ARTIGOS
Desenvolvimento e emprego: a viabilidade de uma tecnologia intermediária
Henrique Rattner
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas
1. INTRODUÇÃO
A inovação tecnológica e a transferência de tecnologia de países desenvolvidos àqueles em desenvolvimento passaram a constituir uma área de estudos e investigações das mais importantes nas sociedades contemporâneas, que adotaram a filosofia e os objetivos do "crescimento econômico".
A importância atribuída ao assunto ultrapassa amplamente questões e problemas de balanço de pagamentos ou de aspectos puramente técnicos e econômicos da produção, porque a escolha de uma determinada tecnologia e sua aplicação no processo de produção de bens e serviços terão amplos e profundos efeitos sobre as estruturas sociais e culturais da Nação.
De acordo com as técnicas e processos adotados na produção serão determinadas as diretrizes do crescimento econômico: quem trabalhará e quem ficará desempregado; quais as regiões que irão prosperar e quais permanecerão estagnadas; onde será criada uma infra-estrutura que, por sua vez, constituindo "economias externas", produzirá efeitos acumulativos e irreversíveis sobre o processo de concentração urbano-industrial e, finalmente, o próprio sistema educacional sofrerá os efeitos das diferentes opções tecnológicas que exigem, alternadamente, uma educação elitista ou elementar das massas.
Não podemos, portanto, tratar dos principais problemas e aspectos da política tecnológica de maneira isolada e desvinculada do contexto socioeconômico e cultural mais amplo, em que se desenrolam os processos de invenção, inovação e transferência de tecnologia.
2. INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E CRESCIMENTO ECONÔMICO
A ênfase na tecnologia pode ser compreendida como mais um dos múltiplos aspectos de um processo iniciado após 1945, época em que ocorreu o "grande despertar" do mundo subdesenvolvido, mobilizando energias e aspirações de centenas de milhões de homens, em busca do "desenvolvimento".
Num período de um quarto de século, foram criados e divulgados sucessivamente doutrinas e modelos de crescimento econômico, destacando ora a importância primordial do fator K (capital), de matérias-primas ou de recursos humanos (sobretudo o "talento empresarial"), ora culpando o elevado índice de crescimento demográfico ou a falta de motivação (do tipo "ética protestante") pelos fracassos registrados no chamado "terceiro mundo".
Cada um desses fatores foi considerado e analisado, em determinado momento, como se fosse capaz, por si só, de resolver os problemas do crescimento econômico, múltiplos e complexos.
O último na série desses fatores "magnos", capazes de impulsionar o processo de crescimento, é a tecnologia e, por extensão, todo o aparato científico-tecnológico que um país possa pôr a serviço do sistema de produção, em função dos planos de "crescimento". Em todos os livros e manuais de desenvolvimento econômico, o processo de expansão do sistema é invariável e, por pressuposto, caracterizado como exponencial e quantificável, representado por funções matemáticas e testado e comprovado por inúmeros índices desenvolvidos pelos economistas: toneladas de aço, kilowatt/horas, toneladas de cimento, número de carros, etc, per capita, darnos-iam uma idéia clara e insofismável do grau de progresso alcançado, em termos absolutos ou relativos (aos outros países).
O "crescimento econômico" foi elevado a um dos valores supremos das sociedades contemporâneas e sua realização medida pela renda per capita ou o PNB per capita. A maioria dos modelos de crescimento desenvolvidos é do tipo ad infinitum, em que crises seriam apenas passageiras e ocorreriam somente na fase do take-off, podendo ser facilmente resolvidas pelos técnicos, planejadores, cientistas ou políticos, em quem se devia depositar confiança absoluta e ilimitada.
3. OS RESULTADOS DA PRIMEIRA DÉCADA DE DESENVOLVIMENTO DAS NAÇÕES UNIDAS
A euforia existente no início dos anos 60, a partir da criação da Aliança para o Progresso e outros esquemas magnânimos de ajuda internacional aos países em desenvolvimento, foi revezada por uma onda de pessimismo que se expandiu, a partir da divulgação dos informes colhidos pelas organizações internacionais sobre a situação real nesses países, por volta de 1970. Diante de um quadro desolador, na maioria dos países "pobres", foi solenemente proclamada a "segunda" década de desenvolvimento, cujas perspectivas certamente não são muito acalentadoras e mais promissoras do que as da primeira.
Sem querer apresentar esta exposição com dados estatísticos, é mister assinalar que as esperanças depositadas no crescimento do setor "moderno" e dinâmico (urbano-industrial) - que seria tão rápido a ponto de poder absorver os vastos contingentes populacionais do setor "arcaico estagnado" (rural-agrário) - foram amplamente decepcionadas.
Junto com os progressos do setor moderno, também se expandiram as formas "patológicas" (a marginalidade, o desemprego, as favelas) do convívio humano, de modo a sugerir que o crescimento econômico expresso em PNB ou renda per capita é, na melhor das hipóteses, insuficiente e não significa necessariamente uma melhoria no nível de vida das camadas menos afortunadas da população, ou seja, uma redução do fenômeno da pobreza e do subdesenvolvimento.
A desilusão não envolveu apenas os países em desenvolvimento; também os "ricos" sofreram e continuam a padecer de taxas inflacionárias crescentes, crises cambiais e saldos deficitários no balanço de pagamentos, falta de mão-de-obra aliviada pela importação maciça de operários estrangeiros, provocando um ressurgimento de conflitos raciais, sem falar dos problemas universais das grandes aglomerações urbanas, que são características típicas das sociedades modernas e que podem perfeitamente coexistir com altas taxas de crescimento econômico.
Na década dos 60, um dos espíritos mais lúcidos de nossa época, John K. Galbraith, já tinha levantado sérias dúvidas quanto à validade de certos índices econômicos, refletindo o gigantismo crescente de algumas empresas e metrópoles, como critérios para a realização dos planos de desenvolvimento e como base para determinar as perspectivas do futuro da sociedade. As seguintes observações empíricas podem fundamentar as dúvidas levantadas por Galbraith:
a) a organização e a racionalidade internas das empresas gigantescas não são transferíveis à vida fora das empresas; ao contrário, sua expansão e prosperidade são concomitantes com a deterioração dos serviços públicos e da "qualidade da vida" nos grandes centros urbanos;
b) o automóvel e a indústria automobilística, considerados como motor de crescimento, tiveram papel preponderante na destruição do espaço urbano e no conseqüente surgimento de inúmeros problemas sociais e ambientais;
c) finalmente, foi percebida novamente uma verdade tão antiga quanto a humanidade, segundo a qual, embora não se possa construir uma sociedade justa e estável à base da pobreza, também não há, como o diz o sociólogo alemão Juergen Habermas, "convergência automática entre a afluência material, por um lado, e o desabrochamento da personalidade dos indivíduos-membros, numa sociedade aberta e democrática, por outro".
É contra este pano de fundo de um mundo profundamente dividido, caracterizado por tremendas desigualdades e crises e conflitos, que nos propomos examinar os problemas da inovação e transferência de tecnologia, com particular referência ao caso do Brasil.
4. CRIAÇÃO AUTÔNOMA OU TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
Quem cria ou inova tecnologia?
A literatura econômica contemporânea está repleta de referências à figura heróica do empresário (deus-ex-machina), tão bem caracterizado em seu papel de "destruidor criativo" na obra de Joseph Schumpeter. Todavia, o próprio Schumpeter, em seus últimos escritos, reconheceu claramente as mudanças estruturais ocorridas no sistema econômico, sendo uma das conseqüências a elaboração e o controle das inovações, nas grandes empresas, sob forma institucionalizada de departamentos de pesquisa e desenvolvimento, que liquidaram paulatinamente com as funções do inovador individual Essas empresas oligopolísticas, enquanto transformam os resultados dos processos de invenção e inovação em instrumentos de dominação de seus respectivos mercados, manipulando o gosto dos consumidores, vendendo-lhes as "últimas" conquistas do progresso técnico (carros com motores mais potentes, jatos supersônicos, TV a cores, etc), tornam prematuramente obsoletas as técnicas de produção, tudo em nome do "crescimento econômico".
Dir-se-ia que não há obrigação de escolher esta tecnologia ou seus produtos, que o mercado é "livre" e o comprador é "rei"... Convém, portanto, analisar a situação da oferta internacional de tecnologia, no mercado mundial.
5. A OFERTA INTERNACIONAL DE TECNOLOGIA
Embora não disponhamos de índices fidedignos sobre a relação investimento/produto em ciência e tecnologia e a distribuição mundial do potencial tecnológico, é lícito admitir que existe também neste setor de atividade social uma certa proporcionalidade entre as quantias gastas em pesquisa básica, aplicada, desenvolvimento experimental, projetos-piloto e o produto final do sistema econômico.
A distribuição dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento em escala mundial segue os padrões da divisão do mundo em "ricos e pobres": 98% do total mundial dos gastos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) são efetuados nos países desenvolvidos, contra apenas 2% nos países em desenvolvimento.
Enquanto nos "ricos" a maior parcela desses recursos (aproximadamente 2/3) é aplicada em desenvolvimento dos setores mais dinâmicos ou indústrias de ponta - aero-espacial, eletrônica, energia nuclear, petroquímica e armamentos de todos os tipos - que são de pouca ou nenhuma vantagem para os países em desenvolvimento, estes dedicam uma parcela quase idêntica de seus minguados recursos a pesquisas fundamentais, freqüentemente orientadas pelos problemas e padrões dos países industriais.
Obviamente, os países em desenvolvimento necessitam de uma tecnologia diferente que amplie o número de empregos associado com um determinado volume de capital investido. Mas a tecnologia oferecida e transacionada nos mercados mundiais - criada e desenvolvida nas economias industrialmente avançadas, por elas e para elas - sendo do tipo capital-intensivo, necessariamente produz desequilíbrios econômicos, sociais e regionais, nos países menos desenvolvidos. Em virtude da alta densidade de capital, proporciona empregos em números reduzidos, obstrui a criação de um vasto mercado interno, cujos participantes serão produtores e consumidores de bens e serviços mais simples e trabalho-intensivos, enquanto concorre para a elevação dos lucros e rendas de uma elite, perpetuando as desigualdades e desequilíbrios.
Na discussão de possíveis alternativas, duas opções são geralmente mencionadas: 1. Importar e, eventualmente, adaptar o know-how estrangeiro. 2. Desenvolver, de forma autônoma, uma tecnologia nacional.
Quanto à primeira alternativa, é freqüentemente sugerido o exemplo do Japão, como um parâmetro digno de ser imitado. Argumenta-se que o Japão, tendo chegado tarde à distribuição de "fatias" no mercado mundial, ainda assim conseguiu conquistar uma parcela apreciável, com reflexos positivos em seu crescimento econômico. Seria fácil demonstrar que os países em desenvolvimento, mesmo os mais adiantados como o Brasil, a índia, o México, etc, chegaram bem mais "tarde" ao mercado mundial, num momento em que muitos outros países em desenvolvimento tentaram seu ingresso, reduzindo-se as fatias de todos, com um conseqüente aumento das tensões e conflitos. Também, as oportunidades abertas ao Japão na década dos 30 ou mesmo após 1945 não se oferecem mais aos recém-chegados, em virtude do aumento do gap entre ricos e pobres, além dos aspectos particulares da estrutura social e política que são características sui generis e produto de uma evolução secular e singela da história do povo japonês.
Antes de abordarmos o problema da criação autônoma de tecnologia no Brasil, seria conveniente examinar alguns aspectos da demanda.
6. A DEMANDA DE TECNOLOGIA EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO
A procura de tecnologia por parte das empresas não se realiza pelo objeto em si, mas pelos bens e serviços que com esta se possa produzir. Razões de prestígio e identificação com grupos de referência, além de vantagens materiais e pecuniárias, podem desfigurar bastante a demanda e elevar seu custo.
De fato, se as necessidades de abrigo e de transportes são praticamente universais, isto não significa obrigação de atendê-las por meio 148 de uma tecnologia construtora de arranha-céus ou de carros particulares. Entretanto, são estas as técnicas importadas e aplicadas preferencialmente nos países em desenvolvimento, causan do evasão de parcelas vultosas de cambiais escassos, e um conseqüente deficit no balanço de pagamentos.
Deve ficar claro que não pregamos o retorno a um sistema de produção de "bens de uso" ou a uma economia completamente auto-suficiente. O problema aqui examinado é o da estrutura da demanda de tecnologia e seu custo monetário e social: um país em desenvolvimento pode optar, a fim de desenvolver seu sistema de transportes e de comunicações, por equipamentos ferroviários ou rodoviários. Pode, inclusive, resolver pela importação de uma frota aérea a jato, obrigando a pesados investimentos em infra-estrutura aeroterrestre e de comunicações por satélites. Esses gastos são capazes de resolver os problemas de transporte e de comunicações ultra-rápidos de algumas centenas ou milhares de empresários, tecnocratas ou políticos. Todavia, o custo de tal sistema não pode ser avaliado apenas em termos monetários ou pela análise econômica de custos/benefícios. Há um elevado custo social a ser considerado, que pode ser equacionado, eventualmente, em alqueires de terras irrigadas, em determinado número de leitos hospitalares, em oportunidades de treinamento e educação para milhares de cidadãos, em melhoramentos urbanos, etc, que poderiam ter sido proporcionados, com os mesmos recursos, a parcelas muito maiores da população.
O exemplo referido deve tornar patente a força dinâmica do "efeito-demonstração" e do consumo suntuoso e ostentativo constantemente divulgado e promovido por uma máquina potente de propaganda que manipula tanto o gosto quanto a preferência dos consumidores, até criar hábitos de consumo compulsivos, capazes de derrubar e anular toda e qualquer tentativa de inovação racionalizadora.
Entendemos por inovação racionalizadora técnicas de produção que, contrariamente ao sistema atual de multiplicação de modelos e de artigos de consumo, são apropriadas à produção em massa, limitada a alguns tipos funcionalmente diferenciados e de baixo custo, dos respectivos produtos.
A inadequação dè maior parte da tecnologia hoje importada, sob este ponto de vista, pode ser argüida e demonstrada pelas seguintes razões:
1. A tecnologia sofisticada importada de países industrialmente mais avançados, sendo de alta densidade de capital, não aproveita adequadamente o fator abundante - a mão-de-obra - ou não-qualificado nos países em desenvolvimento.
2. Ademais, sendo capital-intensiva, essa tecnologia só atinge grau razoável de eficiência quando a produção estiver organizada em empresas de grande escala. Na presença de um mercado consumidor restrito, é provável que parte do equipamento sofisticado permaneça ocioso, sugerindo a conveniência do uso de técnicas de mão-de-obra intensivas.
3. A tecnologia importada exige também insumos importados, estipulando as cláusulas dos contratos, a obrigação de adquirir peças de reposição e outros insumos exclusivamente dos fornecedores iniciais da tecnologia. O custo em divisas decorrente e seu peso no balanço de pagamentos devem ser computados na ocasião da determinação das opções tecnológicas: uma técnica de mão-de-obra intensiva, embora tecnicamente menos eficiente, pode-se averiguar mais vantajosa por exigir a importação de poucas peças, enquanto a mais sofisticada dependerá, geralmente, de um fluxo constante e elevado de insumos do exterior.
4. O custo da tecnologia importada não se restringe apenas ao preço das patentes, licenças, marcas e serviços técnicos de assistência para o funcionamento dos estabelecimentos industriais - há toda uma lista de custos "ocultos", tais como: custos decorrentes do sobrefaturamento dos insumos, lucros sobre a capitalização do know-how e lucros decorrentes de preços quase monopolísticos na transferência de tecnologia para as subsidiárias de propriedade da matriz e vice-versa, que devem ser computados num balanço final de custo/benefício da tecnologia importada.1 1 Os problemas do balanço de pagamentos, decorrentes da importação de tecnologia, podem ser focalizados sob o aspecto da remessa de lucros. Diante das limitações da taxa de remessa, por lei, as empresas transferem boa parte dos lucros, sob forma de royalties. Um bom exemplo é o caso da Colômbia, onde o limite das remessas é fixado em 14% e as remessas atuais não ultrapassaram de 4,5 a 5,0%. Mas as somas remetidas a título de royalties eram 400% superiores às dos lucros... Outro ponto importante constitui a cláusula restritiva de exportações, sendo os mercados externos geralmente reservados para a matriz. O estudo nos países do Pacto Andino revelou a existência de tais cláusulas em 88% dos contratos na indústria têxtil e 89% da industria farmacêutica, enquanto em 85% dos contratos figuravam cláusulas que obrigavam o importador do know-how a recorrer ao mesmo fornecedor para a importação de insumos e peças de reposição... (Ver Vaitsos C, Documento da Universidade de Sussex, etc.).
5. Finalmente, uma tecnologia inadequada resulta na produção de bens e serviços inapropriados, ou seja, atenderá preferencialmente os consumidores de renda elevada e não a maioria da população carente dos meios essenciais para sua sobrevivência. Essa estrutura de demanda seletiva, que reflete a estratificação social e a distribuição de renda desigual, reduz bastante as possibilidades de comércio de tecnologia entre países em desenvolvimento, enquanto perpetua sua dependência dos centros mais avançados.
Um exemplo típico de um produto inapropriado, baseado numa tecnologia importada, temos no sistema de saúde predominante nos países em desenvolvimento, calcado nos padrões dos países mais ricos: as preocupações dos médicos e pesquisadores concentram-se nos problemas de como evitar o enfarte, o câncer dos pulmões, em cirurgia de transplantes, etc, enquanto o país carece de recursos apropriados para combater a esquistossomose, o mal de chagas e as inúmeras endemias rurais... O mesmo quadro se observa na estrutura dos serviços de saúde: concentrado em grandes unidades hospitalares, com médicos altamente especializados, faltando contudo os ambulatórios locais e regionais e técnicos em serviços sanitários básicos. Como resultado, o Serviço de Saúde Pública é incapaz de prestar assistência, mesmo precária, à maioria da população. A argumentação precedente não pretende insinuar que países como o Brasil teriam que adotar forçosa e exclusivamente técnicas trabalho-intensivas, rejeitando-se qualquer solução baseada no emprego de técnicas capital-intensivas. Exemplos concretos de história econômica recente demonstram a pouca viabilidade da produção de aço nos "quintais das fazendas"... Na conjuntura econômica e política do mundo contemporâneo, a solução por meio de isolamento ou rompimento de relações comerciais com outros países parece ilusória, mesmo para as grandes potências. Seria absurdo pretender trilhar exclusivamente por meios próprios os caminhos árduos do desenvolvimento: ajuda e cooperação das nações mais ricas continuam sendo necessárias e até indispensáveis, porém, o problema são a seleção e determinação de tecnologias adequadas às tarefas e objetivos da Nação, formulados mediante processo político adequado. Assim, parecem viáveis a pesquisa, o desenvolvimento e aplicação de técnicas predominantemente trabalho-intensivas na agricultura e na transformação de matérias-primas para o consumo direto, enquanto a indústria pesada, a construção de veículos, a petroquímica, etc. continuarão a necessitar, eventualmente e de forma sempre crescente, de processos capital-intensivos.
Não se trata, portanto, de escolher entre uma ou outra, mas sim de elaborar critérios e parâmetros válidos para o uso ponderado das duas tecnologias, de acordo com os objetivos específicos e os valores sociais da sociedade. Em outras palavras, diríamos que uma economia em crescimento tentará aplicar seus recursos escassos, de forma criteriosa e seletiva, na aquisição e difusão de diversas tecnologias, tanto capital-intensivas quanto trabalho-intensivas. Parece óbvio, todavia, que estas últimas não poderão ser fornecidas pelos países desenvolvidos. As tarefas da pesquisa e do desenvolvimento, a experimentação e construção de plantas-piloto cabem aos próprios países em desenvolvimento.
7. A VIABILIDADE DE UMA TECNOLOGIA INTERMEDIARIA
Se nossa argumentação sobre as condições objetivas do mundo contemporâneo em que se realiza a transferência de tecnologia for válida, e se as considerações tecidas sobre as inconveniências e problemas colaterais decorrentes dessa transferência forem devidamente comprovadas, as conclusões que se impõem são de alcance muito amplo e nos levam a examinar a viabilidade de uma tecnologia intermediária. Convém frisar, mais uma vez, que a proposta de pesquisa e de desenvolvimento de técnicas de produção mais apropriadas e sua introdução alternativa nos países em desenvolvimento não visam necessariamente a perpetuação da ineficiência econômica. A fim de poder ser considerada tecnologia "apropriada", esta deve:
a) resultar em maior utilização da mão-de-obra ociosa e subempregada, nas áreas rurais e urbanas;
b) elevar a produtividade média da força de trabalho, pelo uso mais eficiente do fator escasso K (capital), da terra e dos recursos naturais e matérias-primas;
c) proporcionar melhores ferramentas e equipamentos àquelas camadas da população que ficaram marginalizadas do processo de crescimento urbano-industrial;
d) assegurar que o aumento da produtividade resulte também em mercados mais amplos e estáveis e uma renda mais elevada para os setores e regiões mais atrasados.
O problema fundamental do desenvolvimento não pode ser equacionado por taxas de crescimento do PNB. O objetivo real deve ser a diminuição e a paulatina eliminação da pobreza sob forma de subnutrição, doenças endêmicas, analfabetismo e baixo nível de participação cultural e política, o que exige, em primeiro lugar, um aumento sempre crescente da oferta de empregos produtivos.
Apesar dos esforços desenvolvidos, os resultados, avaliados pelo crescimento da mão-de-obra produtivamente ocupada e com participação crescente na renda nacional, não foram satisfatórios e convém analisar suas causas:
a) Aspectos demográficos
O Brasil, tal como a maioria dos países em desenvolvimento, apresenta taxas de crescimento populacional por volta de 3% ao ano, enquanto os países industrializados não ultrapassam 1% ao ano, e alguns deles apresentam taxas negativas. O significado dessa desproporção é a necessidade de se criar pelo menos três vezes mais empregos com, supostamente, todos os outros fatores iguais.
A desproporção aumenta, todavia, ao considerarmos a diferença nos recursos disponíveis para a criação de empregos. Diante da disparidade do PNB ou da Renda Nacional, entre países "ricos" e "pobres", a relação da quantia disponível para criação de um emprego se situa por volta de 1:20 até 1:30... e isto com base no pressuposto de que a mesma parcela de aproximadamente 20% do PNB seria retida para fins de novos investimentos. Contudo, sendo a poupança função do nível de renda, por definição bastante baixa nos países em desenvolvimento, suas taxas de investimento reais se situam geralmente por volta de 10% do PNB, o que aumenta a desproporção de recursos disponíveis à criação de um emprego para 1:60...
Em conclusão, se a mesma tecnologia for utilizada nos países em desenvolvimento para a criação de empregos, de acordo com os padrões das economias industrializadas, de população estável, as oportunidades de emprego para a população em idade de trabalhar seriam ínfimas, deixando os outros desempregados ou subempregados e realimentando o círculo vicioso da pobreza, e, com ele, as tensões e conflitos sociais.
b) Aspectos econômicos
Talvez a melhor maneira de caracterizar as diferenças entre as opções tecnológicas seja sua representação por meio do custo de equipamento por unidade de emprego. Se atribuirmos ao equipamento de um trabalhador, nos setores mais atrasados da economia, o valor 10, nos setores de ponta de indústria moderna o valor correspondente seria de 10 000. Uma transição direta entre os dois parece impossível e a introdução indiscriminada de T 10 000 (tecnologia, em que o custo do equipamento de um trabalhador é de Cr$ 10 000,00) há de afetar drasticamente os detentores de uma T 10, eliminando-os completamente do mercado. Daí, a necessidade de uma Tecnologia Intermediária ou seja, T 100 ou T 500, que seria mais eficiente do que T 10 e mais em conta do que T 10 000, significando a possibilidade de se criarem novos empregos, de acordo com o nível educacional e cultural, as aptidões e a capacidade organizacional dos contingentes de mão-de-obra.
O mesmo argumento pode ser desenvolvido com base em dados diferentes: nos países desenvolvidos, a relação entre a renda média anual de um operário e a média de capital necessário para a criação de um emprego é de 1:1. Isto significa que é preciso 1 homem/ano de trabalho para criar um emprego, ou que o operário deveria poupar 1/12 de seu salário anual, durante 12 anos, a fim de poder adquirir seus instrumentos de trabalho. Os instrumentos baseados numa tecnologia intermediária seriam não somente mais baratos, mas, também, mais simples e, por isso, mais acessíveis à compreensão daqueles que irão utilizá-los, com maiores possibilidades de manutenção e consertos, sem precisar recorrer a serviços técnicos complicados e custosos. Um equipamento mais simples é, normalmente, menos dependente de especificações exatas quanto a matérias-primas e outros insumos sofisticados, enquanto é mais adaptável às flutuações da demanda e do mercado consumidor.
Finalmente, o treinamento do pessoal, sua organização e supervisão seriam mais simples, tornando as empresas menos vulneráveis nas oscilações da conjuntura e nas crises cíclicas.
8. OBJEÇÕES À TECNOLOGIA INTERMEDIÁRIA
Tentaremos, de forma resumida e confessadamente superficial, antecipar algumas das objeções que certamente se farão à introdução de uma tecnologia intermediária.
Um argumento de peso afirmaria, sem dúvida, que tal política tenderia a perpetuar o atraso dos países em desenvolvimento que coletariam equipamento de segunda mão e obsoleto, enquanto os "ricos" se distanciarão ainda mais, sob ponto de vista científico-técnico e militar. É o argumento dos planejadores e tecnocratas que ignoram os problemas daqueles que não dispõem do mínimo para subsistência e acreditam que as diretrizes do desenvolvimento podem ser derivadas de certas relações ou funções matemáticas fixas, tais como, por exemplo, a relação capital/produto. Argumentam eles que, sendo a quantidade de capital disponível limitada, uma política de desenvolvimento deveria optar entre a concentração dos recursos em "pólos de crescimento" (empresas de grande escala ou áreas metropolitanas) ou sua dispersão e descentralização, por meio de empresas de pequeno porte, distribuídas sobre todo o território. A adoção da segunda alternativa levaria, de acordo com as doutrinas-econométricas, a um produto global inferior ao da primeira, e, assim, impediria taxas de crescimento mais elevadas.
Esta visão, aparentemente correta, parece-nos eivada de um raciocínio falacioso: a relação capital/produto não reflete apenas um fato tecnológico, mas depende de uma série de outros fatores, tais como a capacidade e o treinamento do pessoal, seu talento organizacional, a existência de um mercado para toda a produção, etc. Ademais, não existem provas empíricas suficientes para se admitir a superioridade da organização em grandes unidades, ou seja, não está provado que uma certa quantidade de capital sempre maximiza o produto quando concentrado em grandes estabelecimentos ou em menor número de empregos.
Outro argumento contrário à tecnologia intermediária dá ênfase à escassez de talento empresarial que, em virtude do elevado custo de sua formação, deve ser utilizada da maneira mais concentrada possível, isto é, nas grandes unidades de produção e de prestação de serviços. Esta visão, por basear-se em categorias fixas, parece-nos estática e pouco adequada à formulação de uma política de desenvolvimento. Na realidade, o talento empresarial depende, em boa dose, do nível da tecnologia utilizada. Homens incapazes para organizar e dirigir um equipamento e processos de produção complexos podem perfeitamente desincumbir-se da administração de pequenas ou médias empresas. Ademais, a introdução de tecnologia intermediária ajudaria a difundir noções elementares de organização e administração de empresas e tenderia a familiarizar vastos contingentes da população com as técnicas de produção sistemáticas e racionais, o que resultaria, a médio e longo prazo, num aumento da oferta de capacidade empresarial.
Finalmente, argumentar-se-ia que produtos fabricados com tecnologia intermediária necessitariam de proteção contra os concorrentes no país e não poderiam ser exportados. Quanto ao primeiro ponto, parece haver evidências de custos de produção mais baixos e, portanto, competitivos, em virtude da proximidade às fontes de matérias-primas e da ausência de deseconomias típicas das grandes aglomerações urbanas. Quanto ao problema da exportação, não se pode esquecer o quanto custa à sociedade nacional a exportação forçada de produtos manufaturados, conseguida por meio de inúmeros subsídios fiscais e tributários por parte do erário público.
Novamente, não pretendemos que haja aplicação geral e universal de tecnologia intermediária. Certos produtos como computadores, aeronaves, automóveis e artefatos eletrônicos continuariam sendo produzidos por meio de processos e equipamentos complexos e sofisticados.
A aplicação mais direta de técnicas intermediárias seria na produção de materiais de construção, de utensílios caseiros e de equipamentos agrícolas. Sobretudo na agricultura, técnicas de fornecimento e armazenamento de água, de usos diferentes de sua matéria-prima básica - a madeira; de instalações de armazenamento e de transporte para seus produtos e o processamento de produtos perecíveis ao local seriam um campo ideal para a introdução e aplicação de uma tecnologia intermediária.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Experiências históricas recentes demonstram que, em vários países em desenvolvimento (Turquia, Índia, México, etc.), os planos de desenvolvimento, embora aparentemente bem sucedidos, não conseguiram eliminar e nem reduzir o número dos desempregados e subempregados.
Admitindo-se, à luz da experiência passada e da conjuntura atual, que a estrutura "dualista" dos países em desenvolvimento continuará num futuro previsível, por não ser possível a absorção do setor atrasado pelo moderno, uma política específica de desenvolvimento para suas populações se impõe, sem a qual a desintegração da sociedade rural e as migrações em massa levariam ao caos e à marginalização crescentes vastos contingentes da população nas áreas urbanas. As diretrizes de tal política, baseada na introdução de uma tecnologia intermediária, visariam a criação de empregos lá onde vive a população, e não somente nas áreas metropolitanas. Essas oportunidades de emprego deveriam ser de pouco custo em termos de formação de capital e dos métodos de produção simples, procurando-se reduzir a demanda por mão-de-obra altamente qualificada (técnicos, administradores e especialistas em produção, marketing, finanças, etc.). Esses processos de produção mais simples seriam apenas um estágio a caminho de progressos futuros, alcançados pelos próprios sujeitos do processo de desenvolvimento.
Aos institutos de pesquisa e laboratórios caberia concentrar seus esforços aos problemas de desenvolvimento de uma tecnologia intermediária, ou seja, identificar e experimentar processos e equipamentos de produção que são mais apropriados e adaptáveis ao fator trabalho, abundante nos países em desenvolvimento.
Essa orientação teria efeitos marcantes sobre o sistema educacional, que daria menos ênfase à superespecialização de uma elite e dedicaria maiores recursos à formação básica, flexível e prática das massas. Talvez não seja inútil acrescentar que aos centros de estudos e às organizações internacionais caberia a tarefa de assistir à implantação da tecnologia intermediária, sugerindo medidas específicas nos setores de treinamento de pessoal, de pesquisa e desenvolvimento, de comércio intra e internacional, de política administrativa e fiscal, que possam contribuir para uma política de pleno emprego, com base numa tecnologia apropriada.
BIBLIOGRAFIA
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Ago 2013 -
Data do Fascículo
Jun 1974