Resumos
No despontar do século XXI, uma atividade tão antiga quanto o artesanato tem sido alvo de incentivos econômicos por parte do Estado e de organizações não governamentais (ONGs) que atuam no Brasil. Intervenções realizadas por organizações como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) têm por objetivo transformar a produção artesanal brasileira em uma grande geradora de emprego e renda, atrelada aos circuitos de consumo internacional e/ou à atividade turística. No exame das propostas que fundamentam intervenções desse tipo, é notório o discurso da ressignificação do artesanato e da identidade do artesão por meio do enaltecimento da ação empreendedora e da ênfase sobre a gestão e a necessidade premente de impor ao trabalho artesanal os padrões de competitividade inerentes à economia capitalista. Mas os novos empreendedores-artesãos têm, na ressignificação da sua atividade, a aparência de uma inserção social que não chega a se concretizar. Em virtude dos processos de intervenção que têm ressignificado a produção artesanal brasileira, observa-se certo prejuízo das características materiais e dos traços simbólicos que são peculiares ao artesanato, culminando com a naturalização da ideologia gerencialista como modelo para a reconfiguração do artesanato. Nesse quadro, o que ocorre de fato é a incorporação de cada vez mais pessoas no sistema-mundo que alimenta a matriz de poder capitalista moderno/colonial. E tal processo, que privilegia a empresarização do artesanato, tanto banaliza quanto reproduz a ideia de desenvolvimento como sinônimo de ampliação da capacidade de consumo. A lógica subjacente a essa ideologia está na concepção de que a proclamada liberdade que seria inerente à política neoliberal reside no potencial de consumo individual. A comoditização do artesanato fecha um ciclo que acaba por retirar autonomia do artesão, afasta-o de uma perspectiva emancipatória e reproduz uma situação de dependência em que não há perspectivas de transformação. “Inclusão social”, no caso em apreciação, é um eufemismo para a incorporação de novos consumidores no mercado de massa.
Artesanato; Consumo; Empresarização; Empreendedorismo; Desigualdade
At the beginning of the twenty-first century, an activity as old as the craft has been the target of economic incentives from the state and non-governmental organizations (NGOs) operating in Brazil. Intervention actions taken by organizations like the Brazilian Service of Support for Micro and Small Enterprises (Sebrae), aims to transform the Brazilian handicraft production in a generating activity of employment and income, linked to the international consumer circuits and/or tourist activity. In examining the proposals that underlie such interventions, is notorious the speech re-framing craft and artisan identity, through the enhancement of entrepreneurial action and the emphasis on management and on the urgent need to impose to the craftsmanship standards of competitiveness inherent in the capitalist economy. But the new entrepreneurs-artisans have in the redefinition of its activity the appearance of a social integration that fails to materialize itself. Because of the intervention processes that have re-framed the Brazilian handicraft production, we observe certain loss of material and symbolic traits that are peculiar to the craft production, culminating in the naturalization of the entrepreneurial ideology as a model for the configuration of the craft. In this context, what happens is the mere incorporation of more and more people entangled in the world-system that feeds the matrix of the modern/colonial capitalist power. And this process, which emphasizes enterprisation of crafts, trivializes as much as it reproduces the idea of development as a synonym for expansion of consumption capacity. The logic behind this ideology is the notion that the proclaimed freedom that would be inherent in the neoliberal policy lies in the potential of the consumer individual. A commoditization of craft closes a cycle that ultimately remove the autonomy of the craftsman, removes it from an emancipatory perspective and reproduces a situation of dependence in which there is no prospect of change. Social inclusion is a euphemism for the incorporation of new consumers in the mass market.
Craft; Comsumption; Enterprisation; Entrepreneurship; Inequality
En los albores del siglo XXI, una actividad tan antigua como la artesanía ha sido el objetivo de los incentivos económicos del Estado y de las organizaciones no gubernamentales (ONGs) que operan en Brasil. Medidas de intervención adoptadas por organizaciones como el Servicio Brasileño de Apoyo a las Micro y Pequeñas Empresas (Sebrae), tiene como objetivo transformar la producción de artesanía brasileña en una actividad generadora de empleo e ingresos, vinculados a los circuitos internacionales de consumo y/o actividad turística. Al examinar las propuestas que subyacen a este tipo de intervenciones, es notorio un discurso que ressignifica la artesanía y la identidad artesanal, a través incentivo de la acción empreendedora y el énfasis en la gestión y en la urgente necesidad de imponer los estándares de la artesanía de la competitividad inherente a la economía capitalista. Pero los nuevos artesanos-empreendedores tienen en la redefinición de su actividad la aparición de una integración social que no se materializa. Debido a que los procesos de intervención que se han replanteado la producción artesanal de Brasil, se observa cierta pérdida de rasgos materiales y simbólicos que son peculiares a las características artesanales, que culminó con la naturalización de la ideología del empreendedorismo como un modelo para la configuración de la artesanía. En este contexto, lo que ocurre es la mera incorporación de más y más personas atrapadas en el sistema-mundo que alimenta la matriz del poder capitalista moderno/colonial. Y este proceso, que hace hincapié en la empresarización de la artesanía, tanto trivializa como opera la idea del desarrollo como sinónimo de expansión de la capacidad de consumo. La lógica detrás de esta ideología es la idea de que la proclamada libertad que sería inherente a la política neoliberal está radicada en el potencial consumo individual. La mercantilización cierra un ciclo que en última instancia, eliminar la autonomía del artesano, lo elimina de una perspectiva emancipadora y reproduce una situación de dependencia en la que no hay perspectivas de cambio. La inclusión social es un eufemismo para la incorporación de nuevos consumidores en el mercado de masas.
Artesanía; Consumo; Empresarización; Empreendedorismo; Desigualdad
1 INTRODUÇÃO
No alvor do século XXI, uma atividade tão antiga quanto o artesanato vem recebendo incentivos econômicos por parte do Estado e de organizações não governamentais (ONGs) que atuam no Brasil. Intervenções que seguem as diretrizes de políticas como o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) são realizadas por organizações como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) com o objetivo de transformar a produção artesanal brasileira em uma atividade geradora de emprego e renda, atrelada aos circuitos de consumo internacional e/ou à atividade turística. Ao examinarmos as propostas que fundamentam esse tipo de intervenção, é notório o discurso da ressignificação do artesanato e da identidade do artesão, a partir do enaltecimento da ação empreendedora e da ênfase sobre a gestão e a necessidade premente de impor ao trabalho artesanal os padrões de competitividade inerentes à economia capitalista.
Neste ensaio, argumentamos que o cerne das ações que promovem a ampliação da comercialização do artesanato abriga uma manobra estratégica que implica a utilização de uma série de recursos comunicacionais para aparentar uma inclusão social massiva e bem-sucedida. Isso ocorre porque os novos artesãos-empreendedores têm, na ressignificação da sua atividade, uma aparente inserção social que não chega a se concretizar plenamente. A ocupação, a geração de renda e o consequente aumento do potencial de compra por parte desse grupo são funcionais à manutenção do atual modelo econômico brasileiro, mas não suficientes para garantir o acesso a outra forma de exercício da cidadania senão aquela propiciada pelo consumo.
Ademais, sugerimos que tal processo diz respeito à perpetuação de diferenças sociais também em razão do assédio do capitalismo sobre as manifestações culturais tradicionais. Implícita aos objetivos de transformar o artesanato em empresa, está a tendência à perda dos valores subjacentes às práticas artesanais e à descaracterização de certos aspectos simbólicos dessa prática cultural. Compreendemos que as ações dirigidas à promoção comercial do artesanato também tendem a obscurecer o potencial contestatório e emancipatório do artesanato como atividade que ainda conserva traços pré-capitalistas. Isso assegura a manutenção da ordem estabelecida nos circuitos periféricos, visto que o artesanato passa a reforçar estruturas que ainda caracterizam o contexto brasileiro, como a dependência e a desigualdade sociocultural e econômica.
A disposição para investigar o artesanato como instrumento de dissimulação e manipulação de conflitos sociais graves é algo que parece estar também obscurecido no debate acadêmico. Em certa medida, isso acaba sendo um empecilho para a construção textual, afinal, a grande maioria das pesquisas que têm o artesanato como elemento central nem tangencia aquilo que pretendemos investigar. Contudo, isso não é motivo para desprezarmos os debates científicos que envolvem a temática artesanal, pelo contrário: as discussões trazidas pelos trabalhos que servem de referência ao presente ensaio oferecem subsídios para que possamos ampliar o escopo de nossas análises, o que pode reforçar nossos argumentos.
Tendo isso em vista, o que pretendemos é traçar uma breve análise da trajetória do artesanato no capitalismo contemporâneo para compreender, a partir dela, como as ações dirigidas à promoção dessa atividade fomentam a inserção das práticas e dos modos de vida relacionados ao artesanato no contexto capitalista. A originalidade da nossa proposta está na defesa do argumento segundo o qual tais ações se caracterizam como estratégias que buscam, em última instância, assegurar a manutenção da ordem estabelecida, (re)produzindo a exclusão e anulando focos latentes de resistência.
Quanto à organização do ensaio, na segunda seção, exploramos diferentes discussões envolvendo o artesanato no mundo; na terceira, ponderamos sobre as consequências da ressignificação do artesanato a partir do gerencialismo; na quarta, problematizamos a relação entre o empreendedorismo, a mercantilização da atividade artesanal e a perda cultural, e, na quinta, enfocamos o efeito das políticas intervencionistas sobre a potencial destruição da autonomia do artesanato. Por fim, apontamos que a temática escolhida oferece uma perspectiva privilegiada para refletirmos sobre os efeitos contraditórios das intervenções dirigidas à promoção do artesanato sobre a prática artesanal e os modos de vida a ela associados.
2 DIFERENTES DISCUSSÕES ENVOLVENDO A QUESTÃO DO ARTESANATO NO MUNDO
A vinculação entre o trabalho artesanal e o emprego da capacidade humana para a promoção de mudanças socioculturais perpassa, ao mesmo tempo, questões de cunho ético e prático. Em relação à ética, o trabalho artesanal engendra o comprometimento do artesão em honrar os desígnios humanos ao fazer algo bem-feito sem outras justificativas além do orgulho, da autorrealização a partir da execução do próprio trabalho. Como prática, o artesanato não é apenas a aquisição de um conhecimento em profundidade e o desenvolvimento de uma habilidade, mas o diálogo constante entre o fazer e o pensar, de forma indissociada (Sennett, 2009Sennett, R. (2009). O artífice. São Paulo: Record.). Isso remete a uma preocupação clássica da psicologia social, no entender de Schwalbe (2010, p. 110)Schwalbe, M. (2010). In search of craft. Social Psychology Quarterly, 73(2), 107-111.: “como nossas formas de transformar o mundo nos transformam”.
Na perspectiva apresentada por Betjemann (2008)Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195., o ressurgimento do artesanato como argumento para pensar sobre o trabalho e suas possibilidades de emancipação tem oferecido, desde o final do século XIX e o início do XX, um irônico pano de fundo para a manutenção e o resgate das técnicas artesanais de produção. Essa tendência é contemporânea do movimento Arts and Crafts1 1 O movimento Arts and Crafts foi uma reação cultural (iniciada na segunda metade do século XIX, mas com influência até os anos 1930) contra o empobrecimento da arte decorativa e as condições de precariedade social em que era geralmente produzida. O movimento apoiava o artesanato e defendia reformas econômicas e sociais, além de ser essencialmente anti-industrial. e das propostas de acadêmicos como William Morris e John Ruskin a respeito do trabalho artesanal como contestação à cultura moderna e às estéticas elitistas (Betjemann, 2008Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195.) ou massificadas. A partir desse momento, o artesanato passa a ser valorizado como um modo de produção alternativo ao industrial, cuja retomada poderia devolver ao trabalhador a habilidade, o domínio completo do processo de produção e a criação de bens de qualidade superior.
Contudo, se a volta ao artesanato propagada pelo movimento Arts and Crafts parecia ser uma reação ao capitalismo, Betjemann (2008)Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195. analisa como seus objetivos acabaram sendo incorporados às forças do mercado e contribuíram, ainda mais, para a descaracterização do trabalho artesanal mais genuíno que continuava a resistir. Essa relação ambígua entre a valorização da habilidade artesanal e o desejo de promover comunidades, que se perde no emaranhado de interesses financeiros sobre o trabalho, provocou e ainda vem provocando a aceleração da já desestabilizada produção artesanal tradicional, além da destruição gradual da técnica e da maestria intrínsecas ao ofício artesanal. Acontece que, conforme aponta Betjemann (2008)Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195., a valorização do trabalho artesanal vem ganhando força em alguns segmentos específicos do mercado, para os quais o significado e a utilidade dos produtos artesanais foram quase que inteiramente transformados.
Nos bastidores dessa transformação, está a ação, mesmo que indireta, das forças organizacionais e mercadológicas que conferem novos valores simbólicos e comerciais ao artesanato. É o que tem ocorrido, por exemplo, em relação à manufatura de souvenirs estudada por Peach (2007)Peach, A. (2007). Craft, souvenirs and the commodification of national identity in 1970s' Scotland. Journal of Design History, 20(3), 243-258. no contexto do mercado do turismo na Escócia. A autora identificou que diversas atividades artesanais que entraram em decadência (até a quase extinção na década de 1970) experimentaram novo vigor a partir das políticas de incentivo ao turismo implementadas na Escócia naquele período. A produção de artefatos úteis e sobre os quais incidiam padrões de qualidade socialmente impostos, legitimados por organizações certificadoras, passou a ser balizada pelas prerrogativas de consumo de turistas que queriam “levar um pedaço da Escócia para casa” (Peach, 2007Peach, A. (2007). Craft, souvenirs and the commodification of national identity in 1970s' Scotland. Journal of Design History, 20(3), 243-258., p. 248). O resultado inequívoco dessas ações foi que as características que diferenciavam aquele tipo de artesanato ficaram comprometidas e os artesãos tornaram-se menos criativos, uma vez que havia um padrão predefinido a ser atendido a fim de satisfazer os interesses do mercado.
Em estudo realizado sobre as mudanças impostas ao artesanato Inuit por órgãos governamentais canadenses, Graburn (2004)Graburn, N. H. (2004). Authentic Inuit art: creation and exclusion in the Canadian north. Journal of Material Culture, 9(2), 141-159. evidencia como a ação intermitente de várias organizações de apoio à atividade serviu para legitimar discursos e valores ao redor dos utensílios de uso tradicional e da cultura daquele povo. No entendimento de Graburn (2004)Graburn, N. H. (2004). Authentic Inuit art: creation and exclusion in the Canadian north. Journal of Material Culture, 9(2), 141-159., uma curiosa dinâmica marco o processo de desmoronamento da autenticidade do trabalho Inuit. À medida que os envolvidos no processo de suposto resgate cultural – tais como governo, empresas, organizações voluntárias e agentes individuais – exercitavam sua criatividade para transformar o artesanato nativo em arte, os próprios artesãos tor-navam-se menos criativos. Isso ocorreu porque determinados interesses orientados pelas forças do mercado, principalmente, passaram a intervir no modo como aqueles povos se relacionavam com o trabalho que eles próprios realizavam. Graburn (2004, p. 152)Graburn, N. H. (2004). Authentic Inuit art: creation and exclusion in the Canadian north. Journal of Material Culture, 9(2), 141-159. chama a atenção, ademais, para “a forte influência que cada um dos agentes tem para modificar e desafiar a ação dos demais no mesmo sistema”. As conclusões do referido estudo apontam para a padronização estética e o direcionamento temático que acabaram por transformar, drasticamente, os traços mais específicos do artesanato tradicional Inuit.
Nos Estados Unidos, sob uma perspectiva de análise um pouco diferente das anteriores, isto é, orientada pelas restrições à liberdade artística em concursos promovidos em feiras agrícolas (conhecidas como county fairs), Paulsen e Staggs (2005)Paulsen, K. E., & Staggs, K. (2005). Constraint and reproduction in an amateur craft institution: the conservative logic of the county fair. Poetics, 33(2), 134-155. examinaram diferentes mecanismos de coerção a partir de uma lógica institucionalista baseada no trabalho de Friedland e Alford (1991)Friedland, R., & Alford, R. R. (1991). Bringing society back in: symbols, practices, and institutional contradictions. In W. W. Powell & P. J. Dimaggio (Eds.). The new institutionalism in organizational analysis (pp. 232-263). Chicago: The University of Chicago Press.. O foco dessa análise estava na resistência das comissões julgadoras em conceder prêmios a qualquer trabalho que desafiasse os padrões normativos estipulados pelos membros curadores acerca do que seria, ou não, o genuíno artesanato americano. Entre as conclusões a que chegaram, estava o entendimento de que, quando os artesãos estabeleciam vínculos com alguns promotores sociais que anunciavam a possibilidade de maior visibilidade e reconhecimento para o trabalho deles, certos padrões restritivos incidiam sobre a produção, o que limitava a liberdade de criação. Essas descobertas sugerem que, no domínio institucional das feiras, a familiaridade e a previsibilidade são traços desejáveis à produção artesanal devido à crença de que assegurariam a continuidade daquela cultura. Entretanto, torna-se evidente que a manutenção de padrões estéticos e utilitários para a produção artesanal engendra a necessidade de manutenção da ordem social e da agregação dos artesãos em torno da instituição que os orienta, o que reforça a dependência deles em relação à estrutura que os domina.
No Brasil, Carrieri, Saraiva e Pimentel (2008)Carrieri, A. P., Saraiva, L. A. S., & Pimentel, T. D. (2008). A institucionalização da feira hippie de Belo Horizonte. Organização e Sociedade, 15(44), 63-79. estudaram a feira de arte, artesanato e produtores de variedades conhecida como a feira hippie de Belo Horizonte, com a intenção de analisar a influência do poder público sobre aquele espaço. Os autores descobriram que a legitimidade de organizações tidas como alternativas, como a feira hippie, estava sujeita a critérios normativos ortodoxos que levavam à institucionalização de determinadas práticas nem sempre desejadas por parte daqueles que, de fato, fazem com que a feira seja o que é. A ação do Estado impunha a organização do espaço e a regulação das atividades empreendidas pelos feirantes a partir de critérios que, por vezes, lhes eram estranhos. Porém, ao contrário do caso americano, aqui os esforços dirigidos à preservação do caráter artesanal da produção partiam dos próprios artesãos, que compactuavam, nas primeiras fases da estruturação daquele espaço, de certos ideais que foram se perdendo à medida que a feira cresceu.
Do conteúdo desses trabalhos, podemos depurar diferentes maneiras por meio das quais a atividade artesanal é utilizada para servir a interesses políticos, econômicos, culturais e estratégicos de grupos ou instituições orientados por objetivos que, eventualmente, se opõem à própria filosofia de trabalho daqueles que vivem da produção artesanal. Nossa proposta de investigação, portanto, encontra respaldo na produção científica realizada sobre a produção artesanal em outros domínios, na medida em que, em diversos lugares do mundo e sob diferentes ângulos de análise, é possível verificar tanto o apelo comercial que o rótulo “artesanal” induz à promoção do consumo quanto a manipulação dessa atividade com vistas à suavização das duras e desiguais condições de trabalho às quais está submetida grande parte da população mundial.
3 A DOMINAÇÃO DO GERENCIALISMO NA ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ARTESANAL
As contribuições trazidas nesta seção, mais uma vez, vão ao encontro do trabalho desenvolvido por Betjemann (2008)Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195., que explica a maneira como diversos movimentos que se propunham a revalorizar o artesanato, a exemplo do movimento Arts and Crafts, acabam implicando, ao fim e ao cabo, a massificação da atividade. Em vez de revitalizar os traços unívocos do artesanato e valorizar a autenticidade desse tipo de trabalho, o gerenciamento da produção artesanal, com base nos preceitos dos treinamentos rápidos, divididos em pacotes de conhecimento ao estilo gerencialista, e na consequente especialização dos artesãos em etapas específicas da produção, acaba por transformar o que poderia ser uma tradicional oficina de mestres de ofício em ambientes reprodutores do ideal fabril capitalista.
Para Veblen (1914 como citado em Betjemann, 2008Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195.), que se preocupou com a essência das práticas de trabalho artesanal, a regulação da força corporal em favor do aumento da eficiência e da precisão e mesmo do surgimento de novas ferramentas e métodos representou uma deflexão nos chamados instintos do artesão. Isso o afastou da autonomia individual e lançou-o na direção da automatização gerenciada pelos processos industriais. O gerencialismo, o mercantilismo, a massificação das técnicas e dos objetos e demais atividades artesanais produzidas hoje só têm reforçado as ideias de Veblen, um século depois.
Todavia, há que se considerar a existência de pesquisas que defendem a difusão e a implantação de mecanismos de controle gerencial que levem à padronização na atividade artesanal. Miranda, Lirio e Souza (2007)Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53., por exemplo, elaboram propostas de atuação com perfil gerencial-funcionalista incutidas em um discurso sobre a valorização do trabalho artesanal. O objetivo do trabalho dos referidos autores era avaliar os principais elementos que condicionam a competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, em Minas Gerais. Para tanto, partiram do pressuposto de que o artesanato é uma potencial fonte geradora de emprego e renda – uma atividade ideal para ser explorada em programas de apelo social.
Na visão de Miranda et al. (2007)Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53., o artesanato como tal deveria ser expandido e vitalizado com o incentivo a ações como a formação de cooperativas imbuídas da tarefa de melhorar as técnicas produtivas e condicionar a inserção dos produtos em mercados maiores e mais rentáveis. Os achados dessa pesquisa apontam para a criação de mecanismos de apoio e treinamento profissional “que busquem aprimorar a capacidade de uma inserção mais competitiva e organizada no mercado” (Miranda et al., 2007Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53., p. 56). Os autores avaliam positivamente a crença de que “a manutenção de cursos regulares favoreceria a padronização da produção e o aumento da qualidade, o que, por si só, ampliaria as possibilidades de comercialização” (Miranda et al., 2007Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53., p. 58).
Miranda et al. (2007)Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53. deixam claro que a institucionalização de práticas organizacionais homogeneizantes sobre o trabalho artesanal, alinhadas a uma perspectiva gerencialista, é o que há de mais positivo para o desenvolvimento da atividade. O trabalho realizado por Miranda et al. (2007)Miranda, A. C., Lirio, V. S., & Souza, S. C. (2007). Condicionantes da competitividade da cadeia produtiva do artesanato no município de Aimorés, Minas Gerais. Organização e Sociedade, 14(40), 49-53. oferece subsídios para compreendermos como a mentalidade gerencial-funcionalista orienta e reforça o comportamento dos agentes interessados na exploração comercial do artesanato. Todavia, não se questiona o que acontece com a miríade de aspectos vinculados à carga cultural inerente à atividade. Há que se refletir, não obstante, que muitos dos trabalhos citados na seção anterior já advertiram que a aplicação de uma visão gerencialista sobre o artesanato pode levar a consequências como a perda da autenticidade e a descaracterização da atividade realizada por artesãos que já trabalhavam muito antes de esses programas de ressignificação produtiva terem chegado até eles.
Diante disso, muitos estudiosos hoje questionam como o artesanato deixou de ser uma forma de produção identificada com o domínio de uma técnica precisa e pela habilidade dos mestres-artesãos, e passou à mera reprodução de objetos que nem de longe se aproximam do padrão estético e funcional que define o bem-fazer da atividade. Na base desse tipo de questionamento está a preocupação com importantes aspectos relacionados à atividade e que acabaram se perdendo: o valor de uso, a tradição envolvida no processo do trabalho do início ao fim, o discernimento e a destreza requeridos por aqueles que dominam o ofício, a apreciação do trabalho refinado que as pessoas são capazes de realizar sem o auxílio das máquinas, as oportunidades para o melhor proveito de surpresas e invenções não planejadas, a reflexão sobre os limites da habilidade e a diversidade estética (Schwalbe, 2010Schwalbe, M. (2010). In search of craft. Social Psychology Quarterly, 73(2), 107-111.). Longe do romantismo ilusório de acreditar que é possível voltar ao artesanato como principal forma de organização da produção (o que seria, no mínimo, uma enorme demonstração de ingenuidade), esses estudiosos compartilham a visão de que a valorização das práticas artesanais oferece argumentos que não vão muito além de uma alternativa a mais para repensar o trabalho na contemporaneidade (Sennett, 2009Sennett, R. (2009). O artífice. São Paulo: Record.; Betjemann, 2008Betjemann, P. (2008). Craft and the limits of skill: handicrafts revivalism and the problem of technique. Journal of Design History, 21(2), 183-195.; Schwalbe, 2010Schwalbe, M. (2010). In search of craft. Social Psychology Quarterly, 73(2), 107-111.).
Ainda em relação à preocupação com questões como mercantilismo, comoditização e gerencialismo que tomou de assalto a atividade, de acordo com Campbell (2005, p. 24)Campbell, C. (2005). The craft consumer culture, craft and consumption in a postmodern society. Journal of Consumer Culture, 5(1), 23-42., “o impacto das filosofias pós-modernas sobre o pensamento social” vem fomentando o surgimento de uma nova classe de consumidores. Na opinião desse autor, tal categoria não responderia pelo comportamento esperado por parte dos atores racionais (dotados de poder para negociar no mercado), tampouco seria representada por indivíduos vulneráveis, sem possibilidades de escolha acerca daquilo que podem e desejam consumir. Esse grupo, formado por pessoas capazes de manipular, conscientemente, os mais diferentes significados atrelados aos produtos, seleciona os bens que consome com intenções específicas, a fim de criar e manter impressões, identidades e estilos de vida diferenciados (Featherstone, 1991 como citado em Campbell, 2005Campbell, C. (2005). The craft consumer culture, craft and consumption in a postmodern society. Journal of Consumer Culture, 5(1), 23-42.).
As demandas desses indivíduos fizeram com que o conceito de artesanato passasse a ser inserido entre as opções de consumo com potencial “desalienante”, nas palavras de Miller (2005)Miller, D. (2005). Materiality: an introduction. In D. Miller (Ed.). Materiality. Durham, London: Duke University Press.. Nesse sentido, o consumo deixaria de ser uma atividade abstrata que envolveria a relação efêmera com um objeto alienado (uma commodity), sobre o qual nada se sabe (como é processado, quais materiais são utilizados em sua produção, de onde vem, quem faz, que tipo de trabalho foi ali empregado etc.), para se transformar em algo que representa, justamente, seu oposto. Nessa concepção, o trabalho envolvido na produção dos objetos passa a ser também fonte de interesse e representa um potencial de consumo; há a vontade manifesta de consumir o resultado desse trabalho humano, uma vez que isso investiria o bem (artefato, serviço ou objeto) de conotações que lhe são intrínsecas, inseparáveis, autênticas e carregadas de valor. Trata-se, grosso modo, do consumo de signos, conforme discutido no trabalho de Trentmann (2004)Trentmann, F. (2004). Beyond consumerism: new historical perspectives on consumption. Journal of Contemporary History, 39(3), 373-401..
Entretanto, cabe-nos apontar, aqui, que a existência de um mercado para o consumo de
bens artesanais tanto pode pavimentar uma nova via para o desenvolvimento do artesanato
quanto seguir o caminho de uma revigorada indústria da cultura. Aliás, as potenciais
consequências desse tipo de fenômeno, que perpassam questões estratégicas e
mercadológicas de difícil previsão e controle, eram uma preocupação para Simões e Vieira (2010)Simões, J. M., & Vieira, M. M. F. (2010). A influência do Estado e
do mercado na administração da cultura no Brasil entre 1920 e 2002. Revista
de Administração Pública, 44(4), 215-237. Recuperado em 12 abril, 2012,
de http://www.redalyc.org/pdf/2410/241016592003.pdf.
http://www.redalyc.org/pdf/2410/24101659...
. Eles propuseram que a
produção cultural está sujeita a toda sorte de forças que constituem o chamado ambiente
institucional. Tais forças ou restrições seriam impostas tanto por meio das normas e
costumes socialmente aceitos quanto pelas exigências do ambiente técnico por eficiência
e eficácia. Diante disso, Simões e Vieira (2010)Simões, J. M., & Vieira, M. M. F. (2010). A influência do Estado e
do mercado na administração da cultura no Brasil entre 1920 e 2002. Revista
de Administração Pública, 44(4), 215-237. Recuperado em 12 abril, 2012,
de http://www.redalyc.org/pdf/2410/241016592003.pdf.
http://www.redalyc.org/pdf/2410/24101659...
perguntam: “será que a lógica de mercado já não estaria sendo institucionalizada no
campo da cultura?”. É, também, por conta desse fio condutor que o presente trabalho se
orienta.
4 EMPREENDEDORISMO E MASSIFICAÇÃO DO ARTESANATO: ADEUS, AUTENTICIDADE
O conteúdo desta seção diz respeito à forma como o artesanato é pensado no âmbito das políticas públicas brasileiras e como o discurso originado nesse meio permeia e orienta a atuação das organizações envolvidas com essa temática no país. Por meio do incentivo a programas específicos, determinam-se os rumos do artesanato em alinhamento a uma estratégia que acaba dissimulando a (re)produção de excluídos da sociedade brasileira. Ademais, os programas que adotam a postura gerencialista tomam a atividade como pura e simples oportunidade de negócio, interferindo no saber fazer local e corrompendo-o com vistas ao atendimento do chamado gosto do mercado. O esforço que vem sendo despendido na transformação do artesão em empreendedor subalterno, um agente cuja mentalidade não se desvincula do comércio, do lucro, da lógica capitalista da acumulação privada de riquezas, é parte da operacionalização dessa ideologia que vê oportunidades de ganhos financeiros em praticamente todas as esferas da vida social.
A partir de meados da década de 1980, instaurou-se no Brasil uma proposta de atuação sociopolítica, cultural e econômica que favoreceu o deslocamento da figura central do Estado para outra: a do mercado. De acordo com Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., tal postura se ajusta ao pensamento de orientação neoliberal que enaltece a superioridade dos mecanismos de mercado para resolver problemas administrativos de governo, como a pobreza e a estagnação econômica. Ademais, com a vigência dessa proposta e o estímulo cada vez maior ao trabalho por conta própria baseado na abertura de micro e pequenos negócios, “a ideologia do empreendedorismo passa a ser reconhecida pelo poder público e organizações do setor privado como uma estratégia apropriada para alavancar o padrão de desenvolvimento orientado para o mercado” (Seraine, 2009Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., p. 28).
Alinhada a essa agenda, a política pública federal para o setor artesanal brasileiro, a partir da década de 1990, visava transformar o artesão em empreendedor (Seraine, 2009). Ora, se a ideia é transformar o artesão em empreendedor, isso pode suscitar uma inquietação como a seguinte: a figura do artesão não serve para a sociedade contemporânea. Caso contrário, por que essa imagem deveria ser transformada? Uma possível resposta, sugere Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., pode estar em um diagnóstico realizado pelo Departamento de Micro, Pequenas e Médias Empresas (Depme), órgão com autonomia sobre o PAB e que também faz parte do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic). O motivo da elaboração desse documento seria a necessidade comum de fortalecimento do PAB e das micro e pequenas empresas brasileiras (Seraine, 2009Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., p. 142). Os detalhes do documento, segundo Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., dizem respeito à baixa competitividade da indústria nacional, incluída aí a chamada indústria artesanal.
Contudo, não há explicações, na tese de Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., acerca do que seria essa necessidade comum. O motivo do empenho dedicado à transformação do artesão em empreendedor não é, portanto, revelado. Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. apenas aponta as causas atribuídas pelo estudo do Depme à mortalidade das empresas, incluídas aquelas vinculadas ao segmento artesanal. Entre essas causas, destacamos a necessidade de capacitação empreendedora; a dificuldade de acesso à tecnologia e a instrumentos de apoio à inovação e certificação de produtos e serviços; a insuficiência de programas acessíveis às micro e pequenas empresas para a promoção da melhoria da qualidade da gestão, dos produtos e serviços e do design; a pouca informação, sensibilização, mobilização e alternativas que permitam a promoção de ajustes dos produtos artesanais às tendências e demandas dos mercados e pouca organização e estruturação do segmento artesanal.
No estudo de Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor
artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e
empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, Brasil., os fundamentos
dessas causas não são explorados. Fica apenas indicada a necessidade de ampliar o
incentivo a uma mentalidade empreendedora orientada para o mercado. A solução para que
se resolvam tais problemas, dadas as ideologias gerencialista (Parker, 2002Parker, M. (2002). Against management. Polity Press:
Cambridge.) e sistêmico-estrutural funcionalista (Caldas & Fachin, 2005Caldas, M. P., & Fachin, R. (2005). Paradigma funcionalista:
desenvolvimento de teorias e institucionalismo nos anos 1980 e 1990. Revista
de Administração de Empresas, 45(2), 46-51. Recuperado em 25 março, 2012,
de http://www.redalyc.org/pdf/1551/155116029003.pdf.
http://www.redalyc.org/pdf/1551/15511602...
) que permeiam esses
ambientes de decisões políticas, parece, invariavelmente, cair em estratégias
intervencionistas que reforçam tanto o fenômeno da massificação quanto o caráter
subalterno da atividade artesanal que é realizada no Brasil. Ademais, entendemos que tal
solução se caracteriza como um dos “ajustes dolorosos” aos quais Banerjee (2008)Banerjee, S. B. (2008). Necrocapitalism. Organization Studies,
29(12), 1541-1563. se refere, quando retoma a expressão mencionada em
documento do Departamento de Assuntos Econômicos das Nações Unidas de 1951 e que diz
respeito às perdas culturais e aos danos sociais considerados necessários para promover
a ideologia do desenvolvimento.
No discurso que foi instaurado a respeito do artesanato a partir da década de 1980,
passa-se a veicular a ideia de que, para que se possa participar de um mercado cada vez
mais competitivo, é preciso formar cada vez mais empreendedores. A esse respeito,
conforme exposto em Termo de referência, do Sebrae (2010, p. 26)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2010).
Termo de referência: atuação do sistema Sebrae no artesanato (D.
C. Mascêne & M. Tedeschi, Orgs.). Brasília: Sebrae., “a lógica de intervenção dos projetos começa e
termina no mercado e pressupõe a realização de um conjunto de atividades sequenciais
cuja responsabilidade pela execução requer a colaboração de toda a infraestrutura de
apoio ao artesanato”. Essas práticas, segundo o Sebrae
(2010)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2010).
Termo de referência: atuação do sistema Sebrae no artesanato (D.
C. Mascêne & M. Tedeschi, Orgs.). Brasília: Sebrae., englobam análises de oferta, demanda e concorrência, capacitação,
promoção mercadológica e agregação de valor – em suma, o jargão completo da forma de
pensar sistêmico-estrutural, gerencial e funcionalista tão presente, ainda, nos
trabalhos de administração (Caldas & Fachin,
2005Caldas, M. P., & Fachin, R. (2005). Paradigma funcionalista:
desenvolvimento de teorias e institucionalismo nos anos 1980 e 1990. Revista
de Administração de Empresas, 45(2), 46-51. Recuperado em 25 março, 2012,
de http://www.redalyc.org/pdf/1551/155116029003.pdf.
http://www.redalyc.org/pdf/1551/15511602...
).
Em relação a esse tópico, Seraine (2009)Seraine, A. B. M. S. (2009). Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. conclui que o Sebrae é a organização que apresenta a maior eficiência no processo de conversão sociocultural de artesãos em empreendedores. A esse respeito, vale conferir as “Orientações para intervenção” contidas em Sebrae (2010)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2010). Termo de referência: atuação do sistema Sebrae no artesanato (D. C. Mascêne & M. Tedeschi, Orgs.). Brasília: Sebrae.. Documentos desse tipo guardam algumas das receitas acerca de como transformar simples e despreparados artesãos em novos e bem-sucedidos empreendedores. Tal processo tende a gerar como produto sociocultural aquilo que, para os fins deste ensaio, entende-se por empreendedor subalterno – um agente social domesticado cujas ações pautam-se pela ideologia do consenso (Mészáros, 2004Mészáros, I. (2004). O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo.).
A institucionalização do discurso que vincula a ideia de trabalho artesanal a algo inferior, cuja produção estaria atrelada a tecnologias arcaicas, em descompasso com a modernidade, é reforçada pelos atores sociais que compartilham o que Parker (2002)Parker, M. (2002). Against management. Polity Press: Cambridge. convencionou chamar de ideologia gerencialista. É isso o que justifica a intervenção gerencial que ocorre na atividade artesanal por parte de entidades como o Sebrae, que pregam a modernização a partir de uma transformação completa dos seus modos de fazer específicos. Em Sebrae (2010)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2010). Termo de referência: atuação do sistema Sebrae no artesanato (D. C. Mascêne & M. Tedeschi, Orgs.). Brasília: Sebrae., a entidade ainda propõe que o compromisso primordial do artesanato é com o mercado.
Tal argumento mostra-se contraditório na medida em que o próprio Sebrae (2011)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2011).
O setor: artesanato no Sebrae. Recuperado em 29 março, 2011, de
http://www.sebrae.com.br/setor/artesanato/sobre-artesanato/artesanato-no-sebrae.
http://www.sebrae.com.br/setor/artesanat...
sustenta que a história do artesanato se confunde com
a história do homem, não sendo possível datar sua origem. A esse respeito, Polanyi (2000)Polanyi, K. (2000). A grande transformação. Rio de
Janeiro: Campus. afirma que a instituição do mercado
como coordenador das relações sociais só veio a reinar na sociedade do século XIX. Ora,
em sendo o mercado uma construção social muito mais recente que a atividade artesanal,
como se justifica a defesa de que o compromisso do artesanato é com o mercado? Que
justificativa daria sustentação às políticas de incentivo ao gerencialismo, à
mercantilização e ao empreendedorismo subalterno no artesanato? Por que o artesão
deveria modernizar-se a partir do desenvolvimento de uma postura empreendedora e da
concepção de artesanato que o restringe a um negócio?
Respostas a essas questões ainda são ausentes em textos veiculados por entidades como o Sebrae (2010, p. 10)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2010). Termo de referência: atuação do sistema Sebrae no artesanato (D. C. Mascêne & M. Tedeschi, Orgs.). Brasília: Sebrae., que sugere que
[...] a dificuldade do artesão em desenvolver postura empreendedora e visualizar o artesanato como negócio, e o acesso a mercados são os principais desafios que precisam ser superados para a legitimação do artesanato como um negócio brasileiro de sucesso.
Novamente, não são apresentados os argumentos que justificam a necessidade do desenvolvimento de uma postura ou mentalidade empreendedora, bem como a visualização do artesanato como um negócio por parte dos artesãos. Uma vez que não sejam exibidos os fundamentos para a adoção dessa postura, reafirma-se a imposição de uma ideologia gerencialista (Parker, 2002Parker, M. (2002). Against management. Polity Press: Cambridge.) baseada, ao que tudo indica, em uma doutrina do senso comum, em uma doxa (Wacquant, 2004Wacquant, L. (2004). Critical thought as solvent of doxa. Constellations, 11(1), 97-101.; Bauman, 2010Bauman, Z. (2010). Mundo consumo: ética del individuo en la aldea global. Buenos Aires: Paidós.).
Tanto o Sebrae quanto as coordenações estaduais que executam as deliberações do PAB vinculam-se à mesma concepção política, que é a própria manifestação da ideologia gerencialista. O esforço dirigido à formação de uma mentalidade empreendedora por meio das ações coordenadas por tais programas baseia-se em pressupostos contestáveis, visto que, a partir da disseminação da lógica do consenso e da naturalização da ideia de que o artesanato precisa ser modificado, define-se essa via como a única solução para o artesanato brasileiro. A argumentação contida nesta seção teve por base o questionamento dessa situação, que se apresenta como uma via natural e inevitável.
5 AS POLÍTICAS INTERVENCIONISTAS E A DESTRUIÇÃO DA AUTONOMIA DO ARTESANATO
O caso relatado nesta seção demonstra a maneira como determinadas for-mas de expressão cultural presentes na atividade artesanal acabam sucumbindo perante ações orientadas pela visão do artesanato como puro negócio. Trata-se da aceitação acrítica e consensual de um discurso que massifica as peculiaridades do artesanato local, reduzindo-as a uma lógica puramente comercial, desvinculada de seu sentido original. O relatado exibido a seguir é contado por Lima (2005)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. e expõe o caso dos presépios de barro do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo.
Ao citar Rabaçal, Lima (2005, p. 15)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. aponta que, “por tradição, eles [os presépios] vêm de meados do século XVII, quando os franciscanos fundaram em Taubaté o Convento de Santa Clara”. Lima (2005, p. 16)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. conta que, nesses presépios, “aparece uma figurinha que às vezes se assemelha a uma raposa, ou a um cachorro, ou a um gambá”, ninguém sabe ao certo. A noção de artesanato como representação simbólica, manifestação cultural e expressão material de quem faz algo impregnado de significado a partir de um material como o barro, por exemplo, concretiza-se quando Lima (2005, p. 17)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. explica o porquê dessa tradição:
Contam os figureiros – assim é a denominação local para os artesãos que mode-lam figuras de barro no Vale – que o gambá [ou raposa] está ali no presépio porque, quando Jesus nasceu, Nossa Senhora não tinha leite. A notícia logo se espalhou e a gambá, que tinha acabado de parir, correu à gruta de Belém para oferecer seu leite. No entanto, porque era humana, Nossa Senhora teve muito nojo do cheiro da gambá [...] e recusou a oferta. Mas Nossa Senhora era também divina e, ao mesmo tempo em que rejeitou o leite, abençoou o animal, determinando que a partir daquela data a gambá não mais sentiria as dores do parto.
Lima (2005)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. afirma que essa história integra o sistema tradicional de crenças que povoam o imaginário das populações daquela região a tal ponto que, ainda hoje, quando uma mulher vai dar à luz, é comum que se coloque sobre a barriga dela uma pele de gambá para que não sinta as dores do parto. Portanto, prossegue o autor,
[...] um objeto é capaz de conter em si uma série de valores, de crenças, de costumes que fazem o seu diferencial. O caso do presépio do Vale do Rio Paraíba do Sul é um exemplo porque conheci uma pessoa que formulava um projeto de apoio àqueles figureiros e, durante a conversa em que me descrevia as ações que pretendia implementar, ela relatava que uma das medidas seria reduzir o número de elementos do presépio, pois, conforme se fazia tradicionalmente, além de resultar num objeto visualmente “poluído”, de uma “estética de mau gosto”, o custo da peça era muito elevado porque tinha muitas figurinhas, muitos detalhes. A proposta era manter o presépio com o mesmo tipo de modelagem e pintura com tinta xadrez, o que patentearia a origem da peça, mas intervir na técnica [...] e suprimir o excesso de flores e de animais. E um dos animais a ser suprimido seria, exatamente, aquele bicho estranho, que não era cachorro, não era raposa, não era gambá, não era nada. Ela propunha manter as figuras centrais, reduzindo os personagens ao núcleo da cena: Nossa Senhora, Menino Jesus, São José, o burrinho, o galinho e o anjo, pois assim o presépio demandaria menos matéria-prima (barro e tinta) e menor tempo para confecção, saindo o produto final a um custo menor. Pouco importava se houvesse perda cultural, se a ausência da gambá no presépio do Vale fosse empobrecer todo o Vale e por conseguinte toda a humanidade (Lima, 2005Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol., pp. 16-17, grifos nossos).
Do exposto, fica evidente qual a lógica subjacente à política intervencionista que orienta a realização desse tipo de programa dirigido à atividade artesanal: racionalizar, enxugar e suprimir o que for “estranho”; comprimir o tempo despendido na realização de um trabalho; expandir, capitalizar, maximizar o lucro, custe o que custar. De outra parte, a manutenção da raposa/gambá no presépio, como um argumento para se agregar valor por meio da cultura, de modo a “se conseguir fazer com que o objeto seja mais valorizado e mais caro justamente por essa razão” (Lima, 2005Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol., p. 17), desafia a própria continuidade do artesanato tradicional dentro das relações de mercado.
Nesse sentido, ainda que teorizasse tendo em vista outro contexto, Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes. já havia criticado a falácia reducionista que se aplica ao caso ora em evidência, isto é, o aumento da eficácia gerencial por meio de estratégias de simplificação. É por essa via, contestada por Dussel (2002)Dussel, E. (2002). Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes., Vieira e Carvalho (2003)Vieira, M. M. F., & Carvalho, C. A. P. (2003). Introdução - sobre organizações, instituições e poder. In M. M. F. Vieira & C. A. Carvalho (Orgs.). Organizações, instituições e poder no Brasil. Rio de Janeiro: FGV., Misoczky e Amantino-de-Andrade (2005aMisoczky, M. C. A., & Amantino-de-Andrade, J. (2005a). Uma crítica à crítica domesticada no estudos organizacionais. Revista de Administração Contemporânea, 9(1), 193-212., 2005b)Misoczky, M. C. A., & Amantino-de-Andrade, J. (2005b). Tréplica: quem tem medo do fazer acadêmico enquanto práxis? Revista de Administração Contemporânea, 9(1), 237-243., Grosfoguel (2010)Grosfoguel, R. (2010). Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In B. S. Santos & M. P. Meneses (Orgs.). Epistemologias do sul (pp. 115-147). São Paulo: Cortez. e tantos outros, que Lima (2005)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol., talvez com a melhor das intenções, parece entrar no esquema funcional-gerencialista como mais um reprodutor da lógica hoje dominante. Aí está, precisamente, a força dessa ideologia. Ao manter a tal raposa/gambá no presépio de barro para preservar a cultura e, ao mesmo tempo, agregar valor à mercadoria, a interpretação de Lima (2005)Lima, R. G. (2005). Artesanato de tradição: cinco pontos em discussão. In Artesanato Solidário/ArteSol (Org.). Olhares itinerantes: reflexões sobre artesanato e consumo da tradição (pp. 13-42). São Paulo: Artesanato Solidário/ArteSol. absorve essa lógica, ainda que de forma velada. Assim, não nos surpreende que os próprios artesãos acabem por ressignificar o valor do artesanato, transformando o modo como produzem, trabalham e se reproduzem como sujeitos. Dessa forma, o artesão assume a mentalidade do empreendedor subalterno, ainda que não tenha plena consciência disso.
Não tardará o dia em que, ao serem questionados quanto ao porquê de manterem aquele animal estranho no presépio, esses novos empreendedores nem sequer saibam a origem dessa tradição; apenas compreendam que “vale a pena”, “que assim vende mais”. Essa é a lógica do negócio, e, nessa lógica, só tem senti-do apelar para a história do leite da raposa/gambá porque isso, de alguma forma, aumenta a rentabilidade do negócio. Também não tardará o dia em que, possivelmente em nome do capital, inventar-se-ão outras lendas desse tipo para que se venda mais. Nessa ideologia o papel, isto é, a função da cultura é esta: servir ao capital. A esse respeito, torna-se pertinente a lembrança do dilema ético/êmico, trazido por Guba e Lincoln (1994)Guba, E. G., & Lincoln, Y. S. (1994). Competing paradigms in qualitative research. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.). The Sage handbook of qualitative research (pp. 105-117). London: Sage., que diz respeito, também, à alteridade – algo bastante presente nos estudos sobre cultura (Cuche, 2002Cuche, D. (2002). A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc.), mas ausente das proposições gerencialistas.
Contrariamente à visão gerencialista, Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. diagnosticou a existência de tensões entre as dimensões cultural e econômica da atividade artesanal tradicionalmente realizada em Florianópolis/SC. Segundo Paes (2009, p. 112)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil., “o modo como o SEBRAE vê o artesanato é duramente criticado [...] tanto pelos artesãos como pelos demais órgãos envolvidos na questão do artesanato”. A autora sugere que as oposições entre as lideranças vinculadas a entidades que influenciam o artesanato daquela cidade determinam a configuração dos espaços sociais que estiveram sob estudo, nomeadamente as feiras de artesanato. A disputa entre os representantes dessas instituições se dava, preponderantemente, pelo poder de definição acerca do que é artesanato (e, portanto, do que poderia, ou não, ser exibido nas feiras) e pela organização dos espaços de comercialização.
Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. tenta expor o que pensam os artesãos de Florianópolis em relação à política intervencionista imposta por órgãos como o Sebrae, e, dos relatos por ela levantados, fica evidente que as políticas de incentivo ao empreendedorismo contrastam com a própria filosofia de vida que é mantida pelos artesãos. Tal filosofia é desprezada na medida em que, segundo Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil., os artesãos são vistos como pessoas desocupadas e pouco afeitas à necessidade de ganhar dinheiro. Para o Sebrae, os artesãos que não compartilhassem a pretensão de transformarem-se em empresários não eram sequer atendidos, e mais importante que qualquer outra coisa é saber, de antemão, certos detalhes produtivos, a exemplo de quantas peças o artesão é capaz de fazer e em quanto tempo (Paes, 2009Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.).
No entender dos artesãos, pondera Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil., o maior problema dessa relação diz respeito ao fato de o Sebrae influenciar demasiadamente a produção artesanal quando aplica os princípios funcionalistas de gestão de negócios, algo que força a reprodução de uma ideologia gerencialista. Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. afirma que os artesãos que aceitaram participar de sua pesquisa mostram-se contrários a essa tendência, entretanto o discurso veiculado nos canais oficiais do Sebrae omite histórias desse tipo. No Sebrae (2004)Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2004). Histórias de sucesso: experiências empreendedoras (R. B. de A. Duarte, Org.). Brasília: Sebrae., conta-se apenas um lado da história, afinal, o que conta para essa doutrina são as histórias de sucesso.
Outro aspecto dessa relação diz respeito ao que Paes (2009)Paes, K. D. (2009). Relações de poder no subcampo artesanal de Florianópolis e a tensão entre a dimensão cultural e econômica. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. denominou ser a postura elitista da entidade, que só seleciona para o projeto Arte Catarina (do qual é coordenador) peças de artesãos reconhecidos e que tenham mercado garantido. Um dos entrevistados revelou que, nesse programa, o Sebrae contou apenas com a participação de artesãos que já eram mestres, não levando em consideração produções emergentes. Essas informações permitem-nos questionar a relevância dos programas de capacitação e treinamento que teriam por fim alavancar a atividade como um negócio genuinamente brasileiro (Sebrae, 2008Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2008). Artesanato: um negócio genuinamente brasileiro (Ed. comemorativa). Brasília: Sebrae.). Diante disso, questionamos:
-
O que há de genuinamente brasileiro em uma política intervencionista que vai de encontro à filosofia de vida dos próprios artesãos?
-
A quem serve o processo de mercantilização do artesanato no Brasil?
-
Quem se beneficia com tal estado de coisas, com a massificação dos gostos e da expressão cultural?
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude dos processos de intervenção que têm se proposto a ressignificar a produção artesanal brasileira, observa-se certo prejuízo das características materiais e dos traços simbólicos que são peculiares a essa forma de expressão cultural, culminando com a naturalização da ideologia gerencialista como mode-lo standard para a configuração do artesanato. Nesse quadro, o que ocorre é a mera incorporação de cada vez mais pessoas no enredado sistema-mundo que alimenta a matriz de poder capitalista moderno/colonial (Grosfoguel, 2010Grosfoguel, R. (2010). Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In B. S. Santos & M. P. Meneses (Orgs.). Epistemologias do sul (pp. 115-147). São Paulo: Cortez.). E tal processo, que privilegia a empresarização do artesanato, tanto banaliza quanto reproduz a ideia de desenvolvimento como sinônimo de ampliação da capacidade de consumo. A lógica subjacente a essa ideologia está na concepção de que a proclamada liberdade que seria inerente à política neoliberal reside no potencial de consumo individual. Vale lembrar, contudo, que, “na sociedade do consumo, o consumidor acaba sendo consumido” (Lefebvre, 1971Lefebvre, H. (1971). Everyday life in the modern world. New York: Harper Torchbooks., p. 98), e, nela, “a cultura também entra como um item de consumo” (Lefebvre, 1971Lefebvre, H. (1971). Everyday life in the modern world. New York: Harper Torchbooks., p. 108).
As distinções que asseguravam originalidade a diferentes grupos de artesãos, organizações ou comunidades, tendem a se tornar cada vez menos evidentes, delineando um processo de massificação tanto da produção quanto das práticas organizacionais, algo que encobre questões de fundo que não têm sido discutidas a contento. O processo de comoditização dessa atividade fecha um ciclo que retira a autonomia do artesão, afasta-o de uma perspectiva emancipatória e reproduz uma situação de dependência em que, de fato, não há perspectivas aparentes de transformação. A inclusão social, de que tanto se fala nos programas de ressignificação da atividade, é um eufemismo para a inclusão de novos consumidores no mercado de massa, o que completaria o quadro neoliberal segundo uma perspectiva em que a ideia de sociedade se confundiria com a ideia de mercado. Ademais, o potencial emancipatório do artesanato como fonte de subsistência e a organização artesanal como alternativa à organização capitalista são atenuados pelo uso de manobras discursivas funcionais à ordem dominante.
Não basta dispor do potencial para realizar uma transformação sociocultural emancipatória se os atores sociais que porventura a fariam estiverem presos a correntes ideológicas que lhes atenuam a ação. Compreendemos que as intervenções sobre o artesanato integram estratégias para encobrir a sistemática reprodução da lógica excludente do capital. Como, a partir da ação de programas indutores à transformação da atividade artesanal em setor produtivo, o que acontece é a facilitação da entrada dos novos atores no mercado do consumo, somos levados a questionar: Em que medida isso pode ser considerado uma mudança?. De fato, não vislumbramos mudanças socioculturais efetivas a partir dos programas de intervenção dirigidos ao artesanato brasileiro; o que encontramos são relações de dependência e, se há dependência, não compreendemos como possa haver indícios de emancipação sociocultural por parte das pessoas que foram envolvidas nessa atividade pela via do gerencialismo.
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O movimento Arts and Crafts foi uma reação cultural (iniciada na segunda metade do século XIX, mas com influência até os anos 1930) contra o empobrecimento da arte decorativa e as condições de precariedade social em que era geralmente produzida. O movimento apoiava o artesanato e defendia reformas econômicas e sociais, além de ser essencialmente anti-industrial.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Nov-Dec 2014
Histórico
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Recebido
21 Jul 2014 -
Aceito
30 Out 2014