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DO AGRESTE PARA O MUNDO

FILHOS DAS FEIRAS: UMA COMPOSIÇÃO DO CAMPO DE NEGÓCIOS AGRESTESá, Márcio. . Recife, PE: Massangana, 2018366p.

Há pelo menos uma década, somos periodicamente brindados com reflexões densas e originais advindas do Agreste pernambucano, uma tradição a que Filhos das feiras: Uma composição do campo de negócios agreste permanece fiel. Tendo sido originalmente redigido como tese de doutorado em Sociologia na Universidade do Minho, este livro coroa a militância de Márcio Gomes de Sá como pesquisador do Grupo de Estudos e Intervenções no Agreste (GEIA), da Universidade Federal de Pernambuco. O Agreste é uma área de transição da região nordeste do Brasil, estendendo-se, paralela à costa, por seis estados brasileiros. É uma área composta por pequenas e médias propriedades rurais e por pequenas e médias cidades, que se beneficiam da proximidade da populosa área litorânea, mas que dela são consideravelmente diferentes. Parte da diferença deve-se à condição de periferia, o que implica menos recursos e uma forma distinta de economia, sociedade e administração.

E do que trata a obra? Do ápice de uma bem-sucedida agenda de pesquisa sobre o Agreste pernambucano (Sá, 2010Sá, M. G. (2010). O homem de negócios contemporâneo. Recife, PE: Editora Universitária UFPE., 2011Sá, M. G. (2011). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios. Recife, PE: Editora Universitária UFPE.; Sá, Helal, Ferraz, & Silva, 2013Sá, M. G., Helal, D. H., Ferraz, A., & Silva, J. P. (Orgs.). (2013). Trabalho: Questões no Brasil e no Agreste pernambucano. Recife, PE: Editora Universitária UFPE.). Escapando da armadilha fácil de tomar o business man como sinônimo de executivo engravatado de uma metrópole, esta obra consegue revestir de importância o contexto local, defendendo que somente lentes localizadas, associadas a uma teorização densa, são capazes de entender e qualificar a riqueza dos negócios da região. Ao ampliar o perfil do homem de negócios contemporâneo (Sá, 2010Sá, M. G. (2010). O homem de negócios contemporâneo. Recife: Editora Universitária UFPE.), incorporando a informalidade e sua gestão ordinária (Carrieri, 2014Carrieri, A. P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 21-64. doi:10.25113/farol.v1i1.2592
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), este livro enfatiza o local, uma relevante tradição de pesquisa que remonta a nomes como Tânia Fischer (1996)Fischer, T. (1996). Gestão contemporânea: Cidades estratégicas e organizações locais. Rio de Janeiro, RJ: FGV., Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre o Poder e Organizações Locais da Universidade Federal da Bahia.

Organizado em seis capítulos, além de trazer um apêndice metodológico, o livro apresenta expressiva influência teórica da Sociologia francesa de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, debruçando-se sobre a forma pela qual se compõe um campo de negócios, em particular o de confecções. Márcio Sá enfatiza a relevância de compreendermos o que é um negócio - e, por consequência, o que significa administrá-lo, o que é ser um gestor, e assim sucessivamente - a partir da rica tradição do Agreste de Pernambuco. Para além da discussão em torno da precarização do trabalho existente em tais negócios informais, ele costura diálogos teórico-analíticos entre a História, a Economia, a Administração e a Sociologia, requalificando suas discussões teóricas disciplinares à luz de um contexto que é, na verdade, o grande protagonista da obra. Não interessa, portanto, apenas discutir a configuração produtiva, mas os negócios que existem em uma região específica, e que precisam ser compreendidos não tendo como referência a capital, que eventualmente toma o interior e suas organizações como "atrasadas", "desorganizadas", e assim por diante. Essa malha econômica tem características peculiares, somente alcançáveis por meio de um deslocamento que torne o conhecimento ali produzido, além mais potente do ponto de vista teórico, empírica e socialmente relevante. Em outras palavras, o local não pode ser observado com as lentes do global, sob pena de ser sempre incompreendido pela adoção de referências que não lhe dizem respeito.

Por conta disso, é muito interessante a construção feita em torno do "que pode ser elaborado como capital neste campo interiorano?" (Sá, 2018, p. 210). O clássico conceito de capital de Bourdieu é ajustado ao Agreste de Pernambuco considerando dois elementos: "os recursos diferenciadores no mercado local" e "traços distintivos dos seus proprietários". Esses dois aspectos configuram uma lógica que permite vislumbrar de que forma as posições são ocupadas no campo de confecções de uma região periférica. Longe de investir apenas na referência francesa dos seus guias teóricos, o professor Sá mergulha na relevância que emerge dos depoimentos produzidos no campo de uma forma criativa, aderente e pertinente. Em que pese o tom estruturalista inequivocamente associado à adoção de uma perspectiva bourdieusiana, é notável a edificação de uma pesquisa profundamente assentada sobre o local e, exatamente por isso, capaz de diálogos em níveis bem mais amplos.

Um destaque do texto é a questão da periferia, uma variável fundamental para explicar, inclusive, o próprio capitalismo e sua sanha de acúmulo crescente. A periferia não apenas é uma construção teórica potente, uma vez que permite que se delineiem, muitas vezes por oposição, o centro e seus limites, mas também adquire relevância ao explicar por que o capitalismo é um meio de produção concentrador por excelência: pulsa na periferia uma energia que serve ao centro, mas que por ele é ignorada, como se apenas cumprisse o seu destino de ser explorada. A discussão em torno do think locally, act globally é onipresente, não porque seja um foco particular do autor, mas porque saltam aos olhos a qualidade e a força da argumentação de uma linha de pesquisa extremamente comprometida com o lugar em que se situa. Falo aqui de um compromisso ético com o uso das ferramentas da universidade e de colocá-las à disposição da sociedade, ajudando, inclusive, a mostrar caminhos possíveis pelos quais ela própria pode se compreender. Sem procurar hierarquizar o conhecimento a partir da academia ou conferir ênfase exagerada ao empírico em momento algum, este livro é uma prova de que é possível pensar em Ciências Sociais Aplicadas no uso mais rigoroso do termo: com foco tanto no conhecimento social e suas particularidades quanto na necessidade de conhecer para fazer do conhecimento algo a serviço da sociedade.

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REFERÊNCIAS

  • Carrieri, A. P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 21-64. doi:10.25113/farol.v1i1.2592
    » https://doi.org/10.25113/farol.v1i1.2592
  • Fischer, T. (1996). Gestão contemporânea: Cidades estratégicas e organizações locais Rio de Janeiro, RJ: FGV.
  • Sá, M. G. (2010). O homem de negócios contemporâneo Recife, PE: Editora Universitária UFPE.
  • Sá, M. G. (2011). Feirantes: Quem são e como administram seus negócios Recife, PE: Editora Universitária UFPE.
  • Sá, M. G., Helal, D. H., Ferraz, A., & Silva, J. P. (Orgs.). (2013). Trabalho: Questões no Brasil e no Agreste pernambucano Recife, PE: Editora Universitária UFPE.
  • Sá, M. G. (2011). Feirantes: quem são e como administram seus negócios Recife: Editora Universitária UFPE.
  • Sá, M. G. (2010). O homem de negócios contemporâneo Recife: Editora Universitária UFPE.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2019
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