para fora, quando produz a “paz” internamente - como fez Kuña Kuarahy ao expulsar as lideranças que ameaçavam o coletivo naquela Aty Guasu em Pirakua. O contrário não é possível.
Neste ambiente sabe-se que a palavra pode ser violenta e, por isso, ela é punida como o ato em si - pelas próprias lideranças ou pela própria comunidade -, principalmente quando ocorre de ser a palavra da liderança que ameaça e violenta - como no caso dos capitães de reserva. Desta maneira, se a palavra pode ser violência, a convivência com a violência gerada pelos próprios parentes é insuportável, mas, ainda assim, produz e transforma o social: tornam-se conflitos intoleráveis, quando se deve cultivar a boa palavra, e, então, geram afastamentos e a ocupação de novos (e antigos) lugares, com outros coletivos e organizações, como as retomadas territoriais.
Segundo afirmou certa vez Lisandreia Guarani, “a palavra das mulheres guarani não é frágil” (Seraguza, 2018, 2023); ao contrário, a palavra forte das mulheres precisa tocar o pensamento, pois as boas palavras espantam a violência das palavras erradas. Entretanto, não se pode negar que a violência vivida no cotidiano feminino fez com que as mulheres tomassem para si o exemplo de Nandesy ete - A primeira Mãe, e se encorajassem em defesa de seus corpos e dos de seus parentes.
Kuña Kuarahy tem proferido inúmeras falas fortes, quando enfrenta o agronegócio brasileiro, os políticos sul-mato-grossenses, além de vivenciar inúmeros conflitos com fazendeiros locais, políticos e polícia, nos processos de recuperação de sua tekoha. A fala forte de Kuña Kuarahy e de outras mulheres, quando elaboradas em espaços públicos, costuma ser dirigida às pessoas e instituições não guarani e não kaiowa, especialmente para as que são responsáveis, em alguma medida, pela violação dos direitos indígenas, especialmente os da terra, que os expõe a um modo de vida que se distancia daquele desejado por estes indígenas.
Como afirmou a antropóloga Amanda Danaga (2021: 33), entre os Tupi Guarani do litoral paulista, “A realidade deve ser enunciada para que as políticas sejam efetuadas. Assim, se tal realidade se apresenta dura, torna-se incompatível falar sobre ela de outro modo que não por meio de uma fala também dura e aguerrida”. Dessa maneira, não há o que discordar de Beatriz Perrone-Moisés, quando afirma que, “quando índios atuam no ambiente de nossa política, tem de agir na chave da guerra, não mais de borduna, mas de palavras” (Perrone-Moisés, 2015: 92).
TOMAR AS PALAVRAS - POR UMA POLÍTICA DA VIDA VIVIDA
Se, ainda aqui, restam dúvidas sobre o entendimento acerca de uma política da vida vivida, enquanto uma política da presentação em contraponto à representação, há que se suspeitar de nossos próprios pontos de vista. Afinal, se existe relação, há política, ou mais: “toda negociação transespecífica é Cosmopolítica” (Danowski e Viveiros de Castro, 2014). Digo isto, a partir do caminho apresentado que traça um percurso de fuga daquilo que é visto por fora como “mais” importante, fazendo uma escolha deliberada por aquilo que, para alguns, é “menos” importante, enquanto, para outros/as, pode ser um bom olhar para a política ameríndia. Afinal, conforme bem ensinou Manoel de Barros, o poeta do Pantanal, “Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.” (Barros, 2006).
Desta maneira, tomar as palavras13, como que num ato imperativo, diante de um lugar de enunciação saqueado, como sugere Kerexu Yxapyry, é uma imagem possível frente ao silenciamento secular das palavras indígenas, especialmente de suas mulheres. O poder histórico de suas habilidades na feitura de corpos e pessoas, na proeminência da palavra e na liderança dos fogos, de sua criatividade política é registrado por muitos pesquisadores/as, desde o período colonial, e por vezes justifica o temor masculino e alienígena frente à potência feminina, mobilizando uma urgência na construção de uma magnificação de lideranças masculinas, como que numa pandemia, que atravessou mundos diversos e se cristalizou em distintos cenários etnográficos com efeitos perversos.
O esforço em reativar possibilidades indígenas femininas do fazer político leva à percepção de que o que vem sendo chamado de política de mulheres se efetiva a partir do modo como as mulheres encaminham suas relações que são prioritariamente marcadas pelos seus sentimentos profundos, externados ora em falas suaves para dentro, ora em falas duras para fora, mas as duas coexistem com o objetivo da “doçura” (Clastres, 2013), do viver bem - da terra garantida, do fogo erguido, das pessoas felizes, das palavras do coração. As mulheres podem ter o corpo quente para em seguida se acalmarem, elas servem à guerra e à festa - nos termos de Perrone-Moisés (2015).
As diversas modalidades de falas femininas representam relações que se materializam através dos cuidados, mas também das acusações, proximidades e distanciamentos que compõem o kuña reko - o modo de viver das mulheres. Assim, há limites entre ñe´ẽ vai e ñe´ẽ porã - como que num “desequilíbrio perpétuo” -, em que a dualidade das palavras é composta por um par de oposições, mas se desestabiliza por ser também povoada por um trio (Lévi-Strauss, 1993; Pierri, 2013; Cariaga, 2019, 2020), que inclui as ñe´ẽ atã - palavras duras, como as proferidas pelas mulheres.
Elas precisam ser alimentadas e observadas por muitos motivos, um deles é o de que as mulheres sabem que seus excessos publicizados, ou mesmo alguns de seus próprios desejos, ou o conteúdo de seus saberes, podem ser entendidos como provocações potenciais que colocam em risco, inclusive, as suas próprias existências. Pode-se perder na arena da política, o que é sempre um desafio.
De todo modo, insisto na política das mulheres enquanto política da vida vivida, como política “presentativa”, nos termos provocados pelo encontro que semeou as ideias aqui apresentadas. Nada me leva a preterir a política “representativa” em relação à “presentativa”, em virtude da sua vida em multiplicidade no habitar dos mundos, mas me parece interessante pensar que o caminho de uma só é possível nos passos da outra, já que figuras que se pretendem representativas nos mundos guarani também cresceram com as mães e demais mulheres da parentela, aprenderam a falar com elas, a se alimentar por suas mãos e, por consequência, a fazer o político, como que em resultado das conversas e habilidades desenvolvidas em torno dos fogos com as mulheres.
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O presente artigo resulta de minha tese de doutorado, As donas do fogo - política e parentesco nos mundos guarani, orientada por Marcio F. Silva, defendida no PPGAS/USP em 2022, como bolsista Fapesp processo n. 2017/09129-7. Também, uma primeira versão deste texto foi apresentada em formato de comunicação oral no Seminário Representação e “Presentação” política ameríndia. Coexistência e hibridização de regimes do político na América do Sul tropical, organizado por Amaz/LAS - Collège de France/CEstA - Universidade de São Paulo, entre os dias 24, 25 e 26 de outubro de 2022. Esse seminário reuniu dezenas de pesquisadores/as que se debruçaram sobre reflexões acerca das políticas de “presentação” e “representação”, provocados pelos organizadores do evento, Alexandre Surrallés (Coordenador do projeto ANR - Amaz), Renato Sztutman, Adriana Testa e Marcio Silva (Equipe USP/CEstA/Amaz).
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Como sugeriram os organizadores do evento, Seminário Representação e “Presentação” política ameríndia. Coexistência e hibridização de regimes do político na América do Sul tropical, em sua chamada oficial.
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“A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib foi criada pelo movimento indígena no Acampamento Terra Livre de 2005. […] é uma instância de referência nacional do movimento indígena no Brasil, criada de baixo pra cima. Ela aglutina […] organizações regionais indígenas e nasceu com o propósito de fortalecer a união de […] povos, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, além de mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas” (Apib, 2024). Mais informações em: sobre | APIB (apiboficial.org).
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Em minha dissertação de mestrado, é possível encontrar relatos sobre o assunto proferidos por outras mulheres guarani e kaiowá, que seguem nesta mesma direção (SERAGUZA, 2013).
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Entre os Guarani Mbya, Lucas Keese dos Santos se dedicou a pensar a esquiva como ação política guarani (SANTOS, 2021); e entre os Kaiowa, Veronice Rossato foi uma das organizadoras do livro Ñemborari, produzido por estudantes indígenas do Magistério Guarani e Kaiowa, sobre a história e os movimentos do sambo durante um curso sobre a temática (ARA VERÁ, 2012).
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Quem me traduziu desta maneira foram Jacy Guarani, Leila Guarani e Eliel Kaiowa. Eliel conhece o termo, mas utiliza com mais frequência tesa mondo (enviar aos olhos - no sentido de viagem), enquanto Izaque João traduz como jehesa mondo (pensar intensamente como vai fazer), jeheko mondo (pensamento, imaginar, pensativo), e py´a ñomongueta como reflexão.
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Entre os Wajapῖ, Dominique T. Gallois registrou (2002) ayvu kasi como referência à fala dura proferida por este povo frente à emergência de discursos políticos entre estes indígenas que colaboram para a compreensão das relações estabelecidas com o mundo não indígena e evidenciam também um “projeto de resistência política surgido num contexto histórico em que se tornam cada vez mais evidentes […] as ameaças à integridade de seus territórios, à autonomia de seu modo de ser e à sua sobrevivência física” (GALLOIS, 2002: 212).
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A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) é uma organização indígena que congrega coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra. A CGY foi construída como um instrumento de atuação nos processos de demarcação de Terras Indígenas. Mais informações em: CGY | Comissão Guarani Yvyrupa - CGY.
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9
Quando Kerexu Yxapyry fez esta fala a mim, não poderíamos imaginar que enfrentaríamos uma pandemia de um vírus desconhecido, tampouco que, após tudo isso, Kerexu se tornaria Secretária de Direitos Territoriais e Ambientais do Ministério dos Povos Indígenas/MPI, compondo o Governo Lula 3 no ano de 2023.
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10
Aty Guasu são as grandes assembleias realizadas pelo povo Guarani e Kaiowa. Trata-se da forma de auto-organização desse povo, existente desde os anos de 1970 e utilizada como movimento de luta pela demarcação das terras guarani e kaiowa. Atualmente, a Aty Guasu é formada pelo conselho das mulheres - a Aty Kuña (ou Kuñague Aty Guasu) - e o de jovens - RAJ-Retomada Aty Jovem. Mais informações em: HOME | KUÑANGUE ATY GUASU (kunangue.com).
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11
Historicamente atribuída pelo Estado brasileiro, desde 2008 a instituição do “Capitão” perde o caráter estatal e vem sendo assumida por estes indígenas enquanto figura possível, nunca consensual e bastante controversa, de representação política dentro das terras indígenas guarani e kaiowa (Brand, 2001; Cavalcante e Delfino de Almeida, 2019).
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12
Como as registradas entre os Tupi Guarani do litoral paulista por Amanda Danaga (2021): “O cacique menciona frases como ‘É isso daí que quero que vocês sintam’, indicando a intencionalidade das palavras proferidas na reunião. O objetivo é que seus discursos não sejam apenas ouvidos, mas experienciados, que suas palavras afetem pessoas. Uma fala produzida enquanto matéria de afecção e transformação do outro. ‘Falas duras’, ‘broncas’, com vistas a estimular ações, organizar e ratificar posições, sobretudo, da liderança. Em sua defesa, pelas palavras impostadas acentuadamente, conclui: ‘Se não for desse jeito, ninguém abre o olho. Eles têm que acordar’” (DANAGA, 2021: 23).
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13
Inspirada deliberadamente no depoimento de Gabriela Leite, quando afirma que precisou tomar a palavra “puta” pelos chifres e enfrentá-la. Assim vejo que fazem algumas mulheres indígenas: tomam para si as palavras, enfrentam os vários mundos, com suas distintas negociações, tendo em vista perigo e futuro.
Editado por
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Editor-Chefe: Guilherme Moura Fagundes
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Editora-Associada: Marta Rosa Amoroso
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Editora-Associada: Ana Claudia Duarte Rocha Marques
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
02 Maio 2023 -
Aceito
17 Maio 2024