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Meritocracia e sociedade brasileira

PENSATA

Meritocracia e sociedade brasileira

Lívia Barbosa

Pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Diretora da Socius Consultoria Ltda. – Rio de Janeiro – RJ, Brasil

ABAIXO A MERITOCRARIA

"Abaixo a meritocracia" é uma das frases que aparecem com frequência em cartazes que ilustram as demandas de diferentes categorias profissionais em greve e outras demandas sindicais no Brasil. Está, portanto, longe de ser uma novidade. O interessante, no momento atual, é que essa demanda – "abaixo a meritocracia" – se reproduz simultaneamente a uma mudança no discurso político partidário, administrativo e institucional brasileiro, que justamente quer promover o que ela quer extinguir. As atuais e frequentes menções à meritocracia no discurso de autoridades governamentais, de políticos e de empresários invocando a necessidade de "implantação da meritocracia" (termo comumente adotado), nas várias esferas da sociedade brasileira, são ilustrativas dessa mudança. Essa transformação discursiva faz-se acompanhar de movimentos em inúmeras organizações, públicas e privadas, de médio e grande portes, cuja alta administração tem encarregado, a partir de meados da primeira década do século XXI, a sua área de Recursos Humanos (RH) e/ou de Desenvolvimento Organizacional (DO) de "implantar a meritocracia" em seus ambientes de trabalho. Essa tarefa não deixa de ser irônica, porque grande parte dessas organizações já possui sistemas de avaliação de desempenho, um dos instrumentos mais usados para se medir e reconhecer o mérito, com promoções, aumentos salariais e bônus como consequência dos resultados. Se considerarmos que avaliar é atribuir valor, mérito aos resultados obtidos, o que a expressão "implantar uma meritocracia" quer efetivamente dizer? Que fatores encontram-se na raiz dessa mudança de discurso político, administrativo e empresarial e nessa pressão pela "implementação de uma meritocracia" institucional?

Nessa oportunidade, quero explorar o que subjaz a essa demanda por meritocracia nas organizações brasileiras, tanto nas privadas como nas públicas, tanto da administração direta como da indireta, e os discursos que se estruturam em torno da sua implementação.

O material qualitativo utilizado nesta análise advém da minha experiência como pesquisadora do tema meritocracia há mais de uma década. Durante todo esse período, tive contatos frequentes com profissionais de RH e DO, realizei grupos focais com funcionários de diferentes níveis hierárquicos (inclusive diretoria e alta gerência) e entrevistas individuais, examinei material institucional e analisei políticas administrativas concernentes à avaliação de desempenho.

Baseada nesse conjunto de dados, circunscrevi minha análise ao que denomino "meritocracia institucional", ou seja, o princípio consagrado nas organizações modernas de que a admissão, a mobilidade e a ascensão profissional das pessoas devem ser pautadas pelo seu desempenho na realização das tarefas que lhes foram alocadas nas organizações. Essa lógica fundamenta-se na ideia de que, com base em critérios de seleção, cujas regras são previamente estabelecidas e conhecidas de todos os participantes, como a exigência de um tipo específico de qualificação, se estabelece uma situação igualitária inicial que garante uma igualdade de oportunidade para todos naquela circunstância. As diferenciações que resultarem desse momento inicial são interpretadas como consequência do conjunto de habilidades e talentos de cada um, medido por meio de sistemas de avaliação de desempenho, como provas teóricas e práticas, análise de currículo, entrevistas, entre outros.

Nesse sentido, não serão analisados aspectos históricos, conceituais e sociológicos mais amplos da discussão sobre meritocracia no Brasil, nem os fundamentos morais do merecimento individual, como explorado nas obras dos filósofos políticos contemporâneos John Rawls, Ronald Dworkin, Amy Gutmann, entre outros. Ficará de fora, também, a forma como a meritocracia é abordada no âmbito do mundo acadêmico brasileiro, comparativamente a outros países.

Discursos sobre meritocracia no Brasil

Historicamente, a prática e a ideologia meritocrática nunca foram uma demanda da sociedade brasileira. Enquanto vários países europeus e os Estados Unidos livraram-se de seus spoil systems (assim chamados os sistemas de distribuição de cargos e funções públicas pelos políticos e partidos vencedores das eleições aos companheiros e amigos), ainda no século XIX, por pressão social, ou mesmo antes disso, como consequência de revoluções que aboliram os sistemas de privilégios existentes, caso da França, entre nós, a meritocracia constituiu-se e constitui-se ainda como um critério formal e eventual em permanente disputa com o nepotismo, o fisiologismo e os privilégios corporativos. Expressões e eufemismos do tipo "ministro da cota do presidente", "cargo ou ministério técnico", "política de reciprocidade", "é dando que se recebe", "QI (quem indica)", "entrar pela janela", "amigos do rei", "apadrinhados", "afilhados", entre outros, são utilizados frequentemente no linguajar político, organizacional e cotidiano para ilustrar as lógicas e as práticas de preenchimento, promoção e reconhecimento de cargos e funções que as pessoas julgam ser prevalecentes entre nós, tanto nas organizações públicas como privadas, e que soam, pelo menos discursivamente, de maneira condenatória.

Nesse contexto, o que significa a tarefa, proposta por inúmeras organizações ao RH e ao DO, de implantarem uma meritocracia ou uma cultura de meritocracia e responsabilização? Significa admitir que, embora existam sistemas de avaliação de desempenho, as pessoas julgam que não existe uma meritocracia. Ou seja, os princípios que ela esposa não são legitimados, segundo alguns, nas práticas organizacionais. Se assim o fossem, não haveria necessidade de se demandar a sua implantação.

Essa proposta de implantação sugere, também, que a meritocracia é algo extrínseco à organização, algo que deve ser trazido de fora para dentro, não sendo intrínseco ao tecido organizacional brasileiro. Daí a necessidade de se "adotar/implantar uma cultura meritocrática", como muitos mencionam. Mas em que consiste esse processo, do ponto de vista prático?

Para a alta administração, a implantação da meritocracia é a solução imaginada para o aumento dos resultados organizacionais e a sobrevivência no mercado. É mais uma questão de estratégia do que de valores. A forma de se "chegar lá" é estabelecer com clareza e cobrar com firmeza o quanto cada funcionário entrega, com base no que foi previamente acordado com os seus superiores, e alinhar os resultados individuais com o planejamento estratégico da organização. Nesse processo de implantação da meritocracia, a reformulação do sistema de avaliação de desempenho é fundamental, e dois aspectos são centrais. Primeiro, tornar as metas as mais objetivas e mensuráveis possíveis. Segundo, tornar clara a articulação entre o trabalho que se realiza e a sua contribuição para o resultado final da organização.

O custo da meritocracia, entendido como a quantidade e a qualidade da reação dos funcionários a essa mudança de patamar em relação aos resultados que entregam, é um fator que preocupa a alta administração, principalmente nas empresas públicas. A cobrança efetiva, a responsabilização pela não entrega dos resultados e a diferenciação por meio do reconhecimento do desempenho individual interferem na zona de conforto das organizações brasileiras e nas relações com os sindicatos. Em algumas empresas, conceitos como inovação e criatividade são, também, associados à implantação de uma cultura meritocrática. Mas, quaisquer que sejam as adições, a meritocracia é vista como uma das chaves para o enfrentamento da concorrência e da globalização, as alavancas por trás dessa proposta de implantação.

No âmbito de RH e DO, a implantação de uma cultura meritocrática e de responsabilização – termo que todos usam com muito cuidado, por suas possíveis relações com a noção de culpa e punição – é vista como um processo complexo de "mudança de cultura" profundo. Certamente que este passa pelo foco em resultados, pelos gerentes assumirem os seus papéis de chefes e cobrarem seus subordinados – tarefa reconhecidamente difícil tanto no âmbito das organizações públicas como no das empresas privadas. Nas primeiras, a variabilidade da posição de chefe, devido às injunções políticas, faz com que os que detêm, no presente, posição de chefia temam pelo futuro, caso avaliem negativamente os seus subordinados atuais. Eventualmente, alguns deles poderão tornar-se chefes um dia. Nas segundas, o peso das relações sociais torna difícil fazer cobranças, devido à valorização do clima organizacional. E, em ambas, a lógica de justificação de desempenho legitima todo e qualquer resultado e tira o peso da responsabilidade dos ombros dos funcionários. Relatos de gerentes indicam que afetar o clima organizacional é sinônimo de afetar a sua imagem de bom gestor e líder, colocando em risco a sua própria posição.

Para DO e RH, entretanto, uma mudança cultural passa, também, pela neutralização do paternalismo; pelo reconhecimento "dos que fazem" em detrimento dos "encostados e dos que não trabalham"; pelo fim da promoção por senioridade, tão defendida pelos sindicatos, principalmente nas organizações públicas; pelo fim da lógica de igualdade substantiva na distribuição dos recursos alocados para promoção, que divide o montante disponível em partes iguais, sem hierarquizar por rank; pelo feedback claro e constante aos funcionários; pela arte de compatibilizar resultado objetivo sem perder o foco nas habilidades e competências, entre outros.

Independentemente do que a implantação da meritocracia implica, em relação a custos organizacionais, porém, tanto a alta gerência como o RH e o DO a consideram inevitável, porque se instalou no País um novo ritmo competitivo, que não comporta mais os antigos métodos de trabalho e impõe uma lógica meritocrática que estimule e reconheça os funcionários, e não o apadrinhamento e a acomodação, sem qualquer tipo de responsabilização individual. Estabelecer a meritocracia, portanto, é visto por alguns como necessário para a sobrevivência das organizações. Por isso, ela tornou-se mais que um discurso, tornou-se uma cobrança dos escalões superiores que funciona como uma pecking order, do governo federal para os altos escalões das organizações públicas, desses para as suas diretorias de RH e daí para o corpo de funcionários. Nas empresas privadas, o sentido é o mesmo: da direção ou do dono/fundador para RH e DO e daí para o corpo de funcionários.

Um outro fator invocado, para a necessidade de implantação de uma meritocracia, é a necessidade de se reterem novos talentos. Segundo os profissionais de DO e RH, a famosa geração millenium não está disposta a aceitar os "velhos esquemas", ela quer desafios, "ver as coisas acontecerem" e o reconhecimento do que fazem.

Nesse contexto organizacional, de demanda de uma meritocracia vinda de cima, estruturam-se, basicamente, três discursos, no âmbito dos funcionários das diferentes organizações, que denomino meritocrático, antimeritocrático e "por que isso agora"? Eles representam tomadas de posições distintas em face da demanda da alta administração e fazem-se presentes em todas as organizações analisadas. As diferenças existentes entre as organizações públicas e privadas são mais de ênfase em certos aspectos e de distribuição interna desses discursos entre os distintos segmentos da hierarquia organizacional do que efetivamente de substância. Ao apresentar esses discursos, portanto, não farei distinções, procurando centrar-me nas suas características básicas.

Discurso meritocrático

O discurso meritocrático é minoritário na maioria das organizações, refletindo a posição histórica da meritocracia na sociedade brasileira, na qual ela não é um valor englobante. É um discurso crítico da cultura "paternalista brasileira" que, segundo ele, se perpetua nas organizações e promove valores inversos aos meritocráticos. Apadrinhamento, relações pessoais, falta de cobrança, QI, nepotismo, entre outros, são práticas sociais utilizadas como ilustrações desse caráter paternalista e das suas consequências. Embora o discurso meritocrático saúde a iniciativa da alta administração, de RH e/ou DO, ele não confia inteiramente nas condições e na "vontade política" existentes para implementar verdadeiramente uma prática meritocrática, na medida em que quem se propõe fazê-lo encontra-se permeado e influenciado por essas mesmas práticas.

Todos reconhecem que nenhuma organização no mundo é inteiramente meritocrática. Capital de relacionamento, indicações e política organizacional estão presentes em todos os países. As diferenças entre o que acontece "lá" e no Brasil são a frequência e a qualidade dessas situações e as consequências que se seguem quando elas não dão os resultados esperados. Lá elas são enfrentadas. Os Estados Unidos, a Inglaterra e mesmo a França são citados como referências de sociedades meritocráticas, mesmo com as possíveis distorções que possam ocorrer. O que os adeptos do discurso meritocrático apontam é o "despudor" existente entre nós.

O cerne do discurso meritocrático é a importância atribuída ao valor do reconhecimento dos resultados individuais. O não reconhecimento ou a premiação indevida, segundo seus partidários, gera insatisfação e desestímulo. Induz à acomodação, promove injustiças e a desmoralização das cobranças e dos planejamentos previstos na organizações. Nesse discurso, a meritocracia é um estímulo, um instrumento para se fazer mais e melhor. Esse estímulo não é só pecuniário, mas é, também, simbólico. As pessoas sentem-se recompensadas pelos esforços despendidos e gratificadas pelo seu reconhecimento público.

Os meritocráticos argumentam que a zona de conforto, gerada pela cultura paternalista brasileira, que não cobra resultados e não institui consequências palpáveis para aqueles que "não entregam" o previamente estabelecido, é um círculo vicioso que precisa ser quebrado. Da mesma forma que não existe bom resultado sem recompensa, não existe resultado ruim sem consequência. Por essa última, não se entende necessariamente punição, o que seria o caso extremo, mas gestão de pessoas. Utilizar os resultados para treinar e adequar melhor as pessoas.

Outro aspecto criticado é a utilização da senioridade como mecanismo de avanço na carreira, permitindo que, independentemente dos resultados e do esforço de cada um, todos sejam beneficiados. O resultado é um quadro desalentador. Por que alguém vai se esforçar mais do que o mínimo necessário? Cobrar, estipular consequências, estabelecer metas são ações que impactam as relações de trabalho, e o "brasileiro" privilegia o "bom clima organizacional", que se resume, na prática, a cada um cuidar de si e a organização de todos.

Para esse grupo, avaliar desempenho e atribuir mérito não é tecnicamente problemático, na medida em que todos sabem quem faz e quem não faz, quem é competente e quem não é no seu trabalho. Ter sistemas que mensurem adequadamente o que deve ser feito é, portanto, fundamental, pois dificulta as acusações de injustiças e as cobranças invertidas, dos funcionários em relação aos gerentes, pelos resultados. O discurso meritocrático utiliza sempre exemplos limites e contrastantes para marcar posição, mas admite a complexidade de se avaliarem muitos casos concretos, principalmente aqueles mais definidos pelas nuances do que pelos contrastes.

A competição, sempre arguida pelos demais grupos como uma consequência negativa da meritocracia, não é percebida dessa maneira pelos meritocráticos. Segundo eles, ela já existe de fato, embora de maneira implícita. Ela não quebra o "bom ambiente de trabalho", pois isso já aconteceu. Trabalhar e não ser reconhecido, e ver o colega "ganhando sem ter feito nada", azeda igualmente as relações.

Discurso antimeritocrático

O discurso antimeritocrático caracteriza-se por ver na meritocracia uma ameaça externa trazida pelo neoliberalismo, globalização e elites, entre outros. Além de externa, é um tipo de imposição cultural. O fato de ela existir e ser adotada em outros países não significa que ela o deve ser aqui. Se, nesse contexto, esse "outro" é negativo, ele se torna positivo quando querem indicar que "ela (a meritocracia) lá também tem problemas ou não funciona". Ela é vista como desagregadora do ambiente de trabalho, pois estabelece a competição onde ela não existia. Ela é equivocada, pois troca quantidade por qualidade. Ela é injusta, porque não reconhece e retribui o trabalho de todos. Em suma, ela é uma nova forma de exploração e de estresse organizacional. O discurso antimeritocrático clama por mais benefícios para todos e vê no trabalho diário de cada um a contrapartida do salário. A meritocracia é uma cobrança extra indevida. Seus adeptos antagonizam, portanto, qualquer cobrança maior de resultados e desempenho dos funcionários.

A responsabilização dos indivíduos é quase sempre rejeitada, recaindo toda a "culpa" pelos resultados em uma variável externa ao sujeito, que varia da gerência direta ao governo da ocasião, todos responsáveis por fornecerem os instrumentos necessários para que se faça o que tem que ser feito. Habilidades como proatividade, iniciativa, comprometimento, que pontuam o discurso meritocrático e dos gestores, estão ausentes. No seu lugar, estão presentes dedicação e amor à camisa, principalmente entre funcionários públicos e de ex-estatais, anos de casa, experiência e carreira, entre outros.

O discurso antimeritocrático é antagônico, também, a qualquer inovação e proposta de mudança organizacional que implique alteração do status quo. "Não vai dar certo", "Isso já foi feito", "Não é possível", entre outros, são mantras. A razão desse antagonismo nasce da síndrome de "reivindicações sucessivas". Para qualquer mudança acontecer e as coisas melhorarem, faz-se necessária uma série de transformações anteriores, que, como não aconteceram, impedem as mudanças sugeridas. Como muitas dessas reivindicações esbarram em dificuldades que estão além da possibilidade de a gestão, ou mesmo a organização, resolver, o discurso termina por privilegiar o status quo, mesmo que explicitamente o critique de maneira abstrata e formal.

O valor enfatizado pelo discurso antimeritocrático é a senioridade, tratada como sinônimo de experiência. A sua valorização é entendida como uma forma de reconhecimento da empresa pela "dedicação" do funcionário, categoria pouco clara, mas que contém "assiduidade e cumprimento das obrigações", sem especificações. O grande mérito da senioridade é o seu papel na garantia da carreira, é a sua capacidade de levar o funcionário até o seu final, independentemente do seu maior ou menor desempenho. A partir do momento de ingresso na organização, a carreira passa a ser entendida como uma promessa organizacional, um direito adquirido.

Os adeptos do discurso antimeritocrático professam uma lógica isonômica: o que se dá a um tem que se estender a todos, e não legitimam o mérito alheio como merecedor de um reconhecimento diferenciado, principalmente se esse consiste em diferenças pecuniárias. Por isso, são adeptos da distribuição equitativa de qualquer verba adicional alocada para premiar o bom desempenho. O lema é: um pouco para todos é sempre melhor do que mais para alguns.

Embora seja um discurso extremamente crítico da meritocracia e invoque com frequência a oposição justo e injusto nesse contexto, não inclui, como parte da sua argumentação na busca por mais justiça e direitos dos funcionários, a oposição às práticas nepóticas, corporativas, relacionais e fisiológicas que permeiam a sociedade brasileira e muitas das nossas organizações. Ao contrário, não as menciona espontaneamente e, quando é instado a responder sobre elas, recorre à síndrome das reivindicações sucessivas para explicá-las.

Discurso "para que isso agora"?

Esse discurso é fundamentalmente praticado por aqueles cuja prioridade é a manutenção do que chamam "um bom ambiente de trabalho". Ele tem mais pontos em comum com o discurso antimeritocrático do que com o meritocrático, embora seus objetivos sejam menos explicitamente políticos e reivindicatórios.

Para os adeptos desse discurso, a meritocracia criaria uma competição negativa entre as pessoas. As futuras cobranças, responsabilizações e culpabilizações criariam conflitos abertos que terminariam com o bom ambiente corporativo e afetariam a produtividade e os bons resultados.

Os defensores do "para que isso agora?" partem do pressuposto de que todos trabalham, são igualmente competentes e dedicados, portanto não há razão para se diferenciarem uns e outros. Utilizam muito expressões do tipo "equipes de alta performance", "times de alto desempenho" para justificarem a sua posição em relação à meritocracia. Segundo eles, ela não dá conta dos casos mais comuns, das pequenas diferenças de desempenho entre uma pessoa e outra, mas apenas dos casos limites e contrastantes, os exemplos mais utilizados pelo discurso meritocrático. Se os sistemas de avaliação não permitem estabelecer com segurança quem fez mais e melhor que o outro, como premiar um, e não ambos? Como hierarquizar? Semelhantemente ao discurso antimeritocrático, os adeptos do "para que isso agora?" preferem assegurar "um pouco para todos, e não mais só para alguns". O que, para o discurso meritocrático, pode soar como um desestímulo, uma injustiça, para esse discurso soa justamente como o contrário.

Os valores básicos do "para que isso agora?" são a "harmonia social" e o "trabalho em equipe", os aspectos que serão afetados pelas hierarquias estabelecidas com base no desempenho. Esse não é um discurso que intencionalmente busca um igualitarismo social, mas que enfatiza o primado das relações pessoais, como uma forma de acomodação e mediação das diferenças individuais, que devem ser reconhecidas e legitimadas em face das demandas da organização. Seus adeptos arguem, também, em favor da senioridade, da "dedicação" e do "amor à camisa", valores fundamentais que tornam as pessoas merecedoras de reconhecimento e, portanto, de se moverem na própria carreira. Os articuladores desse discurso, como os do antimeritocrático, toleram bem a invasão da vida privada na vida organizacional, mas por motivos diferentes. No caso dos antimeritocráticos, é um sentimento de posse em relação à organização, principalmente no caso das públicas. A empresa é mais deles do que da sociedade e dos acionistas. No caso dos "para que isso agora?", o fundamento encontra-se no vínculo moral que mantêm com a organização, assentado em um tipo de "lei de reciprocidade", que funciona em termos de débitos e créditos. A dedicação dos funcionários é compensada pela compreensão, por parte da organização, das eventualidades que surgem na vida cotidiana. Já no discurso meritocrático, essa mesma invasão surge como um sintoma do paternalismo brasileiro e, como tal, uma separação mais rígida entre a vida privada e o mundo público do trabalho é reivindicada.

Embora muitos das pessoas que adotam esse discurso concordem com que metas e resultados devem ser estabelecidos e cobrados, a cobrança admitida é muito tênue. São grandes críticos do estresse organizacional contemporâneo, e a meritocracia seria mais uma instância dele, e têm no passado uma referência importante. Exemplos sobre uma época pretérita são sempre invocados para servirem de exemplo do que deveria ser feito. Ressentem-se com o ritmo atual "do mercado" e com as "crescentes demandas organizacionais". Qualquer inovação é vista com suspeita, indicando um certo cansaço das novas tecnologias gerenciais, sempre promovendo novas mudanças, quando a última nem acabou de ser adotada. Daí o tom do "mais uma" ou do "por que isso agora?".

OBSERVAÇÕES FINAIS: A MERITOCRACIA VEIO PARA FICAR?

Com base na demanda da implantação de uma meritocracia nas organizações brasileiras e das posições dos três discursos, que interpretações podemos encaminhar acerca da apropriação da lógica meritocratica entre nós? Podemos ver, nessa mudança discursiva e tentativas de implementação prática, um passo em relação à consolidação de uma ideologia meritocrática nas organizações brasileiras, que terá como consequência a quebra de outros critérios de hierarquização que as perpassam? Ou essa nova demanda configura-se, apenas, como uma estratégia de ocasião, uma forma de enfrentar a concorrência e a globalização, como sugerem os objetivos que a alta gerência associa à implantação da meritocracia? Ou, ainda, o acirramento dessa cobrança pela meritocracia é apenas mais uma das estratégias de acusações políticas que costumam vir a reboque das eleições, desaparecendo logo a seguir?

O quadro atual, embora sugestivo, não vem acompanhado de uma demanda efetiva por parte da sociedade nem do público interno das organizações por meritocracia, muito pelo contrário. A própria frase "abaixo a meritocracia", com a qual iniciei esta pensata, e a predominância dos discursos antimeritocrático e "do por que isso agora?" no âmbito das organizações sugerem isso. As vozes das ruas, em junho de 2013, também não ser fizeram ouvir de modo consistente sobre o tema e, passados alguns meses, já se calaram. Se acrescentarmos a isso um sobrevoo sobre a nossa história, verificaremos que essa demanda, de cima para baixo, não é uma novidade entre nós, brasileiros. Ela já aconteceu outras vezes. A introdução de critérios meritocráticos, principalmente na esfera pública, sempre foi uma outorga do Estado para a sociedade, como no caso dos concursos públicos, que inicialmente sofreram uma grande reação dentro do próprio governo, entre os políticos e no interior das organizações. Nunca foi uma demanda da sociedade. Posteriormente, esses critérios outorgados pelo governo cristalizaram-se e passaram a coabitar com outros de hierarquização social, sem que, contudo, a lógica meritocrática que os inspirava se tornasse o valor englobante, no interior do próprio Estado e das organizações. É muito provável, assim, que as possíveis mudanças que se seguirão às atuais demandas por mais meritocracia fiquem circunscritas a determinadas dimensões das organizações e continuem a coabitar com outros critérios de hierarquização social no seu interior. A invocada necessidade de mais meritocracia institucional não sugere o fim do nosso spoils system, que, ao que tudo indica, continuará atuante como sempre foi no topo das organizações e na esfera pública.

E por que, caberia perguntar, a sociedade e o público interno das organizações brasileiras desenvolvem mais discursos que rejeitam do que demandam a meritocracia? Por que, por um lado, a ideologia meritocrática é criticada e/ou temida como algo externo e ameaçador ao tecido organizacional e à própria sociedade, mas, por outro, o mau desempenho, a ausência de responsabilização pelos próprios resultados e os privilégios não parecem causar danos? Não são interpretados como subtraindo da cidadania e dos direitos individuais, e contrariando um estado igualitário que o discurso antimeritocrático e do "por que isso agora?" afirma privilegiar? Questões de difíceis respostas, mas que merecem algumas sugestões para reflexão.

Primeiro, no Brasil, prevalece um tipo de individualismo de semelhança, como diria Simmel (1971), que rejeita a construção de hierarquias que enfatizem as distinções entre as pessoas. É justamente isso que a ideologia meritocrática visa promover no âmbito das organizações. Após um suposto estado igualitário inicial, dado no momento da admissão para os diferentes cargos, não se legitima o resultado alheio como fonte de hierarquização e objeto de reconhecimento, mesmo que medido por critérios previamente acordados, conhecidos e estabelecidos ao longo da vida organizacional. A lógica que prevalece é a isonômica, que pleiteia "o mesmo ou mais para todos", independentemente das diferenças de entrega. Nesse sentido, a única hierarquia admitida é aquela baseada na senioridade, na qual todos podem ser inseridos se permanecerem tempo suficiente em suas posições. Da mesma forma, a competição explícita é rejeitada, pois esse mecanismo social, supostamente, evidencia a diferença entre indivíduos em um ambiente que se quer igualitário do começo ao fim.

Segundo, no Brasil de ontem e de hoje, apesar das muitas mudanças observadas, continuamos a professar uma modernidade e um individualismo seletivos. Queremos os resultados materiais da eficiência, da produtividade, da competitividade, mas, ao mesmo tempo, não queremos os seus custos, principalmente os pessoais. Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas nos beneficiam. A meritocracia é um valor que rejeita a mobilidade organizacional advinda de critérios outros que não sejam o desempenho individual, definido no interior de um enquadramento institucional específico. Isso significa um impacto na zona de conforto de todos, e não apenas de alguns. É justamente essa seletividade que voltamos a observar. Clamamos por mais meritocracia em algumas áreas, mas não atacamos o nosso spoils system e os privilégios que lhe são atrelados. Embora a alta administração das organizações esteja "disposta" a alterar a zona de conforto dos funcionários, públicos e privados, em prol de mais resultados, não há menção de transformações de suas práticas internas. Considerando-se o caráter extremamente hierárquico, personalista, relacional e não transparente da gestão no Brasil, parece que queremos continuar com a lógica de combinar sistemas modernos com tradicionais. O uso de princípios não meritocráticos para a ocupação de cargos na diretoria e nos conselhos administrativos, a existência de carreiras com critérios de avanço extremamente subjetivos, que tiram do indivíduo sua capacidade de autogestão, a existência de feudos e "puxadinhos" e o crescimento de um "nepotismo meritocrático" (uma forma brasileira de degreeocracy, que justifica a nomeação de parentes baseada em seus diplomas) são algumas das instâncias que maculam o imaginário daquilo que se quer implantar no andar de baixo. Nesse contexto, não é de se admirar o sabor amargo que sempre acompanha os resultados das avaliações de desempenho.

REFERÊNCIAS

Dworkin, R. (1977, November 10). Why Bakke has no case. New York Review of Books.

Gutmann, A. (1980). Liberal equality. Cambridge: Cambridge University Press.

Rwals, J. (2001). Justice as fairness: a restatement. Edited by E. Kelly. Cambridge: Harvard University Press.

Simmel, G. O. (1971). Individuality and social forms. In D. Levine. Chicago: Chicago University Press.

  • Dworkin, R. (1977, November 10). Why Bakke has no case. New York Review of Books
  • Gutmann, A. (1980). Liberal equality Cambridge: Cambridge University Press.
  • Rwals, J. (2001). Justice as fairness: a restatement. Edited by E. Kelly. Cambridge: Harvard University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Fev 2014
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