Open-access Territorialidade e identidade nas organizações: o caso do Mercado Central de Belo Horizonte

Territoriality and identity in organizations: the case of Belo Horizonte's Central Market

Territorialidad y identidad en las organizaciones: el caso del Mercado Central de Belo Horizonte

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar as relações entre territorialidade e identidade no ambiente organizacional, avançando na perspectiva de identidade quanto ao que é distintivo, duradouro e central numa organização. Para tanto, foi tomado como objeto de estudo o Mercado Central de Belo Horizonte, lugar de múltiplas práticas - de boêmios, compradores, frequentadores e turistas - em que a cultura mineira se apresenta em diversas nuanças, adequado como objeto, portanto, para a observação de fenômenos complexos como os aqui tratados. Sob um enfoque qualitativo, 40 entrevistas semiestruturadas foram realizadas junto aos comerciantes do Mercado Central de Belo Horizonte, visando compreender a visão deles sobre esse espaço, material trabalhado pela análise do discurso francesa. Percebe-se que a sobreposição dos elementos trabalhados - distintivos (comércio), duradouros (paróquia) e centrais (escritório da administração) - demonstra atritos, seja pelo extravasamento de funções, seja porque, nas organizações, o convívio entre desiguais se instala, polarizada por alguns grupos que dominam enquanto outros resistem. Equilibram-se pelos movimentos de rearranjo dos atores sociais pelos territórios que ocupam em torno da sobrevivência mútua. Observou-se que as crenças compartilhadas que os indivíduos têm da identidade de uma organização, segundo definições de Albert e Whetten (1985), também se prestam para explicitar uma dada compreensão do espaço. E se essa é a ideia-base é porque ela não se prende apenas aos elementos puramente concretos, mas também à sua perspectiva simbólica. Partilhando de um espaço de múltiplas práticas, o mercado conjuga um conjunto de territórios que oscilam entre harmonia e conflitos, visto que são dinamizados por forças que, na defesa dos interesses de grupos particulares, tropeçam umas nas outras. Os territórios, porém, da mesma forma que se digladiam, se entendem sob o manto da mesma ideologia, a da sobrevivência mútua. Os territórios não estão hierarquicamente categorizados, mas exercem papéis diferentes dentro de uma realidade socialmente construída. Seus espaços não são estáticos, tampouco intercambiáveis: uma vez institucionalizados, ganham a feição de coisas dadas, imanentes. Porém, o que explica o equilíbrio é que os atores sociais transitam entre os territórios desempenhando múltiplos papéis. No intento de resolver os problemas relacionados ao território em que atuam, percebe-se uma tentativa desses indivíduos de querer "fazer parte do jogo", o que demonstra que, na essência, eles buscam aproximar-se do grupo majoritário e iniciar um processo de incorporação da ideologia dominante.

Territorialidade; Espaço; Identidade; Discursos; Mercado Central de Belo Horizonte


In this paper we analyze relations between territoriality and identity in organizational context, advancing in perspective of identity about what is distinctive, enduring and core in an organization. Our research was conduced in Central Market of Belo Horizonte (Brazil), place of multiple practices - like as bohemian, buyers, goer and tourist's ones - in which Minas Gerais'culture is presented in several nuances, an adequate research object because it permits observation of complex phenomena. Under a qualitative approach, 40 interviews were made with professionals from Central Market of Belo Horizonte to comprehend their vision about the space where they work. This material was analyzed through French discourse analysis. The coexistence of main aspects analyzed - distinctive (commerce), everlasting (church) and central (business office) - demonstrates conflicts as because there is a duplication of functions, as because in organizations there is a quotidian among different people, polarized for some groups that dominate and other who resist. These relationships equilibrate through movements of social actors in their territories around the argument of mutual survival. We have observed that shared beliefs, according Albert and Whetten (1985), also serve to explicit a kind of comprehension of space. And if this is basis idea, it is because it does not limited by purely concrete elements, once it incorporates symbolic point of view. Sharing a multiple practices space, this market has a conjunct of territories which oscillate between harmony and conflicts, once they are dynamyzed by colliding forces in defense of particular group's interests. Territories, however, in the same way collide, accommodate each other under same ideology, of mutual survival. The territories are not categorized hierarchically, but they have different roles in socially constructed reality. Theirs spaces are not static, either interchangeable: once institutionalized, they become taken for granted appearance, immanent ones. However, what explains balance is that social actors move between territories playing multiples roles. To solve problem related to territory in what they are, what we can notice is a trial of "be part of the game". It demonstrates that individual essentiality looks for get closer of hegemonic group, initiating an incorporation process of dominant ideology.

Territoriality; Space; Identity; Discourses; Central market of Belo Horizonte


En este artículo nosotros analizamos las relaciones entre territorialidad y identidad en el contexto organizacional, un avance en la perspectiva de la identidad en cuanto a lo que es distintivo, eterno y central en una organización. Por lo tanto, el objeto de estudio es el Mercado Central de Belo Horizonte (Brasil), lugar de múltiples prácticas - como las de los bohemios, de los compradores, de los visitantes, de los turistas - donde la cultura de Minas Gerais viene en muchos tonos diferentes, un objeto adecuado, por lo tanto, para la observación de fenómenos complejos como los tratados aquí. Bajo un enfoque cualitativo, 40 entrevistas semi estructuradas se llevaron a cabo con los comerciantes del Mercado Central de Belo Horizonte, con el objetivo de entender su visión en este especio, material trabajado por el análisis francesa del discurso. De los aspectos principales - distintivo (el comercio), eterno (la iglesia) y central (la oficina comercial) - nosotros podríamos percibir esa coexistencia entre ellos, demuestrando los conflictos como porque hay una duplicación de funciones, como porque en las organizaciones hay un diario entre las personas diferentes, polarizó para algunos grupos que dominan y otros quién se resisten. Estas relaciones equilibran a través de los movimientos de actores sociales en sus territorios alrededor del argumento de supervivencia mutua. Se observó que las creencias compartidas que tienen los individuos de la identidad de una organización, de acuerdo con Albert y Whetten (1985), también se prestan a la comprensión explícita de un espacio determinado. El territorio, sin embargo, como si se debaten, si entenden bajo la misma ideología, la supervivencia mutua. Los territorios no están jerárquicamente clasificados, pero ejercen diferentes roles dentro de una realidad socialmente construida. Pero, qué explica el balance es que los actores sociales se mueven entre los territorios que juegan múltiples roles. En un intento por resolver los problemas en relación con el territorio en el que operan, lo que vemos es un intento de querer "ser parte del juego", lo que demuestra que el individuo busca, en esencia, aproximar a sí del grupo de la mayoría, iniciando un proceso de incorporación de la ideología dominante.

Territorialidad; Espacio; Identidad; Discursos; Mercado Central de Belo Horizonte


GESTÃO HUMANA E SOCIAL

Territorialidade e identidade nas organizações: o caso do Mercado Central de Belo Horizonte1

Territoriality and identity in organizations: the case of Belo Horizonte's Central Market

Territorialidad y identidad en las organizaciones: el caso del Mercado Central de Belo Horizonte

Luiz Alex Silva SaraivaI; Alexandre de Pádua CarrieriII; Ari de Souza SoaresIII

IDoutor em Administração pelo Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha, Belo Horizonte - MG - Brasil - CEP 31270-901 E-mail: saraiva@face.ufmg.br

IIDoutor em Administração pelo Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha, Belo Horizonte - MG - Brasil - CEP 31270-901 E-mail: alexandre@face.ufmg.br

IIIMestre em Administração pelo Departamento de Administração e Economia da Universidade Federal de Lavras (Ufla). Agente de fiscalização financeira do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Avenida Rangel Pestana, 315, Centro, São Paulo - SP - Brasil - CEP 01017-906 E-mail: assoares@tce.sp.gov.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as relações entre territorialidade e identidade no ambiente organizacional, avançando na perspectiva de identidade quanto ao que é distintivo, duradouro e central numa organização. Para tanto, foi tomado como objeto de estudo o Mercado Central de Belo Horizonte, lugar de múltiplas práticas - de boêmios, compradores, frequentadores e turistas - em que a cultura mineira se apresenta em diversas nuanças, adequado como objeto, portanto, para a observação de fenômenos complexos como os aqui tratados. Sob um enfoque qualitativo, 40 entrevistas semiestruturadas foram realizadas junto aos comerciantes do Mercado Central de Belo Horizonte, visando compreender a visão deles sobre esse espaço, material trabalhado pela análise do discurso francesa. Percebe-se que a sobreposição dos elementos trabalhados - distintivos (comércio), duradouros (paróquia) e centrais (escritório da administração) - demonstra atritos, seja pelo extravasamento de funções, seja porque, nas organizações, o convívio entre desiguais se instala, polarizada por alguns grupos que dominam enquanto outros resistem. Equilibram-se pelos movimentos de rearranjo dos atores sociais pelos territórios que ocupam em torno da sobrevivência mútua. Observou-se que as crenças compartilhadas que os indivíduos têm da identidade de uma organização, segundo definições de Albert e Whetten (1985), também se prestam para explicitar uma dada compreensão do espaço. E se essa é a ideia-base é porque ela não se prende apenas aos elementos puramente concretos, mas também à sua perspectiva simbólica. Partilhando de um espaço de múltiplas práticas, o mercado conjuga um conjunto de territórios que oscilam entre harmonia e conflitos, visto que são dinamizados por forças que, na defesa dos interesses de grupos particulares, tropeçam umas nas outras. Os territórios, porém, da mesma forma que se digladiam, se entendem sob o manto da mesma ideologia, a da sobrevivência mútua. Os territórios não estão hierarquicamente categorizados, mas exercem papéis diferentes dentro de uma realidade socialmente construída. Seus espaços não são estáticos, tampouco intercambiáveis: uma vez institucionalizados, ganham a feição de coisas dadas, imanentes. Porém, o que explica o equilíbrio é que os atores sociais transitam entre os territórios desempenhando múltiplos papéis. No intento de resolver os problemas relacionados ao território em que atuam, percebe-se uma tentativa desses indivíduos de querer "fazer parte do jogo", o que demonstra que, na essência, eles buscam aproximar-se do grupo majoritário e iniciar um processo de incorporação da ideologia dominante.

Palavras-chave: Territorialidade. Espaço. Identidade. Discursos. Mercado Central de Belo Horizonte.

ABSTRACT

In this paper we analyze relations between territoriality and identity in organizational context, advancing in perspective of identity about what is distinctive, enduring and core in an organization. Our research was conduced in Central Market of Belo Horizonte (Brazil), place of multiple practices - like as bohemian, buyers, goer and tourist's ones - in which Minas Gerais'culture is presented in several nuances, an adequate research object because it permits observation of complex phenomena. Under a qualitative approach, 40 interviews were made with professionals from Central Market of Belo Horizonte to comprehend their vision about the space where they work. This material was analyzed through French discourse analysis. The coexistence of main aspects analyzed - distinctive (commerce), everlasting (church) and central (business office) - demonstrates conflicts as because there is a duplication of functions, as because in organizations there is a quotidian among different people, polarized for some groups that dominate and other who resist. These relationships equilibrate through movements of social actors in their territories around the argument of mutual survival. We have observed that shared beliefs, according Albert and Whetten (1985), also serve to explicit a kind of comprehension of space. And if this is basis idea, it is because it does not limited by purely concrete elements, once it incorporates symbolic point of view. Sharing a multiple practices space, this market has a conjunct of territories which oscillate between harmony and conflicts, once they are dynamyzed by colliding forces in defense of particular group's interests. Territories, however, in the same way collide, accommodate each other under same ideology, of mutual survival. The territories are not categorized hierarchically, but they have different roles in socially constructed reality. Theirs spaces are not static, either interchangeable: once institutionalized, they become taken for granted appearance, immanent ones. However, what explains balance is that social actors move between territories playing multiples roles. To solve problem related to territory in what they are, what we can notice is a trial of "be part of the game". It demonstrates that individual essentiality looks for get closer of hegemonic group, initiating an incorporation process of dominant ideology.

Keywords: Territoriality. Space. Identity. Discourses. Central market of Belo Horizonte.

RESUMEN

En este artículo nosotros analizamos las relaciones entre territorialidad y identidad en el contexto organizacional, un avance en la perspectiva de la identidad en cuanto a lo que es distintivo, eterno y central en una organización. Por lo tanto, el objeto de estudio es el Mercado Central de Belo Horizonte (Brasil), lugar de múltiples prácticas - como las de los bohemios, de los compradores, de los visitantes, de los turistas - donde la cultura de Minas Gerais viene en muchos tonos diferentes, un objeto adecuado, por lo tanto, para la observación de fenómenos complejos como los tratados aquí. Bajo un enfoque cualitativo, 40 entrevistas semi estructuradas se llevaron a cabo con los comerciantes del Mercado Central de Belo Horizonte, con el objetivo de entender su visión en este especio, material trabajado por el análisis francesa del discurso. De los aspectos principales - distintivo (el comercio), eterno (la iglesia) y central (la oficina comercial) - nosotros podríamos percibir esa coexistencia entre ellos, demuestrando los conflictos como porque hay una duplicación de funciones, como porque en las organizaciones hay un diario entre las personas diferentes, polarizó para algunos grupos que dominan y otros quién se resisten. Estas relaciones equilibran a través de los movimientos de actores sociales en sus territorios alrededor del argumento de supervivencia mutua. Se observó que las creencias compartidas que tienen los individuos de la identidad de una organización, de acuerdo con Albert y Whetten (1985), también se prestan a la comprensión explícita de un espacio determinado. El territorio, sin embargo, como si se debaten, si entenden bajo la misma ideología, la supervivencia mutua. Los territorios no están jerárquicamente clasificados, pero ejercen diferentes roles dentro de una realidad socialmente construida. Pero, qué explica el balance es que los actores sociales se mueven entre los territorios que juegan múltiples roles. En un intento por resolver los problemas en relación con el territorio en el que operan, lo que vemos es un intento de querer "ser parte del juego", lo que demuestra que el individuo busca, en esencia, aproximar a sí del grupo de la mayoría, iniciando un proceso de incorporación de la ideología dominante.

Palabras clave: Territorialidad. Espacio. Identidad. Discursos. Mercado Central de Belo Horizonte.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar as relações entre territorialidade e identidade no ambiente organizacional, avançando na perspectiva de identidade quanto ao que é distintivo, duradouro e central numa organização. Para tanto, foi tomado como objeto de estudo o Mercado Central de Belo Horizonte, lugar de múltiplas práticas - de boêmios, compradores, frequentadores e turistas - em que a cultura mineira se apresenta em diversas nuanças. Conhecido como "a vitrine de Minas Gerais" ou como "o pião de Belo Horizonte", trata-se de um espaço singular, ou um caso polar, nos termos de Eisenhardt (1989), adequado, portanto, para a observação de fenômenos complexos como os aqui tratados.

Os mercados têm sido objeto de crescente atenção da comunidade acadêmica da área de administração em geral e dos estudos organizacionais em particular. A partir de diferentes pontos de vista, como as trocas econômicas e simbólicas (Castilhos & Cavedon, 2003), a cultura organizacional (Cavedon, Fantinel, Ávila, & Valadão, 2010; Lima & Carrieri, 2007; Cavedon, 2002), a estratégia (Leite-da-Silva, 2007) ou a institucionalização (Pimentel, Soares, Lima, Mendonça, & Leite-da-Silva, 2006), o que se percebe de comum, independentemente do enfoque, é que tais organizações, por se constituírem instâncias polifônicas tanto em termos discursivos quanto organizacionais, se sedimentam como objeto de estudos que se voltam à sua dinâmica complexa e peculiar.

No que se refere a aspectos identitários, pretende-se, neste trabalho, avançar na perspectiva proposta por Albert e Whetten (1985) sobre identidade quanto ao que é distintivo, duradouro e central numa organização, levando-a à percepção dos membros em relação ao território em que se apoiam suas práticas. Conforme será detalhadamente discutido adiante, a distintividade se refere aos elementos próprios da organização, por meio dos quais ela se diferencia das demais. Distintivo, assim, é o espaço pessoal (Fischer, 1994), definido como uma aura que envolve diretamente o indivíduo e, se penetrada, ativa uma reação de defesa, circunscrevendo-se a fronteiras invisíveis. Trata-se, assim, de uma zona emocional, socioafetiva, interligada ao conceito de intimidade e privatização. A ideia de continuidade, por sua vez, remete à perpetuidade temporal, a características estáveis no tempo, ao passo que a centralidade é vista como a essência da organização.

Neste texto, o foco de análise gira em torno da competição territorial entre três fontes simbólicas do mercado: o comércio, a paróquia e o escritório, respectivamente as instâncias identitárias distintiva, duradoura e central. Tais elementos configuram o mercado, cada um a seu próprio modo, por meio de práticas territoriais específicas, o que apresenta inúmeros desdobramentos simbólicos, particularmente visíveis sobre a identidade organizacional. Com base no pressuposto de que não é possível compreender um dado espaço sem observar o contexto que o circunda, os limites intangíveis que o distinguem e as visões dos atores sociais sobre o próprio espaço que ocupam, serão percorridos aqui os corredores do Mercado Central e o interior de suas lojas, principalmente o segundo piso, onde se localizam a paróquia e o escritório, para o entendimento das relações simbólicas dos administradores e comerciantes com o mercado.

No âmbito do mercado, a distintividade se refere à esfera do comércio, à miscelânea de pequenos negócios que se amontoam no primeiro piso. É um elemento distintivo, já que sua reprodução é impensada, constrói-se a partir das particularidades, da heterogeneidade e da profusão de cores, aromas e sabores que ali se situam. A paróquia constitui o aspecto duradouro, apresentando-se como um território atemporal, antagônico à efemeridade das práticas e que se encontra geograficamente acima do elemento distintivo, no segundo piso do mercado. Acima ainda da paróquia, no ponto mais alto do mercado, está o escritório, o elemento central, o território da administração. Não se trata estritamente de um estudo sobre identidade organizacional do mercado, embora isso seja alcançado por via adversa ao serem tomados emprestados conceitos dessa área. O que se insinua é saber que, ao se tratar de território que emprega definições do campo da identidade, fala-se de aspectos próximos. Entende-se, assim, o espaço como objeto social.

Além desta introdução, este artigo apresenta mais oito seções. A segunda e a terceira discutem as questões do espaço e da territorialidade; a quarta seção, uma preleção sobre as relações entre território e identidade, seguida por considerações metodológicas apresentadas na quinta seção. A sexta seção mostra a territorialidade como fonte de significados e embates múltiplos no âmbito do mercado central. As seções seguintes discutem os territórios da paróquia e do escritório como manifestações de simbolismo organizacional (Cavedon & Fachin, 2002), precedendo as considerações finais.

2 APROXIMAÇÃO CONCEITUAL DA TERRITORIALIDADE: A POLITIZAÇÃO NA ANÁLISE DO ESPAÇO

Os pesquisadores da área da psicologia ambiental foram os primeiros a se interessar pela socioespacialidade, uma perspectiva que conjuga o físico, o biológico e o social, considerando o real um mosaico de partes de um todo que se comunicam, convertendo-se em ações, tipificações e simbolismo de espaços apropriados; em outras palavras, territórios humanos (Brown, Lawrence, & Robinson, 2005). Nas palavras de Bourlegat (1999, p. 31),

[...] os seres humanos, ao evoluírem como seres sociais, deram origem tanto a organizações coletivas de natureza material como espiritual, uma vez que o mundo interior e o mundo material dos indivíduos e das coletividades sempre interagiram de forma conjunta.

Assumida como um tema relevante pela geografia humana, a questão espacial há muito foi politizada, descartando o senso comum que liga o espaço a aspectos apenas físicos. Para os geógrafos, tratar do espaço apenas do ponto de vista geográfico constitui uma imprecisão, uma vez que ele é permeado por existências humanas que o reinventam à medida que o vivenciam. Da dinâmica desse cotidiano social emergem disputas pela concepção, pelo uso ou pela propriedade do espaço, o que endereça às relações de poder uma perspectiva fundamental. Mais preciso, assim, é discutir o território, ou seja, um elemento que, embora se relacione ao espaço, não é por ele esgotado, sendo "o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator 'territorializa' o espaço" (Raffestin, 1993, p. 143).

Como os aspectos tratados nesta seção são abordados principalmente no âmbito da geografia, é oportuno fazer algumas distinções teóricas entre termos e possibilidades teóricas, a fim de delimitar mais claramente em que ponto se situa a discussão aqui proposta. Em outras palavras, com o esclarecimento conceitual, procura-se situar a problematização, especialmente a relacionada a território e territorialidade, nos estudos organizacionais, de maneira a evitar o "transplante" de termos sem a devida contextualização.

As definições de espaço, lugar, território e territorialidade são objetos de intenso debate entre os geógrafos, que, dependendo da orientação - geografia física ou geografia humana -, encaram as problemáticas relacionadas a eles de forma muito distinta. A respeito de espaço, Lefebvre (1991) sintetiza quatro conceitos principais. O primeiro toma o espaço como existente por si só, tal como tratado por Platão, Aristóteles, Kant e na matemática em geral. O segundo se refere ao espaço como produto da sociedade, conforme Durkheim, por exemplo. Ele também é tratado como instrumento político-ideológico, sobretudo no contexto urbano, tal como discutido por Manuel Castells. Por fim, a posição adotada pelo próprio Lefebvre (1991) é a de que o espaço é "socialmente produzido, apropriado e transformado pela sociedade" (Braga, 2007, p. 70). Essa perspectiva, mais próxima da geografia humana, por humanizar o espaço ao tratá-lo como social, se torna mais profícua para os estudos organizacionais, uma vez que enseja a possibilidade de politização do espaço.

O conceito de lugar também assume conotação social. Conforme Sasaki (2010, p. 115), "é considerado a base da existência humana, através da experiência e relação direta e profunda com o mundo repleto de significados". Trata-se, portanto, de algo que se constitui a partir do relacionamento com o espaço, "mas não se restringe a uma dimensão espacial ou imagem específica, limitada. O espaço pode se tornar um lugar; e o lugar traduz lembranças vivenciadas e compartilhadas" (Sasaki, 2010, p. 115). Em outras palavras, o espaço é apenas uma referência sujeita à ressignificação dos sujeitos, que atribuem sentidos não necessariamente relacionados com a questão físico-geográfica.

O espaço geográfico é produto, condição e meio para a reprodução das relações sociais

[...] no sentido amplo de reprodução da sociedade, num determinado momento histórico - um processo que se define como social e histórico; o que significa que há uma relação necessária entre espaço e sociedade que é o cenário que encaminha a análise (Carlos, 2001, p. 63).

Dessa forma, segundo Raffestin (1993, p. 161),

[...] a territorialidade se inscreve no quadro da produção, da troca e do consumo das coisas. Conceber a territorialidade como uma simples ligação com o espaço seria fazer renascer um determinismo sem interesse. É sempre uma relação, mesmo que diferenciada, com outros atores.

O espaço produzido é resultado da ação humana sobre a superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações sociais que lhe deram origem. Nesse sentido, de acordo com Moraes (2002, p. 15),

[...] a paisagem manifesta a historicidade do desenvolvimento humano, associando objetos fixados ao solo e geneticamente datados. Tais objetos exprimem a espacialidade de organizações sócio-políticas específicas e se articulam sempre numa funcionalidade do presente.

Nesse processo,

[...] o espaço produzido enquanto produto, meio e condição da reprodução entra em conflito com suas próprias condições, com seus próprios resultados, é aqui que ele é ocupado, controlado e orientado em direção ao reprodutível, se realiza também, realizando o não-reprodutível (Carlos, 2001, p. 73).

Isso significa que a discussão em torno dos aspectos territoriais se situa além da fronteira geográfico-espacial propriamente dita. A rigor, territorialidade se refere a uma produção a partir do espaço, que se dá em um campo de poder. Produzir uma representação do espaço, dessa forma,

[...] já é uma apropriação, uma empresa, um controle portanto, mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações (Raffestin, 1993, p. 144).

Não basta, assim, apenas constatar a presença de atores e de visões diferenciadas compartilhando o mesmo contexto. É territorial, nesse sentido, qualquer interface humana assentada sobre um dado espaço, porque se refere, essencialmente, a uma apropriação antes de qualquer coisa política do lugar. Esse lugar termina por ser "produzido" socialmente pelos grupos que o compõem, respondendo às múltiplas representações sociais dos diretamente envolvidos com aquele local. Um mesmo espaço, assim, é territorializado - no sentido de apropriado, ressignificado e produzido - dependendo do grupo de referência que dele se apropria e o ocupa geográfica e identitariamente.

Toda a prática social, ainda que embrionária, é induzida por um sistema de ações ou de comportamentos, e se traduz "por uma 'produção territorial' que faz intervir tessitura, nó e rede. É interessante destacar a esse respeito que nenhuma sociedade, por mais elementar que seja, escapa à necessidade de organizar o campo operatório de sua ação" (Raffestin, 1993, p. 150). Nesse sentido, de acordo com Trindade (2001, p. 155), "os territórios podem ser encarados como "mediações entre a relação dos agentes e o espaço", uma vez que "registram ações que o controlam, garantindo a espacialidade dos interesses de um ou de vários sujeitos politicamente definidos" [grifo nosso]. Não é neutro, assim, o processo de ocupação de um dado espaço. Desde o princípio, ele atende a uma necessidade também social de "deixar marcas", tanto simbolicamente inteligíveis aos membros do grupo capazes de decodificá-los quanto permeadas de aspectos obscuros a indivíduos de outros grupos sociais. O importante não é tanto fazer-se entender, mas fazer-se perceber como presente naquele espaço.

Qualquer espaço, assim, se submete ao plano mais amplo da sociedade, não existindo apenas como uma referência físico-geográfica. Isso considera a perspectiva do habitante, para quem "o espaço se reproduz enquanto lugar onde se desenrola a vida em todas as suas dimensões - o habitar e tudo que ele implica e/ou revela" (Carlos, 2001, p. 65). A territorialidade, assim, reflete distintos aspectos do que é vivido em um dado território pelos membros de uma coletividade. Segundo Raffestin (1993, p. 158), "os homens 'vivem', ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas".

A territorialidade de um espaço físico tem mostrado engendrar um senso de pertencimento a grupos sociais (Brown et al., 2005). Mas não se trata, ao contrário do que pode eventualmente parecer a um primeiro olhar, de um processo apenas relacionado à socialização. Existem dimensões materiais que se opõem dialeticamente à perspectiva social no que se refere ao espaço. Nesse sentido, "o espaço criado (ao contrário do natural) é um fruto do trabalho que articula teleologia e causalidade. Esta última implica a sujeição da vontade à materialidade do mundo externo ao homem" (Moraes, 2002, p. 22). A territorialidade constitui, conforme Raffestin (1993, p. 160), uma espécie de "soma" das "relações mantidas por um sujeito com o seu meio. Isso dito, não se trata de uma soma matemática, mas de uma totalidade de relações biossociais em interação", as quais podem se constituir como "mediatizadas, simétricas ou dissimétricas com as exterioridades" (Raffestin, 1993, p. 161). O que vai definir como tais relações se concretizarão é a dinâmica dos grupos que ocupam aquele meio, politizando o lugar e a ele associando uma identidade à qual se vincular.

3 IDENTIDADE NAS ORGANIZAÇÕES

Como se refere a um espaço apropriado, um território pode fazer parte de uma organização, o que endereça aos estudos organizacionais elementos para integrar a discussão. É possível, assim, em uma organização qualquer, estabelecer uma via dinâmica de mão dupla, com um fluxo contínuo entre as extremidades - atores sociais e território. De um lado, objetivações brotando de indivíduos isolados ou em coletividade, e, de outro, subjetividades emergindo do lugar, um processo em que se escrevem histórias, fincam-se estacas, o espaço se transforma em território por meio de diversos aspectos. Isso se concretiza "numa sociedade tornada competitiva pelos valores que erigiu como dogmas, [em que] o consumo é verdadeiro ópio, cujos templos modernos são os shopping centers e os supermercados, aliás construídos à feição das catedrais" (Santos, 1987, p. 34). Nesse contexto, "uma nova religião é elaborada dentro das empresas capitalistas modernas, religião que assegura a continuidade das religiões tradicionais falidas" (Pagès et al., 1987, p. 75).

O conceito de identidade se presta, como poucos nos estudos organizacionais, a múltiplas e variadas possibilidades de desenvolvimento. Conforme Fernandes, Marques e Carrieri (2010, p. 57), "de núcleo estável, autônomo e permanente, que emergia desde o nascimento, a identidade passou a ser considerada um fenômeno social, construído a partir das interações do indivíduo com o outro, com a cultura, com a coletividade". De acordo com Berger e Luckmann (2005), a identidade, por um lado, encontra-se em relação dialética com a sociedade, em que é formada, conservada ou remodelada por meio de processos sociais determinados pela estrutura social, e, por outro, reage sobre esta, na tentativa de mantê-la ou modificá-la. O indivíduo se desenvolve e constrói a sua própria identidade em sua relação com outros indivíduos e, também, por sua inserção na organização (Saraiva & Duarte, 2010).

A pluralidade dos conceitos relacionados à identidade chega eventualmente a constituir um problema, tal a gama de possibilidades. Aqui se fará uso de uma das perspectivas possíveis para organizar o argumento de forma mais clara para os leitores, a de Carrieri, Paula e Davel (2008). Para esses autores, a identidade pode ser múltipla, fluida ou autônoma. No que tange à multiplicidade identitária, autores como Alvesson (1998), Dutton e Dukerich (1991) e Balmer e Wilson (1998) colocam que a perspectiva pós-estruturalista catapultou estudos com essa posição ao status de mais difundidos no âmbito dos estudos organizacionais. Todavia, uma questão problemática nessa perspectiva e cara neste artigo é que, politicamente, o pós-estruturalismo fragmenta excessivamente as identidades e os interesses de forma que dificulta que se enxergue a organização como projeto social - ainda que não se trate de algo homogêneo.

Uma segunda possibilidade, a de identidade fluida, confere a possibilidade de mudança identitária como algo incorporado, isto é, modificam-se as referências identitárias, os processos identificatórios e como os indivíduos se enxergam. Autores como Bauman (2005) tomam a fluidez como uma característica dos tempos atuais, de forma que não faria sentido pensar em identidades fixas em qualquer nível, já que a crescente imaterialidade do trabalho sugere que a identificação, e não a identidade, deve ser considerada nesse quadro. Essa perspectiva também traz problemas no que tange aos argumentos deste artigo porque confere às mudanças um peso maior do que à estabilidade. Não que se negue que a velocidade contemporânea altere as configurações sociais, mas parece mesmo um exagero imaginar que a mudança constitui algo tão central que a identidade é secundária para os sujeitos, que apenas se "identificam" conforme o momento, tal como se estivessem em um supermercado de facetas.

A terceira possibilidade levantada por Carrieri et al. (2008) refere-se ao fato de a identidade ser autônoma. Para eles, essa perspectiva se justifica porque "o indivíduo deve se reconhecer como sujeito e não como mero ator organizacional, ou seja, sua possibilidade de agir em função de sua subjetividade depende dele conseguir transcender o desempenho de papéis" (Carrieri et al., 2008, p. 136). Em outras palavras, aqui se considera um núcleo mais estável de identidade que se relaciona a um processo mais amplo do que o de identificação. Mais do que isso, essa visão implica o indivíduo "existir enquanto sujeito, independente de pertencer ou não a uma coletividade" (Carrieri et al., 2008, p. 136). Todavia, não se trata de um processo sem embates, uma vez que a organização tenta conferir um sentido identitário à existência em um dado contexto organizacional, o que pode ser o ponto de partida para resistências identitárias de toda ordem.

Para Albert e Whetten (1985), o conceito de identidade organizacional é usado tanto para definir certos aspectos da organização quanto para caracterizar as organizações na visão delas próprias. É composto por três elementos. O primeiro deles é que a identidade é algo central. Refere-se a algo essencial de acordo com um ponto de vista específico, legítimo em termos organizacionais, conferindo importância a algumas características em detrimento de outras. Não há, assim, qualquer tipo de lista universal de aspectos centrais da organização, já que isso depende do que é importante para aquele contexto organizacional em particular. A distintividade é o segundo elemento do conceito. Diz respeito a elementos que tornam a organização única. Como o que é central pode ser comum a mais de uma organização, o que é distintivo complementa o aspecto anterior fornecendo uma fonte de diferenciação de outras organizações. A referência identitária é única, fazendo sentido naquele contexto específico e orientando as relações de outras entidades com a organização. Por fim, a identidade organizacional é duradoura, circunscrevendo-se aos aspectos temporais relacionados à perpetuidade tanto dos traços centrais quanto dos distintivos da identidade organizacional. A estabilidade implícita nesse elemento estabelece certo nível de certeza sobre as práticas da organização, que confere horizontes historicamente definidos para as suas ações (Albert & Whetten, 1985).

No âmbito territorial, a identidade conceitualmente se reposiciona porque passa a situar a noção de quem se é em um espaço específico, disputado por distintos atores e sujeito a múltiplas influências. Esse espaço só se constitui em um território politizado, multiplamente povoado e disputado, precisamente por conta das diferenças de perspectivas sobre o mesmo espaço, e não devido a identidades múltiplas (Saraiva & Carrieri, 2010). As diferenças simbólicas só existem a partir do momento em que compartilham de uma unicidade sobre o lugar (Spink, 2001) em que se encontram. E, nesse sentido, caminha-se mais próximo de uma perspectiva moderna do que pós-moderna de análise organizacional. As diferenças só existem porque se referem a uma experiência compartilhada sobre o mesmo lugar, que confere sentido às diferenças a partir de uma referência comum. Não é partindo do pressuposto de que há múltiplas identidades fragmentadas que se chega a captar a identidade organizacional de um território como o do Mercado Central de Belo Horizonte. Ainda que não seja possível enxergar apenas unicidade na identidade em um contexto organizacional, a identidade é algo mais referencial do que fragmentado.

4 TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE, UMA RELAÇÃO ALÉM DO ESPAÇO

Quando se fala em lugar (Spink, 2001), isso também diz respeito

[...] às noções de significado, identidade e singularidade. O cotidiano do indivíduo é permeado por inúmeros espaços/lugares que passamos, existem aqueles com os quais nos identificamos, nos reconhecemos e carregamos conosco o seu conteúdo simbólico (Matos & Guimarães, 2006, p. 280).

Moraes (2002) sugere que

[...] a organização dos lugares obedece a funções e necessidades da produção, que a disposição de objetos responde a imperativos técnicos, que os padrões espaciais do capitalismo, por exemplo, revelam a ânsia do lucro. Todavia, isso não recobre a integralidade do processo (Moraes, 2002, p. 23).

O espaço, assim, é produzido, tendo em vista não apenas a expressão de determinações

[...] econômicas (ligadas à tecnologia, aos materiais e às funções), mas também todo um rol de condicionantes (manifestos na tradição, na simbologia, no estilo etc.), e que explicá-la redunda em articular essa rede de mediações no movimento histórico-concreto (Moraes, 2002, p. 24).

Isso insere uma visão política e, ao mesmo tempo, histórica nessa perspectiva. Numa sociedade fundada sobre a troca, a apropriação do espaço, ele próprio produzido como mercadoria, liga-se, cada vez mais, à forma mercadoria. No processo, o espaço produzido serve cada vez mais às necessidades da acumulação. Por sua vez, as

[...] relações de produção que engendram as atividades de repartição e consumo, se realizam sob a égide da liberdade e igualdade, sob a lei do reprodutível, do repetitivo, anulando as diferenças no espaço e no tempo, destruindo a natureza e o tempo social (Carlos, 2001, p. 66).

Territórios são espaços apropriados, de direito, contidos e legitimados, e controlados por um grupo ou uma instituição. O conceito de território se relaciona à visão de propriedade que uma pessoa ou grupo possui - uma base física sobre a qual a dimensão afetiva se desenvolve -, vivenciada por práticas simbólicas que tipificam uma afetividade espacial singular. Configura-se, assim, como o espaço revestido da dimensão política, afetiva ou ambas (Corrêa, 2002), sendo a apropriação um "processo criativo de identidade que favorece a reunificação de si nos conjuntos sociais que têm a tendência de dispersá-la" (Fischer, 1994, 89). O isolamento do indivíduo originou a consciência da posse, que tornou a apropriação um processo por meio do qual se exerce a dominação sobre os lugares (Silva, 2002).

O conceito de territorialidade, assim, está ligado ao de identidade porque o território pressupõe manifestações identitárias. A territorialidade é "a qualidade subjetiva do grupo social ou do indivíduo que lhe permite, com base em imagens, representações e projetos, tomar consciência de seu espaço de vida" (Cara, 2002, p. 261). O espaço, para Fischer (1994, p. 84), "nos informa sobre a maneira como o trabalhador aceita, utiliza, investe ou rejeita seu trabalho", sendo este entendido como ligação a partir da qual tenta recriar sua identidade e, da mesma forma, tornar o espaço um reflexo de si mesmo. À medida que são permeados pela identidade, os espaços e seus desdobramentos se convertem em territórios que se fundem e em realidade que se constrói.

A construção do cotidiano dos indivíduos se materializa no entorno de coisas que apresentam valor simbólico. Fischer (1994, p. 85) entende o território "como uma dimensão interativa do comportamento humano em dado contexto". Os territórios revelam o que os indivíduos são como membros de uma sociedade. Conhecer o território, em primeiro lugar, é, como espaço apropriado, "conhecer a si mesmo, nas partes e no todo. Em segundo, conhecer o território é conhecer o outro" (Silva, 2002, p. 259).

Um espaço, assim, não apenas se transforma em vários lugares por conta de aspectos simbólicos. Para além disso, os próprios lugares se metamorfoseiam em territórios à medida que são eivados por interesses políticos, por posições e disputas tanto pelo uso quanto, principalmente, pela luta pela legitimação do uso desse território (Staub & Bulgacov, 2000). No âmbito das organizações, percebe-se a dinâmica entre territórios e identidades à medida que os territórios contam histórias não apenas de apropriação de lugares, mas também de características com as quais os sujeitos se identificam, o que os leva a configurar suas próprias identidades. Não é raro, por exemplo, que se observem, numa organização, profissionais se engajando em disputas entre as áreas nas quais estão alocados, mesmo que isso eventualmente chegue a prejudicar a organização como um todo. "Ser" financeiro, recursos humanos ou marketing, por exemplo, leva a que identidades sejam forjadas não em função da finalidade da organização, mas em função de territórios tecidos na dinâmica organizacional.

Isso sugere que as relações entre identidade e territorialidade são permeadas por constantes embates políticos no sentido não apenas de diferenciar os territórios em termos de status ou atribuições, mas ainda de, por empréstimo, conferir tais atributos às identidades associadas a tais territórios. Com isso, verifica-se que as competições simbólicas que se observam nada mais traduzem do que a necessidade de que se estabeleçam desigualdades de poder a partir de pertencimentos organizacionais, no sentido discutido por Pollini (2005). Gasparini (2010), no mesmo sentido, aponta que a noção de pertencimento se relaciona a um sentido amplo de identidade e a um sentido específico de comunidade, o que é muito adequado para a análise de organizações como mercados municipais, conforme será apresentado na próxima seção.

5 METODOLOGIA

Para a realização deste estudo, buscou-se o caminho da pesquisa qualitativa, uma vez que se pretendia uma aproximação da essência dos fenômenos observados. Isso compreendia construir a pesquisa à luz da flexibilidade própria dessa perspectiva. Embora a vertente francesa da análise do discurso tenha sido um pilar metodológico principalmente para a análise das entrevistas, a execução da pesquisa não se reduziu a questões linguísticas. Extrapolando o discurso, foi importante, na construção deste estudo, o "olhar" in momentum da interação entre espaço e ator social, importante para o que aqui se buscava compreender, manifesto pela observação direta, pela elaboração de diários de campo e pela realização de entrevistas semiestruturadas. Optou-se por tal pluralidade metodológica porque, na pesquisa qualitativa, o pesquisador tem a liberdade de escolher, combinar e até criar as práticas e os métodos de pesquisa que se mostrem mais adequados ao objeto e ao contexto que se deseja estudar (Denzin & Lincoln, 1994).

Em um primeiro momento, foi realizada uma pesquisa documental nos órgãos da prefeitura de Belo Horizonte e na secretaria do Mercado Central para colher informações sobre o objeto de estudo. Além disso, um mapeamento foi feito nas faculdades locais para localizar os trabalhos acadêmicos já publicados sobre esse objeto. Ao final dessa fase, reunido todo o material coletado, tornou-se possível uma delimitação do mercado nos seus aspectos mais gerais. No segundo momento, partiu-se para a realização de entrevistas, levadas a cabo em um período de dois meses. Durante essa fase, elaborou-se um diário de campo, em que inúmeros elementos não passíveis de captação por meio das entrevistas foram registrados.

Do total de atores sociais envolvidos com o mercado, abordaram-se 40 pessoas, entre os mais antigos comerciantes e os administradores da instituição. As entrevistas, em profundidade (Goldenberg, 2002), giraram em torno de roteiro semiestruturado, que, ao contemplar aspectos rotineiros, direta ou indiretamente, visava explicitar a "visão de mundo" sobre o mercado. Após a transcrição, as entrevistas foram tratadas pela vertente francesa da técnica de análise do discurso, tendo sido os depoimentos coletados "recortados" de acordo com sua aderência a percursos semânticos semelhantes. Com base na seleção lexical, nas relações entre o explícito e o implícito, e no silenciamento, foram identificadas nuanças e revelações de posições ideológicas dos atores sociais, tendo a linguagem funcionado como veículo de ideologias, a visão de mundo de determinada classe social (Fiorin, 2004, p. 6).

A partir dos discursos dos comerciantes, foram levantados percursos semânticos intitulados "o território do comércio", "o território da paróquia" e "o território do escritório". O primeiro trata de questões como a percepção dos atores sobre o espaço onde trabalham (o Mercado Central como um todo e a loja em particular), os arranjos espaciais (tamanho do comércio), os entraves no processo de apropriação do espaço sofrido por alguns comerciantes, as interseções entre os elementos distintivo e central (Albert & Whetten, 1985). No segundo, analisa-se o espaço da paróquia, destacando as relações entre comércio e religião, onde ocorrem sobreposições entre o elemento distintivo e o duradouro. Por fim, em relação ao espaço do escritório, questões como a participação política dos atores e as regras que geram discórdia e equilíbrio no mercado polarizam os discursos dos grupos entre os elementos central e o distintivo.

Em termos metodológicos, a pesquisa teve como limitação principalmente as dificuldades de lidar com uma organização de organizações, isto é, uma organização maior, a qual se observava - o Mercado Central de Belo Horizonte -, e seus componentes, que também são organizações. A heterogeneidade entre os negócios causou, em um primeiro momento, dificuldades relacionadas às entrevistas, uma vez que integram o mercado tanto vendedores de hortifrutigranjeiros quanto artesãos, por exemplo, uma miríade de possibilidades de territórios que poderiam ser incompatíveis. Para resolver as dificuldades e diferenças, adotou-se um foco mais simbólico do que econômico, que mais aproxima do que afasta as diferentes organizações. Isso permitiu que o negócio em si fosse menos importante do que o fato de os comerciantes se perceberem como parte de um empreendimento maior, um dos símbolos de uma cidade. Esse foco foi importante na construção de todo o estudo, conforme as próximas seções.

6 MATERIALIDADE E SIMBOLISMO NO MERCADO CENTRAL DE BELO HORIZONTE

A visualização da materialidade física (Fonseca, 1997) do Mercado Central conduz a reflexões sugestivas, a partir das quais se pode ampliar a compreensão do espaço. O mercado foi erguido sobre os gramados do antigo campo do América Futebol Clube, num quadrilátero compreendido pelas ruas dos Goitacazes, Curitiba, Santa Catarina e Avenida Paraopeba (atual Avenida Augusto de Lima), nas proximidades da Praça Raul Soares, ponto central da cidade de Belo Horizonte. O edifício é, ao mesmo tempo, imponente, rústico e tradicional. Suas paredes laterais são formadas por tijolos do tipo cobogó, elemento vazado de cerâmica, empregado na construção de paredes, possibilitando que vento e claridade escoem para dentro do local. Adentrando no edifício por uma de suas oito entradas, nota-se que nenhuma delas é igual à outra: umas são escadas, outras rampas, a que está em frente ao Minascentro encontra-se ao nível da rua. Do lado de dentro, aproximadamente 400 lojas dos mais variados tamanhos compõem um verdadeiro mosaico:

O espaço era multifacetado, labiríntico, demasiadamente humano, ornamentado pelas mais diversas mercadorias. [...] O ambiente era rico em símbolos, não tinha um cheiro característico, era, ao contrário, uma profusão de odores (notas de campo, 29 ago.).

A diversidade reina e a heterogeneidade não se restringe às mercadorias: estende-se também à estrutura física do local. No nível da rua, no primeiro piso, encontram-se as lojas, divididas em aproximadamente 400 comércios das mais diversas espécies. Ali se opera a vida prática, faz-se o trabalho e colhem-se os frutos, numa dinâmica organizacional plural e polifônica:

Há áreas do mercado muito movimentadas e há cantos quase desertos onde poucos vão. As partes movimentadas são a Praça do Abacaxi (onde se vende pedaços de abacaxi), o primeiro corredor perpendicular à entrada pela Augusto de Lima (onde há um aglomerado de lojas que vendem suplementos alimentares, juntamente com as lojas de raízes), os corredores onde ficam a ala dos queijos e dos bares, a parte dos animais, e o "miolo" do mercado, ou, melhor dizendo, a área do pirulito. O movimento nessas áreas é intenso e os comerciantes estão sempre em movimento (notas de campo, 8 set.).

Subindo por uma escada ou por um elevador panorâmico, chega-se ao segundo piso, que não é constituído por uma laje de concreto contínua, mas por pistas em que os carros estacionam. Nesse mesmo patamar, está a paróquia, símbolo de fé, e um território distinto, nos termos de Albert e Whetten (1985) no interior do Mercado Central.

Inaugurado em 7 de setembro de 1929, o mercado, que naquela época era municipal em razão de ser um patrimônio da prefeitura de Belo Horizonte, foi idealizado para ser o centro de abastecimento da então recém-planejada cidade. O dia 20 de junho de 1954 entra para a sua história pela primeira comemoração de Páscoa dos comerciantes, um movimento que se tornaria uma tradição. Para a comemoração, proposta pelos comerciantes, foi designado pela diocese um padre da Igreja de São José. Mas, como no mercado não havia espaço próprio, as celebrações ocorreram no átrio e nas escadarias da Secretaria de Saúde, anteriormente Escola de Aperfeiçoamento.

Dez anos depois, em razão de circunstâncias de ordem política e financeira, o mercado foi privatizado, e seus compradores foram seus próprios comerciantes (Pimentel et al., 2006). Calcado no estatuto social da recém-criada associação, agora, com uma nova proposta administrativa, passava a ser Mercado Central. Enquanto isso, além das comemorações de Páscoa, passaram a ser realizadas missas dominicais, permitindo que familiares e amigos se envolvessem mais com o ambiente do mercado. Em 1972, uma comerciante de frutas e verduras, em agradecimento à Virgem de Fátima por uma graça alcançada, doou uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que acabou se tornando a padroeira do mercado, tendo sido construída para ela uma capela no estacionamento pela família de outro comerciante. Pelo fluxo de visitantes e atividades desenvolvidas, a capela passou à categoria de paróquia, uma iniciativa dos capelães.

O mercado muito se presta aos que fogem da urbanidade caótica das grandes cidades, comparando-se, em certo sentido, a um lar, o que é sustentado pelos depoimentos coletados, uma vez que esse espaço é, para muitos, uma forma de refúgio do mundo exterior. Para isso contribui a possibilidade da experiência religiosa proporcionada pela existência da paróquia. Sua presença, em um ambiente essencialmente comercial, reflete parte da dinâmica simbólica do mercado, uma espécie de contraponto entre o que se ganha na vida terrena e o que se destina aos valores atemporais. Isso não quer dizer que os comerciantes sejam mais religiosos ou devotos do que outros indivíduos: simplesmente têm a necessidade de legitimar simbolicamente a materialidade das práticas que fomentam como recurso de sobrevivência - residindo aí o universal sobre o local.

7 O TERRITÓRIO DO COMÉRCIO

Razão de ser de um mercado, equivocadamente se poderia pensar que o comércio não se presta a representações sociais específicas além das mais obviamente econômicas (Castilhos & Cavedon, 2003). O primeiro trecho, entretanto, deste oferece uma ideia do "todo" e do "particular". No fragmento discursivo (01), o tema explícito é o do ambiente de trabalho comercial, território em que a rotina diária se manifesta. Nesse sentido, o trecho destacado "aqui dentro" tanto pode ser compreendido como o Mercado Central no todo quanto como o comércio em particular do indivíduo. O discurso conjuga os dois aspectos porque eles não são dissociáveis, um existe dentro do outro, influenciando-se reciprocamente:

(01) Depois da nossa casa aqui é a nossa segunda casa porque a gente passa a maior parte do tempo aqui dentro (ee08).

Nesse trecho, destaca-se, ainda, a relação espaço-tempo, associando o termo "casa", do destacado "aqui dentro". O Mercado Central e o seu comércio são percebidos pelo entrevistado como sua "segunda casa". A palavra "casa" evoca atributos como lar, aconchego, família, união, que são sistematicamente invocados nas entrevistas como símbolos do mercado e do comércio em questão (DaMatta, 1991). Trata-se, pois, em termos de discurso, de implícito subentendido, de uma crença compartilhada pelos comerciantes daquele lugar de uma forma em geral, visto que muitos dos entrevistados orgulhosamente se referem ao mercado como uma grande família, representação relativamente comum em mercados, conforme atestam outros estudos como os de Cavedon et al. (2010), realizado em Uberlândia e Porto Alegre, e Leite-da-Silva (2007), realizado em Vitória. Nesse caso, o contraditório é que não se trata estritamente de uma relação familiar - pelo menos não no que diz respeito ao mercado como um todo. A harmonia implícita em um discurso que invoca o familiar deixa de fora elementos próprios da dinâmica capitalista presente, em maior ou menor grau, no território do comércio. Poder, conflito, dinheiro, lucro e outros aspectos próprios da territorialidade capitalista são silenciados no discurso como se não fizessem parte da dinâmica de um espaço que é, na origem, comercial.

No trecho (02), o entrevistado revela que, a despeito do fato de a loja ser "pequena", ele foi "agregando vários segmentos" a ela. O tema em questão é, pela necessidade de justaposição de mercadorias, o uso do espaço físico que se tem para o comércio. Como a loja é pequena, a expansão do negócio deve ser de natureza funcional, não física, com melhor aproveitamento espacial. O implícito subentendido no depoimento é que o entrevistado age dessa forma porque há, no mercado, lojas maiores e, por isso mesmo, capazes de oferecer uma diversidade maior de produtos. Por serem amplas, essas lojas "exploram" pouco o espaço, ordenando cartesianamente as mercadorias, prezando por um conforto ambiental, típico do comércio moderno, em que os espaços são vagos, limpos de utensílios.

(02) Mas eu aprendi como a loja era pequena, e eu fui agregando vários segmentos. Eu aprendi a trabalhar com pouco espaço. E então, como a loja não me permitia ir expandindo para as laterais, eu aprendi e fui trabalhando as paredes. Fui trabalhando isto. E hoje a loja é cheia de tudo (ee21).

Do exposto, observa-se a heterogeneidade espacial do mercado no que se refere à sua distribuição quantitativa e, por conseguinte, qualitativa: o tamanho das lojas varia de 3 m2 a 30 m2 ou mais, o que possibilita um arranjo de ocupação de diversas proporções. O equilíbrio entre os grandes e os pequenos estabelecimentos ocorre, em parte, por meio dessa compreensão do espaço, pois este é usado de forma distinta pelos diferentes atores sociais que o ocupam, o que é confirmado por outros estudos sobre mercados, como Leite-da-Silva (2007) e Cavedon (2002). Se o comércio é pequeno, cria-se a necessidade de "ir expandindo para as laterais", de ir "trabalhando as paredes", uma típica estratégia de sobrevivência nos domínios do mercado (Lima & Carrieri, 2007).

Nos trechos (03) e (04), os temas explícitos são a aquisição do espaço utilizado no Mercado Central e o posicionamento da administração sobre o assunto. A relação é conflituosa porque há divergência entre as partes. De um lado, um representante dos comerciantes deseja se apropriar do espaço. Do outro, a administração, elemento central, exerce visível influência sobre o espaço dos comerciantes, explícita na fala do entrevistado que, como se reproduzisse uma ideologia, veicula, por meio da própria linguagem, o discurso do outro - a intertextualidade discursiva. Percebe-se que, nos discursos a seguir, são apresentados dois posicionamentos ideológicos distintos:

(03) E neste intervalo o meu irmão quis a loja e pegou a loja da cooperativa. E eu fiquei sem loja e a cooperativa me pôs numa loja lá, emprestada. E de lá eu vim para esta aqui e nesta estou até hoje. Ela é da cooperativa [...]. Na época eu comprava ela, era 8 mil cruzeiros. Mas a cooperativa não vendia. Não vendemos a loja. Você vai para a loja e vai para lá e fica pagando o aluguel da loja (ee16).

(04) Se eles tivessem vendido era bem bom. Mas não quiseram vender. Não podia vender. Eu acho que não queriam vender. E igual a esta tem outras aí, tem umas ali embaixo. Tem diversas lojas (ee06).

O conflito entre as partes acaba provocando um conflito interno no entrevistado, pois este oscila entre a ideologia maior, dominante, e implicitamente inexorável, e a que possui dentro de si, implicitamente resistente. Esse conflito confirma os argumentos de Gasparini (2010) e Pollini (2005). Ora as aparências fazem o entrevistado acreditar que "não podia vender", ora sua compreensão dos fatos o faz crer que "não queriam vender". Situação que ocorre com outros comerciantes, como explicitado em "igual a esta tem outras aí".

No trecho (05), o elemento central, a administração, atua conforme um conjunto das normas estabelecidas - o estatuto social do Mercado Central. A seleção lexical do termo mix, do fragmento "mix de lojas", reflete justamente a ideia aqui sustentada de compreender o espaço dos comerciantes como um elemento distintivo, isto é, dotado de uma mistura de características, reflexo das várias influências oriundas da polifônica cultura mineira (Castro, 1991).

(05) Nós temos um conselho de administração que ele de acordo com o nosso estatuto ele tem a capacidade de filtrar os ramos que nós queremos e os que não queremos. E então se a gente vê que tem algum que pode começar a prejudicar a sociedade nós podemos eliminá-lo. Haja vista que para você vir aqui fazer uma comercialização antes de tudo, antes de você ter a autorização, primeiro você tem que passar pelo crivo deste conselho. E se não for conveniente ao

mix

de lojas do mercado nós podemos vetá-lo. Por exemplo, [para] bares já têm uma restrição. Você pode ver que é difícil você ver um bar abrir aqui dentro do mercado. Porque hoje não é interessante que haja uma incrementação aqui dentro do mercado porque senão amanhã só vai vir quem quer tomar cerveja. Deu para você perceber?

Como forma de preservar a diversidade (comercial) do mercado, é possível "filtrar os ramos", como forma de impedir a expansão desordenada de um mesmo segmento de comércio. A ideologia vigente valoriza a ampla diversidade de negócios no mercado: laticínios, artesanato, ferragens e utilidades domésticas, hortifrutigranjeiros, peixaria, aves e outros animais, bares e restaurantes, produtos naturais, artigos para festas, ervas e raízes, flora e peixes ornamentais, embalagens em geral, lanchonete, artigos religiosos, açougue, temperos, bebidas, sacaria e panos de pratos em geral, mercearia, tabacaria, barbearia, bancos, salão de beleza, produtos árabes, sementes, velas, discos e fitas etc. Não se trata de um simples processo de impedimento de novos negócios, mas de uma efetiva visão estratégica (Lima & Carrieri, 2007) sobre como preservar a atratividade do Mercado Central aos olhos de seus consumidores. A pluralidade de possibilidades comerciais atrai diversos públicos ao mercado, que usufrui a sua presença em negócios variados. Mas não se pode desconsiderar o fato de que se trata de um jogo político entre pessoas e negócios estabelecidos e ingressantes, que se traveste de estratégia organizacional (Pollini, 2005).

8 O TERRITÓRIO DA PARÓQUIA

Tendo sido criada em função da religiosidade dos comerciantes na Páscoa de 1954, a paróquia é uma das fontes simbólicas do mercado, um elemento duradouro pelo que fornece e demanda dos que circulam em seu território. Não há dúvidas de que se situa em um espaço essencialmente comercial; e que tal situação se desdobra em um cotidiano negociado entre o comércio e a religiosidade. Nos trechos (06) e (07), o tema implícito subentendido é a relação dialética entre dois grupos: o majoritário (comércio) e o minoritário (religiosidade).

(06) O pessoal vem para a missa e depois desce para c&aacute(07) As pessoas mais velhas gostam de ir à missa. E então eles vêm à missa cedo e depois ficam aqui no mercado passeando, tomando um cafezinho (ee18).

No trecho (06), o termo explícito "missa" se refere às cerimônias dominicais que ocorrem na paróquia do mercado. Nesse trecho, o entrevistado, ao utilizar o conectivo "e" entre a primeira e a segunda oração, separa-as e as interpõe como uma ligação causal, revelando, pelos meandros desse discurso, uma formação ideológica que implicitamente entende ser função da missa atrair fiéis que também são potenciais consumidores, uma espécie de instrumentalização da missa como experiência substantiva, como também abordado por Cedola (2004). O meio é a "missa", e o fim, a venda da "mercadoria". A frequência à missa pode levar, assim, ao consumo dos produtos do Mercado Central. Tal ideia é reforçada no trecho (07), quando se exemplifica uma das possíveis trajetórias dos que frequentam a missa: após o culto, eles "ficam aqui no mercado passeando, tomando um cafezinho". É curioso esse tipo de apropriação de um elemento duradouro como a religião pelos comerciantes.

O fragmento discursivo (08) se refere aos frequentadores do mercado. Percebe-se, no discurso, uma contradição, a utilização da estratégia de silenciamento, pois, embora o entrevistado afirme que se faz a missa "para os comerciantes", os horários de funcionamento do comércio e da missa são os mesmos e, portanto, incompatíveis. Não existem, assim, condições objetivas para que os comerciantes usufruam a missa, que é, na verdade, dirigida a fiéis não comerciantes, os clientes dos produtos do Mercado Central. É uma espécie de "serviço adicional", um fator de atratividade para os fiéis, clientes em potencial das lojas do mercado.

(08) A maioria era católico. Hoje a gente ainda tem muitos católicos no mercado. A gente faz a missa nos domingos, faz para os comerciantes, mas mais são os vizinhos em volta do mercado que vêm (ee03).

A visão comercial se impõe. Porém, não sem críticas de um grupo minoritário, manifestas nos fragmentos discursivos (09) e (10). Instaura-se a controvérsia pela interposição inicial do termo "apesar", que segue sendo robustecido por "eu não sou muito a favor", devendo-se notar um "não" novamente interposto ao final da frase, que é usado para não deixar margem de dúvida quanto ao posicionamento. A justificativa encontra-se na frase seguinte do mesmo trecho, na qual se destaca o termo "mais", que explicita os verdadeiros fins que partilha esse grupo, qual seja, de que a paróquia sirva "mais" aos comerciantes.

(09) Apesar de ser católica, eu não sou muito a favor da capela não. Porque a capela eu acho que ela tinha que servir mais ao comerciante (ee 12).

O discurso dessas minorias se apoia num raciocínio lógico, já anteriormente anunciado, e que desce aqui às minúcias, como se encontra explicitado no fragmento "Eu abro a minha loja às 7 horas da manhã. A missa é às 7 horas da manhã". O entrevistado (ee12), ao dizer "Que hora que eu vou poder ir na missa?", explicitamente indica que desejava ir à missa. A seguir, ele reclama da situação: "Você não pode nem ir à missa". E justifica-se: "Você não pode largar a sua loja aqui e ir lá". Sentindo-se menor do que as estruturas, o entrevistado admite para si mesmo que "não tem jeito", isto é, como se não houvesse arranjo que pudesse harmonizar essas duas realidades.

(10) Eu abro a minha loja às 7 horas da manhã. A missa é às 7 horas da manhã. Que hora que eu vou poder ir na missa? [...] Você não pode nem ir à missa. Você não pode largar a sua loja aqui e ir lá. Não tem jeito (ee12).

Finalizando esse percurso, o fragmento discursivo (11) apresenta o que simboliza a paróquia para o Mercado Central. Na expressão "coisa rara", há um implícito subentendido de que a paróquia possui um grande valor, algo que não encontra paralelo na cidade.

(11) Esta procissão dá a volta nos corredores do mercado e depois chega à capela onde é feita a coroação de Nossa Senhora de Fátima. Isto já é uma coisa rara em Belo Horizonte. E a gente quer manter isto em Belo Horizonte. E então eu não considero ela como um fato diferente que tenha mudado. Isto está incluso ao mercado. É uma coisa mística do mercado. Vêm aí de 500 a mil pessoas aí das vizinhanças para a procissão (ee09).

Da mesma forma, ao enunciar "a gente quer manter isto", o implícito pressuposto é de que não se pretende acabar com a paróquia, que há interesse em que ela perdure. Possivelmente porque, conforme a seleção lexical do entrevistado, ela está "incluso ao mercado", transcendendo sua materialidade econômica em aspectos intangíveis, simbólicos, atemporais.

9 O TERRITÓRIO DO ESCRITÓRIO

No segundo piso e acima da paróquia, situa-se o escritório, outra fonte simbólica do Mercado Central de Belo Horizonte. Nesse território, em que se concentra a administração do espaço como um todo, verifica-se uma dinâmica simbólica peculiar que se apropria de aspectos ditos "racionais" para legitimar elementos fora dessa esfera. Nos fragmentos discursivos (12) e (13), surge explicitamente o tema da participação política nas questões do mercado:

(12) E outra coisa que a gente sente por ser nova aqui. Nova no sentido de não poder mexer lá em cima [...]. Eu, por exemplo, eu não posso ir para o conselho, porque eu sou inventariante. Aqui é de inventariante [...]. A partir do momento que eles derem a divisão, aí, se eu tiver nem que seja 10% da minha cota, aí eu posso (ee12).

O trecho "não poder mexer lá em cima" deixa implicitamente subentendido que a senioridade é um critério de inclusão democrática na dinâmica territorial (Staub & Bulgacov, 2000). Só quem não é "novo" no mercado, quem é "do ramo" e "da casa" pode "mexer lá em cima". A seleção lexical "lá em cima" faz referência ao mesmo tempo física (ao próprio espaço) e simbólica (ao poder), uma vez que o escritório fica no segundo piso e os comércios localizam-se no primeiro. Vê-se que há limitações à prática democrática nesse ambiente, o que é tema do fragmento discursivo (13):

(13) Eu não posso votar. Porque é só para dono da loja. Do imóvel. O que é raro. Por exemplo, aqui é alugado. Aqui é alugado. Muita loja alugada. E aluga três lojas seguidas. Aí quem vem são os proprietários (ee12).

O contexto em que o entrevistado se insere somente permite participação política de quem é "dono de loja", o que se explicita em "se eu tiver nem que seja 10% da minha cota, aí eu posso". É uma situação relativamente comum no âmbito do mercado a não participação nas questões políticas, pois, a despeito de ali trabalharem ali uma vida inteira, muitos comerciantes não podem da administração participar. Esse tipo de segregação da rotina política, em um ambiente composto por pequenos negócios, reproduz a ideologia capitalista no espaço do Mercado Central, onde são necessários trabalhadores produtivos (e preferencialmente silenciosos) e não cidadãos (Saraiva & Irigaray, 2011). Despolitizam-se as relações entre economia e administração nessa organização da mesma forma como ocorre em outros contextos organizacionais.

Ainda na questão da territorialidade política, no trecho (14), o discurso veiculado pelo entrevistado é de distanciamento, de isolamento não apenas em relação às reuniões decisórias do Conselho, como também em relação ao mercado como um todo, perceptível no fragmento discursivo "é o pessoal do mercado".

(14) E quem está lá em cima, quem mexe com diretoria, com os associados, com isto é o pessoal do mercado [...] tem as reuniões lá em cima no auditório do mercado. Eles se reúnem lá e tal (ee01).

O indivíduo aqui se mostra alienado tanto porque percebe as coisas de forma parcial, da maneira que lhe é permitido ver pelo tipo de contexto que lhe é apresentado como politicamente "aceitável" no Mercado Central, quanto porque o produto de seu trabalho coletivo ao longo de anos se torna algo estranho a ele próprio, já que dele não se apropria como um capitalista. Não é de surpreender a presença da alienação, posto que o mercado seja um território capitalista; todavia, surpreende que, em pequenos negócios, essa faceta capitalista se evidencie, tal como na grande empresa industrial.

O trecho (15) apresenta a influência do escritório nas atividades-fim do mercado, na forma de limitações não quanto às vendas, mas em razão do tipo de comércio que o comprador pretende empreender no mercado, como se explicita no fragmento "eu tenho que passar lá pelo conselho para ver se eles aprovam":

(15) Se eu quiser vender para você, eu posso vender sem problema nenhum. Agora, depois que eu vender, eu tenho que passar lá pelo conselho para ver se eles aprovam. [...] Por exemplo, bar, não pode mais abrir bar hoje. Não deixa mais. Porque tem muito movimento e então o povo fica doido para abrir bar ou lanchonete aqui. E então eles não deixam abrir mais (ee18).

O que fundamenta essa pré-avaliação do conselho é, como já discutido, a busca pela manutenção da diversidade. Expressa-se aqui explicitamente a influência que o território do escritório exerce sobre os demais, notadamente sobre a questão espacial. É sua atribuição legítima determinar como o espaço Mercado Central pode ser ocupado e por quem. Essa prerrogativa deliberativa adquire um peso simbólico extraordinário porque todos se sentem submissos a um sistema do qual, intuitivamente, sentem que deveriam participar. É como se o território do escritório deles independesse e lhes impingisse determinações autônomas, o que significa que não resta nenhuma alternativa a não ser aceitá-las.

No trecho (16), no fragmento "a gente tinha até o projeto de futuramente passar tudo para o lado de lá", existe um implícito pressuposto de que não se pretende mais fazer uma praça de alimentação, porque "o povo não quer".

(16) E a gente tinha até o projeto de futuramente passar tudo para o lado de lá, fazer tipo uma praça de alimentação, com bares e lanchonetes. Mas o povo não quer. Eles não querem sair do lugar não (ee18).

Ao enunciar o trecho "eles não querem sair do lugar não", o entrevistado diz explicitamente que os comerciantes, metonimicamente referido como "povo", se sentem ligados ao espaço que ocupam - uma manifestação identitária, pois o espaço passa a ser um dos elementos definidores de quem essas pessoas são. Isso decorre do fato de o lugar lhes trazer lembranças de bons momentos, por hábitos territoriais arraigados, ou devido a uma questão de localização e de comodidade para a clientela, que já sabe para onde se dirigir para adquirir seus produtos.

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, procurou-se analisar as relações entre territorialidade e identidade no ambiente organizacional, avançando na perspectiva de identidade quanto ao que é distintivo, duradouro e central numa organização, o que foi feito a partir de elementos observados no Mercado Central de Belo Horizonte. Observou-se que as crenças compartilhadas que os indivíduos têm da identidade de uma organização, segundo definições de Albert e Whetten (1985), também se prestam para explicitar uma dada compreensão do espaço. E se essa é a ideia-base é porque ela não se prende apenas aos elementos puramente concretos, mas também à sua perspectiva simbólica.

Transladaram-se para a questão da territorialidade três elementos que se aplicam ao estudo de identidade, quais sejam, o distintivo, o duradouro e o central, tendo sido considerado que espaço e identidade são aspectos intimamente relacionados, refletindo-se nas coisas a forma de agir de seus atores sociais. Entende-se, assim, que, no âmbito do território, os elementos são articulados de forma a legitimar-se uns perante os outros. Partilhando de um espaço de múltiplas práticas, o mercado conjuga um conjunto de territórios que oscilam entre harmonia e conflitos, visto que são dinamizados por forças que, na defesa dos interesses de grupos particulares, tropeçam umas nas outras. Os territórios, porém, da mesma forma que se digladiam, se entendem sob o manto da mesma ideologia, a da sobrevivência mútua.

Os territórios não estão hierarquicamente categorizados, mas exercem papéis diferentes dentro de uma realidade socialmente construída. Seus espaços não são estáticos, tampouco intercambiáveis: uma vez institucionalizados, ganham a feição de coisas dadas, imanentes. Porém, o que explica o equilíbrio é que os atores sociais transitam entre os territórios desempenhando múltiplos papéis. Querem, no caso do mercado, sair do espaço distintivo e se aventurar ao espaço central, isto é, "lutar lá em cima na administração". Aceitam a condição ainda porque há sempre a possibilidade de que "a força mude de lugar", uma visível estratégia de resistência.

No intento de resolver os problemas relacionados ao território em que atuam, percebe-se uma tentativa desses indivíduos de querer "fazer parte do jogo", o que demonstra que, na essência, eles buscam aproximar-se do grupo majoritário e iniciar um processo de incorporação da ideologia dominante. Existem, naturalmente, os que fazem parte de um grupo incrustado nos minoritários, designados por este termo não pela quantidade, mas pelo poder que exercem nas decisões. Com relação a esse grupo que margeia o processo de mudanças idealizadas, entende-se que o fazem porque estão alienados, encarando a sociedade como um fato à parte, e não como resultado de seu trabalho.

Não obstante uma implícita perspectiva harmônica no território do comércio, verifica-se um cotidiano conflituoso entre os elementos que compõem o Mercado Central. Esse conflito mais visível entre o elemento duradouro (território da paróquia) e o elemento distintivo (território do comércio) anuvia uma dialética mais enrijecida, que é aquela que ocorre entre o elemento central (território do escritório) e os elementos distintivos. A administração se reveste de uma legitimidade não experimentada pelos outros territórios, revestindo-se de uma ideologia maior, e moderna nesse sentido - a da sobrevivência mútua do Mercado Central - que aglutina os distintos posicionamentos dos grupos que compartilham daquela referência simbólico-espacial.

Submissão: 3 jan. 2011.

Aceitação: 25 jul. 2013.

Sistema de avaliação: às cegas dupla (double blind review).

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  • 1
    Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o financiamento da pesquisa que originou este artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Recebido
      03 Jan 2011
    • Aceito
      25 Jul 2013
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