RESUMO
A partir de um contexto recente de retomada territorial, com uma dezena de novas aldeias e proliferação de novos e diversos cultivos na Terra Indígena Tenondé Porã, em São Paulo, pretendo compartilhar reflexões em torno de um operador relacional central nesse processo, que é a um só tempo de renascimento territorial e de resistência à predação desmedida do mundo jurua (não indígena): o mborayvu. Mborayvu é um importante conceito guarani mbya, que, além de figurar como um ideal nas relações entre parentes, está associado a uma prática política que deve orientar a relação das lideranças com a comunidade. No ideal do mborayvu, o trabalho da liderança política, assim como do xamã, deve ser realizado sem prescrever ou esperar contrapartidas daqueles que o recebem. Isso se reflete também na capacidade da liderança de agregar diferentes parentelas em sua aldeia, que, tal qual os novos canteiros agroflorestais das retomadas, compartilham abundância em função do manejo de sua diversidade. Assim, a prática do mborayvu, conduzida pela presença marcante das lideranças dessas novas aldeias, aponta para modos políticos capazes de diversificar a vida e compartilhar a terra que logram desarticular a maquinaria não indígena da valorização capitalista e sua ameaça ambiental.
PALAVRAS-CHAVE:
Antropologia política; Cosmologias Ameríndias; Formas políticas ameríndias; Guarani Mbya; Resistência indígena
ABSTRACT
From a recent context of territorial reclaiming, with a dozen new villages and a proliferation of new and diverse crops in the Tenondé Porã Indigenous Land in São Paulo, I intend to share reflections on a central relational operator in this process, which simultaneously involves territorial rebirth and a resistance to the excessive predation of the jurua (non-indigenous) world: the mborayvu. Mborayvu is a significant Guarani Mbya concept that, beyond representing an ideal in kinship relations, is associated with a political practice that should guide the leadership’s relationship with the community. In the mborayvu ideal, the work of political leadership, much like that of the shaman, should be carried out without prescribing or expecting reciprocation from those who receive it. This is also reflected in the leadership’s ability to bring different kinship groups together in their village, which, much like the new agroforestry in the retaken areas, share abundance through the management of their diversity. Thus, the practice of mborayvu, conducted by the prominent presence of the leaders of these new villages, points to political ways capable of diversifying life and sharing the land that succeed in disarticulating the non-indigenous machinery of capitalist valorization and its environmental threat.
KEYWORDS:
Amerindian Cosmologies; Amerindian political forms; Guarani Mbya; Indigenous resistance; Political Anthropology
Com base em uma experiência recente entre os Guarani Mbya de conformação de novas aldeias e retomada territorial na Terra Indígena (TI) Tenondé Porã, em São Paulo, tentarei sugerir neste artigo1 alguns caminhos de investigação a partir de um modo de relação guarani mbya que atua aumentando a diversidade interna dos grupos no território.
Assim como o movimento de esquiva do guerreiro guarani que dança, o xondaro (Keese dos Santos, 2021a), que incorpora a agressão do inimigo como uma forma de escapar e se diferenciar dele, há um modo de ação política da liderança voltada para o interior de seu grupo que também se apresenta como uma alternativa no âmbito das relações de alteridade, diante do que os Guarani veem como um excesso de predação no mundo atual2. A hipótese que busco esboçar é que a liderança que pratica esse modo de relação, o mborayvu, aumenta a abundância compartilhada pelo grupo por meio do incremento e manejo de sua diversidade interna. Embora não seja pela via da predação ou da ação guerreira (mesmo que por meio da esquiva), é também um modo de incorporação do exterior que não se deixa homogeneizar a ele, mas expande a heterogeneidade do grupo e suas possibilidades de relações e intercâmbios, para dentro e para fora.
Em que pesem a amplitude e a complexidade dessas questões e as muitas veredas abertas ao longo do texto, proliferando os fios do argumento, creio ser proveitoso compartilhar essas reflexões para que, em novas ocasiões e, eventualmente, com outros condutores, esses caminhos sejam mais longamente percorridos, servindo o presente artigo como um mapeamento inicial.
LIDERANÇA VIAJANTE E LIDERANÇA ANFITRIÃ
No atual contexto da política indigenista no Brasil, é comum lideranças indígenas viajarem de suas aldeias para tomarem parte de diversas reuniões e tratativas relacionadas à defesa de seus direitos. Se por um lado tal dinâmica atualiza um movimento da antiga expedição guerreira, daqueles que se lançavam ao exterior do grupo estabelecendo um canal intenso de relações de alteridade, por outro, tais movimentos hoje se dirigem sobretudo a lidar com a política conforme praticada pelo Estado, mesmo que para tentar subvertê-la.
Entre as variadas formas com que o Estado se apresenta às comunidades indígenas, materializadas em uma infinidade burocrática de instituições, órgãos, departamentos, funções etc., há uma abordagem comum que trata as lideranças como “representantes” de suas comunidades e povos. Ainda que muitas lideranças busquem reduzir e controlar essa projeção de representatividade sobre si, enfatizando que não podem falar ou decidir pelos demais que ficaram nas aldeias, trata-se de uma característica marcante da linguagem política empregada pelo Estado e que não raro produz efeitos nocivos.
A intensa e crescente demanda por viagens de articulação política coloca um problema para essas lideranças. Se parte de seu prestígio foi construído e está atrelado a essa dinâmica constante de viajar para fora, os laços de parentesco e reciprocidade, que são construídos no dia a dia da aldeia, ficam significativamente comprometidos. Como nota Gallois no caso do processo de representação nos conselhos supralocais dos Wajãpi, povo tupi do Amapá, “a política indigenista obriga às vezes a preparar pessoas muito rapidamente e cria uma ruptura muito grande. Essas pessoas não conseguem mais escutar as vozes de suas bases nem conseguem voltar” (Gallois, 2001: 113).
Em contraposição às expedições para lidar com o mundo não indígena, há o trabalho da liderança voltado para dentro, para as relações entre as parentelas que compõem as aldeias. Nesse âmbito, as dinâmicas de reciprocidade têm maior relevância e impõem uma necessária presença por parte da liderança para manejar essas relações e movimentos entre os diversos sujeitos que compartilham o território. Em contraste à representação empreendida pela liderança que viaja para fora, a liderança na aldeia age por meio do grupo que sua presença engendra, como um anfitrião.
Vale ressalvar que “interior” e “exterior” são categorias relacionais em função do coletivo delimitado e sua escala, que pode variar de uma ampla área compartilhada de florestas e aldeias, ao espaço de um grupo local e seu pátio familiar, ou escalas ainda menores, conforme veremos mais adiante. Além disso, é possível a coexistência de distintos vetores, como no caso de vetores estatais adentrando uma aldeia, projetando cargos políticos centralizadores sobre a dinâmica comunitária baseada no parentesco e favorecendo posições estáveis de poder em certas parentelas, inclusive por meio da gestão de instituições construídas nas aldeias, como escola e posto de saúde. No sentido oposto, modos políticos indígenas podem extravasar os limites dos territórios, carregando rios de parentes aos centros de poder não indígena, como nos atos multitudinários e repletos de ressonâncias xamânicas do Acampamento Terra Livre, em Brasília, que, junto a variadas estratégias de incidência e ocupações, tensionam pela presença coletiva o funcionamento de órgãos do Estado a seu favor, principalmente os associados à política indigenista.
Assim, tendo em mente que interior e exterior são sobretudo relacionais, o contexto para o qual me voltarei é aquele que meus interlocutores chamam de “território”, e os distintos vetores que incidem nesse espaço, que pode variar entre a própria aldeia e toda a região de uma Terra Indígena, um espaço contínuo e compartilhado entre diversas aldeias e demais sujeitos que o coabitam.
Entre as lideranças com quem convivo e que colocam o foco de seu trabalho na aldeia, é possível notar uma ênfase em um conceito nativo que eles denominam mborayvu. Mborayvu aponta para uma prática de compartilhamento que, entre outras coisas, vai no sentido contrário ao acúmulo de recursos e relações, sobretudo as oriundas do mundo não indígena (sejam elas cargos políticos ou mercadorias), em poucas pessoas e suas parentelas mais próximas3, que exercem um controle exclusivo sobre o lugar de representantes nas relações com os jurua (modo genérico de se referir aos não indígenas, aqueles que possuem “a boca peluda”). Em consonância com tal movimento, essas lideranças têm promovido um esforço de dissolução da figura do cacique, conforme veremos adiante, em favor da dinâmica mais coletiva de um conselho de lideranças, agregando diversas aldeias deste território em contexto de retomada e sobre o qual passamos agora a uma breve apresentação.
RETOMADA E DIVERSIDADE
A TI Tenondé Porã do povo Guarani Mbya teve seus limites declarados em 2016 em meio a uma região ampla de remanescentes de mata Atlântica no extremo sul da cidade de São Paulo, bem próxima à descida da serra do Mar. Até 2012, apenas duas pequenas áreas de 26 hectares cada estavam regularizadas e abrigavam duas populosas aldeias, que somavam mais de 1500 pessoas. Isso gerava uma situação de escassez de espaço para as roças e uma proximidade excessiva e muitas vezes conflituosa entre as famílias confinadas. Ao longo dos últimos dez anos, como modo de pressionar o processo ainda inconcluso de demarcação de 16 mil hectares, as lideranças iniciaram um movimento de retomada territorial, reocupando áreas com doze novas aldeias no território, além das duas mais antigas. Foram de duas a catorze aldeias em dez anos.
Assim, a última década na Tenondé Porã foi caracterizada por esse movimento de parentelas fundando aldeias, muitas delas lideradas por mulheres, com novos espaços para roçados cada vez mais diversos, com recuperação de variedades tradicionais de cultivos. Segundo levantamento realizado em 2019 (Keese dos Santos; Oliveira, 2020), a produção agrícola da TI foi estimada em mais de 16 toneladas somente para as culturas de milho e mandioca, contando ainda com uma variedade impressionante, contabilizada pelos Guarani, de cerca de 50 tipos de batata-doce, 16 de milho, 14 de mandioca, 11 de abóbora, 10 de feijão e mais de 40 espécies frutíferas perenes4. Como enfatiza Carneiro da Cunha (2019), os indígenas são povos da megadiversidade; e manejar a diversidade é um ponto central para as reflexões aqui.
A quase totalidade da produção dessa safra foi destinada ao compartilhamento entre as famílias e para além da própria TI. Garantir bons alimentos para compartilhar entre parentes foi a principal motivação para a prática do plantio, segundo as respostas nos questionários do levantamento. Há poucos anos, antes do movimento pela demarcação da TI e de retomada das aldeias, a área plantada e a produção total, e principalmente a quantidade de variedades de um mesmo cultivo, não alcançavam 10% dos parâmetros atuais, segundo as lideranças guarani.
Para consolidar essas novas retomadas, houve também um grande esforço de articulação entre as lideranças em busca de novos apoios e projetos, alguns deles conquistados por meio de intensas lutas e mobilizações coletivas, como no caso de compensações ambientais de empreendimentos (Pierri, 2023). O esforço coletivo das lideranças também se centrou em formas para que o conjunto das comunidades pudesse realizar uma gestão compartilhada dos recursos da compensação, de modo a evitar privilégios entre as aldeias e impactos negativos com seu uso, algo infelizmente comum em diversos territórios nos processos de licenciamento ambiental.
Outra característica marcante do atual movimento de articulação política na maioria das aldeias na TI é a dissolução da figura do cacique em prol de um coletivo de lideranças5. Houve um incentivo à participação de novas lideranças, principalmente de jovens e mulheres, estas últimas muito hábeis em fazer circularem tarefas e responsabilidades, mediando de forma efetiva a relação entre as parentelas, através de uma complexa diplomacia multilateral. Tal movimento promoveu um intenso processo de formação e ampliou o diálogo sobre assuntos comuns do território.
Ainda que iniciar uma aldeia nova do zero apresente vários obstáculos, é comum descreverem esse movimento de deixar para trás a dinâmica conflitiva e o pouco espaço nas aldeias antigas como algo libertador. Essa liberdade, contudo, associa-se a uma das dificuldades mais comuns das novas aldeias, que é a de sustentar um processo de expansão para além de seus parentes próximos. Das doze novas aldeias, apenas uma delas, a tekoa Kalipety, tem conseguido sustentar um processo de abertura e incorporação de diferentes parentelas, agregando cerca de sete grupos parentais distintos, enquanto que as demais novas aldeias variam entre um e três. Conflitos não deixaram de existir ali, e as lideranças dessa aldeia não se furtam a lidar com eles, provocando afastamentos quando necessário. Contudo, o fato de terem mantido esse movimento de abertura e presença de outras parentelas sugere que a capacidade de compartilhar a tekoa e os intercâmbios ali promovidos não só seguem sendo possíveis, como constituem fator do fortalecimento crescente da comunidade.
O êxito do coletivo de lideranças dessa aldeia se expressa no modo como agregam de forma expansiva novas famílias por meio da participação nos mutirões de plantio e colheita, nos rituais xamânicos de fortalecimento e cura na opy6, nas atividades de recebimentos de visitantes não indígenas, assim como na distribuição de bens circulados no território. Tal movimento tem servido de referência, e apesar das dificuldades de expansão das outras novas aldeias, ele é reiterado na dinâmica mais ampla da TI, como no caso do apoio à criação de aldeias no território para receber famílias oriundas de outras regiões, na promoção de encontros e oficinas entre as aldeias e no equilíbrio junto às autonomias locais nas deliberações e usos comuns do território.
Foi em meio a esse movimento geral que escutei reiteradamente das lideranças, sobretudo do Kalipety, a ênfase em se praticar o que eles denominam mborayvu. Uma das traduções possíveis para mborayvu nesse contexto poderia ser “generosidade”, no sentido de que estão falando da importância de compartilhar entre todos, compartilhar o território, os apoios dos projetos, mas também de se ajudarem nos conflitos, como de fato ocorreu durante os processos de retomada na TI, quando algumas novas aldeias foram ameaçadas por posseiros não indígenas da região7.
MBORAYVU E TROCA
Além de figurar como um ideal de generosidade nas relações entre parentes, mborayvu está também associado a uma prática que deve orientar a relação das lideranças com a comunidade. A liderança política que busca verdadeiramente o mborayvu, dizem, realiza seu extenuante trabalho e ajuda os demais sem prescrever ou esperar contrapartidas daqueles que o recebem.
Mborayvu é um termo que, apesar de frequentemente referenciado na etnologia guarani, é pouco analisado em profundidade. Uma outra tradução atribuída a ele foi a de “amor”, que vem desde Montoya (1876) e os primeiros jesuítas, e é hoje empregada também em algumas aldeias mbya. Há uma leitura etnológica que se utiliza do mborayvu e sua tradução como amor para designar o polo relacional que teria substituído a predação nas transformações históricas do xamanismo desses povos, postulando uma suposta desjaguarificação do xamanismo guarani (Fausto, 2005).
Há diversas críticas a essa interpretação8. Elas demonstram como o polo relacional associado à predação e a todo um amplo conjunto de agressões vinculadas a um eixo horizontal do xamanismo é complementar ao eixo vertical associado à relação com os consanguíneos divinos e segue pulsante entre os grupos guarani, ainda que com suas transformações. Tais críticas apontam a possibilidade de reconhecermos o mborayvu como um polo relacional que não substitui o da predação, mas cria com ele uma profícua dinâmica. Pois, como formula Perrone-Moisés (2011) sobre a recusa guarani ao ideal do Um, postura que tanto enalteceu Pierre Clastres ([1974] 2017), trata-se, “no entanto, de uma recusa dupla, de mover-se no espaço-relação entre os polos, sem jamais fixar-se num deles” (Perrone-Moisés, 2011: 868, 872).
Entre outras traduções para mborayvu, há também a proposta de Pierre Clastres ([1974] 1990: 29), que traduz para “o que reúne”, concepção que reforça um aspecto político importante do mboravyu e que, aparentemente, iria na contramão dos mecanismos anticentralização política que o autor privilegia em sua análise. Ao rejeitar a tradução de mborayvu como amor, em razão de seus possíveis ecos cristãos, Clastres apontou uma possibilidade de interpretação que expressa a ação política concreta produzida pelo mborayvu: de reunir, agregar o coletivo. Trata-se, assim, de uma formulação mais descritiva que termina por ultrapassar a própria disputa que motivava Clastres, que preferia o sentido de “solidariedade” (indígena) ao “amor” (cristão). Caso Clastres utilizasse o termo “solidariedade” como solução de tradução, essa também produziria expressões vagas: há pouca diferença na variação da tradução do trecho do Ayvu Rapyta (Cadogan, [1959] 1997), que diz “mborayu rapytarã”, entre “fundamento do amor” (a tradução original de Cadogan) e “fundamento da solidariedade”, sentido que defendia Clastres, mas que oportunamente não foi a expressão empregada. O que nos diz mais nesse caso, seja amor, generosidade ou solidariedade, é que o mborayvu reúne.
Assim, para entendermos como o mborayvu pode se constituir como um modo de relação, mais proveitoso do que uma disputa de traduções é olharmos para o contexto em que o termo é mobilizado pelas lideranças guarani atuais, caracterizado pela expansão do grupo local por meio de ações de compartilhamento. Na aldeia, é comum explicarem o significado de mborayvu lançando mão de contrastes com o modo não indígena de fazer ou dar algo para outra pessoa, que seria sempre mediado por um interesse pessoal, frequentemente expresso no valor de troca do dinheiro9. Já o mborayvu, conforme as lideranças enfatizam repetidamente, é fazer algo pelo outro simplesmente porque está a seu alcance fazê-lo, como se ele fosse um parente bem próximo, da própria casa. Certa vez, em uma piada com um empréstimo de dinheiro ainda não pago, uma liderança interveio brincando: “Ah, mas se o dindin foi dado no mborayvu, tá tranquilo, não importa o valor, não precisa fazer nada! No mborayvu é assim”. Nesse sentido, um possível caminho para melhor compreender o mborayvu e suas implicações seria abordá-lo a partir de relações de troca e seus efeitos na conformação dos coletivos.
O teórico Kojin Karatani ([2010] 2014) utiliza uma noção ampla de troca (exchange) como fundamento de uma abordagem materialista de diferentes modos relacionais ao longo da história10, articulando a tradição antropológica de Marcel Mauss da economia da dádiva ao materialismo de Karl Marx. Essa noção ampla de troca como infraestrutura das relações, apesar de, em geral, rejeitada pelo marxismo ortodoxo, restrito a determinações dos modos de produção, remete à forma como Marx empregava o conceito de metabolismo (stofwechsel), que pode ser mobilizado para pensar tanto as relações entre humanos, como entre humanos e não humanos, e que estão sempre imbricadas. Segundo sugere Viveiros de Castro (2021), a proposta de Karatani o aproximaria da antropologia de Mauss, Lévi-Strauss, Sahlins, Strathern et al., de um modo que a vertente marxista da disciplina ou mesmo Deleuze e Guattari jamais puderam fazer.
Vê-se nessa abordagem uma possibilidade interessante em ser explorada por permitir conexões entre diferentes modos de relação nas distintas formações sociais existentes. Esse fundo metabólico comum nos possibilita entender o regime relacional indígena como sendo, a um só tempo, uma recusa a se deixar homogeneizar pelo regime relacional capitalista e um antídoto a sua deriva ambiental suicida, pois pressupõe uma dependência intrínseca entre todos que estão em relação, e explicita a importância de compensar as disparidades excessivas entre os sujeitos nas trocas, articulando, além do mborayvu, as relações indígenas de maestria e predação, conforme será indicado adiante.
Antes de seguir, é importante enfatizar que a noção de troca aqui aplicada vai além daquela circunscrita aos estudos dos sistemas de parentesco, mas sim tendo em mente todo tipo de circulação de elementos em diferentes escalas, e cuja denominação poderíamos ampliar para um metabolismo cosmopolítico. Abarcando, dessa forma, desde caças e coletas na mata, plantio e troca de cultivares e presentes, agressões, alianças, contaminações, casamentos e até a troca de corpos e espíritos no jogo cosmopolítico. Tal dinâmica fica ainda mais explícita na concepção guarani, assim como na de diversos outros povos indígenas, que entende que não há nada que seja, de partida, um objeto totalmente dessubjetivado, sem um sujeito que o anime.
Como me dizem na aldeia, se algo existe nesta terra, é porque tem alguém, alguma subjetividade que cuida, que anima essa existência, mesmo esse algo não sendo o que entendemos por ser vivo. Tudo tem seu “espírito-dono”, seu ija. Podem ser as pedras de um rio, um lugar ou região; um humor ou sentimento, como o ciúme ou a preguiça; um saber, como a enganação. Logo, se tudo tem um ija, toda circulação de elementos pressupõe uma relação com outros sujeitos. E o contrário também seria verdade: toda relação implica alguma troca, algum fluxo entre os envolvidos na relação que os afeta mutuamente. Mas há diversos modos de relação e que vão variar segundo o grau de reciprocidade, no sentido de a relação ser mais ou menos recursiva, mais ou menos simétrica em sua dupla afetação. Essas variações de modos e simetrias nas trocas, por sua vez, produzem distâncias políticas, expressas no parentesco e em relações de aliança ou agressão. Mborayvu, assim, seria um dos modos de circular elementos, caracterizado por produzir uma aproximação, em contraposição a outros11.
Voltando à tradução de mborayvu por “amor”, ao aplicar essa perspectiva de generalizar as relações em termos de modos de troca, o sentido da palavra pode variar completamente de acordo com a relação de troca dominante em cada caso. Poderíamos dizer que no mundo não indígena em que dominam as trocas de mercadoria, como enfatiza Federici (2019), aquilo que chamam de amor é, na verdade, trabalho não pago12.
No mundo indígena, e no caso aqui, guarani mbya, o mborayvu como “amor” pode ser entendido como um afeto que ativa um modo de compartilhar específico fundado numa dádiva da qual não se exige nem tampouco se espera uma contradádiva, isto é, uma dádiva cujo retorno se converte na própria relação. Mesmo o amor cristão, sugere Karatani ([2010] 2014: 145), se lido no contexto dos momentos fundacionais da religião, o cristianismo primitivo, não é uma questão limitada aos “sentimentos do coração”, mas um modo específico de troca que ampliava o coletivo, baseado no compartilhamento mútuo.
O mborayvu enquanto amor seria uma forma de compartilhamento que reduz o imperativo da reciprocidade ao limite. Dessa forma, a reciprocidade, apesar de baixa, retorna por meio do movimento de alguém que retribui o que recebeu passando a fazer parte do grupo da liderança que pratica o compartilhar do mborayvu. Quais seriam, assim, os efeitos políticos desse modo de troca?
Há uma abordagem teórica recente que pode nos ajudar a entender o efeito do mborayvu em termos políticos, no sentido sugerido por Latour (2005) de política como arte de conformação e dissolução de coletivos. Trata-se do esquema de generalização proposto por Perrone-Moisés (2015) de pensar a ação política indígena variando entre a função-anfitrião e a função-guerreiro, festa e guerra. O jogo aqui é o da produção de diferenças na composição de coletivos, que define espaços sempre relativos de interior e exterior. A função-guerreiro é produtora de relações de exterioridade, isto é, atua na distinção entre coletivos por produção de distanciamento e inimizade; já a função-anfitrião opera na criação de relações de interioridade, isto é, expande o coletivo por meio de relações de aproximação e de incorporação ao grupo. Ambas atuam produzindo uma boa distância para cada caso.
Em termos de troca, a dádiva sem obrigação oferecida pela liderança anfitriã que pratica o mborayvu expande seu coletivo por meio da adesão daqueles que a recebem, mas isso não implica uma dissolução das diferenças, um reino da identidade estável. As relações de alteridade seguem operando no interior do grupo; o que há é uma expansão de um interior de heterogeneidades. Não existe, assim, em termos de produção de diferença, uma prerrogativa das relações de exterioridade marcadamente mais explícitas, associadas à guerra e à predação, sobre aquelas voltadas para a reprodução da vida no interior dos grupos. Acredito que essa oposição pode deixar de ver que o que chamamos de interior está repleto de relações de alteridade e que a própria categorização do que é interior e exterior ao grupo é extremamente instável e relativa a distintas escalas e circunstâncias. É, afinal, a instabilidade o que constitui esse jogo. O que varia é a direção dos vetores produzidos por cada função. Há produção de diferenças tanto por meio da função-guerreira, como por meio da função-anfitriã com a expansão da diversidade do grupo.
PREDAÇÃO, COMPENSAÇÃO E SIMBIOSE
Antes de seguir, é importante nos voltarmos para considerações mbya sobre o polo relacional oposto ao do mborayvu, o da predação. Há um episódio em que uma grande anta havia caído numa armadilha de caça na mata, mas permaneceu viva imobilizada no laço (nhuã) da armadilha. Fomos em muitos até o local e, apesar de alguns ficarem consternados diante da cena, o ancião mbya ali presente nos advertiu para ninguém ter pena, porque além dessa afecção retardar a morte e aumentar o sofrimento da anta, ela seria nosso alimento, do qual nossos corpos precisavam.
A carne da anta foi compartilhada entre famílias de diferentes aldeias. Tudo dela foi aproveitado. Mas as lideranças depois indicaram que, por um tempo, não deveriam mais ser feitas armadilhas para antas na região dessa aldeia. O que me parece fundamental nesse caso é que, se para eles a predação é uma relação inevitável na dinâmica de reprodução da vida dos sujeitos e seus coletivos nessa terra - ou seja, a continuidade de um corpo e sua distintividade se realizam sob o custo da distintividade de outro corpo13 -, a predação é, então, por essa mesma razão, uma troca acentuadamente assimétrica, e isso impõe cuidados para que essa desproporção não coloque em xeque a própria continuidade das relações entre os coletivos. Em casos de excesso, será necessário compensá-la, vão dizer os Guarani.
Caçar por meio de armadilhas é, para os Mbya, uma forma mais consentida de caça, pois é previamente negociada com os espíritos-donos - ija kuery - que zelam por cada espécie. Quando um animal cai na armadilha, é porque de alguma forma isso já foi negociado ou compensado, está consentido por parte desses sujeitos outros que são os ija. Essa negociação expressa um modo de manter alguma medida na relação de predação. Se a caça é feita de modo continuamente exagerado, seja por uma agressividade ou frequência desmedida, a reciprocidade vai ressurgir sob a forma da vingança, que em mbya se diz jepy, configurando assim uma espiral de compensações.
Um ancião ao descrever a vingança da divindade Kuaray, o Sol, sobre as onças originárias que haviam matado sua mãe, assim me disse: Ojepy oxy ombokovia, que poderíamos traduzir por “Foram trocados por vingança ou compensação à sua mãe”. A vingança, portanto, é uma forma de restituir a reciprocidade nas relações de predação de modo a garantir a continuidade da relação entre os coletivos. Esse é o papel da diplomacia cosmopolítica das divindades e xamãs, que por vezes também lançam mão de agressões compensatórias para não permitir que um acúmulo demasiado de predações por um mesmo coletivo possa comprometer a dinâmica do sistema de relações.
Nesse aspecto, é um dado marcante o fato de as relações comerciais serem expressas pelos Guarani Mbya pela mesma raiz verbal do termo que é utilizado nas relações de vingança (-jepy, vingar-se). Hepy se diz de algo que é caro, ou seja, que tem alto custo compensatório. Mbovy tu hepy kova’e? (Quanto custa isso?) Nda’epyi (não é caro). Para os Guarani, então, há uma equivalência entre o idioma da vingança da predação e o da troca de mercadorias. Tanto a guerra e a vingança, como a troca comercial, para os Mbya, reiteram relações políticas de inimizade ou distanciamento, o que inclui relações com alguns coletivos de espíritos-dono e os jurua, os não indígenas.
Creio que é oportuno explorarmos mais analogias com relações conforme descritas pela biologia, como tem sido feito nos estudos vegetais da antropologia (Britos; Chizzolini; Pitombo, 2021). Nesse sentido, seja uma aldeia, seja um ecossistema mais amplo de uma floresta, uma imagem interessante para pensar as relações marcadas pelo mborayvu é a do corpo-território, que nesse caso pode também ser entendido como os seres holobiontes14: um espaço compartilhado ou conjunto composto por uma heterogeneidade de sujeitos estabelecendo entre si uma variedade de interdependências e que poderíamos encontrar em diferentes escalas. Há as grandes escalas da cosmografia mbya das esferas celestes e da Terra, ou a escala da ecologia de uma floresta situada na plataforma terrestre, passando depois pelos corpos vegetais e animais, incluindo humanos, que possuem em si uma série de outros seres, sejam bactérias e fungos, sejam subjetividades outras, e até a escala das células: as imagens de células eucariontes em microscopia eletrônica lembram uma floresta de tão diversa - um interior repleto de heterogeneidades. Ao que parece, nem mesmo o DNA está a salvo em uma identidade estável, repleto de trechos contaminados lateralmente por seres outros, e para além dos vírus15.
Nesse aspecto, é interessante que a biologia evolutiva aponte a hipótese do surgimento das primeiras células eucariontes a partir da incorporação simbiótica de outro ser unicelular, do que viriam a ser organelas como a mitocôndria, como um dos momentos-chave da evolução. A relação que ali poderia ser de predação foi alternada para uma incorporação simbiótica (Martin; Müller, 1998)16. Nesse modo simbiótico de incorporação dos elementos pertencentes a outro ser unicelular, isto é, um outro conjunto distintivamente organizado, não há dissolução da diferença constitutiva desse conjunto que é incorporado, como seria no caso de um organismo predar e digerir outro, mas sim a criação de um novo conjunto cuja diversidade e complexidade interna aumentam. É a expansão de um interior heterogêneo que, por sua vez, não produz uma identidade estável: “Entende-se simbiose como a captura recíproca, como dupla captura […]. O que bem permite pensar em um dispositivo que se insurge contra ou que conjura o princípio da identidade” (Lima, 2021: 115).
“Cellular landscape cross-section through a eukaryotic cell.” (imagem: Evan Ingersoll & Gael McGill)
FLORESTAS CONTRA A PREDAÇÃO ENTRÓPICA
Ao enfatizarem o mborayvu e exercerem essa função-anfitrião atraindo mais parentelas para o grupo, essas lideranças parecem estar buscando justamente isto: aumentar a diversidade e complexidade interna da aldeia como modo mais eficaz de compartilhar o território e as relações que vêm de fora.
É nesse sentido que os novos canteiros de restauração agroflorestal feitos nas aldeias são boas analogias desse processo, pois compartilham abundância em função do incremento e manejo de sua diversidade. Não é por acaso que eles têm sido implementados de forma intensa na tekoa Kalipety e que o trabalho das lideranças dessa aldeia possa ser entendido nessa mesma analogia, como quem conduz a semeadura e o manejo de seus habitantes de maneira a garantir que a vida comunitária, por meio de um aumento de sua diversidade, tal qual uma floresta, seja mais abundante e compartilhada. Ou seja, a expansão do interior do grupo via mborayvu favorece o compartilhamento por meio da diversidade interna do coletivo que aumenta, diminuindo a vulnerabilidade do mesmo.
Assim, planta-se coletivamente com o objetivo de produzir uma abundância que possa ser generosamente compartilhada entre todos, reduzindo cada vez mais a dependência da comida dos mercados jurua. Ao mesmo tempo, o modo como se planta expressa o princípio do mborayvu como expansão da diversidade de um conjunto, conforme o exemplo da floresta. É dito por alguns mais velhos guarani que a floresta é a roça das divindades, roça dos Nhanderu (Nhanderu remity): Se “Nhanderu remity já tinha de tudo, todas as coisas, jurua remity tem uma coisa só, só uma, e só com uma coisa a terra não se sustenta e nada se sustenta, nem o trabalho se sustenta, está sempre dependendo de outras coisas, de máquinas, venenos, dinheiro e de outros alimentos” (Ladeira; Cossio, 2021).
O modo de plantio hegemônico no agronegócio, a monocultura, a cada novo ciclo, depende de uma quantidade maior de insumos para manter a fertilidade do solo. E a produtividade é baseada numa diminuição brutal da biodiversidade na área plantada, exterminando toda a diferença sob a alcunha de “pragas”. Já um plantio que imita o roçado de Nhanderu, a floresta, faz com que, a cada novo ciclo, seja necessário um aporte menor de insumos, pois é o próprio aumento da biodiversidade do plantio que se torna pouco a pouco o fundamento de sua fertilidade. Para falarmos como Almeida (2016), é o desenvolvimento entrópico em oposição ao “evolvimento da diversidade”.
A crítica guarani e de tantos outros povos, portanto, é extremamente perspicaz no modo como lê essa questão do aumento da entropia produzida pelo mundo capitalista e reage a ela. Trata-se de uma crítica que é traduzida em termos práticos pela condução política das lideranças nos próprios territórios, buscando expandir a diversidade da vida compartilhada à imagem das florestas próximas a suas aldeias, que têm na alta sociobiodiversidade fator-chave para sustentar uma variedade de diferentes seres e em grandes escalas17.
Assim, o esforço atual dos Guarani em praticar o mborayvu não é uma negação ou supressão da guerra e da predação em seu xamanismo, mas uma forma de dinamizar a relação entre esses polos em um mundo tomado pela predação excessiva dos jurua. Aqui, talvez, caiba um importante adendo, uma oposição em como a relação de predação é realizada: se é verdade que “a incorporação de outrem constitui certamente o pano de fundo do mundo dos viventes” (Taylor; Viveiros de Castro, 2019: 797), no contexto indígena a predação é concebida e praticada como uma forma de se transformar por meio da relação com a exterioridade, de modo a incorporar a diferença oriunda de outrem em si; já no mundo não indígena dominado pela relação de mercadoria, trata-se justamente do oposto, de praticar a predação como uma incorporação que anula a diferença do outro, tomando-o apenas como “recurso” ou “matéria-prima” dessubjetivada, dissolvendo-o em termos quantitativos de valor de troca, um equivalente universal que tende a se acumular indefinidamente como capital, idêntico a si mesmo. Nesse processo, transforma progressivamente o próprio exterior de seu sistema - e do qual depende para se reproduzir - em ruínas, resíduos aleatórios de calor e matéria.
Contudo, como dissemos antes, não é possível que uma agressão se acumule indefinidamente. A vingança, a compensação do jepy, age para que a predação excessiva não comprometa todo o sistema de relações que ocorrem num dado território, um espaço compartilhado entre uma diversidade de sujeitos em interdependências. O princípio subjacente das relações entre os diferentes sujeitos que habitam o mundo, segundo descrevem os Guarani Mbya, é que todos os viventes (e não viventes) conformam uma rede ampla de relações de dependência entre diferentes, que se afetam mutuamente. Uma interdependência não apenas moral, mas profundamente concreta. Logo, do ponto de vista guarani (e indígena), o problema do modo relacional capitalista é que ele não possui como pressuposto a dependência intrínseca entre todos que estão em relação e, portanto, essa agressão desmedida e contínua que ele gera está acumulando uma vingança quase que incompensável.
Certa vez, em um encontro de saberes na universidade, seu Luiz Euzebio, um ancião mbya convidado a participar de uma mesa, não se furtou em aproveitar a ocasião para criticar a ciência jurua e ironizar a universidade: “De que adianta? Estuda, estuda, estuda… e faz a bomba atômica!”. Para além do caráter provocador da fala, levando em conta o contexto, ela possui um duplo sentido crucial em sua crítica: ele poderia querer dizer que se estuda tanto para, no final das contas, possuir conhecimentos e produzir tecnologias destruidoras como a bomba atômica; ou que, apesar de se estudar tanto, de saber dos perigos e do que não se deve fazer para destruir o mundo, ainda assim, se faz a bomba18. Dessa forma, tal provocação guarda uma percepção pungente enunciada pelo ancião: a verdadeira ciência de um povo não é a do discurso, das palavras soltas, dos livros acumulados, mas aquela que se verifica em suas ações. Ou seja, a ciência dos jurua que de fato age no mundo é aquela pressuposta em seu modo relacional dominante, e essa, para falarmos como Bateson ([1971] 1987), é “epistemologicamente incorreta” para seu próprio mundo19.
Nesse sentido, a prática do mborayvu nas aldeias mbya e seus modos de relação de interdependência com os demais seres com quem coexistem buscam compensar e desarmar o excesso de predação do povo da mercadoria, como denomina Kopenawa (2015), impedindo que a lógica capitalista de valorização do valor se torne majoritária, mesmo em um território como a TI Tenondé Porã, tão próximo a uma megalópole como São Paulo, e onde os Guarani Mbya seguem mantendo sua língua e xamanismo apesar dos já quinhentos anos de contato e violência colonial. Trata-se de uma capacidade nada trivial e uma lição renovada do que também pode ser a política, um modo de melhor compartilhar a vida por meio da expansão e manejo de sua diversidade: o mborayvu.
Por fim, dizem físicos que os sistemas vivos são únicos entre os sistemas naturais porque eles parecem resistir à segunda lei da termodinâmica, a do aumento da entropia, persistindo como sistemas limitados e auto-organizados ao longo do tempo (Ramstead; Badcock; Friston, 2018). Dizem “parecem resistir” porque na verdade há sempre um custo nessa resistência, equacionado na energia livre que é incorporada de fora e na entropia que é exportada ao exterior. Mas se essa “predação entrópica” é uma inevitabilidade termodinâmica, existem, como vimos, formas de controlar seu acúmulo excessivo e alternativas nos modos de incorporação do exterior. Dessa maneira, o mborayvu pode ser entendido como um saber relacional fruto da “ciência do concreto” das chamadas “sociedades frias”, como dizia Lévi-Strauss, uma metáfora que hoje tem novas e evidentes ressonâncias. Essa ciência possui, assim, uma sabedoria material20 - e não apenas metafísica - para seguir compartilhando a vida e desdobrando sua diversidade como antídoto a um mundo sendo predado pelo próprio caos que produziu.
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1
Tive oportunidade de apresentar algumas ideias presentes neste texto em diferentes ocasiões, entre elas, o seminário que deu origem a este Dossiê e a XIV Conferência da Salsa. Agradeço essas primeiras interlocuções que incentivaram tais reflexões a seguirem adiante, especialmente a Anai Vera Britos, Bruna Keese, Diógenes Cariaga, Joana Cabral de Oliveira, Lauriene Seraguza, Leonardo Braga, Renato Sztutman, e na aldeia, a Tiago Karaí, tenaz praticante do mborayvu, e a Jera Guarani, agricultora generosa de roças e pessoas.
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2
Na argumentação de Pierri (2018), o excesso de predação do mundo atual para os Guarani é um dos fatores que devem ser levados em conta na complementaridade das práticas de seu xamanismo: “se os Guarani de fato estão empenhados nisso que o autor quer chamar de uma ‘ética do amor’ (Fausto, 2005: 404) é porque vivem num mundo no qual a predação está por toda parte, é porque ‘há muita maldade nesse mundo’, como gosta de sintetizar um de meus interlocutores” (Pierri, 2018: 223).
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É importante destacar que, em geral, as lideranças guarani atuais não encarnam de maneira pura cada um desses polos ou funções, de liderança viajante ou liderança de aldeia. É possível conjugar diferentes momentos e pesos desses movimentos, tendendo mais para um ou para outro: não é incomum encontrarmos casos de caciques que se estabilizam no cargo quando logram monopolizar as cada vez mais necessárias relações com o mundo dos brancos por meio da apropriação de saberes ligados à tecnocracia estatal, que os demais de sua aldeia não possuem e, por isso, aceitam sua posição, ainda que muito lhes desagrade. Desenvolvi mais extensamente essa oposição entre os polos da liderança que viaja e da liderança que concentra sua ação na aldeia, e o efeito da prática ou ausência do mborayvu na dinâmica do parentesco, em Keese dos Santos (2021b). Aqui, trata-se de pensar, dentro de uma lógica “presentacional”, isto é, uma política aterrada no território e estranha à separação entre representantes e comunidade, como a prática do mborayvu pelas lideranças promove o aumento da heterogeneidade do grupo.
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Outro dado relevante sobre o modo de plantio é que 86% das roças da TI analisadas no levantamento eram compostas por policultivos (mais de uma espécie de cultura anual presente por roça).
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Esse modo de organização, que entre outras coisas prescinde da figura do cacique e parece ser exitoso no caso da TI Tenondé Porã, não necessariamente é o melhor modelo para outras aldeias guarani em outras regiões, como as menores e mais afastadas do mundo não indígena, que podem contrastá-lo com outros modos, servindo de contraponto complementar e sugerindo outras soluções para se viver e se diferenciar como Guarani. Para mais reflexões sobre a formação do conselho de lideranças na TI Tenondé Porã, ver Keese dos Santos (2019).
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“Casa de reza”, principal espaço do xamanismo guarani mbya.
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7
A última ameaça ocorreu em dezembro de 2021, e motivou um amplo processo de apoio entre as comunidades da TI e parceiros não indígenas, ver em: https://periferiaemmovimento.com.br/territorioindigenaresiste/.
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8
Diversos trabalhos, como Heurich (2011), Pereira (2014) e sobretudo Pierri (2018), questionaram com afinco os argumentos de Fausto sobre essa suposta “desjaguarificação” dos Guarani atuais. E mesmo entre os autores clássicos não é difícil encontrarmos passagens que problematizam tal interpretação. Em Cadogan ([1959] 1997: 234), a história de Capitán Chiku descreve como seu sogro, depois de alcançar a maturação divina do corpo, retornava continuamente de sua morada divina para vigiar os exercícios de seu genro e “pôr à prova seu coração” (oipy’ara’ã). O sogro emula a ação agressiva de um sujeito não humano que habita a terra, fazendo com que o princípio vital de uma onça se apossasse do corpo de seu neto. Ao fazer isso, sua real intenção era criar as provações necessárias para que seu genro também atingisse a maturação corporal divina, o aguyje. Também Pereira (2014: 202), ao analisar essas narrativas, sugere uma aproximação entre provação e predação: “não é o herói que é alimentado por uma divindade quem passa à condição de imortal, mas justamente aquele que efetua uma passagem através das ações mortíferas e predatórias do sogro”.
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Em uma pesquisa atualmente em curso, Paulino (2019) analisa os diversos contrastes com o modo hegemônico do mundo não indígena na compreensão e uso do dinheiro pelos Guarani Mbya: apesar de o utilizarem cotidianamente, recusam continuamente uma adesão à lógica de acumulação capitalista.
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Karatani (2014) organiza seu esquema descritivo em quatro principais modos de troca: o da dádiva e contradádiva, dominante nas sociedades contra o Estado; submissão e proteção, dominante nos Estados pré-capitalistas; troca de mercadorias, dominante nos Estados-Nações capitalistas; e um quarto que seria a restituição do primeiro em nova forma, de uma dádiva não recíproca.
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11
Sahlins ([1972] 2003]), Descola ([2005]2023) e Graeber (2010) propõem esquemas de comparação de modos de troca a partir de variações no grau de reciprocidade ou hierarquia delas. Ainda que essas variações e gradientes sejam demais complexas para compararmos extensivamente aqui, as noções de “compartilhamento agregador (pooling)”, “dádiva sem retorno” e “comunismo de base”, que cada um desses três autores, respectivamente, posiciona em um dos polos de seus esquemas, estão próximas da descrição que estamos fazendo do mborayvu como modo de relação. Também Karatani ([2010] 2014) busca distinguir “a dádiva pura” da “dádiva recíproca” (pure and reciprocal gift giving), diferenciação que também parece operar em alguma medida no mborayvu em comparação com outras variantes de troca de dádivas.
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12
O trabalho não pago de (re)produzir a mercadoria “força de trabalho”.
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13
O que em termos termodinâmicos poderíamos dizer da necessidade de um organismo exportar entropia para seguir vivo. Voltaremos a isso mais adiante.
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14
Lima (2021) utiliza a noção de holobionte e a percepção de que jamais fomos indivíduos à luz das relações simbióticas para ecoar o grito face à catástrofe etoecológica produzida pela construção da usina de Belo Monte na Volta Grande do Xingu.
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15
A descoberta de um pulgão que realiza fotossíntese tem como principal hipótese a transposição de genes de uma espécie vegetal que, de algum modo, foram incorporados pelo pulgão (transferência lateral durante a evolução). Ver Valmalette, et al., 2012.
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16
Tal hipótese foi aventada inicialmente por Lynn Margulis, em 1967, como a teoria endossimbiótica (Sagan, 1967), e de certa forma ecoa debates políticos como de Kropotkin ([1902] 2009), sobre a cooperação e o apoio mútuo como um princípio presente na evolução dos seres vivos e que se expressava também socialmente. O mborayvu guarani, nesse sentido, pode ser um exemplo de um modo político que atua nessa direção e em confluência com esse princípio da vida em geral, do aumento da diversidade (e complexidade) via cooperação.
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17
Em outra chave conceitual, mas que possui diversas conexões com a ideia do mborayvu como promotor da diversidade (e complexidade) em um sistema de relações, ver o texto: “O problema da escala no anarquismo e o caso do comunismo cibernético”, da física matemática Matilde Marcolli, sob o pseudônimo de Apolito (2020).
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18
Tendo habitado durante um período de sua vida em uma aldeia fluminense próxima à Usina Nuclear de Angra dos Reis, o perigo atômico é uma questão marcante para seu Luiz, além de ressoar na cataclismologia guarani, que prevê um possível final do mundo tomado pelo fogo. Mas a “bomba” poderia referir-se a diversos outros cataclismos antropogênicos cuja gênese e deriva a ciência jurua paradoxalmente compreende, porém a sociedade como um todo parece incapaz de agir de modo a desarmar a reação em cadeia que os deflagram, como o aquecimento global e a nova corrida armamentista para se chegar à inteligência artificial geral: há um conhecimento sofisticado e erudito de que se caminha em direção ao abismo, mas não se sabe, na prática, como parar de caminhar em sua direção.
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19
Em artigo em fase de publicação, Pereira (no prelo) busca aplicar o arcabouço conceitual batesoniano sobre o regime de relações animistas dos Guarani Mbya, sobretudo aquelas derivadas das relações de maestria, demonstrando como eles estabelecem relações de caráter misto com o meio ambiente, isto é, relações simétricas e complementares, garantindo, assim, uma cismogênese mais reduzida. Trata-se de uma epistemologia em contraste com a praticada pelo mundo não indígena, que tende a escalar em suas relações de competição com o meio ambiente, revelando-se uma epistemologia mais “incorreta”.
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20
A “espiritualidade”, termo frequentemente mobilizado pelos Guarani Mbya para explicar aos jurua a origem de sua força e sabedoria, tem como objeto privilegiado de atenção, durante as concentrações em cada fim de tarde na opy, aspectos absolutamente concretos do metabolismo cosmopolítico que põe diversos seres em relação. E ainda que muitos desses seres não sejam visíveis, nem por isso são menos materiais, o que nos leva a uma última provocação, à luz das reflexões destas páginas: não seria essa espiritualidade, em certo e profícuo sentido, mais profundamente materialista do que julgava nossa vã filosofia política?
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FINANCIAMENTO:
Não se aplica.
Editado por
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Editor-Chefe: Guilherme Moura Fagundes
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Editora-Associada: Marta Rosa Amoroso
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Editora-Associada: Ana Claudia Duarte Rocha Marques
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
22 Ago 2023 -
Aceito
17 Maio 2024