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Os meios de comunicação como extensão do homem

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Os meios de comunicação como extensão do homem

Maurício Tragtenberg

Os meios de comunicação como extensão do homem

H. MARSHALL MAC LUHAN, Editora Cultrix, 1969, 407 páginas.

Ingressamos na época eletrônica, que sucede à literatura tipográfica; à explosão sucede a implosão; a era eletrônica significa o fim da cultura visual, da divisão técnica, do individualismo e do nacionalismo, e reintroduz a comunicação instantânea e a religião tribal das culturas orais que precederam à tipografia. É esta a tese central da obra de MAC LUHAN que aqui focalizamos.

MAC LUHAN escreve uma história das civilizações a partir, não da história das técnicas de produção, mas das técnicas de comunicação ordenadas tipológicamente - os hot e os cool media - articulando três fases históricas: culturas tribais (cool), literárias (hot) e a época eletrônica (cool), isso com base na teoria da significação resumida - o veículo é a mensagem.

A socioculturologia norte-americana fornece grandes esquemas explicativos, segundo os quais todas as civilizações chegarão ao estágio atual da norte-americana, que aparece como modelo. PITIRIM SORO-KIN, TOYNBEE e RIESMAN aparecem como profetas nominalistas do pensamento categórico, onde os mass media funcionam paralelamente às grandes categorias morais, econômicas e culturais dos sistemas clássicos, unidos a uma observação pragmática sólida, aliados a um impressionismo cultural.

O que é a fase literária? Manipulada pelos caracteres de GUTENBERG, a tecnologia tipográfica é fundada sôbre o alfabeto fonético e a visualização. Racionalizando todas as técnicas de comunicação conforme os princípios de continuidade, uniformidade e repetição, ela revolucionou a organização tribal e as estruturas orais da comunicação. Meio fundamenttal onde aparece a verdadeira mensagem do Ocidente, êsse modêlo influi na produção, no mercado, na ciência, na educação, na organização urbana e na cultura. Através da leitura e da escrita, mediatizadas técnicamente, essa revolução atinge o Terceiro Mundo, iniciando o processo de estandardização que leva à organização visual do tempo e do espaço.

O modêlo absoluto dessa fase - na qual o veículo principal é o discurso literário materializado no espaço pela técnica - é o livro impresso, sucessão homogênea de letras alinhadas em páginas, volumes, coleções, bibliotecas, arquivos, com a fantasia de uma organização literária suscetível de leitura total. Tôdas as estruturas feudais e tribais são abaladas. "A substituição, junto ao homem, da palavra pelo visual, do ouvido pela vista, através da tecnologia do livro, é a exploração mais radical que pode abalar uma estrutura social" (p. 49). Ainda sentimos as conseqüências dessa revolução, mas, hoje em dia, com a eletrônica, manejamos o processo de uma segunda revolução pÓS-GUTENBERG.

Enquanto os meios anteriores a GUTENBERG eram uma extensão mecânica e visual do corpo do homem ou de sua produção, a eletricidade e a eletrônica aparecem como extensões do sistema nervoso central. Enquanto os esquemas tradicionais que surgem do literário implicam mecanização, especialização, causalidade dedutiva e divisão técnica do trabalho, a grande organização centralizada, através da comunicação eletrônica não visual, instantânea, muda o quadro de referência do homem. A própria causalidade passa da conexão linear à configuração, criando sua própria noção de tempo e espaço. As energias implosivas se chocam com os padrões de opção tradicionais. Ação e reação são superadas pelo mecanismo do feedback. "Diálogo entre o mecânico e o meio, o feedback assinala o fim da linearidade introduzida no mundo ocidental pelo alfabeto e pelas formas contínuas do espaço euclideano" (p. 354).

Paradoxalmente, com êsse manancial fluido e ilimitado, nossa civilização se acha além da época literária e é caracterizada pelos esquemas de participação interna que incluem as culturas orais e tribais. A automação, o telégrafo e a TV, longe de serem uma extensão dos princípios mecânicos de divisão, sucessão e exclusão, são o signo de uma unificação do planêta pela comunicação instantânea e generalizada. Os satélites e a eletrônica ligam todo o planêta, além do reino da| urbs - fenômeno típico da época literária - às estruturas orgânicas de cidade que institucionalizam as funções humanas na base de uma participação intensa e fracamente estruturada - forma típica de estabilidade que nos leva a um mundo autístico, mosaico econômico de implosão e de equilíbrio. Entramos nesse nôvo universo.de configuração táctil, inaugurado pela eletrônica; os habitantes do Terceiro Mundo deixam sua cultura oral e táctil, para penetrar nesse universo.

Contrariamente a muitos estudiosos de comunicação de massa europeus, cujo profetismo é lento, a especulação de MAC LUHAN é otimista. A sombria visão narcísica do mass media, como auto-amputação metafórica do homem, transfigura-se, nêle, numa imensa cirurgia coletiva do mundo pela eletrônica.

No fundo, MAC LUHAN faz um repertório de grandes verdades enunciadas num léxico barroco. Isso transparece na distinção que estabelece entre hot - os media que levam muita informação e requerem menos participação empática - e cool, os que proporcionam baixo nível de informação, exigindo que a população entre no seu jôgo e os viva mais diretamente.

Tôdas as culturas tribais, pré-literárias, foram uma época dc comunicações cool, expressas por cultura oral, ritos, danças e gestos simbólicos. Tôda literatura, o livro, a ciência, são hot porque se fundamentam na distância, na não-participação.

O livro é hot, mas também o rádio e o cinema, que é menos paradoxal, são para MAC LUHAN prolongamentos do livro na época eletrônica. Com a TV, o desenho animado, a publicidade e a história em quadrinhos, entramos numa nova era cool.

Dc que tipo de participação se trata? Investimento efetivo, empatia, fascinação passiva (TV)? Ou participação ativa, intelectual, contemplativa (o livro, a obra de arte)? Certas produções pop art são vistas com mais curiosidade do que as de pintores como VERMEER, PI-CASSO, etc. Mas o que isso representa? O que é a curiosidade?

Chegamos ao paradoxo mais interessante da obra: o veículo é a mensagem. Fórmulas como esta possuem uma virtude reducionista não negligenciável. Através de sua tese sôbre a fase literária, MAC LUHAN entende que o veículo livro, e também os atuais meios de comunicação de massa, transformaram nossa civilização, não pelo conteúdo, mas pela coerção fundamental da sistematização exercida pela sua essência técnica. O livro é, antes de mais nada, um objeto técnico mais persuasivo do que qualquer símbolo ou informação que veicule.

É evidente que o conteúdo nos esconde, a maior parte do tempo, a função real do veículo. Êste se constitui como mensagem, a mensagem real, cujo aspecto aparente constitui uma conotação; trata-se de mudança estrutural de escalas, modelos e hábitos, operada em profundidade nas relações humanas pelo próprio veículo. Podemos dizer simplesmente que a mensagem da estrada de ferro não é o carvão nem os viajantes que ela transporta; é, sim, uma visão do mundo, um nôvo status das concentrações demográficas. A mensagem da TV não são as imagens que transmite; são os modos novos de relação e de percepção que a TV impõe e que mudam as estruturas tradicionais da família.

Na TV não é consumido tal ou qual espetáculo, mas a virtualidade da sucessão de todos os espetáculos possíveis. O veículo-TV tem como resultado neutralizar o aspecto vivido, único. Transmite uma mensagem descontínua, com signos justapostos a outros signos, na dimensão abstrata da emissão.

Cada mensagem possui um caráter transitivo para outra mensagem e não em direção ao mundo real. Assim, um veículo chama outros: o cinema a literatura e esta a linguagem. A foto atrai a pintura, mas esta hoje inclui a fotografia. A TV é um objetivo-veículo específico - mas transmite mensagens que podem enunciar outros objetos.

O filme mudo clama pelo som, dizia EISENSTEIN. O prêto-e-branco grita pela côr. Todos os objetos gritam pelo automatismo. Há um processo que podíamos designar como inércia tecnológica.

O aperfeiçoamento técnico do veículo vai de encontro a uma mensagem objetiva, de informação real, de sentido: mensagem de consumo, sensacionalismo, autonomização, valorização da informação enquanto mercadoria, exaltação do conteúdo enquanto signo; nesse sentido, a publicidade é o veículo contemporâneo por excelência.

O veículo é a mensagem, é a forma alienatória da sociedade tecnológica ao nível da pessoa, dirigida para outros (other-directed: RIES-MAN).

Se aceitamos com G. FRIEDMAN que a mensagem coloca um homem ante outro, admite-se que não há jamais ditadura cultural da mensagem; posteriores pesquisas deverão estabelecer, de maneira mais precisa, as relações que os homens estabelecem entre si e as condições de produção dos veículos e a correlação com as estruturas de poder - que dominam pela manipulação; êstes são problemas que MAC LUHAN não aborda.

MAC LUHAN postula uma visão otimista baseada num nôvo tipo de idealismo, o tecnológico, que considera como anacrônicos os problemas das mudanças socioculturais, a burocratização, o etnocentrismo, os preconceitos raciais, sociais e estamentais que são negados psicanaliticamente nessa era de comunicação e participação aceleradas.

Se os veículos são extensões do sistema nervoso central, os grupos, ao mesmo tempo que investem suas possibilidades ilimitadas de informação, suas estruturas de dependência, suas fantasias regressivas constituem-se, em sua obra, num travelling mitológico sôbre as culturas e seu destino possível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1969
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