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Teoria administrativa e pragmática da linguagem: perspectivas para problemas que afligem as relações entre acadêmicos e consultores, educadores e educandos

Resumos

Este ensaio busca uma interpretação conceitual que ajude a entender melhor as diferenças entre a produção acadêmica e a chamada literatura do mercado de consultoria em administração. Seu foco é teoria administrativa como linguagem. O desenvolvimento do tema acaba levando a outra questão fundamental: o uso de teoria administrativa nas escolas e situações de treinamento. A interpretação conceitual é encontrada no campo da análise pragmática do discurso, na forma não empírica como procede a filosofia da linguagem. O pensamento de Wittgenstein ocupa o centro da estrutura argumentativa do artigo e se faz completar por outros autores, como ele, hoje, amplamente referidos. A reviravolta pragmática (formular a compreensão a partir da ação lingüística e não de objetos conceptualizados) parece não ter chegado bem à discussão acadêmica sobre administração e gerência, paradoxalmente instâncias de ação. Em sua parte final, o texto faz reflexões aplicadas e apenas introdutórias sobre pontos onde afloram, mais preocupantes, os problemas de início referidos.

teoria administrativa; teoria no ensino de administração; relações acadêmicos-consultores; pragmática da linguagem em administração


This essay searches for an interpretation to help a better understanding of the differences between academic production and the so-called literature of consultancy market in business administration. It is focused on administrative theory as language. The development of the theme brings to other fundamental question: the use of administrative theory in schools and situations of training. Conceptual interpretation is found in the field of discourse pragmatics, in the non-empirical way the philosophy of language does. The thought of Wittgenstein is in the center of the argumentative structure of the article and is complemented by other authors, nowadays widely referred to, as him. The pragmatic turn (formulating understanding from linguistic action, not directly from conceptualized objects) seems not to have come to academic discussion on administration and management, which paradoxically are instances of action. In the final part of the text, applied and introductive reflexions are made on points where initially mentioned problems stand out more worrying.

administrative theory; theory in administration education; academics-consultants relations; pragmatics of language in administration


ARTIGOS

Teoria administrativa e pragmática da linguagem: perspectivas para problemas que afligem as relações entre acadêmicos e consultores, educadores e educandos

Pedro Lincoln C. L. de Mattos

RESUMO

Este ensaio busca uma interpretação conceitual que ajude a entender melhor as diferenças entre a produção acadêmica e a chamada literatura do mercado de consultoria em administração. Seu foco é teoria administrativa como linguagem. O desenvolvimento do tema acaba levando a outra questão fundamental: o uso de teoria administrativa nas escolas e situações de treinamento. A interpretação conceitual é encontrada no campo da análise pragmática do discurso, na forma não empírica como procede a filosofia da linguagem. O pensamento de Wittgenstein ocupa o centro da estrutura argumentativa do artigo e se faz completar por outros autores, como ele, hoje, amplamente referidos. A reviravolta pragmática (formular a compreensão a partir da ação lingüística e não de objetos conceptualizados) parece não ter chegado bem à discussão acadêmica sobre administração e gerência, paradoxalmente instâncias de ação. Em sua parte final, o texto faz reflexões aplicadas e apenas introdutórias sobre pontos onde afloram, mais preocupantes, os problemas de início referidos.

Palavras-chaves: teoria administrativa; teoria no ensino de administração; relações acadêmicos-consultores; pragmática da linguagem em administração.

ABSTRACT

This essay searches for an interpretation to help a better understanding of the differences between academic production and the so-called literature of consultancy market in business administration. It is focused on administrative theory as language. The development of the theme brings to other fundamental question: the use of administrative theory in schools and situations of training. Conceptual interpretation is found in the field of discourse pragmatics, in the non-empirical way the philosophy of language does. The thought of Wittgenstein is in the center of the argumentative structure of the article and is complemented by other authors, nowadays widely referred to, as him. The pragmatic turn (formulating understanding from linguistic action, not directly from conceptualized objects) seems not to have come to academic discussion on administration and management, which paradoxically are instances of action. In the final part of the text, applied and introductive reflexions are made on points where initially mentioned problems stand out more worrying.

Key words: administrative theory; theory in administration education; academics-consultants relations; pragmatics of language in administration.

UMA CESTA DE PERGUNTAS (OU PROVOCAÇÕES?)

Imagine-se a cena. Em alguma escola de administração, preparando a bibliografia de sua disciplina, o professor (Ph.D.) de Aprendizagem Organizacional hesitou: "Devo ou não incluir a pequena coletânea Gestão do Conhecimento (editada pela Harvard Business Review, revista hoje não considerada acadêmica)? Que dirão meus colegas de ANPAD?". Semelhante dúvida teve seu colega de Estratégia Empresarial ao olhar, em sua estante, o novo lançamento de C. K. Prahalad e M. Hammer, gurus de negócios. Um terceiro, porém, manteve, seguro, Organizações Modernas, obra de Stewart Clegg, reconhecido acadêmico, em sua bibliografia de Teoria Organizacional.

Se essa cena existe, estariam os professores apenas conciliando estilos? Está certo que ambientes em que se cultiva o conhecimento científico, como escolas e programas de pós-graduação, admitam a chamada literatura de mercado, produzida para atender necessidades de uma prática corrente? Seria preciso traçar linhas divisórias e características a cada tipo de literatura, preservando o conceito de metodologia científica e a estabilidade diferenciada do conhecimento que esta produz? Esse, o primeiro conjunto de perguntas. Não estamos, por certo, apenas diante de uma questão de estilos literários, em que certamente os textos leves, que trocam citações por casos de sucesso ou insucesso, conquistam a preferência dos estudantes.

Agora, mais um par de perguntas, sem dúvida ousadas, sobre o lugar da literatura de consultoria. Passaria pela cabeça de alguém, incluindo os próprios consultores, que, diante da qualidade lamentável da conceituação que compõe muitas técnicas gerenciais, este conhecimento elaborado sob a ótica da decisão e formulado pragmaticamente, tivesse o seu próprio espaço epistemológico? Ele poderia, institucionalmente falando, ter os próprios caminhos e métodos de desenvolvimento? Por certo que não, dir-se-ia; todo conhecimento válido se regula pela ciência, e o discurso de consultoria é basicamente uma retórica, visa a convencer. Será tão simples assim? Há décadas, os argumentos de Barchelard (1971) e, após ele, de muitos que romperam com o modernismo, mostram que a ciência também é, ela própria, uma retórica, fechada, aliás, em suas próprias (e excludentes) regras (Lyotard, 1984).

Haveria outra pergunta, focando agora os currículos das escolas de administração: podemos continuar sustentando que a fórmula correta nas escolas deve ser uma composição lógica verticalizada, que começa pelo embasamento dos princípios e teorias científicos e se completa pela aplicação prática e circunstancial feita, naturalmente, pelos autores-consultores? Na década de 70, Schein (1973) defendeu com sucesso esta posição, que, depois, Schön (1983, p. 21-37) chamou criticamente de "racionalidade técnica" e que, de fato, informou a grande maioria de nossos currículos de graduação em administração. Mas hoje, cada vez mais, clama-se pela reforma deles (Fischer, 2000), e há anos as pessoas estão insatisfeitas com a educação para a gerência (Thomas, 1997; ASAC-IFSAM, 2000). Então a fórmula de composição curricular "primeiro embasamento teórico, depois aplicação profissional", também entra em discussão.

Enfim, fica ainda uma pergunta atroz para a estratégia do ensino, até então entendida como simplesmente caudatária dos dois tipos de conhecimento, acima referidos. Existe ou não um discurso tipicamente pedagógico da teoria administrativa (pois que dezenas de manuais estão sendo editados todo dia)? Bastaria levar a quem se apresentasse à escola a própria teoria, científica ou profissional, tal como foi produzida? Caso sim, a essência do conteúdo do ensino não é bem um problema de professores: cabe-lhes a instrumentalidade. Com pequeno adestramento na comunicação, o melhor cientista passa a ser o melhor professor. A escola é apenas um centro de distribuição seletiva do "estoque internacional de conhecimento", e os currículos são arranjos habilidosos e funcionalmente bem direcionados. Caso não, o que orientará, no caso, "a transposição didática do saber" (Chevellard, 1985)? Poder-se-ia advogar para a escola uma ação lingüística genuinamente própria? Nesse caso, apenas o bom arranjo curricular não chegaria à verdadeira questão do ensino de teoria nas escolas, e a prática de sua simples transmissão, com manuais em sala de aula, talvez tivesse seus dias contados.

Todas essas questões se voltam para a teoria administrativa, para cuja diversidade este artigo procura uma explicação. A ótica é a da filosofia da linguagem, onde é feita opção pela pragmática da linguagem, tomando apoio principalmente em Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951). O que se afirma é que, sob tal ótica, a diversidade é intrínseca, devendo originar estatutos diferentes para cada um dos discursos: o acadêmico-científico, o da prática de consultoria e o pedagógico, nas escolas de administração.

Na seção a seguir, destaca-se a concepção básica sobre linguagem, que permitirá a compreensão do restante do texto. Depois, a próxima seção, central no artigo, iniciará a discussão estruturada para procurar, em um campo que farto trabalho científico e filosófico no século passado credencia, resposta mais ampla e consistente, capaz de suportar desenvolvimentos práticos. Na seqüência, o texto apenas tangencia os problemas inicialmente levantados no mundo da teoria administrativa.

DE INÍCIO, UMA IDÉIA: NÃO EXISTEM TEORIAS, SÓ EXISTEM PRÁTICAS TEÓRICAS

"A linguagem humana tem sido concebida, no curso da História, de maneiras bastante diversas, que podem ser sintetizadas em três principais: a) como representação ('espelho') do mundo e do pensamento; b) como instrumento ('ferramenta') de comunicação; c) como forma de ação ou interação" (Koch, 1998, p. 9).

Seguindo a autora na competente obra introdutória à lingüística contemporânea, onde ela adota a terceira dessas posições, a idéia prévia à compreensão deste texto é a seguinte: a linguagem, toda linguagem, mesmo a de textos teóricos, é atividade lingüística, é ação (por isso, o adjetivo pragmática), ação de natureza interativa, algo humano e social, por constituição e referência, mesmo quando exercitada individual e privadamente. E mais: ela surge e se define, por primeiro, contextualizada. Não há conhecimento e linguagem, apesar de significarmos ora um ora outro aspecto do mesmo fenômeno social. A grande virada lingüística do início do Século XX, à qual se seguiu a virada pragmática, poucas décadas depois (Oliveira, 1996), consiste exatamente na compreensão (descoberta) do caráter transcendental da linguagem, isto é, que a linguagem é inevitavelmente anterior ao tratamento qualificativo ou analítico de qualquer objeto, mesmo dela própria, tomada como objeto; que qualquer conhecimento sobre um objeto, supostamente possível ou existente (inclusive a própria linguagem), só pôde até hoje e só poderá ser feito nos limites da linguagem, ou seja, "praticando-se linguagem", mesmo que estejamos criando e aperfeiçoando constantemente linguagens novas. Como defendeu Gadamer (1975): estamos absolutamente imersos em linguagem. O espantoso, no entanto, é que, por muitos séculos, este fato primeiro do conhecimento humano, talvez de tão próximo, constante e evidente tenha sido mal-entendido pela reflexão sistemática.

É indispensável destacar essa dimensão lingüística ativa, quando tratamos do discurso teórico sobre administração e mesmo da aprendizagem verbal nas escolas e nas empresas. "Editar pensamentos", dizer - tanto para si próprio quanto para outros, tanto por gestos e expressões corpóreas quanto por símbolos e palavras - é um fazer, uma ação como qualquer outra, só que significante em si mesma. Então, no nosso caso, teoria - qualquer teoria - é uma prática teórica, uma ação com intencionalidade, não uma emissão de significados (teóricos) puros (duas coisas supostamente distintas: a emissão e os significados). Isso ficará mais claro adiante. De passagem, conclua-se: perde sentido o famoso dualismo teoria versus prática, referindo-se o segundo desses termos à compreensão única que se tem da situação administrativa, quando nela envolvido. Trata-se aí de duas práticas, e, portanto, os praticantes de linguagem nas duas situações têm bases comuns para se entender!

O QUE É A NOSSA ATIVIDADE LINGÜÍSTICA?

Esta seção é centrada no pensamento de Wittgenstein(1 1 Toma-se aqui o que os autores convencionaram chamar de Wittgenstein II, para distinguir uma primeira fase de seu pensamento, no Tratactus Logico-Philosophicus (1921), alinhada com o positivismo lógico de B. Russell, G. E. Moore e Rudolf Carnap, contemporâneos e, os dois primeiros, mestres do filósofo, de uma segunda fase em que Wittgenstein repensou inteiramente suas convicções, as quais se encontram em duas obras póstumas (Investigações Filosóficas e Cadernos Azul e Marron). A própria vida de Wittgenstein, que fora, ainda jovem, inventor de modelos aeronáuticos, reflete o trauma desta mudança: ele abandonou sua Cátedra de Filosofia na Universidade de Cambridge, UK, e viveu afastado dos meios intelectuais vários anos, em trabalhos simples, como o de porteiro de um hospital e o de auxiliar de um laboratório de pesquisas. ), embora complementado com contribuições de Austin, Searle e Van Dijk, não só porque ele mais representa a virada pragmática da filosofia, mas porque se supõe adequado para explicar as questões de início postas. Antes, no entanto, por inspiração no próprio Wittgenstein, que declara ser todo o seu trabalho na obra Investigações Filosóficas (1936-1951) uma crítica radical à concepção tradicional, essencialista da linguagem - essencialista, porque supõe uma essência mental, real e distinta de sua expressão lingüística - traça-se um breve panorama explicativo desta concepção, que impregna a nossa cultura e determina alguns dos seus paradigmas.

Por Que Viemos a Separar Linguagem e Representações do Mundo?

O senso comum imagina que temos pensamentos ou idéias e palavras, conseguindo ou não com estas expressar aquelas de forma apropriada. Por isso mesmo, entende que dessa forma representamos coisas ou estados de coisas do mundo, da vida social e de nosso próprio interior. Quando assim pensamos, estamos diante de uma longa tradição cultural, que se reflete nas próprias instituições científicas (estuda-se a Língua tal como se faz para os objetos da Física, da Biologia e da Sociologia). A longa história dessa cadeia cultural, ponteada por pensadores argutos, tinha, de alguma forma subjacente, a pergunta sobre a significação do que dizemos com nossas expressões lingüísticas, especialmente as mais elementares, as designativas, pelas quais nomeamos e distinguimos objetos do nosso meio.

Platão pode ter sido um marco inicial nessa história, com sua teoria das formas puras e reais, ou idéias em si, objeto de percepção mental, de que tudo concreto no mundo participa, e se torna objeto de percepção sensorial. Ainda que, no conjunto, haja uma maravilhosa isomorfia entre as estruturas e sistemas lingüísticos e este mundo ilimitado ou imaterial das Formas (o tópos noetós), a linguagem é um instrumento (organon). Em Crátilo, ele ensina que as palavras ou signos só raramente representam bem as coisas (palavras onomatopaicas, por exemplo), mas representam as essências das coisas, que chamamos de seus significados. Reportam-se, pois, a outra instância, imaterial, porém real.

Para nós, ocidentais, no entanto, essa marca cultural passou a tornar-se ampla e de sérias implicações, quando Aristóteles, discípulo de Platão, procurou explicitamente fundar todo o conhecimento racional na distinção entre a palavra (lógos) e a coisa (ón), justamente para evitar o perigo que representava a escola sofística para o pensamento, por sua posição de indiferença assertiva em relação a qualquer verdade (interpretação de Aubenque [apud Oliveira, 1996]). Para os sofistas, que trabalhavam sempre no nível da atividade lingüística, valia a função persuasiva da linguagem, não artifícios lingüísticos fundamentadores da ciência e da filosofia como, afinal, fez prevalecer Aristóteles. Entre as palavras e as coisas, ele pôs a função significante do espírito humano como processo convencional, justamente o que diferencia os sons que o homem emite do que acontece com a linguagem natural dos animais. Nossa linguagem é um sistema de signos convencionados, ou seja, não há representatividade intrínseca da palavra em relação à coisa. E mais: é o espírito humano individual que produz o conceito, onde está a significação.

Aristóteles vai em frente. Temos nosso recurso natural para chegar a captar a estrutura ontológica do mundo (conhecê-lo como ele é); fazemo-lo pela lógica, instrumento universalmente válido, trabalhando-a sobre conceitos que signifiquem coletivamente as coisas, os conceitos abstratos. A lógica, de que faz parte a matemática, mesmo que sutil e insidiosa, é o grande instrumento de que dispõem a filosofia e a ciência experimental (desenvolvida por ele próprio, Aristóteles). A linguagem chega depois, para representar de forma adequada os conteúdos, e é partilhada com os outros homens. Isso, que se definia já no Século IV a.C., passou, no Século XVII, a fundar a ciência moderna. E tantos séculos de distância não dificultam hoje nos espelharmos, afinal, nesta filosofia.

Referindo-se ao processo aristotélico do conhecimento, diz Oliveira (1996, p. 33-34):

"na história do ocidente, sempre se questionou um ou outro aspecto isolado desse processo, conservando-se, porém, intocada a concepção de linguagem como algo secundário no conhecimento da realidade. [...] De modo geral, pode-se dizer que só o segundo Wittgenstein questionou radicalmente os fundamentos dessa concepção".

Nas primeiras décadas do século passado, o positivismo lógico fechou o ciclo do empirismo, trazendo para o centro da discussão epistemológica moderna a questão da linguagem. Que linguagem pode ser plenamente compatível e conviver com a prática do critério último de certeza, a verificação empírica? Frege trabalhara já esta questão com a lógica matemática; com Ayer, Mach, Russell, Carnap e o próprio Wittgenstein (na primeira fase), a formalização rigorosa de linguagem é o único caminho para responder àquela pergunta. A própria estrutura lógica da linguagem tem que se ajustar à estrutura do mundo, dos fatos, que se impõem a priori, e só assim ganhar sentido.

Wittgenstein: O Significado das Palavras é Seu Uso

Para ser bem entendido, o título desta seção talvez deva ser refraseado: usam-se palavras - assim como gestos corporais e pensamentos interiores - ao realizar certos atos, no caso, os significativos, e isso é linguagem; uma maneira de "fazer coisas" é praticando linguagem. Em linguagem, de mil formas peço coisas, agrido pessoas, cativo ouvintes, mostro certa qualidade (bem considerada entre acadêmicos, por exemplo), dissimulo certa impressão, demonstro que gosto, entretenho pessoas, prometo, critico etc. - todos atos de comunicação intersubjetiva - , mas também hesito, concebo, me aflijo, compreendo etc. - atos em que me expresso para mim mesmo com linguagem, mesmo que privada e interior. Esta é a chamada dimensão performativa da linguagem, como a discutiu convincentemente Austin nos primeiros capítulos de seu livro How to do Things with Words, de 1962. Ele se apoiava, no entanto, em terreno já preparado por Wittgenstein, que fora à essência da questão, que é "como a significação se opera", representada pelo conceito, e o fez de forma radical, provocando virada na maneira tradicional de a ela responder. Embora coerente com sua crença de que o sentido das palavras não pode ser inteiramente fechado - e por isso nunca dá definições - Wittgenstein, sobre aquela questão do significado, disse simplesmente: "meaning is use". O uso (social) da linguagem produz seu sentido! Para entendê-la, olhe o uso.

"43. Pode-se, para uma

grande

classe de casos de utilização da palavra 'significação' - senão para

todos

os casos de sua utilização - , explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem. E a significação de um nome elucida-se muitas vezes apontando para seu portador" (Wittgenstein, 1996, p. 43, grifos no original).

Isso pode dar-se em vários planos: a maneira como alguém, em seu texto, usa (encadeia) as palavras produz certo sentido; e, nesta maneira mesma, está um uso que o autor faz do texto naquele momento em que escreve; de volta, isto mesmo tende a ser também o significado que a estrutura de palavras vem a tomar. Fora disso, a comunicação falha.

O estilo de Investigações Filosóficas, obra básica do filósofo, é absolutamente original: leve, dialogal e fragmentado, dividido em parágrafos de numeração seqüencial (na Primeira Parte, de 1 a 693, e, na Segunda, de itens mais extensos, de I a XIV). Wittgenstein vai falando de forma simples e despretensiosa, aparentemente sem propósitos claros ou concatenados. Seu texto, no entanto, é uma poderosa peça argumentativa e seu método é apresentar e analisar, um após outro, centenas de exemplos de expressão lingüística, na verdade, fatos de experiência geral e comum. Sobre eles vai lançando perguntas curiosas e originais, deixando muitas vezes a resposta conclusiva para o próprio leitor, um estilo que lembra a maiêutica de Sócrates. Geralmente começa pelo "microtecido" de toda linguagem: as palavras, usadas de forma explícita ou implícita, e se atém, quase que obsessivamente, a seu uso, mesmo quando elabora unidades mais complexas, os jogos de linguagem, de que se tratará adiante.

Da primeira à última página do livro, apesar de toda a evolução da sua teoria, ele volta constantemente à tese inicial contra o paradigma tradicional, que concebe o significado, o conceito, como uma realidade mental prévia e distinta, com potencial isomorfia com a realidade do mundo, o que confina a linguagem a uma função instrumental de atos a serviço de outros atos intencionais interiores. Contra este paradigma, que, na verdade, joga o conhecimento para uma instância etérea e extralingüística (extra-uso), fora do plano natural da ação, Wittgenstein bate insistentemente. São exemplos da sua argumentação:

"335. Que acontece quando nos esforçamos - por exemplo, quando escrevemos uma carta - para encontrar a expressão adequada a nossos pensamentos? [...] Ou: faço um gesto e me pergunto: 'Quais as palavras que correspondem a este gesto'? Se alguém então perguntasse: 'Você tem os pensamentos antes de ter as expressões?', que deveríamos responder? Que deveríamos responder à questão: 'Em que consistia o pensamento antes da expressão'? [...] 337. Mas não tinha eu a intenção da forma global da frase, por exemplo, já no seu início? [...] aqui fazemos novamente uma imagem enganadora de 'ter a intenção de', quer dizer, do uso dessas palavras. A intenção insere-se na situação, nos hábitos humanos e nas instituições. Se não existisse a técnica de jogar xadrez, eu não poderia ter a intenção de jogar uma partida de xadrez. Desde que tenho antecipadamente a intenção da forma da frase, isto só é possível pelo fato de eu poder falar esta língua. [...] 339. Pensar não é nenhum processo incorpóreo que empresta vida e sentido ao ato de falar, e que pudéssemos separar do falar. [...] 'Conheço, sem dúvida, processos incorpóreos; o pensamento não é um deles?' - Não; as palavras 'processo incorpóreo' serviram-me (agora) de ajuda em meu embaraço, pois queria explicar o significado da palavra 'pensar' de uma maneira primitiva. [...] 340. Não podemos adivinhar como uma palavra funciona. Temos de

ver

o seu emprego e aprender com isso. A dificuldade, porém, é vencer o preconceito que se opõe a este aprendizado" (Wittgenstein, 1996, p. 113-114).

Wittgenstein mostra serem ilusórias certas experiências interiores, em que teríamos evidências de que há significação anterior ao uso de linguagem. Ele analisa amplamente, por exemplo, o "compreender", especialmente no caso da linguagem matemática, como estado anímico (Wittgenstein, 1996). Muitas vezes ele é "saber como se faz" (como se prossegue uma série, substitui um signo etc.), é dominar uma técnica.

Enfim, acadêmicos gostariam de ler sobre seu trabalho de análise: "383. Não analisamos um fenômeno (por exemplo, o pensar), mas um conceito (por exemplo, o do pensar), e, portanto, o emprego de uma palavra. [...] 384. Você aprendeu o conceito 'dor' com a linguagem" (Wittgenstein, 1996, p. 121).

A observação atenta dos usos da linguagem acabou por convencer Wittgenstein de que o ideal, perseguido por ele próprio no Tractatus, de exatidão da linguagem (justamente porque partia, então, de sua crença na isomorfia entre ela e o mundo) era um mito filosófico.

Os conceitos, que são unidades de significado produzidas pelo uso, são abertos porque os usos são incomensuráveis - não podemos estabelecer regras para todos os casos - e isso porque ocorrem no plano histórico da ação de pessoas livres; entre um número indefinido de possibilidades de uso das palavras, estamos a cada instante escolhendo alguns, e jamais os repetimos inteiramente, mesmo que se possa estudar incessantemente características comuns de sistemas lingüísticos em seus contextos culturais. Mas eles também estarão mudando. Por isso mesmo, toda linguagem é sempre provisória. Desse caráter sempre aberto à criação e dessa provisoriedade participa o conhecimento humano. Wittgenstein e Searle (1984) estarão em oposição, quando este define um conjunto fechado de classes de atos de fala ilocucionários.

Os significados exercidos em palavras não são realidades "naturais do universo", como pensavam os antigos, simplesmente porque só temos o mundo na linguagem, fabricação humana e social. Não é possível falar, propriamente, do mundo "em si". E se falamos do mundo de forma objetiva, como o senso comum e a própria ciência procuram fazer, isso só é possível como mais um recurso - ingênuo ou pretensioso - de linguagem.

Cumpre esclarecer que Wittgenstein não nega nem a existência objetiva da realidade, é claro, nem o conhecimento pelo qual pretensamente a representamos, nem o sentido das linguagens exatas, de grande importância nas ciências da natureza (Oliveira, 1996); mas diz que se deve entender qualquer representação da realidade como um uso (descritivo-explicativo ou outro) que fazemos de linguagem em nosso relacionamento com ela.

O Jogo de Linguagem no Contexto Social de Uso

A unidade de uso da linguagem e categoria de análise que a expressa (em escala pequena ou ampla) é o que Wittgenstein (1996, p. 35-36, sem grifo no original) chama de "jogo de linguagem", e que ele relaciona, em primeiro lugar, à vida:

"o termo 'jogo de linguagem' deve aqui salientar que o falar, da linguagem, é uma parte de uma atividade ou de

uma forma de vida

. Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos e outros: comandar, e agir segundo comandos; descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas; produzir um objeto segundo uma descrição (desenho); relatar um acontecimento; conjecturar sobre um acontecimento; expor uma hipótese e prová-la; apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas; inventar uma história; ler; representar teatro; cantar uma cantiga de roda; resolver enigmas; fazer uma anedota; contar; resolver um exemplo de cálculo aplicado; traduzir de uma língua para outra; pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar".

Ainda que muito ampla, a expressão "forma de vida" prende o conceito de jogo de linguagem ao plano da ação, com o que o filósofo volta a evitar dar aos objetos das nossas representações mentais qualquer sentido de realidade em si, de mundo das idéias.

Além de ação, o conceito - ou significado de uso lingüístico - chamado jogo de linguagem ressalta a existência de regras e a flexibilidade criativa de seu emprego. Mesmo cumprindo regras, cada um joga a seu modo.

"O conceito de jogo de linguagem pretende acentuar que nos diferentes contextos seguem-se diferentes regras, podendo-se, a partir daí, determinar o sentido das expressões lingüísticas. [...]. Saber usar corretamente as palavras significa saber comportar-se corretamente" (Oliveira, 1996, p. 139).

"Não fui acostumado a medir a temperatura em graus Fahrenheit. Por isso, esta indicação de temperatura não me 'diz' nada" (Wittgenstein, 1996, p. 138, sem grifo no original). O contexto de uso em que ocorre o jogo de linguagem é essencialmente social, mesmo quando não há interação. Apenas enquanto monemas, as palavras seriam signos arbitrários; elas podem produzir significado porque fomos acostumados, desde a infância, na escola e na convivência com outras pessoas, a usá-las para fazer algo, mesmo que sejam ações sutís no relacionamento, ou que tal relacionamento seja introjetado (como hoje a psicologia clínica e a antropologia estudam). Aliás, no conceito de regra já está implicada a dimensão social (Wittgenstein, 1996).

"A interação na qual o processamento do discurso está incluso é, por si só, parte de uma situação social. Os participantes da conversa podem ter certas funções ou papéis; pode haver diferenças de local ou contexto, além de poder haver regras específicas, convenções ou estratégias que determinem as possíveis interações em tal situação. Não se pode dizer qualquer coisa que nos venha à cabeça em qualquer situação" (Van Dijk, 1996, p. 18-19).

O contexto inteiro do momento da interação de um falante com um ou mais ouvintes, mesmo que imaginada, como no caso de quem escreve um artigo para público mais ou menos definido, é como um ecosistema a que as palavras (com seus significados) devem estar integradas para sua ação comunicativa sobreviver. Qualquer informação ali faz diferença.

Diz Habermas (1989, p. 25) sobre a dimensão intuitiva dos contextos de compreensão:

"não compreendemos uma expressão simbólica sem a pré-compreensão intuitiva de seu contexto, porque não podemos livremente transformar em saber explícito o saber que constitui o pano de fundo de nossa cultura e que está sempre presente como algo de não questionável. Toda solução de problemas e toda interpretação dependem de uma rede de pressupostos que é impossível de se abranger; e esta não pode ser recolhida por uma análise visando o universal, por causa de seu caráter ao mesmo tempo holístico e particular".

O contexto de um ato de fala, incluindo os macro-atos de fala, não pode ser concebido como algo estático. Na verdade, ele muda, e deveria ser concebido como "um curso de eventos" dentro do qual o discurso toma ou perde sentido (Van Dijk, 1977, p. 192). E a comunicação aparece em toda a sua complexidade - seus desencontros e falsos encontros - quando se pensa no contexto de compreensão de um discurso distante no tempo.

Enfim, a prática social da linguagem traz consigo a sanção do uso. Há sempre alguém por perto corrigindo nossa prática lingüística, ou por causa do fonema, do monema ou da sintaxe, que lhe parece significar algo diferente do que imagina que estejamos querendo dizer, ou, principalmente, por causa do que estamos fazendo, ao falar ou escrever aquilo. Justa ou injusta, a sanção social convencional vela pelas regras, escritas ou apenas supostas na prática lingüística, de uma conversa informal a uma tese de doutorado.

Austin e Searle: Melhorando a Qualidade Analítica do Conceito de Uso da Linguagem

Quando o Wittgenstein II teve seu pensamento conhecido, só na década de 50 do século passado, o estudo sistemático da linguagem humana já saíra de sua pré-história, então limitada à própria língua como sistema gráfico e fonético de comunicação humana, e tivera pelo menos duas grandes sistematizações que o colocaram em um campo mais amplo, o da semiótica: a de Ferdinand Saussure (1857-1915) e a de Charles Peirce (1839-1914). Ambas, no entanto, foram desenvolvidas nos limites do positivismo moderno (Coelho Netto, 1999), e, portanto, da concepção tradicional da significação. O pensamento de Wittgenstein (em sua segunda fase), na verdade um pós-moderno, só chegou ao campo da lingüística por intermédio de dois outros filósofos que desenvolveram amplo trabalho também naquele campo: John Langshaw Austin (1911-1960) e John R. Searle.

O conceito de uso de linguagem em Wittgenstein necessitava de melhor nível de análise (Searle, 1981), e Austin procurou fazê-lo; Searle reelaborou-lhe a teoria.

Austin (1990) explicita o conceito de atos performativos (mencionado em item anterior), opondo-o ao de atos constatativos ou declaratórios (descrever, afirmar, negar, registrar, explicar) que se expõem ao juízo de falso ou verdadeiro. Mas ele vê que esta segunda categoria é restrita e, na VIII e IX Conferência da coletânea (Austin, 1990, p. 85-102), vai adiante com a distinção, que ficou clássica, de três dimensões dos atos de fala: atos locucionários, a própria prática dos signos da linguagem segundo as regras que lhes asseguram um sentido textual, satisfazendo o aspecto semântico da linguagem ("está tarde, mas continuo a escrever este artigo"); atos ilocucionários, que se dá na força efetiva das palavras, tanto de forma implícita - porque se faz algo sempre que se diz alguma coisa (ao dizer "mas continuo", significo "vou continuar"; "está tarde" significa "afirmo-lhe que está tarde" etc.), quanto explícita: "condeno-o", "proíbo-o", "concedo", "não faça isso!", "vá! (ordem)", expressões que operam o que significam; e atos perlocucionários, porque se podem fazer várias coisas, dizendo isso ou aquilo: provocar, irritar, deixar desconfiado ou perplexo, agredir etc.; no exemplo inicial ("está tarde, mas continuo a escrever"), posso estar "querendo dizer" agora que este artigo me custou grande esforço, ou que sou disciplinado, ou estar me queixando etc. Fala-se em atos diferentes, e todos reais, mas trata-se de dimensões de um mesmo ato de fala. Especialmente, os atos ilocucionários ganham (ou, muitas vezes, não conseguem ganhar) sua força pela situação e pela forma ou contexto do proferimento.

Searle (1981) detalha copiosamente a estrutura e variedade dos atos ilocucionários e, em relação ao que Austin (1990) chama de atos locucionários, faz importante distinção entre a referência e a predicação, que estuda também em detalhes.

ENTRE PROBLEMAS DO MUNDO DA ADMINISTRAÇÃO (ALGUNS ELEMENTOS)

Teoria, Técnicas e Tecnologia de Gestão: Contra a Confusão Semântica

Grassa, nos meios literários da área de administração, uma perturbadora ambigüidade em que se confundem os termos teoria, técnica e, mais recentemente, tecnologia de gestão; o primeiro desses termos está diretamente implicado no objeto deste artigo. Talvez a análise pragmática da linguagem ajude a dizer algo sobre isso, e, com ela, se devam admitir diferenças significativas de contextos de discurso, capazes de distinguir qualquer desses termos na sociologia, por exemplo, e na administração.

Primeiro: que é teoria? De forma coerente com o pensamento de Wittgenstein, definições de conceitos não podem ser mais que a expressão, produzida em determinado contexto, de seu uso em certo número de enunciados. Para o discurso da administração, o contexto típico de referência é o continuum preparação para ação - distanciamento da ação. A teoria, sempre momento de ação reflexiva, está mais próxima do segundo desses pólos. O termo teoria é aqui entendido como qualquer macroato de fala (Van Dijk, 1996) que expressa intenção sistematizadora de conhecimento, ou seja, tenta fugir de referência a fatos e situações singulares, e distancia-se mais da ação do que se prepara para ela. Como se vê, o interesse pela diferenciação semântica entre significados de teoria passa ao segundo plano, e o elemento que aqui introduz e limita o conceito é o ato ilocucionário de sistematizar conhecimento. Então, teoria não servirá apenas para a teoria da burocracia de Weber ou o modelo de Burrell e Morgan sobre paradigmas de conhecimento, mas para a Quinta Disciplina, de Senge, e até mesmo para a viagem mental em que aquele estudante, professor ou consultor expressou, de forma sistemática, certa idéia pela qual vinha ficando encantado.

Falou-se do continuum preparação para a ação - distanciamento da ação. Geralmente próxima do primeiro desses pólos, a técnica é a descrição normativa da ação; o ato da fala perlocucionário significa: "faça assim". Ela é o grande ídolo do conhecimento eficaz. Ali, se têm todos os elementos da operação, na seqüência apropriada de sua execução. Há técnicas de operar máquinas, manipular signos ou outros objetos, e... chega-se a criar técnicas para, supostamente, operar e manipular pessoas.

Justamente porque, tratando-se de gestão, muitas técnicas são precedidas e justificadas por teorias, surge o conceito de tecnologia de gestão, que pretende aproximar os dois pólos do continuum acima referido. A tecnologia de gestão (sempre com este predicativo, de gestão) é o jogo de linguagem teórica que se dirige para ação gerencial, até mesmo porque muitas vezes se originou diretamente da experiência dela. O ato perlocucionário que geralmente expressa é: "pensa assim, porque precisas fazer assim".

Enfim, é importante acentuar que, como em qualquer outro uso de linguagem natural, haverá sempre alguma flutuação e áreas limítrofes entre os três significados. De qualquer forma, traçar critérios de limite ajuda a avançar com a análise.

Os Jogos de Linguagem de Acadêmicos e Consultores em Teoria Administrativa

Não sem alguma arbitrariedade e vício de dicotomia, consideram-se aqui dois conjuntos de discursos teóricos: os que orientam a sua prática profissional discursiva em administração para interlocutores do próprio grupo, que se avaliam e controlam institucionalmente, os acadêmicos, e os que a orientam para indivíduos de outro grupo, clientes, que supostamente os avaliariam, os consultores. Pouco importa que uns não mereçam o nome de acadêmicos, nem os outros se considerem todos consultores; aqui se tornam categorias de análise. No caso dos primeiros, a sanção social do discurso se dá em procedimentos formais e informais no seio da própria comunidade, e diz respeito a qualidades internas dele. No caso dos consultores, a sanção vem, em geral, dos clientes (embora haja consultores que são clientes de outros consultores), e se prende a um critério maior: a relação percebida entre resultados operacionais da organização e conceitos a esta institucionalmente incorporados.

Quais são os jogos de linguagem de acadêmicos e consultores em teoria administrativa? Não espere o leitor resposta empírica nem conclusiva. Sugere-se, no entanto, claramente, um critério de pesquisa: os respectivos contextos de interação (Van Dijk, 1996), tal como apresentados acima, e isso encontra suporte no que se expôs em seção anterior sobre a presença dos contextos reais na significação da linguagem.

O que se segue tem origem em observações pessoais colhidas por este autor. Tomam-se as dimensões ilocucionária e perlocucionária dos atos de fala, mas não se chega aos reflexos delas, que diferenciam o aspecto simplesmente locucionário destes atos em cada um dos tipos de discurso.

Na Disputa pelo Discurso Sustentável, "Eis Como se Passam e o Que São as Coisas!" (e "Vejam Minha Obra Artística!")

Pela própria valorização da ótica da ciência, descrever na posição de observador é o primeiro traço da linguagem acadêmica. Mesmo quando o falante (escritor ou orador) se esforça por mostrar-se cumpridor das normas metodológicas de objetividade, ele faz sua própria predicação explicativa. A descrição acadêmica não é apenas a linguagem de um protocolo de laboratório, ela é principalmente explicação. A isto se acrescente o tipo de ato ilocucionário que Austin (1990) chamou de "expressões veridictivas"; faz-se juízo a respeito de fatos e valores, com base em argumentação ou prova: algo "é" ou "não é" (Austin, 1990, p. 129), acontece desta ou de outra maneira. Como ato perlocucionário, o discurso acadêmico estaria como que sempre a dizer ao interlocutor: "eis como se passam e o que são as coisas!".

O contexto comunicativo dos macrodiscursos típicos no meio acadêmico - a exposição oral solitária e o longo texto escrito - é uma arena de opiniões. Acadêmicos estão em disputa pelo discurso sustentável (mostrar que o seu é, e o do outro não). Discutem-se questões (aliás, discute-se tudo). Seu olhar, atitude e fala são críticos, até mesmo para consigo; mas isso não os torna sempre antipáticos, porque cultivam a verve e o humor inteligente.

Certa distância em relação a contextos que exigem resultados imediatos, leva a comunidade acadêmica a produzir um discurso fechado, que se enriquece de regras sofisticadas e chega facilmente ao preciosismo nas citações e referências bibliográficas, supostamente reveladoras de competência em relação à sua imensa e maravilhosa tradição literária. E isso introduz a dimensão estética do discurso acadêmico. Ele é sempre produto artesanal, quadro pintado com gosto artístico nos detalhes. Assim, com uma pontinha de narcisismo, o discurso acadêmico corresponde a um ato perlocucionário do tipo "vejam minha obra artística!".

Literariamente, o texto acadêmico tenta explicitar ao máximo o próprio contexto lingüístico de conhecimento. Consegue-o, mas tem de se apoiar no de outros, e o estilo resultante reduz drasticamente os recursos de comunicação que sobram em outros estilos.

"Assim Conceberás Teus Contextos de Ação!", "Assim Deves Fazer!"

Do lado do conhecimento-para-a-ação, as coisas são muitos diferentes. Se um pesquisador de renome acadêmico como Mintzberg, por exemplo, começa a ser procurado pelo mercado editorial e ganha um grande público não acadêmico, além das exigências de mudança no seu ato locucionário, a cargo de seu editor, ele mesmo sentir-se-á diante de novo contexto interlocutório. Neste, o ouvinte quer essencialmente orientação para sua ação. Cabe ao falante, considerado socialmente como professor, consultor, ou o que seja, criar um discurso correspondente, sob pena de não ser bem entendido e, pouco adiante, posto de lado (seu livro ou ele próprio). E os mecanismos de mercado têm sido eficacíssimos nas últimas décadas para ajustar a comunicação nesse diálogo.

Claro, este é um quadro genérico. A demanda não é homogênea, e chega a haver espaço para discursos híbridos prosperarem por certo tempo. A máxima eficiência da comunicação, no entanto, tem sido ganha pelo discurso que responde à demanda por orientação na ação. De duas maneiras: primeiro fazendo a cabeça do gerente, empresário, treinando - e, sinto muito, do estudante de graduação em administração - ao mostrar-lhe um panorama factual do problema e razões ou evidências apoiadas na experiência média dos ouvintes; depois, sistematizando bem a ação. Até onde deve ir o detalhe da sistematização, isso vai depender de como o autor imaginar o seu leitor (do inteligente, crítico, ao passivo, de opinião débil). O jogo de linguagem em seu conjunto seria bem expresso pelos atos perlocucionários: "assim conceberás teus contextos de ação!" e "assim deves fazer!".

E a Teoria nos Cursos de Administração?

No início deste artigo levantou-se o problema: nas escolas e currículos de todos os níveis há uma Babel de literatura administrativa, e já não há confiança sobre o que se produz com eles. Na trilha aberta por Donald Schön e Chrys Argyris (1974, 1983, 1987), pode a preparação do profissional ser feita a partir da própria prática, pela reflexão e pesquisa da ação. Isso exige o ambiente de trabalho. Mas como fica a formação básica na escola? E esta, traz outra pergunta: onde está o conhecimento teórico - não apenas o técnico - em administração, para que se faça sua aprendizagem?

Obviamente, dir-se-á, tem que estar na colossal editoração acadêmica e não acadêmica nas últimas décadas. Isso não resolve o problema. Segundo Wittgenstein, o conhecimento é o próprio significado da linguagem, e se forma no seu uso. Teorizando sobre situações práticas, só imperfeitamente se pode dizer que o conhecimento sobrevive ao seu uso inicial pelo formulador. Nenhum significado se garante - pelo menos invocando autoridade - "objetivamente", "pelo que está no papel", fora de um contexto comunicativo, por mais que a linguagem científica procure rigor conceitual. Conseqüência: no limite, não é possível estocar teoria para a prática. O significado é histórico! E, se, no ensino e na prática, os contextos são diversos, a reconstrução do conhecimento lhes é inerente. Com seus textos, autores e comentaristas da teoria ajudam a resolver o problema, mas criam outros. Não há significação fora do uso social da linguagem, insistiu Wittgenstein, e cada leitor, no próprio contexto pessoal e social de linguagem vai fazer sua leitura, "re-usar aquela teoria", originar significação, isso é natural, é a nossa real condição. E, nesta condição, não estamos diante de um mal inevitável. Apenas diante de riscos e, melhor, de grandes oportunidades.

O risco maior é o de recriar, 25 séculos depois de Platão, em algum espaço mental, o mundo dos conceitos, a teoria reduzida e coisificada, que passa de professor para aluno, gerando um segundo problema: a artificialidade da aplicação deste conhecimento, que aborta esforços de aprendizagem criativa e interiorizada pelo aprendiz. Outra má conseqüência imediata: a dissociação irremediável entre teoria e prática. E, no desencontro dos dois planos paralelos de conhecimento, a convicção dos que estão do lado desta resistirá indefinidamente à autoridade dos que estão do lado daquela.

Tentando superar este dilema, existe outro descaminho, de alto risco para o caso da teoria em administração: tecnicizar todo o conhecimento. Claro, reduzido ao "o que e como fazer" tudo fica mais fácil de entender, mais funcional; infelizmente, porém, mais infenso à discussão (o que vale dizer, à renovação conceitual).

Que dizer, então, de todo o significado de linguagem teórica acumulado? Qual a resposta para a educação de uma prática como a administração? A teoria não pretende ser mais que um subsídio (maravilhoso, aliás!) dado pelos que conheceram, em um lugar e momento de sua história, aos que agora chegam; que devem falar a linguagem de seu contexto e, assim, reconstruir o conhecimento (Demo, 2000). Então se percebe quão sem sentido é tratar, nos currículos da escola, a massa de informação na área, como "repositório de conhecimento"; organizá-la pelo princípio da maximização output/input; torná-la o objeto da aprendizagem, a parte mais importante nos trabalhos e testes acadêmicos. Ora, os caminhos da reelaboração da teoria são da ordem do diálogo humano, pois linguagem é fenômeno de comunicação.

Assim se abre o espaço para falar decisivamente em um jogo de linguagem próprio de quem, nesse diálogo, facilita o acesso à reelaboração de linguagem contextualizada por outrem. Trata-se do jogo de linguagem pedagógico, ausente em nossas escolas superiores, as quais, na secular instituição sala de aula, reservam funções ambíguas para os professores (auleiros), grandes transmissores de informação, mas improvisadores de seu relacionamento profissional com alunos.

Falácias que a Pragmática Lingüística do Discurso Desnuda

A concepção teórica que suporta a pragmática da linguagem desnuda algumas falácias.

Mencionou-se de início a tensão entre academia e consultoria. Não pode ser em nome de uma superioridade intrínseca de certos jogos de linguagem sobre outros que caberia hierarquizar suas instituições e praticantes. Não há uma ordem de conceitos que se constituisse superior, por guardar melhor relação com o mundo em si. Foi por pensar assim que Platão acabou estruturando a sociedade democrática em uma pirâmide com os filósofos no topo e os trabalhadores braçais na base. Uma vez mais: o significado (conhecimento) é um recurso produzido nos diferentes contextos de interação, e aí não há imperativos ontológicos de hierarquização; o mundo vai aparecendo no uso da linguagem e nos limites dela, até mesmo para a ciência, que, hoje sabemos, é conhecimento histórico. Assim, a prática lingüística dos acadêmicos não os habilita a legitimar a dos consultores, embora seja bom que se façam mútuas críticas. Cada uma serve melhor ou pior a sua própria forma de vida, e, portanto, à sociedade. A diferenciação social é fenômeno de outra ordem, mesmo quando pretende justificar-se por diferenças de linguagem - como acontece a certas castas sociais, praticantes de um dialeto, que o apresentam para legitimar projetos de dominação.

Os que praticam o jogo de linguagem que aqui chamamos de consultoria - coisa relativamente nova - devem promover, talvez via proteção de qualidade de serviços pelo mercado e em cooperação com escolas e acadêmicos, sua própria especificidade e, sobretudo, as condições de qualidade do seu discurso.

Outra falácia é a de que a teoria descritivo-explicativa gera o que às vezes, não sem algum toque depreciativo, é chamado de teoria prescritiva. O conhecimento prescritivo não flui do descritivo! Mesmo que seja possível encadear logicamente um ao outro, são jogos de linguagem que se originam de diferentes contextos comunicativos.

CONCLUINDO: DA DIFERENCIAÇÃO À COOPERAÇÃO

Ao romper com um paradigma do pensamento tradicional, Wittgenstein angariou críticos radicais. Inspirou, no entanto, boa parte da lingüística e filosofia da linguagem contemporâneas. Seguindo aquele autor, este artigo tentou mostrar a repercussão que teriam suas idéias para alguns problemas que afligem as relações entre acadêmicos e consultores, educadores e educandos, relacionados com teoria administrativa; pela mesma razão, ele tanto se reconhece de natureza polêmica quanto pode ser de natureza inspiradora.

Não é sustentável a existência de uma teoria administrativa única e central, desenvolvida cientificamente pela academia, com aplicações na consultoria e na escola. Como o significado é a própria forma como se pratica a linguagem, tem-se, pelo contrário, uma diversidade radical de significados - próprios e legítimos - em cada um daqueles contextos de uso de linguagem teórica. Tendem a formar-se ali jogos de linguagem únicos. Assim, a seção acima voltou, caracterizando essa diversidade a cada um dos problemas levantados na seção inicial.

No entanto a radicalidade da diferenciação entre tais usos de linguagem teórica não define distanciamento institucional entre academia, consultoria e ensino. Define identidades e práticas metodológicas próprias; então, aí sim, pode abrir, consistentemente, horizontes de reconhecimento e mútua cooperação.

NOTA

Pedro Lincoln C. L. de Mattos, é Ph.D. em Administração pela London School of Economics and Political Sciences, UK. Professor Titular do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal de Pernambuco. Suas áreas de interesse em pesquisa são fundamentos e métodos do conhecimento em Administração e seus reflexos em pesquisa, ensino e consultoria.

Endereço: Av. Bernardo V. de Melo, 1264/apt. 1802, Piedade, 54400-000, Jaboatão, PE, Brasil. E-mail: plincoln@hotlink.com.br

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    Toma-se aqui o que os autores convencionaram chamar de Wittgenstein II, para distinguir uma primeira fase de seu pensamento, no
    Tratactus Logico-Philosophicus (1921), alinhada com o positivismo lógico de B. Russell, G. E. Moore e Rudolf Carnap, contemporâneos e, os dois primeiros, mestres do filósofo, de uma segunda fase em que Wittgenstein repensou inteiramente suas convicções, as quais se encontram em duas obras póstumas (Investigações Filosóficas e Cadernos Azul e Marron). A própria vida de Wittgenstein, que fora, ainda jovem, inventor de modelos aeronáuticos, reflete o trauma desta mudança: ele abandonou sua Cátedra de Filosofia na Universidade de Cambridge, UK, e viveu afastado dos meios intelectuais vários anos, em trabalhos simples, como o de porteiro de um hospital e o de auxiliar de um laboratório de pesquisas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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