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Respeito à autonomia e livre consentimento em pesquisas com material biológico armazenado

EDITORIAL

Respeito à autonomia e livre consentimento em pesquisas com material biológico armazenado

Volnei Garrafa

Professor Titular, Coordenador da Cátedra UNESCO e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília; Membro do International Bioethics Committee da UNESCO; Brasília, DF

A relação entre os princípios do respeito à autonomia e do livre consentimento com as pesquisas desenvolvidas em seres humanos passou a ser observada na medida em que documentos internacionais de grande repercussão e credibilidade começaram a ser construídos coletivamente pela comunidade de nações, governos e por organizações científicas com respeitabilidade no âmbito mundial. O processo iniciou-se com o Código de Nuremberg (1947), passando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas - ONU, 1948), continuando com a Declaração de Helsinque (Associação Médica Mundial, 1964) e o Relatório Belmont (Governo dos Estados Unidos, 1974-78), chegando mais recentemente à Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas para a Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia - UNESCO, 2005). Nesta última, composta por 28 artigos e homologada unanimemente por 191 países, o tema da autonomia - dada sua crescente importância no contexto ético contemporâneo - foi desdobrado em nada menos que cinco princípios, assim discriminados: Autonomia e responsabilidade individual (artigo 5º); Consentimento (art. 6º); Indivíduos sem capacidade de consentir (art. 7º); Respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual (art. 8º); e Privacidade e confidencialidade (art. 9º)1.

As raízes históricas da autonomia foram plantadas no início da Idade Média, entre os séculos 4 e 5, em meio a controvérsias teológicas cristãs desenvolvidas por Pelágio e Santo Agostinho com relação ao "livre arbítrio", entendido na época não somente como a capacidade do ser humano de fazer o bem, mas também de escolher o bem2. Dez séculos depois, com o surgimento do protestantismo, Martinho Lutero e João Calvino desenvolveram, respectivamente, os conceitos de liberdade e individualismo/individualidade no exercício das relações dos cristãos frente a Deus. No século 18, as idéias do filósofo Immanoel Kant - também protestante - contribuíram decisivamente para a compreensão do que hoje se entende por autonomia, a partir de estudos que separaram Deus dos domínios da razão. Igualmente ao que se verifica nas práticas relacionadas com o capitalismo, como já propôs Max Weber3, a autonomia também tem uma raiz protestante calcada nos direitos individuais das pessoas de livremente tomarem suas decisões e assim exercerem seus direitos.

No contexto específico das pesquisas com seres humanos, o capítulo referente ao respeito à autonomia e livre consentimento dos indivíduos para participar (ou não) das mesmas tem uma especial importância para o campo da ética biomédica. No Brasil, especificamente, o controle público das pesquisas científicas desenvolvidas com seres humanos começou com uma Resolução do Conselho Nacional de Saúde datada de 19884 que, no entanto, não teve a receptividade e compreensão esperadas na época. Poucos anos depois, no entanto, a Resolução número 196 emitida em 1996 pelo Conselho Nacional de Saúde mudou esse panorama, criando o sistema CEP-CONEP (Comitês de Ética em Pesquisa e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa)5, que gradativamente passou a ser assimilado pela comunidade científica, proporcionando ao país uma estrutura formal, regular e mais confiável no campo do controle ético das investigações biotecnocientíficas.

Dentro do amplo espectro de tópicos que compõem a regulamentação da matéria no Brasil, um dos temas que mais têm gerado controvérsias é aquele relacionado com a necessidade -ou não -do paciente assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) mesmo frente aos casos de material biológico armazenado. Para dirimir as dúvidas, o Conselho Nacional de Saúde emitiu em 2005 a Resolução 347, adicional à 196/96, que regulamentou "o armazenamento e utilização de material biológico no âmbito de projetos de pesquisa"6. O referido documento, ainda em vigência, trata especificamente dos projetos que envolvam o armazenamento ou uso de materiais armazenados em pesquisas anteriores e define que os protocolos de pesquisa que pretendem utilizar esse material deverão incluir, entre outros aspectos: "Mecanismos que assegurem a possibilidade de contato com os doadores para fornecimento de informação de seu interesse (...) ou para obtenção de consentimento específico para uso em novo projeto". Outro ponto da referida Resolução define que: "Em caso de impossibilidade da obtenção do consentimento específico para nova pesquisa (doador falecido, tentativas anteriores de contato sem sucesso ou outros), devem ser apresentadas as justificativas como parte do protocolo para apreciação do CEP, que dispensará ou não o consentimento individual".

Atualmente, encontra-se em fase final de discussão nas instâncias do Ministério da Saúde uma portaria ministerial que deverá criar novas diretrizes nacionais para biorrepositórios e biobancos de material biológico humano com finalidade de pesquisa, em substituição à Resolução 347/2005 já referida. Para acompanhar a evolução internacional do conceito expandido de autonomia, as diretrizes futuras deverão explicitar claramente que a guarda e o gerenciamento do material biológico não significam doação; o material é e sempre será propriedade do indivíduo do qual o mesmo provém e somente poderá ser utilizado mediante seu explícito consentimento livre e esclarecido, mesmo que se trate de uma nova pesquisa para a qual o material venha a ser novamente requisitado.

O estudo de Duque, Ramalho e Casali-da-Costa7 é um exemplo de que boas pesquisas, mesmo em condições adversas de acesso à obtenção do termo de consentimento, podem ser realizadas a custo relativamente baixo, respeitando-se rigorosamente os ditames bioéticos vigentes. No estudo retrospectivo de 155 casos de pacientes com câncer de cólon operados entre 2000 e 2004, obtiveram o TCLE - a partir de contato telefônico inicial complementado pelo envio postal de duas cópias do termo de consentimento e um envelope selado para reenvio aos pesquisadores - em nada menos que 74% dos casos. Este número fica um pouco aquém dos 90% alcançados na Holanda por Vermeulen et al.(8) em um trabalho desenvolvido sobre material genético armazenado por 10 anos, mas supera os 68% obtidos no Reino Unido por Furness et al (9) em estudo feito com pacientes submetidos a transplante renal seguido de biopsia.

Não se acomodando frente da resposta obtida que, embora positiva não foi absoluta, os pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (INCA) acima referidos foram além, cumprindo exemplarmente as normas nacionais vigentes para o setor: solicitaram formalmente ao CEP da instituição dispensa do TCLE nos casos em que foi impossível o registro do termo de consentimento, documentando devidamente a situação e explicitando as razões da impossibilidade, sendo atendidos pelo Comitê.

Este parece ser, portanto, o caminho correto apontado pela bioética. Contudo, em importante obra recentemente publicada na Europa, autores nórdicos se empenham em aprofundar a relação dos novos biobancos com a ética nas pesquisas, defendendo que a questão central não está no "consentir ou não consentir", mas em como proteger e promover os interesses dos indivíduos que contribuíram com a pesquisa, beneficiando -ao mesmo tempo -também a sociedade e os futuros pacientes (10). Defendem, ainda, que os prós e contras relacionados com o tema indicam que devemos buscar um enfoque apropriado para cada contexto ou situação específica, pois um modelo único é incapaz de contemplar todas as diferentes situações com as quais nos deparamos neste complexo campo. Neste sentido, propõem quatro alternativas que com certeza passarão a ser analisadas pelos estudiosos da bioética daqui para o futuro: o consentimento amplo, o respeito à confidencialidade e privacidade, a humildade do pesquisador e a autorização condicionada.

A ética, como a ciência, é glacial. Mas, apesar de glacial, é mutável com o tempo, com os costumes operados nas diferentes sociedades humanas e com a dinâmica própria da realidade concreta da qual -queiramos ou não - todos fazemos parte.

  • 1. UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: http://www.bioetica.catedraunesco.unb.br
  • 2. Selleti JC, Garrafa V. As raízes cristãs da autonomia. Petrópolis: Vozes; 2005.
  • 3. Weber M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira; 1988.
  • 4
    Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução N. 1, 1988. Regulamenta o credenciamento de Centros de Pesquisa no país e recomenda a criação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em cada centro (revogada posteriormente e substituída pela Resolução número 196/1996). Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/reso01.doc
  • 5
    Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução número 196 de 10 de outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 16 out 1996. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resoluções/1996/Reso196.doc
  • 6
    Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no. 347 de 13 de janeiro de 2005. Projetos com uso ou armazenamento de materiais biológicos. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resoluções/2005/Reso347.doc
  • 7. Duque CG, Ramalho DMP, Casali-da-Costa JC. Termo de consentimento e análise de material biológico armazenado. Rev Assoc Med Bras 2010;56(5): 563-67.
  • 8. Vermeulen E, Schmidt MK, Aaronson NK, Kuenen M, van Leeuwen FE. Obtaining 'fresh' consent for genetic research with biological samples archived 10 years ago. Eur J Cancer. 2009; 45:1168-74.
  • 9. Furness PN, Nicholson ML. Obtaining explicit consent for the use of archival tissue samples: Practical issues. J Med Ethics. 2004; 30:561-4.
  • 10. Hofmann B, Solbakk JH, Holm S. Consent to biobank research: one size fits all? In: Solbakk JH, Holm S, Hofmann B. The ethics of research biobanking. New York: Springer; 2009, p. 3-23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    2010
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