Open-access O município no desenvolvimento brasileiro

ARTIGOS

O município no desenvolvimento brasileiro

Eugênio Augusto Franco Montoro

Professor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

1. INTRODUÇÃO

Muito se discute atualmente a respeito da posição do município em nosso sistema governamental. Há os municipalistas, intransigentes defensores da autonomia municipal, para quem tudo deve ser feito no sentido de se defender a independência dos órgãos locais.

Há aqueles que, do outro lado, defendem uma progressiva limitação das funções municipais, que devem passar a ser exercidas pelos estados e União.

Este estudo pretende abordar alguns problemas referentes à questão.

Parte do pressuposto de que o desenvolvimento brasileiro pode e deve ser atingido sem que seja sufocada a autonomia municipal. Reconhece a necessidade de se desenvolverem sistemas de relações intergovernamentais, pois a autonomia completa de estados e municípios não mais se coaduna com o espírito do novo federalismo, o federalismo cooperativo ou solidário. Mas considera o fortalecimento dos órgãos locais um fator decisivo para o progresso social, econômico e político do País. Admite que será somente pela descentralização das atribuições governamentais que será possível ao Governo federal planejar e coordenar um desenvolvimento harmônico de todo o País.

2. DESCENTRALIZAÇÃO, IMPERATIVO DO DESENVOLVIMENTO

A luta pela descentralização das atribuições governamentais é um dos traços característicos da história brasileira. Na realidade, desde a Independência já surgiram manifestações significativas em favor da descentralização. Os movimentos de rebeldia contra centralização excessiva do poder político foram constantes no período imperial. E juntamente com a proclamação da República instituiu-se no País o regime federativo.

A importância da descentralização levou o constituinte de 1891 a optar pelo modelo federal, reconhecendo, como princípio básico de nossa organização político-administrativa, a autonomia dos estados e municípios. Tais princípios foram mantidos nas Constituições brasileiras até a atual Emenda n.º 1, de 1969.1

É a descentralização, portanto, imperativo constitucional, decorrendo da adoção do sistema federal a necessidade de serem fortalecidos os estados e municípios.

A importância da descentralização também foi reconhecida pela Reforma Administrativa Federal, cuja filosofia básica está definida no Decreto-lei n.º 200 de 25 de fevereiro de 1967. Este atribui à descentralização o caráter de princípio fundamental a orientar o processo de reforma administrativa.

A descentralização deve ser realizada em três aspectos: dentro dos quadros da administração federal, distinguindo-se claramente o nível de direção do de execução; da administração federal para o das unidades federadas; da administração federal para a órbita privada.2

O primeiro aspecto diz respeito à criação de órgãos descentralizados, como autarquias, empresas e fundações, a quem devem ser atribuídas atividades de "execução". O segundo, ao fortalecimento das unidades federadas, estados e municípios, a quem devem ser atribuídas, sempre que possível, as funções governamentais. O terceiro aspecto estimula a colaboração do setor privado, por meio de contratos e concessões.

É, portanto, a própria legislação federal que reconhece a importância da descentralização como condição indispensável para dinamizar o desenvolvimento do País.

Neste sentido também se orientam os estudos realizados sobre o assunto.

Com efeito, Paulo Reis Vieira, professor da Fundação Getulio Vargas, em trabalho recente demonstra através da análise comparativa de diversos países que o crescimento do Produto Nacional Bruto e o aumento dos níveis de industrialização e urbanização estão diretamente associados ao grau de descentralização governamental. E a descentralização se caracteriza pela existência de um número significativo de unidades de governo local.3

Assim, quanto mais desenvolvido o país, maior o grau de descentralização adotado e, conseqüentemente, maior a autonomia dos órgãos locais.

Idêntica também é a conclusão de Giles Lapouge, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, quando associa o progresso econômico da Alemanha ao alto nível de descentralização de seu aparelho governamental. E aponta as enormes dificuldades que afligem a França por adotar um sistema ainda centralizado.

3. NO BRASIL HÁ MUITOS MUNICÍPIOS?

O Brasil, atualmente, é um Estado ainda centralizado, apesar da imposição constitucional, ou apresenta-se altamente descentralizado?

É comum ouvirem-se críticas ao regime brasileiro por fortalecer excessivamente o município. Para estes um dos obstáculos ao desenvolvimento nacional encontra-se na existência de um número exagerado de unidades de governo local. Chega-se mesmo a defender uma reforma completa de nosso sistema político-administrativo com a supressão de inúmeros municípios.4

No entanto, um exame cuidadoso da realidade brasileira mostra que essa não é, de nenhuma forma, a política a ser adotada. A proximidade do governo local é necessária para o desenvolvimento de qualquer comunidade. Não é sem motivo que um dos primeiros movimentos que surgem espontaneamente com o desenvolvimento de uma região é a campanha por sua emancipação política. Isto ocorre porque sabem os moradores da região que a presença de um governo local próximo se constitui num eficiente instrumento de progresso. Se este não puder ser conseguido pela atuação dos novos governantes municipais, com recursos da própria comunidade, a existência de um governo local constituído é muito importante para reivindicar melhoramentos aos governos estadual e federal.

No mesmo sentido é a observação de Diogo Lordello de Mello, para quem a existência do prefeito e da Câmara constituem a melhor garantia para a presença do governo no interior.5

Não pode ser aceita, por outro lado, a afirmação que no Brasil existem muitos municípios. Comparando a nossa situação com a dos Estados Unidos, México, Suíça e Itália, verificamos que a afirmação é incorreta.

Como pode ser observado no quadro 1, é bastante extensa a área em km2 atingida por uma unidade de governo local no Brasil (2.288km2) em relação aos Estados Unidos (102km2) e México (788km2), países que também possuem grande território. É correto que parte de nosso território ainda não está devidamente povoado, mas, de qualquer forma, a diferença é considerável.


Também em termos de população média de cada unidade de governo local a situação brasileira é bem diferenciada. Enquanto nos Estados Unidos uma unidade de governo local abriga uma população média de 2.077 habitantes, na Itália de 6.465 habitantes e na Suíça, de 1.860 habitantes, no Brasil temos para cada município uma população média de 20.540 habitantes.

É evidente que estas comparações devem ser interpretadas levando-se em conta as diferenças políticas, socio-econômicas, culturais e mesmo territoriais dos diversos países. No entanto, servem como indicador do caráter centralizado da administração pública brasileira.

O Brasil está a exigir não a supressão de municípios, mas, pelo contrário, a expansão em número das unidades de governo local, como necessidade para descentralizar o aparelho governamental.

4. A INJUSTIÇA DA DISCRIMINAÇÃO DE RENDAS

Para que a descentralização seja efetiva é necessário que se assegure aos governos locais recursos financeiros suficientes para a execução dos serviços sob sua responsabilidade.

O sistema de discriminação de rendas adotado no Brasil, todavia, não favorece os governos municipais. Suas rendas próprias são irrisórias. Procura-se, no entanto, corrigir esta injustiça na distribuição de recursos governamentais através das transferências federais e estaduais.

Os tributos próprios que são concedidos aos municípios não oferecem possibilidades de assegurar sua autonomia. Tanto que sua importância nas rendas locais tem diminuído consideravelmente. Em 1958 eles representavam 55% da receita municipal. Em 1971, apenas 25%. Isto porque, a partir da reforma tributária, as grandes fontes de " recursos para os municípios passaram a ser as transferências federais, especialmente o Fundo de Participação dos Municípios, e as transferências estaduais, a quota parte do ICM.

As transferências federais são vinculadas, isto é, somente podem ser aplicadas em programas determinados pelo Governo federal Os municípios não podem, assim, livremente dispor sobre sua aplicação. A quota parte do ICM, por outro lado, favorece, principalmente, os municípios industrializados onde a arrecadação deste imposto é considerável.

Como observa Aliomar Baleeiro, quanto menor a renda do município, tanto maior será a parcela do Fundo Federal. Nos municípios mais ricos, decresce a importância deste Fundo e aumenta a parcela na partilha do ICM.6

Desta forma a maior parte dos municípios não dispõe de recursos financeiros suficientes. Por dependerem basicamente do Fundo de Participação têm que atuar de acordo com as diretrizes e prioridades fixadas pelo Governo federal, sacrificando sua autonomia.

Por meio do quadro 2 podemos observar como é realmente pequena a parcela da receita pública que fica com os municípios. A média dos últimos sete anos indica que 47% da receita pública ficam com a União, 39% com os estados e apenas 12% vão para os municípios. Observe-se que no quadro já estão excluídas das receitas federal e estadual as transferências, tanto em favor dos estados como dos municípios.


Observe-se que esta disparidade toma-se ainda mais acentuada se considerarmos também a receita carreada para a União, através de contribuições e/ou recursos arrecadados por entidades da administração descentralizada (BNH, Caixa Econômica, Banco do Brasil) como o FGTS, o PIS /PASEP, etc.

Toma-se imperiosa, desta maneira, uma revisão da sistemática de distribuição de rendas. É preciso que maior parte da receita pública seja atribuída aos governos locais, que não podem ficar na condição de simples agentes do Governo federal e aplicar recursos que lhes são transferidos.

São muito grandes os perigos de uma centralização financeira, que coloque distante do município o poder de decisão a respeito dos recursos que estão sendo nele aplicados.

No atual estágio do desenvolvimento do federalismo brasileiro, em que sobressai a importância das relações intergovernamentais, é preciso realizar-se grande esforço no sentido de serem encontrados mecanismos financeiros que favoreçam os municípios.7 Subvenções, auxílios, empréstimos são soluções possíveis desde que não se retire dos governos locais a capacidade de decisão a respeito da aplicação destes recursos.

5. SUGESTÕES PARA O FORTALECIMENTO DO MUNICÍPIO

Diante da importância do governo local para a promoção do desenvolvimento do País, é oportuno examinar, igualmente, o campo de atuação que ainda lhe é reservado e procurar apontar diretrizes para seu melhor aproveitamento.

Paralelamente ao crescimento da intervenção estatal nos diversos setores da economia e na área do bem-estar social, verifica-se no Brasil um esvaziamento das funções municipais. Com o objetivo de se obterem resultados mais rápidos na economia e devido à complexa tecnologia que passou a ser utilizada, em diversos campos está sendo progressivamente diminuída a atuação das prefeituras.

É o caso dos serviços de eletricidade e de comunicações, que durante longo tempo foram geridos pelos municípios. A partir da reforma constitucional de 1967, tais serviços passaram a ser de responsabilidade da União. É o caso dos serviços de saneamento básico, especialmente os serviços de água e esgoto, que, de acordo com a orientação do BNH, estão passando a ser administrados por companhias estaduais. É o caso da proteção dos recursos hídricos, que passou a depender de critérios fixados pelo Governo federal. É o caso dos serviços de interesse metropolitano, que, nas áreas metropolitanas, devem passar a ser geridos por órgãos especiais recentemente criados. Verifica-se, desta maneira, que em inúmeras áreas está sendo limitada a atuação dos governos locais.

No entanto, um exame mesmo superficial das atuais necessidades de nossos municípios mostra que em algumas outras áreas pode ser ativada a atuação das prefeituras. São setores em que tem sido pequena a participação dos governos municipais, mas que podem ser desenvolvidos através de programas de ação conjunta com o estado e a União.

É o caso da saúde, em que, conforme mostra o quadro 3, tem sido ainda muito pequena a atuação das prefeituras. Os governos federal e estaduais, ao elaborarem planos de saúde, não devem deixar de estimular e criar condições para que seja efetiva a participação dos governos locais em sua implementação.


É o caso da promoção de programas habitacionais em que, ao invés da adoção de uma política centralizada desenvolvida por órgãos estaduais ou federais, devem ser estimulados programas a cargo das próprias prefeituras.

É o caso de programas relativos à agricultura e pecuária, em que, praticamente, é omissa a atuação municipal. É preciso não esquecer, contudo, que o município, no sistema brasileiro, é a única unidade de governo local, quer urbano como rural. Deve, portanto, voltar sua preocupação também para a área rural.8

É o caso, finalmente, da promoção do desenvolvimento local através da ordenação do uso do solo, criação de distritos industriais, e promoção e incentivos à atividades econômicas que tenham condições de ser desenvolvidas no município. Observe-se, no entanto, que tal atuação deve orientar-se por um planejamento integrado que deve ser realizado pelo governo municipal, com a colaboração dos diversos setores da comunidade.

6. CONCLUSÃO

Verifica-se desta forma que é necessário não prescindir dos órgãos do governo local para a promoção do desenvolvimento do País. Muito pode ser feito pelas prefeituras, cuja ação deve ser integrada à da União e dos estados.

Apesar das deficiências que porventura possam ser apontadas nos governos municipais, sua colaboração é imprescindível. Devem funcionar como primeiros porta-vozes das necessidades locais junto aos governos estadual e federal, e como promotores daqueles serviços de interesse peculiar da comunidade municipal.

Assim, somente com municípios fortes é que o desenvolvimento nacional terá raízes sólidas. Somente com governos locais autônomos, independentes e atuantes o progresso do País poderá ser orientado no sentido de se atender às reais necessidades de toda a população.

Referências bibliográficas

  • 3 Reis Vieira, Paulo. Em busca de uma teoria da descentralização.-Rio de Janeiro, FGV, 1971.
  • 5 Lordello de Mello, Diogo. O município na organização nacional. Rio de Janeiro, 1972.
  • 6 Baleeiro, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro, Forense, 1976. p. 396.
  • 1
    Sobre a evolução do município, desde 1824, veja Franco Montoro, Eugênio.
    O município na Constituição brasileira. São Paulo, EDUC, 1975.
  • 2
    Artigo 10 do Decreto-lei n.º 200/67.
  • 3
    Reis Vieira, Paulo.
    Em busca de uma teoria da descentralização.-Rio de Janeiro, FGV, 1971.
  • 4
    Em 1972 falava-se na elaboração de um Estatuto dos municípios e no estabelecimento de requisitos muito mais rígidos que os atuais para a criação e mesmo existência de municípios.
  • 5
    Lordello de Mello, Diogo.
    O município na organização nacional. Rio de Janeiro, 1972.
  • 6
    Baleeiro, Aliomar.
    Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro, Forense, 1976. p. 396.
  • 7
    Veja estudos realizados no Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), por ocasião do Simpósio sobre as Relações Intergovernamentais, em 1973.
  • 8
    Em pesquisa realizada em 1975 pela Escola de Engenharia de São Carlos (SP) sobre o planejamento municipal no estado de São Paulo, ficou demonstrado que quase nenhuma atenção é dada pelos planos locais ao setor de agricultura.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Out 1976
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