Acessibilidade / Reportar erro

Padrões de atuação, controle organizacional e político das empresas públicas no Brasil

ARTIGOS

Padrões de atuação, controle organizacional e político das empresas públicas no Brasil* * Trabalho apresentado ao Seminário sobre Empresas Públicas, convênio com EAESP/FGV e Secretaria de Modernização e Reforma Administrativa - Semor, realizado no período de 15 a 17 jan. 1979.

José Paulo Carneiro Vieira

Professor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração - FSJ, da EAESP/FGV

1. EMPRESAS PÚBLICAS: SUGESTÃO DE ABORDAGEM PARA UMA CATEGORIA HETEROGÊNEA

1.1 A lógica da proliferação das entidades descentralizadas

Qualquer análise atual sobre as transformações do modelo político-econômico brasileiro - ou sobre certos aspectos mais específicos deste tema geral - deve necessariamente passar pela discussão sobre a expansão das empresas públicas e seu impacto na reorganização social, política e econômica do País.

Com efeito, quer se trate de estatização, de endividamento e investimento públicos, de internacionalização da economia ou desigualdades regionais, de estruturação do mercado de trabalho, de distribuição de renda ou de reorganização do consumo, o analista sempre acaba por esbarrar, perplexo, nos efeitos ambivalentes e contraditórios causados pela expansão acelerada do conjunto heterogêneo e complexo constituído pelas empresas públicas brasileiras.

Tal perplexidade deriva, muito provavelmente, da tendência de tratar de maneira agregada e unitária empresas extremamente diferenciadas entre si quanto a qualquer critério que se possa imaginar: esfera de governo a que estão ligadas, natureza da sua atividade, padrões de organização, grau de controle governamental, administrativo e financeiro, padrões de acumulação relacionados com política de preços e de investimento, história específica, tipo de vinculação com o seu subsetor da economia, padrões efetivos ou adequados de avaliação do seu desempenho etc. Em suma, a grande diversidade de situações e de comportamentos exige uma definição específica de critérios para se analisar a expansão das empresas públicas em função do problema analisado.

No final das contas, o denominador comum mais marcante que elas apresentam entre si é o fato de proliferarem sem nenhum critério mais claro de divisão interna do trabalho governamental entre atividades que devam ser centralizadas e outras com vocação para se expandir via administração indireta. Não se trata, aqui, de retomar a polêmica estatização versus capital privado, mas simplesmente de colocar em discussão a forma de organização das atividades estatais existentes em dado momento, sejam elas quais forem. Neste sentido, tudo indica que a escolha da via descentralizada ou indireta para a expansão das atividades governamentais tem sido fruto, antes de mais nada, da falta de condições humanas e organizacionais do governo para responder a desafios e realizar tarefas que apareçam num determinado momento e que, por quaisquer razões ou interesses, sejam necessárias e urgentes. Isto parece ser tanto mais verdadeiro quanto mais recentes forem as empresas públicas, pois há diferenças importantes segundo o ciclo em que elas surgiram. Originalmente, sua emergência foi processada no bojo de um debate ideológico bem mais elaborado do que o atual. Neste sentido, contrapõe-se uma geração mais ideológica de empresas públicas - Petrobrás e CSN especialmente - a uma geração que se poderia rotular de organizacional ou fisiológica.

Por conseguinte, não se tem cogitado de estabelecer uma prática politico-administrativa baseada em critérios seletivos que indiquem quando e por que um determinado tipo de atividade governamental deve ser» implementado por meio de unidades descentralizadas. Não se percebe, portanto, uma racionalidade um pouco mais refinada que explique a expansão descentralizada em curso, além do critério por demais genérico da conhecida crítica dos aparelhos governamentais preexistentes: argumenta-se que a máquina estatal é ineficiente, rígida, burocratizada, lenta, e conta com recursos humanos que apresentam estes mesmos característicos. Em vista disso, qualquer coisa que se deseje efetivamente implantar, desenvolver ou produzir de maneira rápida e inequívoca exigiria a adoção da via descentralizada.

Em tais condições, a proliferação acrítica da atividade estatal descentralizada transformou-se em panaceia, remédio milagroso para superar os entraves colocados à ação do estado pela máquina emperrada da administração pública. Agilizar transformou-se assim, especialmente a partir de 1967, em verbo da moda na administração pública, equivalendo a descentralizar e justificando a explosão indiscriminada de empresas, fundações e autarquias em todas as esferas de poder formalmente vigentes no País: federação, estados e municípios.

Este processo, todavia, não vem ocorrendo sem sobressaltos e contradições, principalmente porque é acompanhado da agilização de mecanismos de articulação e de representação de interesses de todo tipo, os quais se reajustam e reorganizam no curso da descentralização institucional dos aparelhos do Estado.

Em outras palavras a descentralização institucional pode facilitar a formação de novos núcleos de interesse próprio, vinculados à dinâmica interna de expansão das novas unidades; pode também estimular a cristalização de mecanismos eficazes que representem interesses privados específicos por meio da máquina descentralizada. Sugerir que descentralização reforça estas duas tendências não implica supor que a máquina centralizada é mais honesta ou fiel aos desígnios e políticas do governo, mas que os mecanismos de controle e fiscalização tendem a ser mais simples, diretos e institucionalizados neste último caso.1 1 Uma estimulante reflexão a este respeito foi apresentada por Zajdsznajder, Luciano. Políticas governamentais e controle organizacional: reflexões sobre o caso brasileiro, mimeogr. 1978. Em outras palavras, a máquina centralizada tem menos liberdade para desvios, distorções e manipulações na formulação ou na implementação de políticas públicas. Pode não atingir eficientemente a consecução dos objetivos definidos, mas terá maior dificuldade em substituí-los por outros não explicitados ou não adotados pelos centros de poder. Isto não significa, tampouco, que o deslocamento dos centros de poder seja decorrência necessária da descentralização institucional, a qual pode funcionar como uma cortina de fumaça utilizada pelo próprio grupo dirigente para a imposição de objetivos nebulosos, questionáveis ou inconfessáveis. No contexto brasileiro atual há indicações expressivas desta situação de uso da descentralização para benefício particular de autoridades públicas, embora se deva também considerar a existência de outras situações, a partir da extrema diversidade do universo descentralizado enfatizada no início desta análise. Em suma, podem-se apontar quatro possibilidades básicas e não-excludentes de articulação de interesses num contexto de descentralização institucional:

a) descentralização institucional e instrumental para o governo;

b) descentralização institucional e instrumental para o grupo dirigente;

c) descentralização institucional e instrumental para as entidades descentralizadas;

d) descentralização institucional e instrumental para grupos privados.

Para compreender o papel desempenhado por diferentes tipos de empresas públicas em relação a estas várias possibilidades de articulação de interesses, torna-se necessário discutir a compatibilidade ou não entre os seus processos de estratégia empresarial e os de planejamento governamental vigentes. Em termos empíricos, tal preocupação exige a avaliação das condições internas e externas de controle organizacional das empresas públicas brasileiras como tema central da análise a se desenvolver. Propõe-se que este é o nivel em que aparecem mais claramente algumas contradições básicas decorrentes da ação de conjuntos complexos e de vários fatores, que determinam o papel específico assumido por empresas públicas (ou seus subgrupos) na reorganização econômica e sociopolítica do país. Esta linha de análise se contrapõe, por um lado, às tentativas de abordar empresas públicas como unidade agregada de análise e, por outro lado, à sua subdivisão em categorias demasiadamente simples, especialmente a partir de um recorte econômico-financeiro deste universo entre unidades deficitárias e superavitárias.

A lógica desta última classificação, que separa as empresas estatais bem sucedidas das aparentemente fracassadas em função da sua capacidade de acumulação (e portanto da sua suposta eficiência), é altamente questionável, pois implica transposição pura e simples de padrões para aferição de desempenho do setor privado, que opera, via de regra, em condições muito distintas daquelas do setor estatal descentralizado. Não surpreende, porém, a adoção de tais critérios, principalmente devido à facilidade operacional que ele possibilita. Além disso, a expansão recente das empresas estatais tem-se dado sob a égide de um modelo organizacional privado hipotético, considerado como padrão de excelência a ser seguido a qualquer custo. Por conseguinte, tem havido uma tendência a confundir, ao menos em parte, critérios de análise e opções valorativas que têm inspirado a própria expansão do setor estatal descentralizado. Dar ou não dar lucro tem-se transformado, assim, na questão falsamente prioritária que começa a estruturar quase toda discussão atual a respeito da expansão das empresas públicas.2 2 Até agora, a questão monetária parece ter sido o grau de partia pação do Estado na economia. Veja, por exemplo, Suzigan, Wilson. As empresas do governo e o papel do estado na economia brasileira. In: Aspectos da participação do governo na economia. Rio de Janeiro, Ipea/lnpes, 1976. (Série Monográfica, n. 26.) Veja também as críticas a este trabalho por Cipolla, Francisco Paulo. A Estatização segundo Wilson Suzigan. In: Martins, C. E. (org.) Estado e capita lismo no Brasil. São Paulo, Hucitec-Cebrap, 1977.

O encaminhamento alternativo da questão, proposto neste trabalho - enfatizando sempre a importância crescente e preponderante do setor descentralizado no quadro geral da ação governamental no Brasil - destaca um efeito perverso e fundamental da descentralização indiscriminada: a sobreposição de estruturas e competências nos aparelhos do Estado, com todas as suas implicações. Em outras palavras, nos setores em que não exista uma linha divisória bem definida entre funções centralizadas e descentralizadas, e uma clara definição da forma de articulá-las entre si, aumenta a possibilidade de um relacionamento sistematicamente redundante, conflituoso e antagônico entre os centros de decisão empresariais públicos e os centros de decisão governamentais.

Neste sentido, um dos resultados mais curiosos e expressivos da pesquisa, que será adiante relatada, foi a freqüente preocupação, expressada por executivos das empresas públicas, de resistir às investidas governamentais que prejudicam ou diminuem a capacidade da empresa para atender ao interesse público e realizar sua missão. Assim, o aumento de subordinação ao governo passa a ser pejorativamente rotulada de autarquização, em virtude do reenquadramento histórico das autarquias nos padrões da administração centralizada após um período inicial de maior autonomia e diferenciação. A tendência governamental é, pois, de alternar comportamentos contraditórios: descentraliza para agilizar e depois procura reenquadrar para não perder poder. Paralelamente, a tendência das empresas públicas também revela ambivalência e contradição: resiste ao reenquadramento no sistema político em nome da sua capacidade de satisfazer eficientemente o interesse público, e proclama o modelo privado de organização como a via ideal para atender suas metas. Com isto desloca, na prática, o interesse público como meta prioritária, colocando no lugar a sua taxa interna de acumulação e a sua dinâmica de expansão.

Além do mais, o conteúdo ambíguo e difuso do tal modelo privado de organização se presta a todo tipo de equívocos, sejam eles ingênuos ou deliberados. Com efeito, o caráter místico do modelo privado enquanto inspirador das formas de organização descentralizada estatal é claramente explicitado como necessidade de ajustamento da empresa pública à ordem competitiva para que ela possa enfrentar seus desafios. Levando-se em conta que esta ordem está longe de se estruturar na maioria dos setores econômicos vitais que operam no Brasil em condições olipogolísticas ou monopólicas, o que no fundo se propõe é o ajustamento a uma abstração que não traduz condições concretas de operação e sobrevivência das empresas. De qualquer maneira, é tal orientação que prevalece e diferencia, essencialmente, os padrões de atuação das entidades descentralizadas em relação àqueles adotados na máquina estatal centralizada. Práticas agilizadas supostamente compatíveis com o mercado, acionadas mediante mecanismos decisórios mais rápidos e menos burocratizados aparecem, assim,, em todos os setores, sobretudo na gestão e remuneração de recursos humanos, nos procedimentos de compra e investimento e na forma de interagir com seus clientes consumidores diretos de produtos ou serviços. Todavia, parece ser no primeiro dos setores mencionados - gestão e remuneração de recursos humanos - que surge mais claramente a orientação e o esforço de compatibilizar os padrões de atuação da empresa pública com os do setor privado. Talvez isto ocorra em virtude da maior facilidade de estabelecer padrões referenciais de mercado no caso da organização do trabalho, e maior dificuldade para superar intricados jogos de interesse presentes nas operações de investimento e preço do setor público como um todo. Além disso, passou-se a considerar a questão dos recursos humanos como o ponto estratégico que, previamente enfrentado, permitiria fazer face a outros pontos de estrangulamento da administração governamental.

Dentro de um quadro governamental para a administração de pontos de estrangulamento multiplicados e agravados numa conjuntura de saturação de demandas, as empresas públicas se multiplicam e se expandem de maneira casuística e semi-anárquica, mas apresentando o denominador comum de um padrão organizacional sensivelmente mais moderno do que a administração centralizada, especialmente no que se refere à gestão dos seus recursos humanos. A área descentralizada surge, então, como uma forma intermediária entre os setores público e privado, adotando práticas e padrões que provêm de ambos. Todavia isto não significa que esta forma intermediária caracterize uma fase de transição, no sentido de uma privatização gradativa das práticas e padrões de avaliação do setor público. Pelo tamanho e importância do setor público indireto pode-se supor, alternativamente, que a atual transição se encaminhe no sentido de amadurecer e cristalizar práticas próprias, distintas tanto de um referencial (o governamental) quanto de outro (os padrões privados vigentes). Isto porque a natureza das contradições acima identificadas, nas quais se debatem governo e empresa pública, não favorece seu desdobramento em soluções simples de assimilação de formas preexistentes. Em outras palavras, parece existirem limites estreitos tanto à autarquização quanto à privatização do setor público indireto, que pode amadurecer formas de comportamento e existência mais estáveis e permanentes.

Todavia, para tornar completa e integrada a linha de análise aqui sugerida, seria necessário levar em conta não somente os diferentes tipos de empresa pública relativamente aos seus padrões de atuação e controle, mas também as formas de articulação entre si, com o governo e com o setor privado. Considerando-se os setores de atividade tradicionalmente ocupados pelas empresas estatais e a intensa diversificação recente de suas atividades, deve-se destacar o alto potencial de integração interna do setor (articulação infra-estrutura/serviços), paralelamente à necessária integração entre certos tipos de empresa pública (serviços de governo) e administração centralizada.3 3 Tal idéia é brilhantemente apresentada no posfácio da edição recente do livro de Ignacio Rangel. A Inflação brasileira. São Paulo, Editora Brasiliense, 1978.

Quanto à articulação entre setor privado e empresas públicas, sua interação parece ser, via de regra, de natureza mais conjuntural e flexível, por mais intensa que seja. As exceções marcantes que devem ser apontadas referem-se a relações de dependência, de um e outro lado. De um lado, por parte de empresas privadas que dependem essencialmente de negócios com o governo para se sustentar, enquanto o governo (empresas estatais incluídas) conta com alternativas de ação que podem excluí-las. De outro lado, por parte do setor público dependente de suporte tecnológico e/ou financeiro de empresas monopólicas, que constituem presença necessária para que o governo possa desenvolver determinada linha de atividades. Afora este último caso, a liberdade e o raio de ação hipoteticamente autônomo das empresas públicas é muito amplo, sendo que suas práticas concretas são reflexo de constelações de interesse bem articulados e representados num determinado momento.

Em suma, o nível interorganizacional de análise é absolutamente imprescindível quando se busca entender a expansão e o poder crescentes das empresas públicas no Brasil; em especial, as empresas públicas só podem ser encaradas como uma totalidade, em termos históricos, ao se analisar os seus padrões de articulação entre si e com o governo, o que pode levar à superação da aparente e enorme diversidade que elas representam em termos de setores de atividade e histórias específicas.4 4 O nivel de análise aqui adotado já vem sendo foco de preocupação de alguns autores, entre os quais: Monteiro, Jorge Vianna. Organização e política pública. 1978, mimeogr.; e Giacometti, Haroldo Clemente. Public enterprises: a conceptual approach using the dimension of leadership, power and context. Dissertação de doutoramento, University of Southern Califórnia, 1978 (especialmente capítulos 5 e 6).

1.2 Critérios de análise e tipos de empresa pública

A partir dessas apreciações iniciais, torna-se possível estabelecer e detalhar certos critérios relevantes que indicarão um caminho conveniente para abordar o tema proposto. É bom frisar que não se pretende desenvolver em profundidade uma análise da composição ou do funcionamento do sistema de empresas públicas no Brasil. Objetiva-se, simplesmente, indicar e justificar a importância, em plano empírico, de certos critérios de análise que podem ajudar a compreender como a posição que vem sendo (e que tende a ser) ocupada pelas empresas públicas evidencia e faz mediação de certas contradições e dilemas essenciais da estrutura socioeconómica e política no Brasil. Tendo em vista a opção histórica do estado brasileiro - de enfrentar seus principais dilemas e contradições pela criação de empresas públicas - a tarefa aqui proposta assume muito maior relevância. São, portanto, linhas de análise que se pretende sugerir no decorrer deste trabalho, lastreadas na apresentação de alguns elementos empíricos recentemente coletados.

Antes de mais nada, para discutir os padrões de articulação das empresas públicas entre si e com o governo, é necessário distinguir algumas subcategorias ou tipos, sem buscar uma descrição abrangente e completa, mas em função de problemas concretos. Possíveis abordagens foram acima sugeridas, sem que, todavia, tivessem sido avaliadas ou justificadas. A listagem a seguir propõe a combinação de certos aspectos que serão em seguida enumerados e explicados. Referem-se à natureza da atividade, ciclo, origem dos recursos e formação, equação econômico-financeira; combinados, estes aspectos resultariam, de acordo com os critérios a seguir estabelecidos, em 80 subtipos possíveis de empresas públicas:

a) natureza da atividade:

sistema produtivo industrial;

sistema de serviços financeiros;

sistema de serviços do governo;

sistema de serviços de utilidade pública;

outros;

b) ciclo:

pré-Decreto-lei nº 200;

pós-Decreto-lei n.º 200;

c) formação e origem dos recursos:

reestruturação de atividades antes centralizadas;

novas atividades descentralizadas na origem;

d) equação econômico-financeira:

superavitárias com preponderância do financiamento externo;

superavitárias com preponderância do financiamento interno;

deficitárias com preponderância do financiamento externo;

deficitárias com preponderância do financiamento in terno.

Evidentemente não são todas as 80 combinações possíveis que podem vir a interessar, inclusive porque algumas delas sequer correspondem a tipos de empresa concretamente existentes. Felizmente isto ocorre, pois o peneiramento empírico dos tipos possíveis acaba facilitando a seqüência da análise.

1.2.1 Natureza da atividade

A expansão recente do sistema produtivo industrial estatal parece indicar claramente uma tendência à diversificação não-direcionada da ação do estado para setores preestabelecidos. Pelo contrário, a estatização do sistema produtivo, se é que existe, tem refletido sobretudo a ação do chamado capitalismo de pronto-socorro ou providencial, de auxílio e sustentação de empreendimentos privados em crise. É cedo, porém, para julgar do caráter transitório ou definitivo deste tipo de intervenção, e fica difícil ou prematuro afirmar sobre o caráter público ou privado (na prática) das empresas que passaram (conjunturalmente?) para o controle do estado sob tais condições. Assim, embora o setor industrial e estatal continue a ser, por tradição e por posição estratégica, extremamente importante na economia brasileira, as atuais transformações que ele tem sofrido não parecem ser o aspecto mais expressivo do processo em curso.

A enorme expansão do sistema financeiro estatal, constituído de agências monetárias e de desenvolvimento que se diversificaram e se especializaram em anos recentes tem-se caracterizado pelo crescimento preponderante de instituições que se aproximam gradativamente do setor privado, em função da própria natureza de suas atividades, que são mais de apoio ou socorro do que de caráter substantivo. Embora a expansão deste sistema seja elemento importante nas transformações em curso, a sua própria natureza estabelece limites ao grau de autonomia que podem desfrutar, enquanto entidades de administração descentralizada ou indireta. A vinculação das agências financeiras estatais ao esquema de funcionamento do capitalismo providencial a que já se aludiu, paralelamente à sua função mais convencional de regulação fiscal e financeira da atividade econômica, faz delas elemento expressivo do modelo político-econômico, mas não tem sido instrumento estruturador da atividade descentralizada. Todavia, pela natureza de apoio de suas atividades, ela se pode tornar meio importante para a consecução de tal finalidade, dependendo do nexo que venha a desenvolver com o sistema produtivo estatal e/ou com o sistema de serviços de utilidade pública.5 5 É bem mais abundante o material disponível que aborda os padrões de financiamento existentes e o sistema produtivo estatal comparativamente ao problema dos serviços de utilidade pública. Em especial, Finep e lpea têm estimulado a elaboração de estudos do primeiro tipo.

Em parte, o raciocínio anterior pode ser estendido ao sistema de serviços de governo; agências descentralizadas de planejamento de assessoria técnica, de processamento e armazenagem de informações estratégicas podem ser descentralizadas no seu desenho organizacional, mas permanecem, obrigatoriamente, vinculadas às esferas de governo às quais se referem; por conseguinte, sua descentralização tende a ser mais formal do que real.

Como o item outros corresponde a atividades residuais que, mesmo sendo importantes ou estratégicas, não podem por si sós provocar expressivos movimentos estruturais no modelo político-econômico, só resta a avaliar o sistema de serviços de utilidade pública desenvolvidos pelo governo, como virtual pólo dinâmico da expansão atual e futura das atividades estatais descentralizadas. A natureza extremamente complexa do setor e os múltiplos aspectos envolvidos no seu processo de expansão recomendam, todavia, que sua abordagem seja tratada à parte. Por ora, é essencial registrar que as possibilidades potenciais de articulação e de integração do sistema estatal, centrado na expansão das empresas estatais de serviços de utilidade pública, além de serem muito amplas, fazem parte de um processo já embrionário.

1.2.2 Ciclos anteriores e posteriores a 1967

A importância da reforma administrativa federal como marco que separa em duas grandes categorias as empresas públicas brasileiras é inequívoca.

Existem, todavia, outras possibilidades de classificação sugestiva. Sulamis Dain, por exemplo, aponta três gerações histórico-genéticas no caso específico da expansão do sistema produtivo estatal; mas a geração intermediária apontada pela autora, que vai do Plano de Metas a 1964, é muito menos importante que as outras duas e apresenta bastante afinidade e continuidade com a primeira geração. Evidentemente, não é pelo fato de terem sido criadas em um mesmo ciclo amplamente definido que as empresas públicas serão homogêneas ou uniformes. Mas não resta dúvida de que o corte aqui proposto sugere certas condições gerais que têm influenciado homogeneamente a criação e a expansão de empresas de mesmo ciclo.6 6 Veja Dain, Sulamis. Empresa estatal e política econômica no Brasil. In: Martins, C. E. op. cit.

A própria tendência de abordar o sistema produtivo estatal como categoria à parte, em face da totalidade de empresas públicas, parece inspirar-se na natureza do processo pré-1967. Pois como após o Decreto-lei nº 200 houve enorme diversificação - que empurrou o processo de expansão das empresas públicas para fora do sistema produtivo - a validade deste critério para explicar e entender o papel das estatais na sustentação posterior do modelo político-econômico fica em parte prejudicada.

Como foi sugerido na seção precedente, o corte proposto distingue empresas pelo seu maior ou menor envolvimento deliberado e explícito na estruturação de um modelo político-econômico: a idéia-chave da primeira fase era integrar as novas unidades numa estratégia de desenvolvimento dada, enquanto que a noção dominante que tem informado a gênese e funcionamento das novas unidades deste último ciclo é a de capacidade operacional. Embora estes dois enfoques não se excluam, a predominância do segundo contribui decisivamente para a coexistência de processos de alta centralização de tomada de decisões e de atomização, especialização e dispersão do poder. A ambivalência entre centralização e fragmentação de poder tem resultado na criação de estruturas de controle e integração vertical, das quais são exemplos as holdings federais e órgãos da administração direta que têm procurado desempenhar função semelhante. Em suma, as empresas do primeiro ciclo estão envolvidas de maneira muito mais clara na lógica e no estilo de planejamento vigente, como implementadoras ou até como responsáveis pela própria formulação de políticas setoriais. O jogo de interesses que condiciona a operação das empresas do segundo ciclo é ainda muito caótico e anárquico; talvez por uma simples questão de juventude não tenha havido tempo para estabilização e amadurecimento de sua participação no jogo.

1.2.3 Formação e recursos

Dada a seqüência que se pretende dar a este artigo, a origem dos recursos utilizados na formação das empresas se torna critério mais importante para classificar e distinguir os diferentes tipos de empresas públicas. Isto porque a maior ou menor facilidade para atingir um objetivo básico da descentralização - melhoria da capacidade operacional - depende da menor ou maior proximidade das novas unidades em relação às administrações centrais. Em outras palavras, a empresa que herda recursos humanos, físicos e financeiros da administração pública enfrenta maiores dificuldades para instaurar novos padrões de atuação, em comparação com empresas que se organizam de maneira mais autônoma, a partir do investimento econômico-financeiro estatal, mas em condições de se emancipar economicamente da tutela do Estado.

A reorganização e conglomeração descentralizada de atividades governamentais preexistentes parece apresentar problemas de natureza muito diferente dos enfrentados pela estruturação de empresas públicas inteiramente novas, tanto no que se refere a seus padrões de atuação quanto aos padrões de controle organizacional e político das mesmas.7 7 Em face de tais variações internas, a hipótese de formação no Brasil de um "Estado-empresário associado", sugerida por Fernando Henrique Cardoso, resta a ser comprovada em termos empíricos. Para tanto, o caminho que o próprio autor aponta, mas não assume, de análise do "jogo institucional vigente" parece ser adequada. Veja Cardoso, F. H. Desenvolvimento capitalista e estado: bases e alternativas. In: Martins, C. E., op. cit.

1.2.4 Equação econômico-financeira

Sulamis Dain aponta acertadamente as limitações do uso preponderante do critério financeiro para discutir o papel político-econômico das empresas públicas no Brasil:

"A abordagem das relações entre a política econômica e a empresa estatal, centrada no seu padrão de financiamento, põe em relevo a dimensão financeira da questão e apenas marginalmente contribui para o esclarecimento de outras instâncias desta autonomia."

Com efeito, o fato em si de as empresas estatais serem superavitárias ou deficitárias pouco representa, pois muitas vezes isso é resultado de jogos e artifícios contábeis ou da forma de administrar seus preços. Mas a associação desta variável ao seu padrão de financiamento é fator dos mais relevantes para explicar suas formas de operação e expansão. Como nota a mesma autora:

"Ironicamente, a busca de maior autonomia, que marca a estratégia empresarial estatal, na tentativa de superar as restrições que lhe são impostas por outras esferas de decisão governamental, terminam por provocar, ao nível macroeconômico, exatamente o efeito contrário: a solução de impasses quanto a restrições tecnológicas e de financiamento tem intensificado a dependência do setor produtivo estatal frente ao capital estrangeiro."8 8 Dain, Sulamis. op. cit. p. 158.

As implicações políticas desta tendência aparecem na possibilidade de formação do que tem sido chamado por alguns analistas de estado empresário associado (ao capital estrangeiro). Esta hipótese só poderia ser efetivamente verificada por meio da análise exaustiva da evolução do setor empresarial estatal (produtivo e de serviços públicos) dentro da linha de análise aqui sugerida.

A hipótese a ser detalhada na próxima parte sugere que o sistema de serviços de utilidade pública tende a se tornar o elemento estratégico de articulação e de integração do conjunto de empresas do governo, e de fortalecimento da posição das mesmas na formulação, funcionamento de um modelo qualquer de organização político-econômica no Brasil. Isto é, a eventual lógica do sistema, caso se manifeste como coerência, integração e complementariedade entre as várias partes do todo político-econômico, tende a se estruturar tendo como ponto central a viabilidade e expansão dos serviços de utilidade pública predominantemente assumidos pelo Estado. Caso contrário, a própria suposição da existência de um modelo político-econômico será um pobre estímulo para exercícios acadêmicos que podem até ser inteligentes, mas fúteis, em condições de realidade nas quais a lógica dominante é a de comportamentos anárquicos e conjunturais visando improvisar eficazmente a representação dos interesses dos grupos privilegiados. Quando isto ocorre, a própria noção de políticas públicas (de qualquer tipo) tem um sabor fictício e artificial de construções que são mais o fruto da imaginação fértil dos analistas do que a expressão de uma realidade concreta.

1.3 O contexto em que operam as empresas de serviços de utilidade pública

O crescimento dos serviços urbanos de utilidade pública comprova a participação crescente do setor serviços (tradicionais e modernos) na população economicamente ativa, embora os serviços que mais cresceram e se modernizaram entre 1940 e 1960 tenham sido os diretamente ligados à expansão das atividades industriais.

Crescendo sem se modernizar no mesmo ritmo, os serviços diretamente ligados à reprodução da força de trabalho têm servido para manter baixo seu custo de reprodução, forçando a expansão improvisada de mecanismos urbanos de subsistência em cidades precariamente equipadas. Mas não se reproduzem indefinidamente as condições do sistema capitalista, inclusive de dominação, por meio de um terciário de crescimento não-capitalista. O próprio crescimento descontrolado das cidades (metropolização) acaba descaracterizando a força de trabalho enquanto tal, a não ser que se institucionalize e aumente o seu custo de reprodução. Quando isto acontece, o custo de reprodução da força de trabalho precisa ser assumido, quer pelas empresas, quer pelo estado, exigindo a estruturação de um sistema institucional e legal de apoio como o existente para a reprodução do capital industrial e para a acumulação financeira, setores em que é viabilizado o controle e apropriação do excedente pelo modelo político-econômico.9 9 Discussão teórica muito interessante que aponta nesta direção é encontrada em Preteceille, Edmond. La Planification urbaine: les contradictions de ('urbanisations capitaliste. Economie e Politique, n. 236, mars 1974.

Neste ponto, a pergunta que surge naturalmente é de onde e como tirar dinheiro para sustentar a mercantilização do custo de reprodução da força de trabalho; tal problema, no Brasil, vem surgindo no contexto de crises que são mais políticas que econômicas, em que "a inversão cai não porque não pudesse realizar-se economicamente, mas sim porque não poderia realizar-se institucionalmente". Esta apreciação, feita por Oliveira para a crise pré-64, parece ser plenamente adequada para caracterizar a crise que vem sendo atravessada. Em outras palavras, se a órbita financeira não chega a cumprir adequadamente nem mesmo sua função de captação de recursos para o setor produtivo industrial dinâmico, que dizer da viabilidade de alimentar áreas de maior risco vinculadas ao aumento do custo de reprodução da força de trabalho?

O paradoxo maior de tal situação é que a institucionalização deste custo vem-se tornando cada vez mais necessária, enquanto vai-se formando um sistema cada vez mais solidário e rígido de esterilização produtiva do capital, por um lado, e de recriação de formas urbanas de organização não-capitalista de serviços, inclusive modernos. Em relação à demanda solvente, os serviços produzidos em massa tendem a desenvolver capacidade ociosa, enquanto se mantêm em nível extremamente insuficiente em vista da carência global.

Com efeito, as deseconomias, a anarquia e a patologia urbana são, em primeiro lugar, resultado das incompatibilidades entre a busca ao lucro e as formas de atendimento (ou não) a necessidades sociais. A tendência é de só produzir e fazer circular mercadorias que permitam a acumulação privada do capital. Os serviços urbanos tendem a fugir a esta regra devido a:

a) uso coletivo não-divisível de muitos deles;

b) a necessidade de apropriação coletiva do solo urbano confutando com obstáculos fundiários;

c) composição orgânica do capital muito elevada e rotação muito baixa;

d) não responder a interesses capitalistas individuais.

Aparece aqui uma das contradições fundamentais da urbanização capitalista "entre a necessidade de uma socialização crescente da apropriação do espaço para a reprodução ampliada das forças produtivas e a apropriação capitalista privada deste espaço, dominada pelas exigências múltiplas e concorrentes de valorização dos diferentes capitais".

Em suma, a formação de uma sociedade urbano-industrial de massas no Brasil vem tornando cada vez mais complexo e difícil o processo de reprodução da força de trabalho urbana. Por conseguinte, a carência de serviços públicos de todo tipo tende a crescer muito rapidamente.

Acontece, porém, que, sobretudo em condições altamente polarizadas de distribuição de renda e de padrões de vida, como ocorre no Brasil, esta carência não se transforma jamais em damanda solvente, economicamente significativa em termos capitalistas, na medida em que a grande maioria da população não tem possibilidades de arcar com parcela significativa do ônus real dos serviços que venha a receber. Dessa forma, a organização do consumo coletivo passa a ser, obrigatoriamente, tarefa governamental, e as políticas de preços e critérios de tarifação dos serviços públicos enfrentam necessariamente o problema de definição de um nível qualquer (alto) de subsídios politicamente fixados. Naturalmente, a tendência de fixação do menor subsídio possível acaba acarretando dois tipos de pressão: sobre os preços, em busca da tarifação mais realista possível, e sobre os custos de produção de serviços. Mas enquanto a tendência ao realismo tarifário se coaduna bem com a expansão de serviços prestados aos setores mais solventes da população urbana, a redução de custos enfrenta obstáculos mais sérios: não se compatibiliza muito bem com um complexo jogo de interesses que abrange fornecedores e empreiteiros privados, outros setores que se aproveitam dos benefícios indiretos da atividade desenvolvida, e a própria organização preexistente que enquadra e condiciona o modus operandi de produção do serviço. Em conseqüência, o consumo de caráter coletivo tende a ser organizado tendo em vista as necessidades e o benefício daqueles que menos precisam do socorro governamental: as camadas médias e a burguesia, que podem pagar e sabem reivindicar.

O nível de poder aquisitivo torna-se assim condição de acesso à maioria dos serviços públicos, apesar de sua expansão ser determinada pela necessidade crescente de administrar a reprodução da força de trabalho por meio da organização social do consumo. Ocorre, portanto, um efeito invertido na proposta de integração da população urbana num sistema de consumo socialmente organizado: a exclusão do consumo coletivo organizado e participação predominante da população em setores de precária organização social do consumo pressiona para baixo os gastos domésticos em despesas básicas - educação, transporte, saúde, lazer etc. - liberando algum poder aquisitivo para o consumo de natureza individual, inclusive de bens duráveis e mesmo para os grupos de baixa renda.

Contudo, a atividade estatal de produção de serviços não deixa de aparecer como ocupação de espaços vazios que não podem ser cobertos pela iniciativa privada em virtude de:

a) volume e prazo de maturação dos investimentos;

b) fatores socioeconómicos e políticos que limitam a determinação da tarifa.

Conjugados, estes dois aspectos acabam por impedir a canalização de um fluxo de recursos necessários à sustentação da atividade, embora possa estimular a expansão de atividades capitalistas em áreas afins, complementares ou de apoio. Quando isto acontece, o envolvimento indireto do setor privado na produção de serviços públicos tende a contribuir para aumentar o valor do investimento ou os custos de operação e para diminuir a possibilidade de o governo ou a empresa estatal de serviços tirarem proveito de certas externalidades do empreendimento (como, por exemplo, de valorização imobiliária etc). Embora a capitalização pública das externalidades pudesse compensar o alto volume inicial de gastos exigidos, propiciando maior liberdade na fixação de tarifas e expansão de serviços de acordo com prioridades sociais, o jogo de interesses a ser enfrentado torna quase sempre inviável a adoção de tal estratégia.

Neste sentido, a adoção da via indireta ou descentralizada - empresas públicas - para produzir serviços públicos no Brasil parece estar facilitando sua articulação com constelações de negócios privados envolvidos em cada atividade específica. Mas tal articulação não responde à necessidade maior de instituir nexos financeiros intersetoriais de forma a canalizar regularmente recursos para o sistema estatal de serviços, em função de uma expansão permanente de força de trabalho urbana da qual decorre a multiplicação de carências e necessidades muito mais complexas.10 10 Veja Rangel, Ignacio, op. cit. especialmente p. 138-40.

A falta de um nexo financeiro deste tipo tem causado, no Brasil, um padrão de produção de serviços extremamente irregular, baseado em programas de investimento conjunturalmente estabelecidos e sistematicamente alterados em função de pressões e interesses de momento, na medida em que:

a) o recurso à fiscalização, como base de sustentação, é por definição insuficiente, a não ser que se vivesse num sistema fiscal violentamente progressivo;

b) a busca de tarifação realista tem limites estreitos, por excluir parcela majoritária da população que não pode pagar, e incluir parcela minoritária que não quer pagar pelo serviço recebido (e tem poder de barganha para tal);

c) o recurso ao endividamento interno e externo, que aparece como importantíssima válvula de escape para o impasse do nexo financeiro, pode acabar pondo em risco a própria viabilidade econômica do sistema.

Por outro lado, as condições de manipulação da demanda tem permitido, até agora, o controle do impacto das irregularidades de expansão e de distribuição dos serviços públicos na medida em que:

a) o atendimento à demanda insolvente não se tem constituído em medida inadiável pois o sistema de controle e repressão funciona eficazmente e bloqueia a transformação de carências em problemas sociais e políticos; enquanto tais carências não impedirem a força de trabalho de funcionar no nível de produtividade exigida pelo sistema, a repressão pode resolver;

b) a insuficiência no atendimento à demanda solvente tem sido suprida pela expansão de mecanismos paralelos providenciados pelos próprios interessados, por exemplo, por meio do transporte individual, da medicina privada, do lazer como privilégio dos riscos, da segurança particular etc. Muitos destes aspectos são inclusive supridos pelos benefícios seletivos que são propiciados pelas relações de emprego.

É muito importante esclarecer que o controle dos efeitos perniciosos do financiamento insuficiente e precário dos serviços públicos tem limites que, provavelmente, estão por ser atingidos, pois:

a) quanto mais se ampliar a urbanização e o crescimento urbano, mais difícil fica, para os setores mais pobres, a descoberta de formas de quebrar o galho e atender as necessidades comuns mais prementes por auto-organização ou por improvisação; conseqüentemente, a exigência de uma organização institucional do consumo coletivo se torna mais premente;

b) podem-se localizar pontos de inflexão a partir dos quais o atendimento à população deixa de se referir aos seus desejos e aspirações e passa a condicionar a sua existência e reprodução como força de trabalho. Por exemplo, quando as desvantagens de um trabalho regular são avaliadas como superiores às vantagens pela mão-de-obra não-qualificada em razão de certas condições básicas de reprodução da força de trabalho, entre as quais: poder aquisitivo do salário (mínimo), gastos com transporte coletivo e tempo de deslocamento para o trabalho, aumento de gastos com vestuário, irrelevância de benefícios sociais eventualmente vinculados ao emprego, como assistência médica, alimentação, lazer, educação etc; em função destes fatores a situação de desemprego e subemprego eventual pode tornar-se racionalmente preferível, sobretudo pela inexistência de um consumo socialmente organizado que alimente de forma eficaz a reprodução da força de trabalho. Há claros sintomas de expansão destes pontos de inflexão, o que se constata pela crescente diversificação de atividades de muitas empresas públicas e privadas no que se refere à gestão e controle mais autônomo da reprodução da sua própria força de trabalho. Têm sido providenciados pelas empresas, cada vez mais: transporte, assistência médica externa ao sistema previdenciário, lazer, formação e treinamento internos da sua própria força de trabalho, facilidades para adquirir casa própria etc. Pode-se supor que, quanto mais precários são os serviços públicos, mais se reforçará esta tendência de substituição, tornando a força de trabalho mais diretamente dependente do seu vínculo empregaticio para sobreviver.

Ao indicar que a necessidade de expansão dos serviços públicos vem de longe, Ignacio Rangel sugere que o ciclo econômico que está findando concentrouse na expansão de bens duráveis de consumo por uma questão de "linha de menor resistência" ou seja, maior facilidade para suprir recursos financeiros neste setor. Mas, ao mesmo tempo, a expansão da construção civil antecipava a necessidade inadiável de impulsionar os grandes serviços de utilidade pública, o que em parte ocorreu mediante soluções insuficientes ou inadequadas do fisco e das entradas de capital externo.

O mesmo autor chama a atenção para a busca de meios institucionais que sustentem e impulsionem uma expansão ordenada e coerente do novo setor estratégico. Segundo ele, o mesmo aparelho financeiro que estimulou inintencionalmente o crescimento recente da economia nacional puxado pelo setor de bens duráveis "não pôde resolver o problema de suprir recursos à inadiável reforma do sistema ferroviário, dos transportes urbanos pesados de massa (metrô e pré-metrô), dos serviços municipais etc" . Sua conclusão é que "inintencionalmente, portanto, a economia nacional tem sido compartimentada em setores, sem outra rationale senão o fato de as atividades específicas se ajustarem ou não às possibilidades das instituições financeiras (inclusive fiscais, cambiais etc.) implantadas sob a pressão de cada crise''.

Oliveira & Reichstul elaboram diagnóstico semelhante, sem concluir pela mesma solução apontada por Rangel, pois atribuem grande rigidez ao setor serviços. "O mercado de capitais cativo dos incentivos fiscais transforma-se, assim, na parteira dos conglomerados no Brasil, radicalizando, talvez precocemente, uma tendência do capitalismo em escala mundial."11 11 Id. ibid. p. 134; e Oliveira & Reichstul. Mudanças na divisão inter-regional do trabalho no Brasil. Estudos Cebrap, n. 4, p. 161, avr./juin. 1973. Embora percebam tendência de esgotamento deste processo, não fazem previsões alternativas.

Por conseguinte, o problema que se coloca é de estruturação de um novo pacto político-econômico que desafiaria a lógica que tem regido o funcionamento do sistema, identificada por esses autores. Em outras palavras, a economia deixaria de se direcionar em função das condições de operação das instituições disponíveis, passando a evoluir e criar instituições em função de novas necessidades estruturais.

Na prática, tal desdobramento não parece fácil ou provável, pois a busca frustrada de novas soluções para o financiamento e comercialização da habitação popular indica dilemas e contradições inerentes ao sistema sociopolítico e econômico semelhantes àqueles que devem ser enfrentados na expansão dos serviços de utilidade pública; são carências que não têm significado concreto de demanda capitalista, só se tornando uma questão econômica e uma contradição política na medida em que afetam intensamente o processo de reprodução da força de trabalho.12 12 Discussão teórica relevante para este ponto aparece em Magri, Susana. Besoins sociaux et politique du logement. La Pensée, n. 180, avr. 1975.

Não se propõe todavia este trabalho a prescrever linhas de ação adequadas para solucionar ou remediar tais problemas, mas simplesmente discutir os paradoxos inerentes às tentativas em curso de adotar o modelo privado como ideal para o funcionamento das empresas públicas em geral. O destaque é dado nesta seção às empresas de serviço de utilidade pública pois nelas - mais que nas outras empresas do sistema produtivo estatal - observa-se a inviabilidade financeira de sua integração capitalista.

De qualquer maneira, ainda que estas nossas condições de capitalismo monopólico subdesenvolvido impeçam a formulação de uma equação econômico-financeira capitalista para as empresas do setor, isto não significa que seja igualmente impossível a formulação de um padrão organizacional e humano que tenha como referencial as práticas (efetivas ou idealizadas) vigentes no setor privado.

Neste sentido, a própria centralização desmedida dos serviços de utilidade pública parece ser uma reação governamental à inviabilidade da sua integração financeira capitalista, e não uma exigência derivada à natureza da maioria das atividades. Como decorrência dessa centralização, impõe-se cada vez mais a modernização burocrática das empresas gigantes que passam a exercer monopólios nos vários setores. Neste contexto, os limites à convergência de padrões entre empresas privadas e públicas aparece como tema importante, caso se queira compreender o papel que estas últimas vêm assumindo no quadro da atual crise brasileira. Mesmo porque as formas possíveis de articulação entre os dois setores dependem, em grande parte, da maneira como eles se estruturam e não só dos interesses envolvidos e preexistentes. Pois, num país como o Brasil, o equacionamento circunstancial, oportunista e predatório de interesses hegemônicos em função de instituições e mecanismos socioeconómicos ambivalentes disponíveis supera com freqüência o processo oposto, em que a pré-definição de interesses hegemônicos leva à construção dos mecanismos institucionais adequados à sua representação.

2. INTEGRAÇÃO DAS EMPRESAS PÚBLICAS NO SISTEMA EMPRESARIAL CAPITALISTA: PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS E DE RECURSOS HUMANOS

2.1 Algumas semelhanças organizacionais entre empresas públicas e privadas.

Os resultados mais uniformes e expressivos da pesquisa13 13 Trata-se aqui de aproveitamento parcial e em maior profundidade de dados colhidos com outra finalidade. A composição da amostra de empresas públicas e privadas e o roteiro das entrevistas aparecem nos Anexos 1 e 2 deste trabalho. se referem à tendência acentuada de adoção de estratégias muito semelhantes nas grandes empresas de todos os tipos, públicas e privadas, quanto às suas tendências atuais de organização da força de trabalho. Existe um alto grau de integração e de articulação entre as grandes unidades econômicas, o que une cada vez mais as empresas estatais, especialmente as de serviços. A orientação mais marcante, abrangente, estruturadora e ordenadora do relacionamento da empresa ou grupo com o mercado se traduz pela prioridade explícita do recrutamento interno como processo ideal de preenchimento de posições. Embora tal prioridade não se estabeleça de forma absoluta, e nem sempre se traduza pela predominância efetiva da mobilidade interna, não deixa de ser quase unanimemente definida como estratégia fundamental a ser seguida. Mesmo as empresas públicas - nas quais, devido à maior proximidade da administração pública, são grandes os temores da rigidez burocrática dos sistemas organizacionais mais fechados - percebem a criação de uma burocracia forte como condição de resistência ao assalto dos interesses políticos externos; e a criação de uma burocracia forte é vista como dependente da abertura interna de oportunidades aproveitadas no sentido de satisfazer as ambições de carreira dos melhores e dos mais capazes. À prioridade do recrutamento interno colocam-se, porém, certas limitações: um mínimo de abertura para o mercado é visto como meio imprescindível de gerar uma inquietude construtiva, isto é, um mínimo de insegurança que estimula o pessoal da empresa a não se acomodar a rotinas rígidas e superadas, a não se desligar de preocupações pessoais com formação e treinamento etc. E, na prática, as empresas estão diversamente equipadas com instrumentos formais ou informais, mais ou menos eficazes, para ordenar e promover a mobilidade interna.

Como tendência geral, as empresas brasileiras não-industriais parecem ser as que têm enfrentado maior dificuldade para reter e promover internamente seu pessoal de nível médio e alto. O turnover mais elevado que, via de regra, ocorre nessas empresas as coloca, assim, em situação de maior dependência em relação ao seu ambiente socioeconómico ao mercado.

Os critérios de preenchimento de posições propriamente de cúpula merecem consideração à parte. Se bem que a estabilidade dos quadros dirigentes varie grandemente de empresa para empresa, os critérios de reposição são extremamente semelhantes a partir do momento em que se abre uma vaga. A prioridade do recrutamento interno cai por terra, e a indicação pessoal - pela cúpula da empresa - de elementos externos passa a predominar. Há indícios claros e gerais da existência de uma linha de bloqueio em nível médio ou médio-alto a partir da qual critérios mais difusos, ambíguos, pessoais e oligárquicos passam a predominar na maioria das empresas. Em cada uma delas, portanto, a carreira de um profissional médio é bem delimitada quanto à determinação do seu ponto máximo de ascensão. O office-boy que virou presidente é um mito que enfrenta barreiras organizacionais poderosas, critérios confusos mas enraizados que demarcam os limites entre os que têm vocação técnica, gerencial ou administrativa média, e os que têm talento, boas origens ou mise-en-scêne suficiente para se tornarem parte do grupo dirigente. A natureza da confiança das posições de cúpula e de chefia em geral, formalmente explicitada com clareza em muitas empresas públicas, é prática generalizada da maioria das empresas públicas e privadas. Num grande grupo privado, por exemplo, a qualificação expressiva de missão do posto é adotada para diferenciar a natureza dos cargos exercidos na cúpula em referência à empresa como um todo. Enquanto representantes e símbolos da ordem organizacional vigente, os dois, três ou quatro níveis hierárquicos mais altos conseguem, provavelmente, melhor se desincumbir de sua missão na medida em que sejam elementos vindos de fora, e não um dos nossos, que teria maior dificuldade de administrar as distâncias convenientes à sustentação da hierarquia. Uma diferença marcante aparece, todavia, entre empresas privadas e públicas: nestas últimas, há maior tendência de se realizarem movimentos de pequenos grupos em vez de individuais, com equipes que se transferem em conjunto de uma empresa para outra.

Cabe agora detalhar melhor os arranjos organizacionais de que dispõem diferentes tipos de empresa para a gestão das demandas do seu pessoal e para administrar a rotatividade e o grau de abertura ao mercado daí decorrente. Com efeito, a mobilidade interna é geralmente organizada pela articulação de quatro elementos principais: os sistemas de avaliação já referidos, os esquemas de sucessão ou de planejamento de carreira, os programas de formação e treinamento, e os sistemas de recrutamento e seleção vigentes.

Raramente as empresas se caracterizam por dispor de um sistema de mobilidade interna formalmente previsto e planejado. Uma conseqüência paralela negativa' da promoção planejada foi insistentemente ressaltada em muitas empresas: a possibilidade de frustração em cadeia de expectativas criadas deliberadamente, alimentadas, e que por qualquer motivo a empresa não possa ou não queira satisfazer. Por causa disso, a opção da grande maioria é de manter mecanismos informais de ativação da mobilidade interna, o que dá uma margem de manobra muito maior para os escalões superiores exercerem autoridade pessoal. As ressalvas à carreira planejada encontram grande ressonância nas empresas públicas, onde a própria expressão carreira sugere uma carga muito negativa, vinculada à forma de estruturação e promoção de carreiras - baseada quase exclusivamente em antigüidade - nos quadros da administração pública direta. Em vários casos de sistemas formais vigentes ou em implantação, as posições de chefia, em todos os níveis ou na cúpula, são definidas fora das etapas previstas de ascensão, mantendo-se como posições de confiança que merecem tratamento à parte. Apesar dessas resistências de ordem geral, é grande o número de empresas que estão pelo menos, em fase de implantação de um sistema parcial de planejamento de carreira, visando formalizar e expandir a mobilidade interna nos níveis médios e inferiores, e criar mecanismos mais sistemáticos de enraizamento do pessoal.

A implantação de programas de promoção profissional está quase sempre ligada a uma atividade intensa ou em expansão na área de treinamento; na maioria das empresas que dispõem de treinamento em larga escala, percebe-se a organização da mobilidade como uma necessidade básica para impedir a evasão da mão-de-obra que a empresa treinou e para a qual não se abriram novas oportunidades. Há, predominantemente, preocupação com treinamento tecnológico e com diagnóstico circunscrito às necessidades imediatas das empresas, enquanto os treinamentos administrativo e gerencial são vistos freqüentemente com certa desconfiança em virtude dos modismos que invadem o mercado, anunciando panaceias milagrosas e alimentando a rendosa indústria da formação permanente.

De qualquer maneira, a diversificação de programas para atendimento de necessidades menos prementes tem sido grandemente incentivada pela possibilidade legal de aplicar incentivos altamente vantajosos ao treinamento de pessoal.14 14 A referência é a Lei nº 6.297, que tem estimulado uma verdadeira indústria de treinamento com fins fiscais. Com isto, o governo financia a formação profissional, principalmente de nível médio, dentro do contexto empresarial, remediando a lacuna grave de um sistema muito precário de ensino médio profissional, de uma forma que parece ser a mais conveniente e lucrativa do ponto de vista das empresas. Não deixa de ser paradoxal que a responsabilidade pelo controle da formação de mão-de-obra necessária ao sistema econômico seja atribuído em grande parte às empresas em face da rápida e intensa expansão do sistema educacional no Brasil. Este parece ser um fator importante que contribui para que na própria expansão da rede de ensino brasileiro esteja contido, contraditoriamente, o seu esvaziamento. A reciclagem automática e institucionalizada, que transforma ex-estudantes em profissionais dentro das empresas, tem como pressuposto a pouca utilidade dos anos escolares e coloca em questão a natureza da articulação entre empresa e escola na sociedade capitalista. E, evidentemente, quanto maiores as unidades empresariais dentro das quais se organize o treinamento, mais ambicioso e diversificados podem ser seus objetivos e alcance, e maior autonomia pode desfrutar a empresa em relação ao mercado e às instituições educacionais exteriores; isto é, com melhores condições ela terá de se tornar uma instituição total, do ponto de vista da produção, gestão e controle dos recursos humanos de que ela tenha necessidade. A utilização em larga escala da Lei nº 6.297, como tendência amplamente difundida na maioria das empresas, implica e sugere uma situação limite desse tipo.

Esta interpretação mostra profunda coerência com a forma e as tendências atuais de organização das atividades de recrutamento e seleção. Campo de decisões reservado predominantemente às cúpulas empresariais ou aos interessados diretos - os superiores imediatos dos profissionais a serem contratados - este é talvez o setor que dá maior margem ao tráfico de influência, ao nepotismo, e ao jogo sutil de cooptações e de formação de coalizões informais dentro das empresas. A importância comprovada da indicação pessoal em quase todas as empresas é um ponto de partida que não pode ser negligenciado nesta linha de análise, pois quem recruta é predominantemente quem promove, fazendo aumentar salários, ampliar benefícios, e crescer o prestígio do recrutado. Conseqüentemente, na medida em que existam múltiplos recrutadores, existirão também múltiplos critérios de seleção, menos ligados às condições de operação e ao perfil da empresa contratante, e mais ao temperamento e à estrutura de personalidade dos que finalmente acabam decidindo a contratação. Nas respostas obtidas foi unânime a afirmação de que inexistem critérios gerais de seleção, uma vez que cada vaga corresponde sempre a uma constelação de necessidades muito específicas da empresa e, sobretudo, do setor. O respeito ao menos formal dos territórios é muito enfatizado, e o direito de preferência do superior imediato na escolha final parece fazer parte de um pacto coletivamente aceito: ninguém interfere na área de ninguém, a menos que solicitado ou que esteja em jogo alguma orientação formulada na cúpula da empresa. Mesmo o direito de interferir verticalmente, de cima para baixo, parece ser praticado com economia e cautela nestes casos. Principalmente quando se trata de recrutamento interno, os processos de formação de lealdades são mais eficazes ao nível da equipe, isto é, do esprit-de-corps que produz o pequeno grupo e não a empresa, que aparece já como uma abstração meio longínqua. Em geral, tanto em empresas públicas quanto privadas o setor encarregado da gestão de recursos humanos pouco interfere no processo quando se trata de recrutamento por promoção interna, e participa de forma secundária mas operacional na maioria das vezes em que a empresa se volta para o mercado. Em quase todos os casos, de nível médio para cima, a sua participação não vai além do processamento e proposta de alternativas, encaminhando decisões que se concluem sempre fora de sua esfera de ação.

É interessante notar uma reação unânime à questão relativa ao peso de critérios subjetivos no processo de seleção: ainda que com nuanças variadas, houve rejeição sistemática da questão proposta. Embora a maioria reconheça que há fatores pessoais e psicológicos que interferem no processo, todos se apressaram a afirmar que no caso da sua empresa o peso desses fatores é sempre minimizado, para que se realize efetivamente uma seleção de competências. É flagrante a contradição de tal afirmação com o reconhecimento geral da grande dificuldade de se avaliar o desempenho pessoal em nível médio e alto. E, no entanto, a busca da lealdade à instituição, que aparece objetivamente como um dos princípios organizadores do processo de recrutamento ao se dar prioridade ao recrutamento interno, reaparece como argumento forte quando a maioria das empresas indica que analisa com cuidados especiais a trajetória profissional de candidatos vindos de fora, quando estes apresentam mobilidade de emprego considerada acima do normal ou do plausível. Parece, portanto, que o modo de funcionamento do mercado de trabalho, especialmente entre 1967 e 1974, que incentivou a circulação de mão-de-obra qualificada como estratégia por excelência de ascensão profissional, causou reações defensivas bem estruturadas no âmbito das empresas: mobilidade exagerada depõe ao mesmo tempo contra profissionais indóceis e empresas desorganizadas que não sabem reter seu contingente humano. Neste contexto socioeconómico, foi-se formando um consenso bastante geral a respeito de quais são as más empresas e do que é a mobilidade plausível e aceitável de um profissional legitimamente ambicioso.

A permanência normal num mesmo emprego de três a cinco anos foi várias vezes explicada como tendo um significado cíclico: no primeiro ano é feito o reconhecimento do terreno; no segundo ano é estabelecido, aos poucos, um programa de ação; do terceiro ano em diante procura-se consolidar a posição; e do quinto ano em diante, o profissional sente que já se acomodou e que está na hora de mudar de empresa "para não virar ativo fixo", segundo expressão de um entrevistado. Para a maioria das empresas, menos de três anos em média por emprego só se justifica em início de carreira, ou em circunstâncias particulares que precisam ser muito bem explicadas.

Definindo-se a necessidade de enraizar pessoal como um dos problemas essenciais da gestão de recursos humanos, a distinção de tamanho passa a ser a mais significativa para comparar a ação das empresas no mercado, pois as grandes unidades - empresas ou grupos - têm muito melhores condições de estruturar um sistema de gestão especializado e complexo, muito mais viável quando operado em larga escala: organizadas para promover a mobilidade interna, evitando demitir e procurando reaproveitar, contratando mesmo sem necessidade imediata, para reservar para si profissionais considerados como excepcionais, expandindo tipos de benefícios que vinculam os funcionários em prazo mais longo, ampliando enormemente seus programas de treinamento, as grandes unidades do sistema econômico estão criando condições para operar com enorme autonomia dentro de um ambiente socioeconómico e político com freqüência considerado por seus dirigentes como demasiadamente instável e mesmo hostil.

Devem-se, finalmente, especificar algumas diferenças importantes que ocorrem dentro deste quadro geral bastante uniforme. Apesar do patrimonialismo ainda sobrevivente das empresas brasileiras, e do paternalismo arraigado nas relações pessoais entre o patrão proprietário e seus empregados, há menor preocupação nestas do que nas estrangeiras como promoção e mobilidade interna. Talvez o patrão brasileiro tenha uma crença mais profunda no caráter rígido e correto da repartição de posições vigente: desse ponto de vista, cada empregado é bom no lugar em que sempre esteve; para satisfazer necessidades novas, é melhor ir buscar gente de fora. Há, portanto, menor planejamento de mobilidade e carreira e a adesão ao treinamento em larga escala não ocorre sem sobressaltos, pois percebe-se que tal treinamento acaba exacerbando desejos de mobilidade que a maior parte das empresas não está apta para atender. Estas preocupações foram mais detectáveis em empresas não-industriais ou industriais de menor porte que ressentem uma maior dependência do mercado e negociam com a sua própria mão-de-obra em posição menos favorável.

Quanto às empresas públicas mais recentes, é nelas que mais se observa a preocupação geral de equilibrar recrutamento interno e externo como meio de comparação, isto é, uma abertura grande para o mercado é meio de impedir acomodações internas geradoras de ineficiência e estagnação por meio de um referencial em movimento que não permita que a empresa mantenha práticas superadas comprometedoras do seu futuro. As empresas públicas mais antigas e maiores são menos voltadas para fora, julgando já possuírem mecanismos e parâmetros internos de dinamização que dispensam intensa interação externa: as carreiras são programadas de maneira mais formal e o recrutamento interno aparece com predomínio absoluto, a não ser na cúpula dirigente onde os critérios variam em virtude de razões já apontadas. De maneira geral, observa-se a mesma predominância da indicação pessoal como mecanismo de recrutamento, embora com a ressalva de que se procura evitar indicações externas e políticas. Em alguns poucos casos, a mesma sistemática de concursos públicos trazida da administração centralizada continua a ser adotada como barreira para evitar pressões.

Os modos internos de operação e de gestão dos recursos humanos das grandes empresas privadas têm uma dinâmica própria que independe, em parte, de fatores externos pertencentes ao ambiente socioeconómico no qual todas elas atuam. A força da tradição, da rotina e dos hábitos adquiridos, as peculiaridades do sistema interno de decisão e, às vezes, vínculos externos unilaterais, fortes e limitativos, com sistemas de decisão altamente centralizados - por exemplo, com a matriz no exterior - constituem um respeitável conjunto de barreiras e obstáculos que contribuem para' diminuir a sensibilidade das empresas para o seu ambiente externo; até certo ponto, estes bloqueios servem para protegê-las do impacto das oscilações e instabilidades socioeconómicas e políticas sobre suas atividades. Neste aspecto residem, provavelmente, as diferenças mais importantes entre as grandes unidades do setor privado e do setor público.

Por outro lado, nenhuma empresa ou grupo é um sistema a tal ponto fechado que possa se dar ao luxo de não se influenciar pelo que se passa fora dela, a não ser em situações hipotéticas e irreais de monopólio absoluto que exigiriam uma tirania total da empresa sobre a estrutura socioeconómica; mesmo neste caso, a empresa não ignoraria fatores externos, produzindo e determinando um contexto que fornece com abundância e generosidade toda sorte de fatores de produção necessários ao seu funcionamento. Para tanto, a garantia política de uma exploração radical exigiria uma vigilância externa constante e cuidadosa, para preservar as condições vantajosas e impedir que o ambiente escape ao seu controle.

2.2 Compartimentação do conjunto empresarial e participação das empresas públicas

Como existem tantos pontos de contato e mediação quanto se queira entre cada empresa e seu ambiente, procurou-se detectar e relacionar aqueles mais relevantes e influentes para organizar a sua própria divisão do trabalho e gestão de pessoal. A questão básica refere-se aos parâmetros, sistemas de referência e condicionantes externos que contribuem de forma significativa para moldar as práticas já descritas. Afinal de contas, o que é esse mercado que apareceu com tanta insistência em todas as entrevistas como referencial de estruturação das organizações e de seus recursos humanos? Que mecanismos permitem percebê-lo? E como ele funciona? Em muitos casos, esta pergunta causou estranheza e perplexidade; em uns poucos, até irritação, pois o mercado é considerado por muitos uma realidade evidente e palpável em si mesma, embora indefinível. Em poucas palavras, o mercado é com freqüência encarado como o conjunto de forças que caracteriza... o mercado.

Visando superar a ambigüidade desta noção professada de mercado, e romper o círculo vicioso que a caracteriza, procurou-se inicialmente compreender o modo como cada empresa organiza sua ação direta no mesmo, no sentido de atender às suas necessidades básicas e imediatas de constituição dos seus recursos humanos; em seguida, coloca-se o problema da formação de critérios externos que norteiam não só estes processos de recrutamento externo, mas toda a política de recursos humanos: a forma de acesso e de utilização de informações sobre disponibilidade de mão-de-obra e níveis de salário. Em terceiro lugar, indagou-se da intensidade e da utilidade da participação espontânea de profissionais e das empresas em associações que as reúnam em blocos afins, de troca de informações ou mesmo de ação conjunta. A partir desses três pontos, foi possível questionar e caracterizar a existência ou não de pólos externos de influência direta sobre a forma de divisão e de organização do trabalho nas empresas. Na maior parte dos casos, foi também possível identificar campos de ação semicompartimentados, de influência direta ou remota, que orientam a participação de cada empresa no mercado de empregos e o seu modo de organização da divisão do trabalho.

Em outras palavras, enquanto os mercados constituem importantes instrumentos de mediação, compatibilização ou integração entre a empresa e o meio externo socioeconómico e político, o mercado singular constitui categoria ilusória que esconde ou disfarça movimentos e fenômenos reais e fundamentais, ao nível da interação das organizações dentro da estrutura político-econômica.

Em primeiro lugar, a projeção externa do que se pode chamar de gestão da rotatividade é o instrumento quotidiano de aferição, por parte de cada empresa, do que se passa lá fora em termos organizacionais. Não só a formação de demandas e o nível de desempenho do seu próprio pessoal, como também a definição dos critérios que levam ou não ao seu atendimento, estão diretamente vinculadas a parâmetros externos de comparação e aos riscos calculados de evasão de mão-de-obra e de dificuldade de reposição. A confirmação ou não de tais cálculos e percepções, e do acerto dos critérios estabelecidos de um lado e de outro, ocorre quando a evasão se consuma ou a empresa se amplia, e fica conjunturalmente mais dependente do mercado de empregos. Por conseguinte, é na prática do recrutamento externo que se efetua, predominantemente, o teste das suposições vigentes sobre o que se passa no seu mercado. As observações unânimes de que o recrutamento é menos institucionalizado e formalizado quanto mais alto for o nível do posto a preencher, e de que os recrutadores efetivos são múltiplos e variados, quase sempre internos, e determinados segundo critérios hierárquicos, indicam claramente a natureza do processo; provavelmente nenhuma outra atividade constitua de forma tão marcante, dentro da empresa, uma prática política. As resistências à delegação de responsabilidade, neste caso, são extremamente reveladoras: nem o setor de recursos humanos da empresa, nem assessores externos têm uma participação decisória importante no recrutamento de quase todas as grandes empresas entrevistadas. Mesmo quando a colaboração de terceiros é utilizada, os limites dessa colaboração são estreitamente definidos; em vários casos, admitiu-se que o recurso a consultores só existe para contornar situações embaraçosas, quando se deseja roubar alguém de outra empresa. A desconfiança ou as dúvidas manifestadas por cerca de 30% dos entrevistados com relação ao trabalho dos intermediários é sintomática da forma como a atividade de recrutamento é encarada: "não é leal para com as outras empresas lançar mão do trabalho de agências", declarou um entrevistado que apesar disso mostrou que acredita na mão invisível do mercado. A insistência em esgotar toda uma rede informal de contatos e indicações, antes de adotar outros instrumentos mais formais - como anúncio em jornal - também é típica dos modos de recrutamento em nível médio e alto da grande maioria das empresas, exprimindo sempre a mesma preocupação de conservar o recrutamento como uma das atividades menos burocratizadas no quadro da organização.

Em suma, a gestão da rotatividade é o aspecto mais difuso, ambíguo e pouco formalizado do sistema de referência de uma organização, pois todo funcionário que nela entra, que dela sai ou que simplesmente a reivindica é parte integrante desse sistema. E os múltiplos agentes de recrutamento - de dentro e de fora - canalizam para dentro da empresa informações variadas e contraditórias, oriundas de as fontes mais diversas, o que serve para complicar ainda mais a formação de parâmetros, e para consagrar a noção ambígua e pouco útil de mercado singular.

Ao mesmo tempo, toda empresa desenvolve processos de filtragens das informações relevantes, e mecanismos particulares de construção de seus próprios parâmetros. É justamente a partir da variedade desses mecanismos e processos que a idéia plural de mercados começa a se impor. Assim, as formas de obter e utilizar informações externas sobre padrões organizacionais, níveis de salário, cargos e funções correspondentes implicam já um certo modo de compartimentar o mercado. Algumas empresas adotam uma orientação de máxima abertura; por exemplo, elaboram internamente, compram e participam de pesquisas salariais e fazem parte de grande número de associações interempresariais para troca de informações e de experiências. A preocupação de estar compatibilizada com o mercado em sentido amplo é componente integrante e central da política organizacional e de recursos humanos dessas empresas. Esta não é todavia a orientação da maioria delas, que tem uma definição muito mais seletiva do seu mercado, segundo critérios regionais, de porte, de nacionalidade e principalmente de ramo e de imagem. Em vários casos, entrevistados indicaram que participam exclusivamente de grupos cuidadosamente selecionados de boas empresas, para efeito de pesquisas salariais e de troca de informações referentes às práticas de recursos humanos. E uma boa empresa é aquela que possui boa imagem, bons níveis de remuneração, boas práticas de administração salarial e benefícios, segundo definição de um entrevistado. Tais grupos chegam a congregar um conjunto de 60 ou mais grandes empresas ou grupos, representando um total agregado que pode atingir 600 ou 700 mil assalariados. Pode-se imaginar também a importância potencial de associações que reúnam empresas e grupos econômicos da mesma origem nacional, embora tenha sido difícil, no quadro da pesquisa, obter informações mais precisas da parte das empresas que participam deste tipo de associação. A cautela na filtragem de informações parece ser regra básica muito valorizada na maioria das grandes unidades econômicas. Muitos entrevistados foram enfáticos ao declarar que não participam, não compram e não querem saber de pesquisas produzidas fora do seu grupo. O argumento que justifica esta posição é a impossibilidade de comparar situações com mesmo rótulo de cargo, mas com funções e condições de trabalho muito diferentes entre si. Por conseguinte, as grandes empresas tendem a confirmar e legitimar as práticas que adotam recorrendo a parâmetros construídos em um mercado particular, pré-selecionado e restrito, onde de antemão já se presume os resultados em virtude da adesão a práticas uniformes ou semelhantes que justificam a própria existência do grupo. O caráter circular do raciocínio - e da prática - é evidente. Apesar de haver uma certa diversidade de critérios para agrupar as empresas, na maior parte dos casos ficou claro que o princípio essencial é o da afinidade de atividades, mais do que origem nacional ou natureza privada ou estatal do capital. A partir desta identificação básica - mesmo ramo ou ramos afins - o porte e a região aparecem como fatores importantes para organizar os blocos de informação e de atuação do mercado.

Em suma, até aqui foram indicados dois padrões básicos de atuação: as empresas abertas, e as que procuram atuar de forma articulada e seletiva, que são a maioria. Resta abordar as que poderiam ser rotuladas de fechadas, no sentido de procurarem funcionar de maneira mais isolada, limitando a troca de informações com o seu ambiente. Embora mais autônomas e isoladas, estas empresas tendem a exercer um papel estruturador marcante, pois são unidades de grande porte que abrangem uma parcela muito significativa do seu mercado, isto é, do mercado do seu ramo de atividades e região, tendendo a assumir uma posição exemplar. Além disso, a condição de uma certa autonomia e isolamento é o tratamento privilegiado dos recursos humanos, comparativamente ao padrão vigente das empresas do seu ambiente imediato. Quando isto acontece, a intenção de maior isolamento dificilmente corresponde à prática efetiva, pois as solicitações insistentes de troca de informação, vindas de fora para dentro, acabam forçando uma participação contida mas intensa das grandes unidades no seu sistema de mercado. Dessa forma, podem-se destacar algumas empresas com papel marcadamente estruturante, tanto no conjunto de empresas articuladas como no de empresas autônomas.

Já as empresas abertas teriam maior tendência de refletir e de se adaptar que de estruturar o seu mercado, embora algumas delas, pelo seu tamanho e pela envergadura de suas operações acabem tendo impacto significativo na organização do mesmo. Como seria de se esperar, nota-se que o tamanho da empresa acaba sendo sempre uma variável importante para determinar se ela tem ou não um impacto relevante na estruturação do seu setor do mercado. Pode-se enumerar com segurança 12 empresas da amostra que exercem papel fundamental de estruturação não só por terem sido várias vezes citadas no decorrer das entrevistas como referências essenciais, mas também por aparecerem repetidamente em levantamentos e pesquisas consultados, de várias origens, sobre salários e sobre práticas correntes da área de recursos humanos. São elas: General Electric, Mercedes Benz, Volkswagen, Villares, IBM, Sanbra e Gessy Lever; entre as empresas públicas: Petrobrás, Metrô, Comgás, Vasp, Prodesp e Sabesp.

No caso das empresas públicas, é interessante observar que, embora as mais importantes participem com freqüência de blocos predominantemente privados, existe uma clara tendência de organizar um sistema de referência mais circunscrito à área estatal, centrada na grande influência das acima citadas, e substituindo em parte a afinidade de atividades pela afinidade de capital (público) como critério de formação de blocos e sistemas de referência. Isto é principalmente verdade para áreas de atividade mais ou menos exclusivas do capital público. No caso de empresas estatais cujas atividades sejam muito especializadas, e nas quais o setor privado tenha participação significativa, a tendência de agrupamento em função do ramo parece prevalecer.

Um segundo desvio importante do critério predominante de agrupamento em função do ramo de atividades refere-se à agregação/adesão de algumas empresas não-industriais importantes aos blocos constituídos quase exclusivamente de indústrias. Pode-se supor que a inexistência de sistemas de referência bem estruturados na área não-industrial privada estimulou algumas unidades mais modernas e de maior porte a buscarem um referencial externo do qual participam, inclusive, como elementos estruturadores. De resto, o caráter mais difuso e não-padronizado das práticas organizacionais em atividades não-industriais apareceu com clareza nas 10 entrevistas que foi possível realizar; mesmo as empresas bem aparelhadas e organizadas operam de maneira mais individual e atomizada, colocando em questão a própria idéia de formação de sistemas de referência por meio da criação de blocos de informação ou de ação conjunta, constituídos de grupos de empresa, dentro de um mercado parcialmente compartimentado. Tais blocos, caso funcionem, são muito mais dificilmente detectados, pois tudo indica que, nas empresas não-industriais, as ligações informais têm um peso ainda maior na formação de parâmetros que cada uma adota para definir seus critérios de divisão do trabalho e de atuação no mercado. De qualquer maneira, a quantidade e qualidade das informações obtidas não permite inferências do tipo das que foram feitas para o setor público e para as indústrias.

É de se notar, em terceiro lugar, que as empresas industriais, mais estruturadoras, algumas das quais foram acima enumeradas, participam também de grupos que correspondem a ramos bastante diversificados, o que indica que o critério de imagem tende a prevalecer sobre o do ramo, quando se trata de empresas cuja imagem é fortemente positiva.

Como já foi indicado, começa a se delinear a tendência de formulação de políticas de recursos humanos e de centralização dos aspectos mais importantes das práticas internas de cada empresa, a nível de comando dos grupos econômicos, ou a nível de holdings governamentais, no caso de empresas públicas. O que era antes articulação essencialmente econômico-financeira entre as várias unidades e o comando de um mesmo grupo transforma-se em articulação organizacional efetiva, diminuindo o raio de ação autônoma de cada unidade. A preocupação anterior de só centralizar na holding o processo de controle das direções das empresas de um mesmo grupo se amplia no sentido de definição centralizada de um conjunto de políticas e estratégias específicas, deixando a cada unidade sobretudo o trabalho de execução.

Tais tendências sugerem um quarto aspecto - talvez o mais importante - de desvio do critério de atuação por ramo dentro do mercado: a articulação do grupo tem origem não na afinidade de ramo - que pode ou não ocorrer - mas na afinidade de propriedade. A organização de práticas internas em escala de grupo tem assim um efeito direto na formação de um sistema mais auto-suficiente de referência, que regula a forma e limita a intensidade da interação externa de cada unidade do grupo. Mantidas as tendências concentracionistas do modelo político-econômico, esta deve ser a tendência prevalecente como forma de organização de um sistema empresarial cada vez mais compartimentado. A interação/articulação entre grupos econômicos, empresas de grande porte, e empresas estatais com controle centralizado tende a facilitar assim a formação de mecanismos oligopolistas de controle ambiente empresarial e do mercado de empregos, sobretudo em regime de sindicalismo vigiado e controlado - portanto com baixa capacidade de formular e sustentar demandas - dentro de um quadro político autoritário e repressor.

A formação, no mercado de empregos, de campos de influência direta semifechados, que bem delimitam a área de ação no âmbito das grandes unidades, se contrapõe à preservação de campos de ação remotos, abertos e sem contornos nítidos, que expandem e diversificam modos de ação na maior parte do setor nãoindustrial e nas pequenas e médias indústrias. A organização e repartição institucional das esferas de decisão é mais claramente estabelecida nos campos de influência direta: percebe-se melhor as articulações entre diretorias de recursos humanos recém-valorizadas, cúpulas empresariais, comandos de grupos econômicos, matrizes no Brasil ou no exterior, no que se refere ao setor privado; o mesmo ocorre entre governo central ou estadual, suas instituições controladoras e suas holdings.

Enquanto isso as empresas que operam em campos de influência remota se caracterizam por uma organização e divisão institucional das esferas de decisão que é muito mais nebulosa: mesmo no seu interior, muitas das decisões se formam pela conjugação de um conjunto circunstancial de fatores não controláveis. Neste caso, a idéia tradicional e voluntarista de mercado passa a fazer certo sentido, na medida em que a multiplicação de centros de decisão dificulta a previsibilidade das ocorrências e tendências. Por outro lado, a ordenação do ambiente segundo os mesmos princípios e mecanismos dos setores oligopolistas não parece viável para o grande número de unidades médias e pequenas, pois exige uma escala de operações e uma infraestrutura de gestão que estão fora do alcance de cada uma delas. Ao mesmo tempo, tais setores ainda têm uma participação agregada extremamente importante no mercado, entendido em sentido amplo. Evidentemente, tal separação não é rígida, pois as empresas que operam segundo padrões oligopolistas não podem ser insensíveis ao que se passa nos setores mais afastados de sua zona de estruturação, havendo sempre uma interação importante entre os dois modos de organização das empresas e do mercado de empregos.

De qualquer maneira, é no setor oligopolista que acabam se definindo, com mais clareza, novos padrões de controle organizacional, a partir de tendências predominantes no conjunto de mercado,de empregos de nível médio e alto, quer pela cristalizarão de procedimentos vindos de fora, quer pela reação contrária e tentativa de neutralizá-los. É nas estruturas altamente formalizadas que caracterizam a grande empresa monopolista industrial e as grandes unidades estatais que ressaltam, mais do que em qualquer outro contexto, os seguintes procedimentos adaptativos, informais, ou de exceção que são utilizados para gerir a mão-de-obra de elite:

a) adoção de políticas de benefícios seletivos semelhantes ou superior aos estabelecidos por organizações bancárias e financeiras modernas ou concedidos por outros tipos de organização, embora nas estatais não estejam claramente estruturados;

b) princípio - inflacionista - de política salarial, segundo o qual deve-se pagar salários no mínimo equivalente às médias mais altas de mercado, em se tratando dos escalões superiores das empresas;

c) valorização da rede informal em recrutamento e seleção de níveis médio e alto;

d) flexibilidade e ambigüidade tanto maiores quanto mais alto for o escalão, que caracteriza a maioria dos sistemas de apreciação, de desempenho de classificação de cargos, de descrição de funções e de formação de salários.

2.3 Paradoxo fundamental: o modelo privado e a defesa do interesse público

As empresas públicas de grande porte, em geral mais antigas e que se situam na esfera federal, como o Banco do Nordeste ou a Petrobrás, são altamente formalizadas e possuem sistemas de administração de salários claramente definidos para todos os escalões. A grande expansão, em número de empresas e em porte, das empresas públicas no Brasil implicou num processo de formação de holdings, cada qual procurando centralizar a formulação de políticas organizacionais para suas participantes, o que tornou seus modos de ação mais homogêneos. Isto aumenta em muito a possibilidade de que elas tenham um impacto significativo no mundo empresarial e na organização do mercado de trabalho. Por outro lado, ocorre a interferência direta do governo, por meio de órgãos pertencentes à administração central, como reação aos riscos de uma crescente autonomia das unidades descentralizadas, que poderiam deixar de ser os instrumentos estratégicos de consecução dos objetivos da política governamental. Em especial, os ministérios com os quais cada empresa se relaciona mais diretamente, os tribunais de contas, e o Conselho Nacional de Política Salarial são os órgãos que têm uma influência mais direta na formação de padrões de gestão e de organização, e isto inclui padrões de gestão de recursos humanos das empresas. É importante registrar desde já o caráter exemplar da imagem desfrutada por algumas dessas empresas dentro do mercado, embora a análise integrada dos sistemas de referência emergentes no sistema empresarial só deva ser feita mais adiante.

As empresas públicas mais recentes e que se situam na esfera regional e local têm a vantagem, em comparação com as anteriores, da sua modernidade, e, em muitos casos, da própria natureza altamente sofisticada de suas atividades. Organizam-se, ao menos numa primeira fase, com maior liberdade de ação, por não terem ainda sedimentado um padrão de relações com o governo difícil de ser alterado. Sua forma de estruturação demonstra uma preocupação básica de diferenciação em relação aos padrões administrativos do setor público que lhes deu origem. Na sua maior parte, por exemplo, rejeitam com energia o rótulo pejorativo funcionário ou de funcionalismo para referir ao seu quadro de pessoal, visando afastar qualquer paralelo desagradável com a organização dos quadros de pessoal propriamente governamentais, o que sugeria práticas administrativas muito tradicionais e extremamente ineficazes.

Esta reação, que é geral, contra os modos de organização oficiais, acaba desembocando numa celebração ambivalente e vaga do modelo privado de gestão como critério ou ideal a ser atingido pela empresa pública, ressalvadas considerações de ordem ética: por trabalhar com dinheiro do povo, a empresa pública tem uma missão de serviço que exige uma eficácia não encarada como meio de obter lucro, mas de melhorar sempre sua capacidade de servir. Uma visão tecnocraticamente crítica da incapacidade organizacional do governo para bem servir à sociedade parece ser o ponto de partida de uma politização velada e talvez pouco consciente da gestão das empresas públicas: a autoidentificação da empresa como depositária e defensora do interesse coletivo perante as autoridades governamentais não é uma transposição incomum dentro do quadro acima delineado; a condição necessária deste desdobramento é que os grupos dirigentes destas empresas se sintam e sejam suficientemente fortes para exercer um papel preponderante na formulação de políticas setoriais que lhes concernem.15 15 Neste ponto, Zajdsznajder considera adequadamente que o ponto de estrangulamento que permite tal licença é a fraqueza estrutural de uma sociedade civil impossibilitada de controlar os aparelhos do Estado. Incompreensivelmente, porém, o mesmo autor aceita como legítimos ou pressupostos os objetivos formais do planejamento de um estado que atua nestas condições. Veja Zajdsznajder. op. cit.

Estas considerações são importantes por se situarem no centro da elaboração de ideologias profissionais valorizadoras do elemento humano, principalmente de elite do setor empresarial público como participantes eficazes do processo de produção de atividades essenciais à realização do bem comum; a estruturação moderna e dinâmica dessas empresas, a sua colocação em pé de igualdade com o mercado em termos salariais, o caráter de ponta de suas atividades (quer em termos tecnológicos, quer em termos de setor estratégico) são fatores - reais ou fictícios - de importância fundamental da nova forma de enquadramento e inserção e justificação do seu contingente humano no conjunto da força de trabalho. Por outro lado, a escala de operações das empresas públicas, que coloca boa parte delas entre as maiores empresas do País, contribui para que seu impacto no mercado acabe se fazendo sentir de maneira forte, fenômeno que começa a se fazer sentir nas áreas mais próximas do setor público.

Este impacto deve se reforçar, com o decorrer do tempo, em virtude dos processos originais de acesso, preservação e circulação entre posições que ocorre dentro delas. A preocupação de resguardar um quadro dirigente, técnico e administrativo, de elite, assim como de organizar as empresas públicas de modo a preservá-las do impacto negativo de mudanças periódicas na composição do governo são recorrências que aparecem em todas as entrevistas. Procura-se fazer que o rodízio político, que atinge quase sempre a alta cúpula empresarial pública, não repercuta na organização e na estabilidade dos quadros técnicos e burocráticos, considerados como os guardiões da continuidade da empresa. Esta orientação tem-se mostrado eficaz na maioria dos casos, pois já o segundo nível hierárquico de cima para baixo na burocracia das empresas tem demonstrado grande resistência e estabilidade, em face dos rodízios freqüentes de implicação política que ocorrem no nível da diretoria. E mesmo no primeiro escalão, em empresas mais consolidadas ou de maior especificidade tecnológica, encontram-se freqüentemente diretores-funcionários de carreira ou executivos profissionais que não tiveram acesso ao posto nem o conservam por motivos meramente políticos. A preocupação de evitar a interferência das mudanças de governo na gestão quotidiana da empresa se manifesta, neste contexto, como objetivo essencial do segundo escalão (e algumas vezes do primeiro também) por meio da proposta de se criar um tipo de estrutura organizacional que resista a investidas externas. Em nome de uma direção profissionalizada, procura-se neutralizar a presença de diretores e gerentes considerados ineficazes mas politicamente fortes, mediante arranjos organizacionais formais que criam espaços vazios no topo, com objetivo de ocupá-los pela atividade incessante e açambarcadora dos executivos mais técnicos e profissionalizados, "tão bons quanto os do setor privado".

O sistema de administração de salários segue de perto os padrões das empresas privadas mais sofisticadas e ressalta-se enfaticamente a necessidade de preservar sempre a compatibilidade com a capacidade de competir pelos melhores recursos humanos disponíveis no mercado. A preocupação causada pela recente pressão governamental no sentido de achatar os altos salários têm sido em parte aliviada pelas exceções já abertas pelo governo, considerando inúmeras empresas como casos à parte, não obrigados a cumprir os dispositivos legais de contenção.16 16 A referência aqui é a Lei nº 6.245, que valorizou os altos salários como pólo de concentração da renda no Brasil e se propõe a conter sua expansão. Por outro lado, empresas mais distantes do campo de influência direta do governo federal se sentiram mais livres para encarar a legislação em questão com certa flexibilidade, da mesma maneira que o fazem a maioria das empresas privadas. Há, todavia, dois ângulos sob os quais a política salarial das empresas públicas divergem claramente dos padrões privados mais sofisticados: a formação dos salários dos diretores e o sistema de benefícios. No primeiro caso, a definição tem sido sempre e sistematicamente controlada de fora da empresa, pelas autoridades executivas governamentais e por órgãos de fiscalização: tribunais de contas, conselhos de política salarial e, a nível regional de São Paulo, pela Coordenação de Defesa dos Capitais do Estado - Codec.17 17 A crise do Codec, no primeiro semestre de 1977, que teve conseqüências parciais na demissão do Secretário da Fazenda de São Paulo, Nelson Gomes Teixeira, constituiria um excelente estudo de caso para ilustrar a discussão do controle governamental das atividades descentralizadas. Tal dicotomia tem causado em muitos casos inversões curiosas de níveis salariais, com diretores ganhando menos do que os gerentes ou superintendentes, o que sem dúvida contribui para reforçar a posição destes últimos. A segunda diferença se refere a cautela e a reserva com que as empresas públicas encaram os sistemas de benefícios seletivos, em virtude de recentes campanhas da imprensa contra abusos de toda sorte - as tão faladas mordomias - e também por causa da atitude moralista de órgãos governamentais fiscalizadores e controladores; às próprias autoridades militares surgem críticas eventuais neste sentido, provavelmente mais em busca de bodes expiatórios para a crise do sistema do que por impulsos propriamente moralizadores. Enquanto no setor privado a expansão dos benefícios seletivos parece ser tendência clara, ou por iniciativa das empresas ou por pressão da mão-de-obra qualificada, as empresas públicas se vêem obrigadas, ao menos conjunturalmente, a rejeitar, adiar ou esconder a adoção de práticas similares, devido à conotação política que vem assumindo esta discussão.

Da mesma forma que no setor privado, a avaliação de desempenho de nível médio para cima aparece como um ponto de estrangulamento da atividade de gestão de recursos humanos das empresas públicas, em parte sanado pela forma de atribuição e de circulação de posições em faixas superiores que acaba incentivando o pessoal dirigente a produzir resultados a curto/médio prazo para tentar fortalecer sua posição antes do fim do período do governo vigente.

3. DESCENTRALIZAÇÃO ORGANIZACIONAL E CONCENTRAÇÃO DO PODER: DILEMAS INSTITUCIONAIS E ANARQUIA DO PLANEJAMENTO NO BRASIL

As páginas que seguem não têm a pretensão de analisar a evolução histórica recente do modelo econômico brasileiro, mas simplesmente de destacar e fazer a crônica de alguns fenômenos importantes e do clima dominante nos anos de reversão de tendências, da forma como transpareciam em publicações que têm aparecido como porta-vozes dos interesses privados industriais ou do capitalismo liberal no Brasil. Propõe-se, assim, gozando da vantagem de estar olhando para trás, evidenciar as contradições em emergência, mediante manifestações de perplexidade das incoerências, e mesmo das tentativas de explicação dos paradoxos por parte dos que mais acreditam na lógica e no dinamismo inerentes ao modelo econômico. Espera-se, em conseqüência, que fiquem mais bem delineadas as raízes estruturais da expansão das atividades descentralizadas como resposta quase sempre insuficiente ou inadequada para os dilemas, contradições e demandas que se multiplicavam, e nas quais o estado autoritário brasileiro vem aos poucos se afogando.18 18 Parece ser especialmente relevante a abordagem desse problema em Monteiro, Jorge Vianna. op. cit.

3.1 O começo do fim da festa e a retórica do planejamento

Por volta de 1972-3 começou-se a perceber que a multiplicação indiscriminada de prioridades governamentais formais acabava num círculo vicioso: quase qualquer tipo de investimento gozava de vantagens especiais generalizadas e equivalentes entre si - fiscais e outras - neutralizando a capacidade governamental de atrair e canalizar investimentos em função de prioridades efetivas. Pesca, turismo, reflorestamento, litoral, interior, indústria e agricultura, exportação, eram, ao mesmo tempo, atividades prioritárias passíveis de obter enorme gama de recursos públicos, estaduais, municipais e federais. O reflexo mais imediato ou evidente de tal processo, na época, foi o esvaziamento da Sudene, evasão de seus técnicos, queda sensível do investimento privado e impossibilidade de se formular uma política industrial coerente para o Nordeste. Enquanto o produto interno bruto aumentava em 40% entre 1968 e 1972, os incentivos fiscais canalizados pela Sudene para investimento na região caíam na mesma proporção. Segundo o presidente da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco, na época: "verifica-se uma relativa dependência da nossa política econômica face às (sic) decisões das grandes corporações multinacionais, que operam em setores de produção de bens de consumo duráveis e semiduráveis, e cuja estratégia de marketing è feita fora do contexto nacional. Para os estados do Nordeste, a conseqüência mais séria da formação de conglomerados industriais no sul do País é o esmagamento das empresas regionais dentro de um processo que chamaríamos de colonialismo interno."

Apesar dos sintomas, a produção industrial crescia de maneira importante, sem prestar atenção à escassez de matéria-prima, mão-de-obra e equipamentos; o comércio continuava a se sustentar na expansão intensa do crediário; o sistema financeiro continuava a se concentrar, em termos de propriedade, e sustentar sua própria complexidade; e a revista Visão publicava análise de conjuntura expressivamente intitulada A festa ganha mais impulso, para, quatro meses depois, começar a mudar seus títulos: A crise ainda à distância.

Ao mesmo tempo, explodia como questão política em meados do ano o problema da concentração da renda no Brasil; a constatação simultânea de que os grupos intermediários aumentaram significativamente sua participação na renda, e de que esta concentração intermediária beneficiava especialmente os diplomados das universidades, fez que se intensificasse a corrida pela educação superior, vista como o mecanismo mais seguro de diferenciação da renda e de ascensão social. O crescimento econômico exigia mão-de-obra qualificada, especialmente no setor moderno de serviços, o qual absorvia 70% da população urbana economicamente ativa que dispunha dos níveis mais altos de renda. Não se percebeu, todavia, que a correlação positiva entre educação e renda tinha limites conjunturais bem definidos, e que passada a fase de reorganização institucional e de crescimento galopante, a ampliação do acesso à educação significaria cada vez menos ampliação das oportunidades.

Daí a receita surgida na época: depois do crescimento, chegava a hora de mais educação, portanto mais qualificação e conseqüentemente melhor distribuição. Mas nem a percepção do fim do crescimento galopante permitiu perceber, numa época de grande otimismo econômico, as ameaças de crise, e nem tampouco se equacionou coerentemente os obstáculos estruturais à redistribuição em fase de desaceleração da economia.

Um segundo aspecto, menos ético-ideológico e mais político-econômico, que colocava em questão o problema do pólo intermediário de concentração de renda referia-se à baixa capacidade de poupança e investimento internos, uma vez que a renda concentrada se encaminhou prioritariamente para uma expansão intensa do consumo. Com isto o País se mantinha muito mais dependente do exterior, e por isso mesmo mais vulnerável, seguindo uma linha que só mostrou uma certa eficácia em países mais estáveis e que tinham uma estrutura social e econômica menos polarizada, como o Canadá e a Austrália. Sob este aspecto, se previa ou se antecipava a possibilidade da crise, uma vez que a agilidade e a mobilidade do capital multinacional controlado financeiramente podia fazer oscilar as entradas e saídas de grandes volumes de investimento em função de instabilidades conjunturais mais ou menos pronunciadas e ameaçadoras.

Mas o problema que começava a assumir contornos nitidamente políticos e que de lá para cá não parou mais de se ampliar, refere-se à estatização da economia brasileira. Consideradas as 200 maiores empresas que operavam no Brasil em 1973, somente 16% do patrimônio líquido global pertenciam a empresas nacionais, contra 64% das empresas públicas e 20% das estrangeiras. Argumentando com tais números, a revista Visão e outras publicações influentes iniciavam em 1972-3 seu ataque sistemático contra a crescente penetração direta do estado na economia.

Nos anos de 1974 e 1975, a tônica dominante nas interpretações oficiais e paraoficiais da realidade econômica era de incredulidade na crise, e de otimismo um pouco mais controlado: a economia era forte, o governo mais forte ainda, e a regra era o crescimento rápido; a exceção eram as dificuldades conjunturais e passageiras, provocadas principalmente pela crise externa e pelos árabes, em razão do preço abusivo do petróleo. No início de 1974, problemas internos se equacionavam simplesmente, como necessidade de reduzir custos e de disciplinar o sistema financeiro no sentido de canalizar a poupança, para investimentos produtivos. A escassez de crédito, mesmo nos setores onde ele era mais farto - o crédito ao consumidor e o habitacional - acabou resultando em uma sentida crise de realização, agravada pelo endividamento de longo prazo dos consumidores que haviam comprometido sua futura capacidade de compra, no decorrer dos anos anteriores. A retórica oficial tornava-se menos ufanista, falando em "potência emergente" mas também se precavendo contra "otimismos exagerados", buscando impregnar o "modelo de desenvolvimento" de um "forte conteúdo social", apesar das dificuldades "transitórias e certamente superáveis", que tornam o planejamento socioeconómico uma tarefa "árdua e difícil".

Paralelamente à retração do mercado interno, o endividamento externo se agrava de forma alarmante, tornando-se ao mesmo tempo uma preocupação efetivamente prioritária das autoridades monetárias e uma nova questão política explosiva, que coloca em jogo a própria viabilidade econômica do modelo. O remédio a que se descobre e que se passa a incentivar mais intensamente em fins de 1974, visando atacar simultaneamente as duas ordens de problemas - mercado interno restrito e dívida externa ampliada - é o estímulo incondicional à exportação diversificada, especialmente de produtos industriais. Desde 1973, 18 trading companies haviam sido criadas, visando abrir novos mercados além da Companhia Brasileira de Entrepostos Comerciais - Cobec, e incentivos altamente compensadores fiscais, creditícios e administrativos, eram propiciados aos empresários que se dispusessem a participar do programa de exportações. Em posição de barganha extremamente favorável na negociação com o governo, exportadores e industriais conseguiram expandir enormemente seus privilégios, tornando-se um grupo de pressão ativo e imaginoso na reivindicação de medidas protecionistas e benefícios de toda sorte.

Parece ter sido exatamente em meados de 1974 que o governo central passou a perceber que estava se afogando num processo diversificado de atendimento a demandas de tratamento privilegiado das várias frações da burguesia. Conseqüentemente, a idéia já antiga de integrar num só sistema toda a gama de incentivos governamentais - fiscais, regionais e setoriais - passou a ser considerada com mais urgência. Acabou assim, ocorrendo a estatização do sistema de captação e distribuição de recursos fiscais, justificada pela bem fundada crítica governamental da dilapidação dos mesmos pela exagerada intermediação financeira privada, e que correspondia ao anseio velado do governo de assumir o controle direto da distribuição do bolo inclusive com fito não confessado de obter retornos políticos não-desprezíveis.

O problema da regulação dos interesses e da intensidade do conflito do triângulo governo/indústria automobilística/produtores de autopeças constitui provavelmente o exemplo mais marcante e explícito que explodiu, nesses dois anos, como expressão da crise em formação. De um lado, começam as pressões governamentais por uma reversão de tendências da produção: carros mais econômicos e mais baratos, tratores, caminhões, esforço de exportação, como se a política industrial de crescente sofisticação e luxo tivesse sido de exclusiva iniciativa e responsabilidade dos empresários privados. Por outro lado, a articulação de interesses entre produtores de bens intermediários e fabricantes de automóveis varia, num intervalo de poucos meses, da frente única pela reserva oligopolista de mercado a fortes antagonismos relativos ao controle de preço das trocas interindustriais e à possível verticalização industrial promovida pelos fabricantes finais. Em outros setores de bens duráveis, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico começa a ser chamado mais insistentemente a participar - diretamente ou por empréstimo e subvenções - da luta pela sobrevivência de empresas em situação difícil, enquanto a internacionalização do setor continua a se desenvolver.

Dada a multiplicação de demandas de várias fontes, observa-se a preocupação governamental de se equipar institucionalmente para administrá-las. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, por exemplo, cria em meados de 1974, três empresas econômico-financeiras de investimento, destinadas a administrar estas demandas, e a colaborar para a reorientação do modelo por processos de associação entre o capital público e o privado. São elas: Ibrasa - Investimentos Brasileiros S.A., Fibase - Insumos Básicos S.A., Financiamentos e Participações e Embramec - Mecânica Brasileira S.A. A rápida expansão das atividades financeiras governamentais concorre fortemente para intensificar a campanha contra a estatização; em contrapartida, constitui uma confissão implícita da incapacidade (ou falta de interesse?) do governo de canalizar o sistema financeiro privado em função dos objetivos da política econômica para investimentos em setores específicos.

Em vista disso, o alto custo do dinheiro se torna um tema central da discussão político-econômica em 1974, e todo o complexo institucional financeiro recém-constituído começa a ser reexaminado criticamente. Nesta fase, os custos financeiros de um bem durável, calculados por Visão, eram estimados em cerca de 54% dos custos totais. A baixa liquidez do sistema financeiro, sua voracidade e seu caráter especulativo, sua complexidade que facilita a prática de usura são cada vez mais lamentados, e a cumplicidade ou complacência de autoridades governamentais em irregularidades e escândalos que começam a brotar é uma suspeita crescente. Os enormes obstáculos a financiamentos em prazos médios e longos começa a se fazer sentir pela dificuldade de transformar poupança em capital de risco.

Em fins de 1975, enquanto cresce uma reação ambivalente mas generalizada contra a estatização, os empresários das indústrias de base vão se tornando um grupo de pressão mais dinâmico e ativo, reunidos na Associação Brasileira para o Desenvolvimento das Indústrias de Base. Pressionado num emaranhado de reivindicações e enfraquecido pelas derrotas fragorosas sofridas em eleições nacionais parciais, o governo central passa a assimilar a retórica dos seus críticos mais moderados, sobretudo em relação à concentração de renda e à necessidade de uma reversão do modelo econômico no sentido de atender às necessidades de natureza mais coletiva. Autoridades federais, que vinham defendendo há muito tempo as vantagens econômicas da concentração, convertem-se de repente às teses distributivistas, criticando o modelo econômico que tinham ajudado a construir, como se não tivessem nada com isso. Austeridade, contenção da inflação, equilíbrio do balanço de pagamentos, e esforço exportador, e definição de uma política social e industrial voltada para o pleno emprego e para as necessidades da maioria passaram a ser os temas preferidos da retórica oficial. A descoberta tardia de que todo tipo de intermediação não produtiva - comercial ou financeira - tende a ser inflacionária, predatória e, com freqüência, desnecessária, e de que sofisticação e luxo ostensivos no meio da miséria geral é escandaloso, passou a fazer dos acessos de moralismo retórico quase diário, mas sempre de sinceridade duvidosa, da parte de autoridades governamentais que durante muito tempo tinham abafado a sua capacidade de se indignar com a injustiça e a miséria social.

3.2 O medo da crise e a lógica do sistema

Inicia-se, então, uma nova fase de equacionamento valorativo de problemas em que princípios e convicções de ordem ética, moral, religiosa, filosófica, política e, às vezes, até mesmo de natureza ideológica passam a ser proclamados na medida em que as dificuldades econômicas e os impasses políticos aumentam. Práticas econômico-financeiras, comerciais e profissionais corriqueiras de longa data passam a ser motivo de escândalo, denúncia e condenação. O medo da crise acelera o processo de busca de bodes expiatórios responsáveis, confundindo causas e manifestações da mesma. A tecnocracia na corda bamba passa a usar com mais comedimento argumentos técnicos como base das decisões políticas que ajuda a formular. A escassez recente de recursos contribui para que se agrave a crise do planejamento e para que se constate a existência de um excesso de prioridades e de projetos demasiadamente ambiciosos e simultaneamente inviáveis.19 19 Para uma análise sistemática das raízes estruturais que levam à crise do planejamento (em nível teórico), veja Charnay, Jean-Paul. Essai general de strategie. Ed. Champ Libre, 1973. O caráter faraônico de obras de prioridade duvidosa está no centro do enorme poder de despercício demonstrado pelo governo, que se manifesta também em implantações que não se acabam ou no financiamento de empresas privadas que não se recuperam. E medidas sucessivas tomadas pelo governo em nome da austeridade são encaradas como evidências de desperdício e irresponsabilidade ao bloquear atividades para as quais já havia sido canalizada enorme soma de recursos, causando enorme instabilidade no desenvolvimento de suas próprias empresas.

Em relação aos problemas econômicos que vem sendo foco de discussões políticas, as perspectivas são ou negativas ou estacionárias: a redistribuição de renda permanece em compasso de espera; cresce menos o déficit do balanço de pagamentos, mas não se consegue inverter o processo; a polêmica da estatização se agrava, com a formação de uma frente ampla de empresários contra o governo, afogado em demandas e incapaz de atender a maioria delas; a inflação cresce e foge do controle das autoridades monetárias, tornando-se um problema de gravidade crescente; e sintomas de desemprego, crescente e em todos os níveis, começam a inquietar a população e governo e a servir de instrumento de pressão aos empresários.

Contudo, tais manifestações de crise econômica ocorrem no bojo de uma crise político-institucional grave e crônica, devida ao desgaste progressivo de um sistema que recorre sistematicamente à força para impor regras do jogo que ele próprio acaba alterando logo em seguida. O uso do controle direto, da repressão e da violência, e a violação seguida dos poucos direitos que o próprio governo reconhece ou institui acaba gerando ampla oposição da sociedade civil contra o poder vigente. Assim como os pobres e os sindicalistas já conheciam de longa data a realidade de uma ditadura policial, os ricos e os bem remunerados passam a sentir na própria pele a voracidade da chamada ditadura fiscal que dói menos, mas provoca protestos muito mais ruidosos e veementes.

Mas, felizmente para o governo, o setor privado - capitalista e assalariado - não está isento de críticas. Os estouros sucessivos de operadores inescrupulosos do sistema financeiro, a voracidade irreprimível dos grupos de alta renda familiar, os abusos e descontroles dos altos funcionários e o absurdo de um sistema produtivo que se volta com exclusividade para o atendimento das aspirações de uma pequena elite são os al-" vos preferidos das críticas governamentais. Mantida sempre a ressalva cuidadosa, no caso da burguesia, de que não se trata de defeitos ou falhas da classe como um todo, mas somente da presença de aventureiros e aproveitadores esparsos indignos de participar de um grupo que vem contribuindo de maneira tão acentuada para o desenvolvimento nacional. A necessidade de um princípio ordenador da política econômica vai empurrando os órgãos governamentais na direção de uma articulação mais e mais consistente com três setores específicos: os serviços de utilidade pública, as agroindústrias, e as indústrias de bens de capital.

Todavia, a reversão de política industrial não é algo que se faça a curto prazo e sem percalços. O comprometimento das ex-indústrias dinâmicas com níveis de produção de bens duráveis extremamente elevados exige a sustentação das atividades econômicas não-industriais que apareceram junto com o modelo econômico. Neste sentido, a tendência dessas indústrias é de continuar a operar como se nada estivesse acontecendo, para colocar o governo diante de um fato consumado. E a tendência dos consumidores de renda média e alta parece ir na mesma direção, isto é, adaptar-se às restrições do crédito direto, mas descobrir novos meios para continuar afirmando sua identidade e buscando a diferenciação pelo consumo. Acontece, porém, que as dificuldades para manter o padrão de vida resultam de uma dupla pressão governamental que atinge não somente a organização econômicofinanceira do comércio, mas também a política salarial das empresas para os grupos profissionais privilegiados. Este segundo aspecto se manifesta não só por uma pressão direta, como também por uma política fiscal que tem estabelecido como alvo predileto a taxação dos salários médios e altos.

Esta crônica sumária de alguns aspectos da economia política brasileira destes últimos cinco anos ajuda a estabelecer certas nuanças na análise da natureza e do sentido das mudanças que se operaram no País nos últimos 20 anos. Tanto ao nível do senso comum quanto nos estudos mais elaborados a respeito da realidade brasileira, dois rótulos foram aos poucos se consagrando, sem que se discernisse com clareza a enorme variedade dos seus significados implícitos. Trata-se da referência ao sistema como expressão da dominação política vigente, e ao modelo como expressão da organização econômica implantada. Em ambas as noções, está contida uma enorme carga de suposições voluntaristas: as idéias de desígnios, intenção ou hegemonia se impuseram em função da perplexidade dos estudiosos em busca de explicação para fenômenos peculiares que jamais ocorreram com a mesma intensidade na história de outros países subdesenvolvidos. A tendência de supor um alto grau de integração, de articulação dos componentes ou de racionalidade interna da organização econômica e política vigente se impôs progressivamente como uma perssuposição indiscutível; nestas condições caberia aos analistas procurar compreender e explicar a lógica e as exigências do modelo e do sistema, convertidos em categorias fetichistas como realidades palpáveis acima de qualquer suspeita. As dificuldades de compreender a lógica do sistema eram atribuídas sobretudo ao maquiavelismo reinante, e à existência de vontades muito bem escondidas detrás do que estava acontecendo. Mesmo que fugisse conjunturalmente a compreensão, a lógica do sistema era tida como uma certeza, não passando pela cabeça de ninguém que o sistema pudesse não ter lógica, ou não fizesse exigências coerentes, compatíveis, consistentes ou adequadas. Apesar de vir sendo um projeto totalitário permanentemente inacabado, a organização da dominação no Brasil parece ter conseguido produzir uma imagem de abrangência do poder e de capacidade de controle social e econômico que exigiria uma centralização intensa do sistema efetivo de decisão. O grande equívoco das análises correntes é supor que, por ser desconhecido ou de difícil acesso, o sistema de decisão é centralizado, unificado e coeso.20 20 Boa contribuição para esclarecer este aspecto é dada. por Cerqueira & Boschi. Elite industrial e estado: uma análise da ideologia do empresariado nacional dos anos 70. In: Martins, C.E., op cit. especialmente p. 172-5. Mesmo aceitando a existência de interesses privados hegemônicos solidamente enraizados - por exemplo, do capital financeiro e/ou do capital monopólico industrial estrangeiro - resta sempre a saber se seus representantes sabem exatamente o que desejam ou em que direção seguir. Em outras palavras, há situações em que é difícil identificar qual é a conduta que possibilita conquistar e preservar posições mais vantajosas na corrida da acumulação; quando os grupos hegemônicos se deparam com essa dificuldade, não conseguindo definir o seu projeto para o Brasil, acontece o que ocorreu com o planejamento brasileiro em anos recentes: uma brutal sucessão de tentativas e erros cada vez mais desmoralizantes, de um sistema que exprimia dogmas e certezas absolutas enquanto evoluía às cegas ou às apalpadelas. Em resumo, a lógica desconhecida do sistema reflete mais a natureza pouco lógica do funcionamento do mesmo que a ignorância dos estudiosos da realidade brasileira.

Sistema e modelo apresentam-se, assim, como realidades subjetivas que cada um entende como quer - ordenadas por evidências empíricas que representam um aspecto parcial e limitado da realidade brasileira: consumo sofisticado, salários polarizados, crédito e circulação desenfreada de dinheiro, gigantismo industrial e terciário e alto grau de mobilização social. Embora referidas a um compartimento pequeno da sociedade brasileira, estas evidências empíricas sugerem a necessidade de uma articulação estratégica totalizadora que integre este compartimento no todo subdesenvolvido, minorando e administrando os antagonismos daí decorrentes; para tanto, o mundo das novas camadas médias que é na origem o fator básico de organização do modelo e do sistema, acaba se tornando o álibi que realimenta uma promessa do bem-estar coletivo que já tinha estado na origem da falência do populismo no Brasil.

A preservação do capitalismo monopólico periférico tem sido sustentada nestes vinte anos, mediante mecanismos que parecem não atender nem mesmo às suas próprias necessidades de expansão a médio e longo prazos, uma vez que não há possibilidade de estabilizar o tipo de política industrial que aqui se implantou a não ser que se transformasse o País numa gigantesca Hong-Kong, explorando violentamente o trabalho da população e exportando em massa os seus resultados. Tal estratégia, a única coerente com as tendências que vêm vigorando, não parece contudo viável não só em virtude das condições internas do País, mas sobretudo, porque o quadro econômico internacional atual dificulta extremamente a operação de qualquer estratégia exportadora.

Finalmente, é necessário observar que o grau de desenvolvimento das forças produtivas no Brasil tende a acrescentar obstáculos e custos cada vez mais altos à repetição do ciclo de crises e reestruturações econômicas e políticas de curto prazo que o País tem atravessado a partir da segunda metade dos anos cinqüenta. E a convocação de novas frações sociais da burguesia ou da classe média para contribuir na manutenção de uma dominação política e econômica anacrônica, recurso que já dá mostras de estar falhando, desta vez pode acabar comprometendo até mesmo a operação do capitalismo financeiro de pilhagem que se expandiu no País de 1967 em diante. E não deve estar nos desígnios do grande capital (se os há) matar a galinha dos ovos de ouro para sustentar os luxos de seus enfants gates - centuriões ou mandarins de eficácia duvidosa, às vezes travestidos de samurais.

Numa fase em que novas prioridades privadas e públicas são peneiradas e abandonadas, a tecnocracia tende a ser reintegrada no nível do comum dos mortais, e o bilhete de ingresso no círculo fechado do poder político e dos privilégios econômicos não vai continuar a ser comprado com a relativa facilidade com que ocorreu na fase otimista dos anos eufóricos. Provavelmente, o trunfo maior para preservar posições conquistadas estará nas mãos daqueles que lograrem manter o controle de setores empresariais estatais estratégicos - o setor de utilidade pública? - em meio à gigantesca parafernália que o estado brasileiro conseguiu inchar.

ANEXO 2

Roteiro de entrevista: o impacto das práticas de recursos humanos de empresas públicas e privadas no mercado de trabalho

1. A empresa ............................... fundada a ............... anos, com ............. funcionários, discriminados em ............ horistas, ............ mensalistas, ............ gerentes ou executivos, e ............ técnicos. Seu ramo de atividades é .......................................................... A origem do capital é (em termos de nacional, estrangeiro ou público) ............................. A ........... anos (escolha, até alguns anos atrás, um momento que tenha sido um marco na história da empresa), o número de funcionários era de ............O setor de recursos humanos da empresa responde ao ....... A escalão (sendo que a diretoria é considerada o primeiro escalão), e conta com ............ funcionários. Deve-se destacar a seguinte peculiaridade, como aspecto fundamental que condiciona as práticas de recursos humanos da empresa (por exemplo, vínculos externos de empresas públicas, vínculos com grupo empresarial, controle familiar, organização altamente formalizada ou informal etc).

2. O respondente é ........................... exercendo o cargo de ...................................... a .......... anos (............escalão), trabalhando a ............ anos nesta mesma empresa, com uma experiência de ............ anos como profissional de recursos humanos. A empresa anterior em que trabalhou é ................................................................., do ramo .........................................................................

3. As práticas de recursos humanos de sua empresa:

3.1. Quanto ao funcionamento de um sistema de avaliação de cargos e descrição de funções efetivamente cumprido nos níveis médios e mesmo nos altos escalões: tipo de sistema; antigo, novo ou em implantação; resultando ou não planos de carreira que prevejam sistematicamente a mobilidade interna.

3.2 Quanto à organização de programas de treinamento para níveis médio e alto; se possível, especifique: para quadros técnicos ou gerenciais, interno ou externo, utilizando ou não a Lei nº 6.297 (qual o orçamento deste ano) etc.

3.3 Quanto à adoção de um sistema (ou vários) de administração salarial, abrangendo também os escalões de topo (até diretoria ou não). Base para fixação dos salários: sistema interno ou mercado? Quem é o mercado para a empresa: resultado de pesquisas salariais (compradas ou elaboradas, periódicas e sistemáticas ou esporádicas?), de contatos informais, ou dos processos de recrutamento e seleção? Como são compatibilizados o equilíbrio interno e o equilíbrio externo! Intensidade da repercussão (horizontal e vertical) da alteração, em um ponto específico, da estrutura salarial (equiparações e reestruturações exigidas em níveis médio e alto): estrutura salarial como um todo solidário ou não.

3.4 Quanto à estruturação de faixas salariais para os níveis médio e alto: número de faixas, e sua amplitude nos níveis médio e alto (se possível, amplitude em percentagem sobre a base da faixa, em dois exemplos). Superposição ou não das faixas; sua utilidade. Causas da variação da amplitude, se for o caso.

3.5 Quanto à concessão de fringe benefits exclusivos para os níveis médio e alto; tipos de benefício exclusivos e a quem atinge; se possível percentagem aproximada (valor) em relação aos salários monetários. Adoção ou não dos critérios indicados na Lei nº 6.250 para reajustamento de salários acima de 30 salários mínimos; compensação por mérito ou outras acomodações (quais). Perda de competitividade ou não, para os que tenham obedecido estritamente. Expansão ou não dos benefícios (como tendência) por causa da Lei nº 6.205 ou por outras razões (imposto de renda reestruturado, por exemplo).

3.6 Quanto à estrutura salarial:

3.6.1 Salários médios, geral e por tipo de funcionários (horista, mensalista, gerentes, executivos, técnicos etc).

3.6.2 Freqüência (número de funcionários) por classes de salário (classes aproximadas, em função da disponibilidade de dados da empresa):

até ± 10.000;

de 10.000 até 23.000;

de 23.000 em diante.

3.7 Quanto à rotatividade em níveis médio e alto: principalmente espontânea (provocada pelo profissional) ou forçada (provocada pela empresa). Números, se houver (indicando a fórmula adotada). No caso de empresas públicas, coincidência ou não com período de governo, e até que escalão. Critérios de informação ao mercado de trabalho a respeito de profissionais de nível médio e alto que tenham sido demitidos (informação negativa formal ou informalmente transmitida a outras empresas; em que casos?)

4. As relações de sua empresa com o mercado de trabalho:

4.1 Atualmente, vem predominando o recrutamento interno ou externo para o preenchimento efetivo de posições em nível médio e alto? Até que nível hierárquico há ativa participação do setor de recursos humanos da empresa no processo de seleção e na escolha final que conclui o recrutamento? (Considerar diretoria como primeiro nível.)

4.2 No caso de recrutamento externo, quais as formas de recrutamento mais importantes, constantemente utilizadas em cada caso (níveis médio e alto): cadastro, contatos pessoais, anúncios, agências, outras? A intermediação (agências) é utilizada ou não e por quê? (Caso seja utilizada somente em casos excepcionais ou como último recurso, especifique.) Com que freqüência contatos e indicações pessoais resolvem o problema?

4.3 Quanto a critérios para recrutamento externo, qual a importância do aspecto alta mobilidade anterior de carreira dos candidatos. Caso este aspecto seja importante, o que seria considerado um mínimo de estabilidade desejável e razoável, em média, nos empregos anteriores? Existe algum aspecto buscado na personalidade do candidato, considerado como muito importante para o seu bom entrosamento e desempenho, dadas as características da empresa?

4.4 Intensidade e utilidade da participação da empresa em órgãos associativos de recursos humanos, ou da relação informal, mas constante com setores equivalentes de outras empresas. Sendo o caso, quais órgãos?

4.5 Atuação, na mesma faixa, dos setores público e privado: a empresa cedeu ou recebeu pessoal de nível médio e alto; sentiu ou sente a concorrência entre os dois setores? Em que épocas?

4.6 Mudanças em passado recente (até no máximo 10 anos) que tenham tido grande impacto na política de recursos humanos da empresa (por exemplo, abertura de capital, fusões e incorporações, mudanças legais etc). Especifique. Perspectivas próximas futuras: expansão, manutenção ou retração das atividades e do número de funcionários (dentro de no máximo três anos).

4.7 (Só para grupos empresariais.) Em que medida o caráter de grupo condiciona o tipo de política de recursos humanos adotada? Grau de homogeneidade e de integração da política do conjunto de empresas do grupo.

5. Só para empresas públicas:

5.1 O modelo privado, enquanto adoção de padrões organizacionais na área de recursos humanos, é seguido ou não, e por quê? Especifique.

5.2 Forma de vinculação com a administração direta e papel dos órgãos governamentais na formulação da política de recursos humanos da empresa. Sendo o caso, quais os órgãos?

5.3 Sendo o caso, analise a duplicidade de regimes de contrato de trabalho: caracterização, problemas enfrentados e tendências.

5.4 Impacto da mudança de governo na estabilidade dos quadros gerenciais e técnicos da empresa. Até que nível a última mudança de governo implicou alterações destes quadros da empresa?

  • 4 O nivel de análise aqui adotado já vem sendo foco de preocupação de alguns autores, entre os quais: Monteiro, Jorge Vianna. Organização e política pública. 1978, mimeogr.; e Giacometti, Haroldo Clemente. Public enterprises: a conceptual approach using the dimension of leadership, power and context. Dissertação de doutoramento, University of Southern Califórnia, 1978 (especialmente capítulos 5 e 6).

Anexos 1

2

  • *
    Trabalho apresentado ao Seminário sobre Empresas Públicas, convênio com EAESP/FGV e Secretaria de Modernização e Reforma Administrativa - Semor, realizado no período de 15 a 17 jan. 1979.
  • 1
    Uma estimulante reflexão a este respeito foi apresentada por Zajdsznajder, Luciano.
    Políticas governamentais e controle organizacional: reflexões sobre o caso brasileiro, mimeogr. 1978.
  • 2
    Até agora, a questão monetária parece ter sido o grau de partia pação do Estado na economia. Veja, por exemplo, Suzigan, Wilson. As empresas do governo e o papel do estado na economia brasileira. In:
    Aspectos da participação do governo na economia. Rio de Janeiro, Ipea/lnpes, 1976. (Série Monográfica, n. 26.) Veja também as críticas a este trabalho por Cipolla, Francisco Paulo. A Estatização segundo Wilson Suzigan. In: Martins, C. E. (org.)
    Estado e capita lismo no Brasil. São Paulo, Hucitec-Cebrap, 1977.
  • 3
    Tal idéia é brilhantemente apresentada no posfácio da edição recente do livro de Ignacio Rangel.
    A Inflação brasileira. São Paulo, Editora Brasiliense, 1978.
  • 4
    O nivel de análise aqui adotado já vem sendo foco de preocupação de alguns autores, entre os quais: Monteiro, Jorge Vianna.
    Organização e política pública. 1978, mimeogr.; e Giacometti, Haroldo Clemente.
    Public enterprises: a conceptual approach using the dimension of leadership, power and context. Dissertação de doutoramento, University of Southern Califórnia, 1978 (especialmente capítulos 5 e 6).
  • 5
    É bem mais abundante o material disponível que aborda os padrões de financiamento existentes e o sistema produtivo estatal comparativamente ao problema dos serviços de utilidade pública. Em especial, Finep e lpea têm estimulado a elaboração de estudos do primeiro tipo.
  • 6
    Veja Dain, Sulamis. Empresa estatal e política econômica no Brasil. In: Martins, C. E. op. cit.
  • 7
    Em face de tais variações internas, a hipótese de formação no Brasil de um "Estado-empresário associado", sugerida por Fernando Henrique Cardoso, resta a ser comprovada em termos empíricos. Para tanto, o caminho que o próprio autor aponta, mas não assume, de análise do "jogo institucional vigente" parece ser adequada. Veja Cardoso, F. H. Desenvolvimento capitalista e estado: bases e alternativas. In: Martins, C. E., op. cit.
  • 8
    Dain, Sulamis. op. cit. p. 158.
  • 9
    Discussão teórica muito interessante que aponta nesta direção é encontrada em Preteceille, Edmond. La Planification urbaine: les contradictions de ('urbanisations capitaliste.
    Economie e Politique, n. 236, mars 1974.
  • 10
    Veja Rangel, Ignacio, op. cit. especialmente p. 138-40.
  • 11
    Id. ibid. p. 134; e Oliveira & Reichstul. Mudanças na divisão inter-regional do trabalho no Brasil.
    Estudos Cebrap, n. 4, p. 161, avr./juin. 1973.
  • 12
    Discussão teórica relevante para este ponto aparece em Magri, Susana. Besoins sociaux et politique du logement.
    La Pensée, n. 180, avr. 1975.
  • 13
    Trata-se aqui de aproveitamento parcial e em maior profundidade de dados colhidos com outra finalidade. A composição da amostra de empresas públicas e privadas e o roteiro das entrevistas aparecem nos
    Anexos 1 Anexos 1 e
    2 2 deste trabalho.
  • 14
    A referência é a Lei nº 6.297, que tem estimulado uma verdadeira
    indústria de treinamento com fins fiscais.
  • 15
    Neste ponto, Zajdsznajder considera adequadamente que o ponto de estrangulamento que permite tal
    licença é a fraqueza estrutural de uma sociedade civil impossibilitada de controlar os aparelhos do Estado. Incompreensivelmente, porém, o mesmo autor aceita como legítimos ou pressupostos os objetivos formais do planejamento de um estado que atua nestas condições. Veja Zajdsznajder. op. cit.
  • 16
    A referência aqui é a Lei nº 6.245, que valorizou os altos salários como pólo de concentração da renda no Brasil e se propõe a conter sua expansão.
  • 17
    A crise do Codec, no primeiro semestre de 1977, que teve conseqüências parciais na demissão do Secretário da Fazenda de São Paulo, Nelson Gomes Teixeira, constituiria um excelente estudo de caso para ilustrar a discussão do controle governamental das atividades descentralizadas.
  • 18
    Parece ser especialmente relevante a abordagem desse problema em Monteiro, Jorge Vianna. op. cit.
  • 19
    Para uma análise sistemática das raízes estruturais que levam à crise do planejamento (em nível teórico), veja Charnay, Jean-Paul.
    Essai general de strategie. Ed. Champ Libre, 1973.
  • 20
    Boa contribuição para esclarecer este aspecto é dada. por Cerqueira & Boschi. Elite industrial e estado: uma análise da ideologia do empresariado nacional dos anos 70. In: Martins, C.E., op cit. especialmente p. 172-5.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1979
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br